Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:464/19.9BELLE
Secção:CA
Data do Acordão:11/21/2019
Relator:ALDA NUNES
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR;
FALTA DE PROVISORIEDADE E DE INSTRUMENTALIDADE;
REJEIÇÃO LIMINAR.
Sumário:I- As providências cautelares existem para assegurar a utilidade das sentenças a proferir nos processos judiciais, de que são preliminares ou incidente (arts 112º, nº 1 e 113º, nº 1 do CPTA), constituindo a intrumentalidade o principal traço característico da tutela cautelar, que é por natureza provisória.

II- Inexiste relação de dependência e instrumentalidade entre a providência cautelar de intimação para adoção dos atos administrativos conducentes ao licenciamento da operação urbanística apresentado e a ação administrativa já instaurada de condenação do Município a praticar todos os atos de licenciamento necessários no âmbito de processo de licenciamento. Pois, caso fosse decretada a providência requerida, de intimação na adoção de atos administrativos no procedimento de licenciamento, esgotava o objeto da ação principal.

III- Nas circunstâncias do caso concreto, em que não está pedida nem vem pedida a suspensão de eficácia da aventada suspensão (ilegal) do procedimento, nem mesmo vem alegado e demonstrado existir uma decisão de suspensão do procedimento de licenciamento por causa de decisão da Agência Portuguesa do Ambiente, a omissão ou a inércia administrativa no procedimento de licenciamento de obras de construção de hotel, só pode ser objeto do meio processual principal urgente previsto no regime jurídico da urbanização e edificação, para o qual remetem os arts 5º e 26º do DL nº 39/2008, de 7.3.

IV- As recorrentes dispõem de um meio processual principal urgente, previsto no art 111º e 112º do regime jurídico da urbanização e edificação aprovado pelo DL nº 555/99, de 16.12, na redação que lhe foi dada pelo (DL nº 214-G/2015, de 02/10), e não meramente cautelar, para satisfazer a respetiva pretensão material de prática dos atos devidos no procedimento de licenciamento das obras de construção do hotel requerido ao Município.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


Relatório

H.........., Lda. e H.........., S.A., requereu, na pendência da ação principal nº 422/19, contra o Município de Vila Real de Santo António, providência cautelar de intimação para adoção dos atos administrativos conducentes ao licenciamento da operação urbanística apresentado ou, se se entender que a ponderação de interesses assim o exige, a intimação do Município a praticar todos os atos do licenciamento, com exceção do alvará de construção.

Por decisão de 18.7.2019 foi o requerimento cautelar rejeitado liminarmente, nos termos do art 116º, nº 2, al d) do CPTA, por faltar à providência pedida a necessária provisoriedade e instrumentalidade em relação à ação principal.

