Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:726/14.1BECTB-A
Secção:CT
Data do Acordão:10/10/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CUMULAÇÃO ILEGAL DE PRETENSÕES
CONDENAÇÃO À PRÁTICA DE ATO DEVIDO
Sumário:I. Em sede de ação administrativa, é possível cumular um pedido impugnatório com um pedido de condenação à prática do ato devido.

II. Reagindo o administrado contra um ato de indeferimento, é necessária a formulação de um pedido de condenação à prática do ato devido.

III. Na apreciação da (i)legalidade da cumulação de pretensões não há que atender ao mérito da pretensão formulada, mas tão-só ao preenchimento dos pressupostos da cumulação.

IV. A decisão atinente ao concreto conteúdo do ato considerado devido respeita à apreciação do mérito da ação administrativa.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: *

Acórdão

I. RELATÓRIO

O Município da G…….. (doravante Recorrente ou A.) veio recorrer do despacho saneador proferido a 30.08.2017, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Castelo Branco, no qual foi julgada procedente a exceção de cumulação ilegal de pedidos.

Nas alegações apresentadas, concluiu nos seguintes termos:

“A. Segundo jurisprudência administrativa reiterada, a determinação do meio processual adequado - impugnação judicial ou acção administrativa - está dependente do conteúdo do acto impugnado (no caso sub judice, dos actos de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa) comportar ou não a apreciação da legalidade de liquidações, sendo irrelevante o facto de tal acto se inserir no procedimento de liquidação de imposto;

B. Deste modo, e seguindo exemplos de casos já julgados pelos tribunais administrativos superiores, os pedidos de reconhecimento de direito à dedução devem ser objecto de acção administrativa especial para impugnar actos de indeferimento destes mesmos pedidos;

C. Se o acto de indeferimento do pedido supra identificado não tiver apreciado a legalidade das liquidações de IVA, este actos administrativo deve ser impugnado através do meio processual de acção administrativa especial;

D. Para o efeito, o exercício do direito à dedução, nos termos do n.° 2 do artigo 96.° do Código do IVA, incide sobre um momento posterior à liquidação;

E. Deste modo, um acto administrativo de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa onde se requeira o reconhecimento do direito à dedução do IVA, que não aprecie a legalidade dos correspondentes actos de liquidação de IVA tem como meio processual adequado a acção administrativa;

F. No caso sub judice, a decisão de indeferimento em apreço só analisou as questões alusivas à (in)tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Recorrente e à inexistência de qualquer erro na autoliquidação;

G. Entendeu a AT na decisão de indeferimento em apreço, que inexistia qualquer erro na autoliquidação, por considerar que a questão em causa era relativa ao foro do exercício do direito á dedução de IVA, concluindo pela intempestividade do pedido apresentado pelo Recomente;

H. No despacho saneador, o Tribunal a quo reconhece expressamente que a AT não apreciou o mérito do pedido de revisão da autoliquidação de IVA não tendo analisado a legalidade da autoliquidação em causa;

I. Neste contexto, e considerando as normais legais em vigor e a jurisprudência administrativa aplicável, e não tendo a decisão de indeferimento apreciado a legalidade da autoliquidação de IVA realizada pelo Recorrente, o Tribunal a quo deveria, no seu despacho saneador aqui recorrido, ter julgado a acção administrativa especial como meio processual adequado para apreciar o pedido de reconhecimento do direito à dedução de IVA;

J. Nos termos do n.° 1 do artigo 71.º do CPTA, o Tribunal a quo tem poderes para apreciar o pedido do Recorrente ao reconhecimento do direito sub judice;

K. Em suma, face ao exposto, considera o Recorrente que, mal andou o Tribunal a quo em não considerar a acção administrativa especial como o meio processual adequado para apreciar o pedido em apreço.

IV. Do pedido

Nestes termos, e nos mais de direito que vossas excelências suprirão, deverá o presente recurso ser dado como procedente e, em resultado, determinar- -se a anulação parcial do despacho saneador recorrido, devendo 0 processo seguir como acção adminsitrativa especial para todos os pedidos apresentados pelo recorrente nesta acção, com todas as consequências legais”.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Recorrida ou AT) apresentou contra-alegações, onde concluiu nos seguintes termos:

“A) O saneador, a fls…, ao ter julgado procedente a excepção da ilegal cumulação de pedidos deduzida pela R., ora recorrida e, em consequência, ao ter absolvido a mesma quanto ao pedido de reconhecimento do direito a deduzir IVA, no valor de €20.709,85, com o consequente reembolso desse montante acrescido de juros indemnizatórios, fez uma correcta interpretação e aplicação da lei aos factos, pelo que, deve ser mantido.