Inconformadas com o decidido, as requerentes interpuseram recurso (incorretamente apelidado de revista (cfr arts 140º, nº 2 e 150º do CPTA, só existe recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo), que, nos termos do art 140º, nº 1 do CPTA, é de apelação com alegações em que concluíram:
A. Vem o presente recurso de revista interposto do Despacho de indeferimento liminar das providências cautelares requeridas que se sustentou na falta “[d]a necessária provisoriedade e instrumentalidade em relação à ação principal”.
B. Tal decisão revela-se manifestamente desconforme à realidade, já que não resulta das providências requeridas e dos seus efeitos – quando confrontadas com o pedido formulado no processo principal – qualquer esgotamento do objeto ou do conteúdo do processo principal.
C. Erra o Despacho recorrido quando julga que “é, pois, uma só e a mesma a providência jurisdicional que é pedida, nos mesmos termos e com idêntico alcance e conteúdo, no processo cautelar e na ação principal”.
D. No processo principal, as ora Recorrentes peticionaram, nos termos dos artigos 37.º e seguintes do CPTA (ação administrativa de condenação à prática de ato administrativo devido), a condenação do Município à “[prática de] todos os atos de licenciamento necessários no âmbito do processo de licenciamento n.º .../2017 que corre termos juntos dos serviços municipais competentes” (negrito nosso), ao passo que, nos presente autos, as Requerentes peticionaram, ao abrigo do disposto nos artigos 112.º e ss. do CPTA, a intimação do Município requerido para “adotar os atos administrativos conducentes ao licenciamento da operação urbanística apresentado pelas Requerentes ao Município de Vila Real de Santo António” (isto é, o decretamento de providência cautelar de intimação para adoção de uma conduta), ou, “subsidiariamente”, para praticar “todos os atos do licenciamento, com exceção do alvará de construção”.
E. Contrariamente ao decidido no despacho recorrido, as Recorrentes não pretendem que, em sede cautelar, o Requerido seja intimado a “praticar os atos e formalidades cuja prática consideram legalmente devida no procedimento de licenciamento que se encontra em curso, incluindo, como se interpreta, o próprio ato de deferimento do pedido de licenciamento”, antes pretendem, somente, que o Município ordene o (rectius, seja intimado ao) levantamento da “suspensão” ilegalmente decretada no referido procedimento de licenciamento, pois, como ficou, aliás, bem patente, quer no requerimento cautelar, quer na petição inicial, o putativo fundamento legal que o Município utilizou para a invocada “suspensão” do procedimento deixou de se verificar
na ordem jurídica.
F. Nesta sede cautelar as Recorrentes pretendem, apenas, que o Requerido Município seja intimado a pôr cobro à aventada suspensão (ilegal) do procedimento ou a remover qualquer outro pretenso “obstáculo” – que tenha por base a invocada “anulação do parecer favorável da APA” –, e que, alegadamente, vem impedindo o Requerido de adotar os atos administrativos conducentes ao licenciamento da operação urbanística.
G. Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, o pedido para “adoção dos atos administrativos conducentes ao licenciamento da operação urbanística” formulado nesta sede cautelar prende-se, singularmente, com a “paralisia” e a “inércia” do procedimento de licenciamento, perpetrada pelo Município, sem qualquer fundamento legal, e que aqui se pretende remover, provisoriamente, conforme legitima o artigo 112.º do CPTA, evitando que se tenha que aguardar por uma decisão de mérito na ação principal para, só aí, (re)iniciar a tramitação do procedimento de licenciamento, quando é perfeitamente possível ir adiantando esse procedimento – se o Tribunal a quo o vier a ordenar – ao mesmo tempo que os autos do processo principal evoluem até à respetiva decisão final.
H. É evidente que, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, a providência requerida não esgotará, de imediato, o objeto e o conteúdo decisório da sentença a proferir no processo principal, pois é apenas neste que se requer a condenação à prática de atos concretos e legalmente devidos, suscetíveis de conferir às Requerentes o direito à edificação do seu projeto hoteleiro e, até lá, o que se pede é que os nossos Tribunais não permitam que se deixe arrastar a situação de inércia, de modo que quando houver a dita condenação principal, o Município ainda se demore com os trâmites do licenciamento que pode, até lá, ir conhecendo a sua normal (e já de si lenta) evolução, assim se reduzindo a demora administrativa da tramitação, restando apenas, para prejuízo das Recorrentes, a demora do processo principal.
I. Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, é evidente a provisoriedade da tutela cautelar requerida: as providências destinam-se a garantir apenas o andamento do procedimento administrativo e não um determinado resultado dele emergente, i.e., as Recorrentes não pedem que, em sede cautelar, lhe seja reconhecido o que apenas no términus desse procedimento poderá (ou não) ser decidido pelo Município, de tal modo que, se vier a ser julgado improcedente o pedido formulado nos autos principais, a tutela terá sido apenas provisória: nesse caso o Município terá, como em muitos outros procedimentos, praticado os atos de trâmite do mesmo, mas manter-se-á o impedimento para que seja proferido um ato de licenciamento final; esses atos de trâmite não determinarão a emissão de qualquer ato final que se repercuta na esfera das Requerentes (ou que vincule o Município), mas apenas e só obviarão a maiores atrasos no eventual deferimento da pretensão construtiva das Requerentes.
J. Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, encontram-se plenamente justificadas e demonstradas a necessária provisoriedade e instrumentalidade da providência requerida em relação à ação principal, de modo que, julgando diferentemente e rejeitando liminarmente as providências requeridas, o Tribunal a quo violou a norma pretensamente habilitante de tal rejeição: a alínea d) do n.º 2 do artigo 116.º do CPTA.
K. Por outro lado, erra também o Tribunal recorrido ao invocar a pretensa aplicabilidade ao caso sub iudice do pedido de intimação judicial previsto nos artigos 111.º, alínea a), e 112.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, pois que tal aplicabilidade e o facto de se tratar de processo urgente, não constitui, por si só, fundamento bastante para que as Recorrentes fiquem totalmente desprovidas de tutela cautelar – entendimento que perpassa na fundamentação do despacho recorrido –, porquanto tal tutela se encontra legalmente prevista no artigo 112.º do CPTA, em termos muito amplos, por só assim se poder concretizar o comando ínsito no artigo 268.º, n.º 4, da CRP.
L. Na verdade, a dicotomia existente entre os pedidos cautelar e principal, e a posição de inércia ilegal adotada pelo Município, obrigaria a que o Tribunal a quo, no caso vertente, e em nome do princípio da tutela jurisdicional efetiva – plasmado no aludido artigo 268.º, n.º 4, da CRP, e concretizado pelos artigos 2.º e 112.º do CPTA –, tivesse aceitado, liminarmente, o requerimento cautelar, auscultando, posteriormente, o Requerido Município e, atendendo aos interesses em presença, decretasse sempre uma qualquer outra providência cautelar que, em substituição daquela que concretamente foi solicitada, se revelasse adequada a evitar a lesão dos interesses defendidos pelas Requerentes e a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal, ao abrigo do artigo 120.º, n.º 3, do CPTA.
M. Resulta do n.º 4 do artigo 284.º da CRP – e de uma interpretação conforme à Constituição dos preceitos processuais relevantes – que o direito à plenitude da garantia jurisdicional impõe que tenha sempre de se encontrar um meio que permita o acesso ao tribunal quando exista um direito ou interesse legalmente protegido carecido de tutela, como sucede no caso sub iudice.
N. De modo que a decisão recorrida e interpretação nela preconizada para os artigos 2.º, n.º 2, alínea q), 112.º, 113.º e 114.º, n.º 1, 116.º, n.º 2, alínea d), e artigo 120.º, n.º 3, do CPTA, bem como a sua aplicação ao caso vertente, coartaram, de modo inelutável, o direito à tutela jurisdicional efetiva das Recorrentes (atingindo o núcleo essencial desse direito fundamental), em violação do artigo 268.º, n.º 4, da CRP.
O. De modo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo procedeu a uma interpretação inconstitucional dos preceitos invocados, o que redunda na violação, pelo despacho recorrido, dos artigos 2.º, n.º 2, alínea q), 112.º, 113.º e 114.º, n.º 1, 116.º, n.º 2, alínea d), e artigo 120.º, n.º 3, todos do CPTA.