B) Conforme resulta da informação nº 2147, de 07/08/14, da DSIVA que fundamenta por remissão a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, o recurso, bem como, o pedido de revisão oficiosa viriam a quedar-se pela questão da apreciação dos pressupostos legais que permitiriam, ou não, ao então A., e ora recorrente obter a revisão do acto de autoliquidação de IVA, nos termos dos artigos 78º da LGT e 78º e 98º do CIVA.

C) Tendo-se concluído pela não aplicação ao caso quer do art. 78º da LGT quer do art. 98ºnº 2 do CIVA. E pela intempestividade do pedido de revisão face ao previsto no nº 6 do art. 78º do CIVA.

D) Assim, é por demais evidente que o indeferimento do pedido de revisão oficiosa e o do subsequente recurso hierárquico formulados pelo então A., e como resulta da matéria de facto dada como provada pelo saneador, a fls…, tiveram como fundamento a falta de um pressuposto formal: o da tempestividade do pedido.

E) E a procedência de tal vício importou a desnecessidade de apreciação, de fundo, da pretensão material do ora recorrente.

F) Isto é, o ora recorrente nunca viu ser apreciada, de fundo, a sua pretensão material, a decisão de indeferimento da AT quedou-se pela verificação dos pressupostos legais que, in casu, permitiriam, ou não, a revisão dos actos tributários e, deste modo, a AT, não determinou se o então A. reunia os pressupostos legais para proceder à revisão da autoliquidação deduzindo o montante de IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista, isto é, na aquisição de bens e serviços afectos quer a operações que conferem o direito à dedução do imposto, quer a operações que não conferem esse mesmo direito.

G) Ora, conforme se deliberou no Ac. do STA, de 06/11/08, in proc. nº 0357/08, a forma processual de reacção contra o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa pode ser a impugnação judicial ou a acção administrativa especial, consoante a decisão comporte, ou não, a apreciação da legalidade do acto de liquidação.

H) Deste modo, a acção administrativa especial só será o meio adequado para a impugnação do acto ora impugnado, desde que seja unicamente apreciado o controle da verificação dos pressupostos para a aplicação do regime de revisão do acto tributário, no caso em concreto.

I) Neste sentido, veja-se, igualmente, o que se deliberou no Ac.do STA de 03/05/17, Proc. nº 035/16.

J) A esta conclusão não obsta o deliberado os Acórdãos do TCA Sul de 9/06/16, proc. 08374/15 e do STA de 25/06/09, Proc. nº 0194/09, invocados pelo recorrente.

K) Efectivamente em nenhum deles esteve em causa a análise de um indeferimento de um pedido de revisão oficiosa, mas antes, a análise do indeferimento de um pedido de autorização para dedução de IVA, formulado nos termos do nº 7 do art. 71º do CIVA, na redacção anterior à Lei nº 39-A/05.

L) Pelo que, tratando-se de situações de facto distintas não é aqui invocável tal jurisprudência, devendo, em consequência manter-se o saneador, a fls…, que fez uma correcta interpretação e aplicação da lei aos factos. Por outro lado:

M) O Tribunal, a quo também decidiu, e bem, que não pode substituir-se à AT e determinar o conteúdo do acto a praticar pela mesma condenando a AT a rever o acto tributário de liquidação e a decidir de acordo com a pretensão do ora recorrente. Isso mesmo resulta dos arts. 71º nº 2 e 95º nº 5 do CPTA.

N) Efectivamente, em face do conteúdo da pronúncia da AT, a mesma não analisou se o recorrente detinha os pressupostos legais para efectuar a revisão da autoliquidação procedendo à dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista.

O) Assim, uma eventual condenação da AT reconhecendo essa dedução relativamente à autoliquidação de 2009, implicaria uma valoração própria da actividade administrativa, e porque, nesta matéria, não é identificável uma única solução como a legalmente possível, não pode o Tribunal a quo proceder a essa condenação.

P) Até porque, a análise de um pretenso direito substantivo às deduções que o recorrente pretende regularizar depende de um procedimento inspectivo a realizar pela AT, donde, não se pode considerar que os documentos constantes do processo, são suficientes para determinar da existência desse eventual direito.