Termos em que … deve ser dado provimento ao presente Recurso e, consequentemente, serem as providências cautelares liminarmente admitidas».


O Município de Vila Real de Santo António não contra-alegou o recurso.


O Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, em que pugna pela improcedência do recurso.


Cumpre apreciar.

O objeto do recurso:
Atentas as conclusões das alegações do recurso, que delimitam o seu objeto, nos termos dos arts 635º, nº 4 e 639º, nº 1 e nº 2 do CPC, ex vi art 140º, nº 3 do CPTA, dado inexistir questão de apreciação oficiosa, cumpre saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento: i) quanto à falta de provisoriedade e instrumentalidade das providências requeridas; ii) quanto à carência de tutela cautelar, por entender ser aplicável ao caso a intimação judicial prevista nos arts 111º, al a) e 112º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.

Fundamentação de facto

Com interesse para o conhecimento do objeto do recurso, por documentos, resulta provada a factualidade seguinte:

A. No presente processo cautelar, instaurado a 6.7.2019, as requerentes pretendem seja decretada a providência cautelar de intimação para adoção dos atos administrativos conducentes ao licenciamento da operação urbanística apresentado ou, se se entender que a ponderação de interesses assim o exige, a intimação do Município a praticar todos os atos do licenciamento, com exceção do alvará de construção – cfr requerimento inicial do processo cautelar.

B. Por seu turno, no processo principal, instaurado a 12.6.2019, que corre termos sob o nº 422/19.3BELLE, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, as requerentes peticionam a condenação do Município de Vila Real de Santo António a praticar todos os atos de licenciamento necessários no âmbito do processo de licenciamento nº .../2017 que corre termos junto dos serviços municipais competentes – cfr petição inicial da ação principal.

C. A 6.3.2017 a requerente H.........., Lda requereu junto dos competentes serviços do Município a aprovação dos projetos de obras de construção de hotel de 5 estrelas, com capacidade máxima de 340 utilizadores, 170 quartos, 340 camas, conforme DL nº 39/2008, de 7.3, sito na Av. .........., em Monte Gordo – cfr doc nº 9 junto com a pi da ação principal – por consulta no sitaf.

D. A 7.12.2018 o Município requerido, na sequência de uma reunião com a Presidente da CM, remeteu à requerente um ofício, sobre o assunto construção de unidade hoteleira em Monte Gordo, em que alega estar impedido de promover ou autorizar qualquer intervenção prevista no projeto de requalificação e reabilitação de Monte Gordo, em que se inclui a construção do hotel, em virtude da anulação administrativa do parecer favorável da Agência Portuguesa do Ambiente ao estudo prévio do projeto de requalificação e reabilitação – cfr doc nº 10 junto com a pi da ação principal – por consulta no sitaf.

E. A 2.5.2019 a requerente H.........., Lda enviou nova missiva ao Município requerido com o seguinte teor:


"Texto integral no original; imagem"


De modo que não estando o Município impedido, ao contrário do veiculado na vossa carta de 7.12.2018, solicita-se que sejam promovidos os atos de licenciamento requeridos no processo nº .../2017 – cfr doc nº 12 junto com a pi da ação principal – por consulta no sitaf.

F. O Município não respondeu.

O Direito.
Erro de julgamento:
A decisão recorrida rejeitou liminarmente o requerimento cautelar, nos termos do disposto no art 116º, nº 2, al d) do CPTA, por inexistência de provisoriedade e instrumentalidade entre a ação principal, já instaurada, e o presente processo cautelar.

O despacho de rejeição liminar, previsto no art 116º, nº 2 do CPTA, permite a eliminação ab initio de processo que não reúna as condições mínimas de viabilidade.

Com efeito, quando o tribunal considere que é evidente e manifesto que a pretensão cautelar deduzida é infundada ou que existem exceções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso que impedem a emissão de uma pronúncia de mérito sobre a pretensão do requerente deve rejeitar o requerimento cautelar.

Assim, e bem, decidiu o tribunal recorrido.
Vejamos.
As providências cautelares existem para assegurar a utilidade das sentenças a proferir nos processos judiciais, de que são preliminares ou incidente (arts 112º, nº 1 e 113º, nº 1 do CPTA).

A razão de ser do processo cautelar é a de permitir, em concretização do direito a uma tutela judicial efetiva, constitucionalmente consagrado no artigo 268º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, a adoção de medidas cautelares adequadas a precaver os direitos ou interesses legalmente protegidos dos interessados, enquanto não é definitivamente decidida a causa principal. A tutela cautelar visa apenas assegurar o efeito útil de uma sentença a proferir em sede de ação principal, regulando provisoriamente a situação sob litígio até que seja definitivamente decidida, naquela ação, a contenda que opõe as partes. Razão pela qual se exige que as medidas cautelares cumpram as características de instrumentalidade e provisoriedade. E também motivo pelo qual se faz depender a sorte do processo cautelar do provável êxito do processo principal (fumus bonnus iuris).

Nesta medida, o artigo 112º, nº 1 do CPTA de 2015 [o aplicável ao caso (entrado em juízo a 14.1.2019)] admite que
quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adoção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.

A função preventiva das providências cautelares, como por exemplo da intimação para adoção de uma conduta por parte da Administração – cfr art 112º nº 2, al i) do CPTA – conduz a que estas assumam como características típicas, decorrentes da sua própria natureza, a
instrumentalidade e a provisoriedade.

O procedimento cautelar caracteriza-se pela sua instrumentalidade – dependência da ação principal – provisoriedade – por não estar em causa a resolução definitiva de um litígio – sumariedade – porque implica uma cognição sumária da situação em litígio através de um procedimento simplificado e rápido.

O principal traço característico da tutela cautelar, escreve Mário Aroso de Almeida e Carlos F. Cadilha, em Comentário ao CPTA, 2017, 4ª edição, pág. 914, «é a sua instrumentalidade: ela existe em função dos processos em que se discute o fundo das causas, em ordem a assegurar a utilidade das sentenças a proferir no âmbito desses processos, que, por isso, são qualificados como processos principais».

A instrumentalidade constitui, portanto, «um limite interno ao exercício do poder cautelar do juiz administrativo» (cfr Fernanda Maçãs, em As Medidas Cautelares, in Reforma do Contencioso Administrativo, vol. I, O Debate Universitário, pág. 457 e 458) e, por isso, não consente que a providência cautelar antecipe a sentença do processo principal, conduzindo a efeitos definitivos e irreversíveis. Pois, neste último caso, se a sentença final fosse favorável ao requerido perderia utilidade ou eficácia (cfr Ac do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25.11.2004, processo nº 376/04, sob consulta em http://www.ggsi.pt/jtca.).

A provisoriedade constitui outra característica típica das providências cautelares, decorrente da sua própria natureza.

Como refere José Carlos Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, 7ª edição, pág. 342: «a tutela cautelar constitui, por definição, uma regulação provisória de interesses, de modo que um outro aspeto marcante das providências respetivas é o carácter de provisoriedade e de temporalidade, quer da duração da decisão, quer do seu conteúdo, que se manifesta em diversos planos. Desde logo, a decisão cautelar, mesmo que seja antecipatória, sempre será, pela sua função, provisória relativamente à decisão principal, na medida em que não a pode substituir e em que caduca necessariamente com a execução desta».

Ou seja, a provisoriedade da tutela cautelar impede que o tribunal adote uma regulação que dê resposta à questão de fundo sobre a qual versa o litígio, questão de fundo esta a resolver no processo principal. Tem de estar em causa uma composição provisória de um litígio, cabendo à ação principal a composição definitiva do mesmo.

A tutela cautelar visa apenas assegurar o efeito útil de uma sentença a proferir em sede de ação principal, regulando provisoriamente a situação sob litígio até que seja definitivamente decidida, naquela ação, a contenda que opõe as partes. Razão pela qual se exige que as medidas cautelares cumpram as características da instrumentalidade e da provisoriedade.

A partir do momento em que a cognição do pedido cautelar implique a resolução definitiva do litígio, a pretensão do requerente não se compadece com a provisoriedade que caracteriza a tutela cautelar e, inexistindo «simplicidade do caso ou urgência na sua resolução definitiva», não pode ser antecipada, para o processo cautelar, a decisão sobre o mérito da causa.

No caso em análise, as recorrentes, como incidente da ação principal nº 422/19.3BELLE, requereram a intimação do Município
a adotar os atos conducentes ao licenciamento da operação urbanística ou, subsidiariamente, a praticar todos os atos do licenciamento, com exceção do alvará de construção.