Q) Não se vê, pois, como poderia o Tribunal a quo condenar a AT a proceder à anulação da liquidação, sendo certo que existe uma forma de processo própria para a apreciação de tal liquidação, cfr. Ac. do STA de 03/05/17, Proc. 035/16 e prescindindo de uma confirmação acerca do montante do imposto objecto do pedido

R) Pelo que, nunca seria possível uma eventual condenação da AT à prática de acto condenando a AT a reembolsar IVA no montante de €20.709,85.

Termos pelos quais e, com o douto suprimento de V. Exas, deve ser negado provimento ao recurso e ser mantido o saneador, a fls…, que absolveu a ora recorrida da instância, quanto ao pedido de condenação da AT a proceder ao reembolso do imposto, dado que o mesmo fez uma correcta interpretação e aplicação da lei aos factos”.

O Ilustre Magistrado do Ministério Público foi notificado nos termos do art.º 146.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), ex vi art.º 279.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Colhidos os vistos legais, vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, em virtude de ser admissível a cumulação de pedidos efetuada pelo Recorrente?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1) Em 13-12-2012, o ora Autor apresentou pedido de Revisão Oficiosa «da (auto)liquidação de IVA efectuada em excesso nas declarações periódicas deste imposto, relativas ao ano de 2009, e consequente pagamento de prestação tributária em excesso, no valor de € 20.709,85» – cfr. procedimento de revisão do acto tributário junto ao processo administrativo apenso;

2) Por despacho de 20-11-2013, foi indeferido o pedido mencionado em 1), por motivo de extemporaneidade do mesmo, tendo por base a informação exarada em 07-11-2013, da qual consta, além do mais, o seguinte:

«V. DA CONCLUSÃO

137. A revisão oficiosa de uma liquidação de IVA não pode prejudicar a imperatividade das normas em que fixam os prazos para o exercício do direito à dedução.

138. As regras do instituto da revisão oficiosa não podem prevalecer face às previstas no CIVA para o exercício do direito à dedução, caso contrário estas ficariam esvaziadas de conteúdo e, consequentemente, de eficácia.

139. Deixa de existir o direito à dedução se o requisito formal da tempestividade não for observado.

140. O Requerente não tem liberdade de escolher, dentro do prazo a que se refere o nº 2 do artigo 98º do CIVA, o momento para concretizar o direito à dedução do imposto.

141. Só nos casos em que o CIVA não estabelece um prazo especial, é que o direito à dedução pode ser efetuado no prazo previsto no nº 2 do artigo 98º do CIVA.

142. Estando, no caso em análise, já ultrapassados os prazos para o exercício do direito à dedução estabelecidos nos artigos 22º e 23º do CIVA, e confirmando-se que os documentos de suporte relativos às operações passivas em causa foram registados na contabilidade do Requerente em devido tempo, apenas se pode admitir a correção do imposto deduzido com base no nº 6 do artigo 78º do CIVA.

143. O nº 6 do artigo 78º do CIVA estabelece um prazo especial para o exercício do direito à dedução de dois anos para as regularizações a favor do sujeito passivo, que depois de ultrapassado conduz à preclusão desse direito.

144. Tendo o Requerente apresentado, em 14 de Dezembro de 2012, o pedido de revisão oficiosa onde solicita a dedução “adicional” de imposto suportado em 2009, mostra-se ultrapassado o prazo para o exercício desse direito.

145. Em face do exposto, deve o presente pedido, salvo melhor opinião, ser indeferido, uma vez que precludiu o direito à dedução do IVA em causa.»;

3) O ora Autor foi notificado do despacho mencionado no ponto anterior, pelo ofício n.º 21535, datado de 26-11-2013 e recepcionado em 28-11-2013 – cfr. resulta do procedimento de revisão oficiosa junto ao processo administrativo apenso;

4) Em 27-12-2013, o ora Autor apresentou Recurso Hierárquico, peticionando a anulação de indeferimento do pedido de revisão oficiosa por si deduzido e que fosse considerado como dedutível o montante de € 20.709,85 com referência ao ano de 2009 – cfr. resulta do procedimento de recurso hierárquico junto ao processo administrativo apenso;

5) Em 19-06-2014, foi proferida Informação da qual constava, além do mais, o seguinte: «(…)

2 – Apreciação do Recurso Hierárquico

2.1. Erro na Autoliquidação e Imputabilidade aos Serviços

18. É recorrente na petição de recurso, a invocação de que o alegado erro incorrido pelo Recorrente foi motivado pela ambiguidade do regime legal de dedução de imposto aplicável aos sujeitos passivos mistos e por erradas orientações administrativas veiculadas pela AT.

(…)

20. Afigura-se, porém, que o erro invocado pelo Recorrente não é imputável aos serviços, desde logo porque não se configura, nesta situação, a existência de um erro.

(…)

27. Ora, o Recorrente é sujeito passivo misto, o que, nos termos do n.º 1 do art.º 23.º do CIVA, significa que efetua simultaneamente operações tributáveis que conferem o direito à dedução e operações isentas que não conferem esse direito. Como tal apenas pode exercer o direito à dedução do imposto suportado nas aquisições que se destinem às operações que conferem direito à dedução, isto é, as operações tributáveis.

28. Sendo assim, torna-se necessário, face ao conjunto de todas as operações, determinar o montante do imposto que é dedutível e o que não é dedutível, podendo fazê-lo pelo método da percentagem da dedução (pro rata) ou pelo método da afetação real.

29. Estes são princípios elementares da aplicação do IVA a sujeitos passivos mistos, os quais já eram conhecidos pelo Recorrente no ano de 2009, não podendo, como exposto, invocar-se qualquer ambiguidade na lei. No entanto, nessa data, o Recorrente optou por não utilizar qualquer dos métodos de dedução previstos p elo CIVA, seja calcular a percentagem da dedução de imposto suportado em bens de utilização mista, seja optar pela afetação real.

30. O que é uma opção legítima e comum entre sujeitos passivos mistos. De facto, por vezes as percentagens de dedução de imposto são tão baixas que tais sujeitos passivos optam por não deduzir qualquer imposto relativo a esses bens, evitando assim os custos administrativos, económicos, técnicos e logísticos necessários ou inerentes à indagação do imposto passível de dedução.

31. Essa é uma opção que se encontra no âmbito da autonomia de atuação permitida pelo imposto e é materializada na autoliquidação efetuada pelo sujeito passivo. Desta forma, na situação em apreço, não é legítimo que o Recorrente venha invocar que ocorreu um erro quando optou por não deduzir IVA que podia eventualmente deduzir.

32. Acresce que, contrariamente ao afirmado pelo Recorrente, o direito à dedução não pode ser configurado como um “poder-dever”, mas sim como um direito do sujeito passivo, o qual pode ser exercido ou não, consoante a opção consubstanciada na (auto)liquidação de imposto por si realizada.

(…)

35. Em caso algum pode ser admitido que existe um erro na autoliquidação (e logo imputável aos serviços) numa situação em que, como no caso em apreço, o sujeito passivo simplesmente não utilizou qualquer dos métodos de dedução relativa a bens de utilização mista. Ou seja, casos em que nem sequer está em causa o cálculo da percentagem de dedução.

36. O mesmo se aplica, no que concerne ao método de afetação real, nas situações em que o sujeito passivo optou por não calcular o grau de utilização de recursos utilizados em atividades tributadas e não tributadas.

37. Desta forma, contrariamente ao invocado pelo Recorrente, estão corretos os métodos de dedução utilizados (ou omitidos), não tendo sido invocada qualquer circunstância que permita enquadrar a atuação do sujeito passivo num contexto de erro. Pelo contrário, as autoliquidações realizadas consubstanciam uma opção consciente e legítima do sujeito passivo.

2.2. O Prazo do Direito à Dedução do Art.º 98.º, n.º 2 e o Direito à Regularização do Art.º 78.º, n.º 6 do CIVA

38. O Recorrente pretende demonstrar que a sua pretensão pode ser conseguida no prazo de quatro anos a contar do ano de imposto, invocando para tanto que esse é o prazo do direito à dedução previsto no n.º 2 do art.º 98.º do CIVA e que, ainda se assim não fosse, é legítimo o pedido de revisão das autoliquidações realizadas, no mesmo prazo, ao abrigo do n.º 1 do art.º 78.º da LGT.

(…)

71. Em suma, no que concerne à legalidade do ato impugnado, não sendo aplicável às situações de regularização de imposto o prazo de quatro anos previsto no n.º 2 do art.º 98.º do CIVA, constatando-se que os documentos de suporte ao imposto, que o Recorrente pretende regularizar, estão e foram registados na contabilidade, o direito reivindicado só poderia ser exercido, e seria efectivamente admitido, na melhor das hipóteses, com recurso ao mecanismo no n.º 6 do art.º 78.º do CIVA. No entanto, o pedido teria de ser apresentado no prazo de dois anos, o que não aconteceu.