Naquele processo principal, que segue a forma de ação administrativa de condenação à prática de ato administrativo devido, as ora recorrentes pedem a condenação do Município de Vila Real de Santo António a praticar todos os atos de licenciamento necessários no âmbito do processo de licenciamento nº .../2017 que corre termos junto dos serviços municipais competentes

A decisão recorrida considerou, então, que inexiste a necessária provisoriedade e instrumentalidade entre a providência cautelar requerida, de intimação para adoção de atos administrativos em procedimento de licenciamento de estabelecimento hoteleiro, e a ação administrativa de condenação na prática de atos de licenciamento de estabelecimento hoteleiro.

A decisão alicerça-se, nomeadamente. na fundamentação seguinte:

As requerentes pretendem obter, pois, quer no processo cautelar, quer no processo principal, a intimação judicial (ou condenação) do município requerido a praticar os atos e formalidades cuja prática consideram legalmente devida no procedimento de licenciamento que se encontra em curso, incluindo, como se interpreta, o próprio ato de deferimento do pedido de licenciamento.

É, pois, uma só e a mesma a providência jurisdicional que é pedida, nos mesmos termos e com idêntico alcance e conteúdo, no processo cautelar e na ação principal: e é um só e único o efeito jurídico que as requerentes pretendem ver introduzido na ordem jurídica existente, exigindo do município requerido a prática dos atos legalmente devidos.

O certo é que, caso se viesse a intimar o município requerido a praticar os atos (e formalidades) pretendidos neste processo cautelar, nenhum interesse jurídico existiria numa eventual sentença a proferir no processo principal: com o decretamento da providência, ficariam de imediato consumidos e esgotados todos os efeitos pretendidos e consumar-se-ia uma situação que, quer no plano dos factos, quer no plano de direito, se tornaria irreversível, tornando absolutamente inútil uma futura decisão sobre o mérito na ação principal.

Intimar a entidade requerida a emitir tais atos significaria, afinal, ditar definitivamente o direito em relação à pretensão material objeto do processo principal, deixando sem conteúdo e sem objeto uma futura decisão de mérito sobre a mesma.

Esta antecipação (cautelar) dos efeitos e do conteúdo da providência definitiva a obter na ação principal, por implicar uma definição irreversível da causa, nunca poderia, por isso, configurar-se como meramente provisória.

O que as requerentes pretendem é, afinal, obter de uma forma célere, mas ilegítima, uma regulação rápida e definitiva do litígio através de um processo cautelar: a providência que solicitam não se destina especificamente a prevenir ou evitar provisoriamente os prejuízos decorrentes da demora que é própria da tramitação da ação principal, mas sim a resolver definitivamente o litígio através de uma pronúncia judicial de condenação da entidade pública a emitir o pretendido ato administrativo de licenciamento (e os atos e formalidades conducentes ao mesmo).

Ora, essa condenação só poderá ser obtida a título principal, como providência definitiva. Aliás, como se antecipa, partindo-se do pressuposto de que não existe uma decisão de suspensão do procedimento administrativo e de que efetivamente decorreram os prazos fixados para a prática de atos especialmente regulados no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro) – ao qual está submetido, ainda que com as especificidades constantes do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, o procedimento respeitante à instalação de empreendimentos turísticos que envolva, como no caso concreto envolve, a realização de operações urbanísticas ali previstas – deveriam as requerentes ter deduzido um pedido de intimação judicial do município requerido para a prática desses mesmos atos que consideram legalmente devidos (identificando-os adequadamente), nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 111.º, alínea a), e 112.º desse diploma (forma de processo para a qual poderá vir a ser convolada, como se prefigura, a ação principal que instauraram, caso entretanto não deduzam esse pedido em processo próprio), ao qual se aplica o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto aos processos urgentes.

O decretamento da providência pedida a título cautelar violaria, pois, a proibição de antecipar a resolução do litígio e de prejudicar o sentido da decisão e o interesse no julgamento da causa principal, implicando o «provimento antecipado do pedido de mérito em termos irreversíveis», cujos efeitos constitutivos não poderiam ser anulados ou revertidos na decisão da causa principal.

Nunca poderia, por isso, a providência pedida nestes autos ser adotada como medida cautelar, uma vez que, caso fosse decretada, esgotaria de imediato o objeto e o conteúdo decisório da sentença a proferir no processo principal.

Não se antevê, de resto, nas circunstâncias do caso concreto, uma qualquer outra providência cautelar que, em substituição daquela que concretamente foi solicitada, se revele adequada a evitar a lesão dos interesses defendidos pelas requerentes e a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal e que possa ser concedida sem violação do princípio do dispositivo, ao abrigo do artigo 120.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

A abordagem assim feita não merece reparo, uma vez que entre o procedimento cautelar requerido e a ação principal antes instaurada não existe relação de dependência e instrumentalidade do pedido cautelar relativamente à ação administrativa e a decisão cautelar caso fosse de intimação na adoção de atos administrativos no procedimento de licenciamento esgotava o objeto da ação principal.

Nas circunstâncias do caso concreto, em que não está pedida nem vem pedida a suspensão de eficácia da aventada suspensão (ilegal) do procedimento, nem mesmo vem alegado e demonstrado existir uma decisão de suspensão do procedimento de licenciamento por causa de decisão da Agência Portuguesa do Ambiente, a omissão ou a inércia administrativa no procedimento de licenciamento de obras de construção de hotel, como muito bem refere a sentença recorrida, só pode ser objeto do meio processual principal urgente previsto no regime jurídico da urbanização e edificação, para o qual remetem os arts 5º e 26º do DL nº 39/2008, de 7.3. A intimação judicial para a prática de ato legalmente devido visou, no plano urbanístico, corresponder à imposição do art 268º, nº 4 da CRP, de através de uma ação principal, mas urgente, os interessados poderem reagir contra a omissão ou inércia da Administração nos processos de licenciamento de obras de construção. Ou seja, as recorrentes dispõem de um meio processual principal urgente, previsto no art 111º e 112º do regime jurídico da urbanização e edificação aprovado pelo DL nº 555/99, de 16.12, na redação que lhe foi dada pelo (DL nº 214-G/2015, de 02/10), e não meramente cautelar, para satisfazer a respetiva pretensão material de prática dos atos devidos no procedimento de licenciamento das obras de construção do hotel requerido ao Município a 6.3.2017. Pelo que a alegada violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, in casu, não resulta da decisão recorrida e da interpretação que a mesma faz do disposto nos arts 2º, nº 2, al q); 112º, 113º, 114º, nº 1; 116º, nº 2, al d) e 120º, nº 3 do CPTA, as recorrentes, elas mesmas, é que não utilizam o meio processual que o legislador introduziu no ordenamento jurídico fundado no princípio da tutela jurisdicional efetiva e em cumprimento do disposto no art 268º, nº 4 da CRP.

Assim sendo, as recorrentes com este requerimento cautelar não podem antecipar, a título provisório, o resultado favorável pretendido no processo principal, mediante a intimação do Município a adotar os atos administrativos conducentes ao licenciamento da operação urbanística, designadamente, porque o objeto da ação principal é o mesmo, a condenação do Município na prática dos aos administrativos necessários no âmbito do processo de licenciamento.

A medida cautelar pretendida pelas recorrentes não assegura a utilidade da sentença a proferir na ação administrativa de condenação na prática do ato devido, por falta dos pressupostos processuais da provisoriedade e da instrumentalidade destes autos em relação à causa principal. O que bem ditou a rejeição liminar do requerimento cautelar apresentado pelas recorrentes, por manifesta improcedência ditada por falta de fundamento da pretensão, nos termos do art 116º, nº 2, al d) do CPTA.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

Custas pelas recorrentes.
Registe e notifique.

*
Lisboa, 2019-11-21,

(Alda Nunes),

(Carlos Araújo),

(Ana Celeste Carvalho).