2.3. A Regularização de Imposto através da Revisão dos Atos Tributários do Art.º 78.º da LGT

72. Como exposto, o segundo argumento aduzido no sentido da aplicação do prazo de quatro anos à pretensão do Recorrente passa pela subsunção da situação em apreço no n.º 1 do art.º 78.º da LGT, relativo à revisão oficiosa dos atos tributários.

73. Tendo-se concluído que, no caso em apreço, não existe um erro na autoliquidação, nem um erro imputável aos serviços, nunca poderia a pretensão do Recorrente ser acolhida com base na revisão de imposto plasmada no n.º 1 do art.º 98.º do CIVA e no n.º 1 do art.º 78.º da LGT.

(…)

80. Por outro lado, como resulta detalhadamente do despacho recorrido, o pedido de revisão do ato tributário de autoliquidação não pode sobrepor-se às normas reguladoras dos direitos à dedução e à regularização deste imposto. Por outras palavras, um sujeito passivo que nos termos do CIVA, já não pode regularizar o IVA autoliquidado, não pode atingir o mesmo resultado através da revisão oficiosa prevista no n.º 1 do art.º 78.º da LGT e no n.º 1 do art.º 98.º do CIVA.

81. Na realidade, o regime procedimental da revisão oficiosa (art.º 78.º da LGT) não pode proceder à extensão dos prazos de caducidade impostos pelo CIVA para a regularização de imposto. Nestes casos, a ser admitido o meio procedimental utilizado, a pretensão terá de improceder por caducidade do direito de regularização.

82. De facto, a ter acolhimento a pretensão do Recorrente, a revisão do ato tributário passaria a constituir e, em grande parte, substituir os mecanismos de dedução e regularização de imposto tão laboriosamente plasmados no CIVA.

83. Assim, a revisão oficiosa do imposto não pode prejudicar a imperatividade das normas que estabelecem prazos especiais para o exercício do direito de regularização. Sob pena destas normas ficarem desprovidas de qualquer efeito prático, perderem a sua razão de ser e daquele direito, na prática, poder ser exercido, em muitas situações, pelo mecanismo da revisão oficiosa no prazo de quatro anos fixado no n.º 1 do art.º 78.º da LGT.

(…)»

6) Com base na informação antecedente, foi, em 02-09-2014, proferido despacho de indeferimento do recurso hierárquico – cfr. resulta do procedimento de recurso hierárquico constante do processo administrativo apenso;

7) Desse indeferimento foi o ora autor notificado em 11-09-2014 - cfr. resulta do procedimento de recurso hierárquico constante do processo administrativo apenso;

8) Em 10-12-2014, o ora Autor apresentou junto deste TAF a presente acção administrativa especial – cfr. resulta de fls. 1 dos autos”.

II.B. Refere-se ainda na decisão recorrida:

“Com interesse, nada mais se provou”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A matéria de facto dado como provada resulta dos documentos juntos aos autos bem como os que constam do processo administrativo apenso, designadamente do procedimento de revisão oficiosa dos actos tributários e do procedimento de recurso hierárquico”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento, quanto à matéria de exceção

Considera o Recorrente que o Tribunal a quo errou no seu julgamento atinente à matéria de exceção suscitada, na medida em que, face ao conteúdo do ato sob escrutínio, é meio de reação próprio a ação administrativa (então especial), sendo também o meio adequado para apreciar o pedido de condenação da AT formulado na petição inicial a título principal.

Vejamos.

Sobre situação similar à ora em apreciação já se pronunciou este TCAS, em Acórdão de 07.05.2020 (Processo: 509/16.4BECTB-A), pelo que se passará à respetiva transcrição, na parte transponível, por se aderir integralmente à respetiva fundamentação.

Assim:

“Determina o art.º 97.º, n.º 2, da LGT, que “… [a] todo o direito corresponde o meio processual mais adequado de o fazer valer em juízo”, dispondo o seu n.º 3 que “[o]rdenar-se-á a correção do processo quando o meio usado não for o adequado segundo a lei”.

A ação administrativa [especial], em processo tributário, abrange os casos referidos no n.º 2 do art.º 97.º do CPPT (redação vigente à data da propositura da presente ação), ou seja, a impugnação de “… atos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação da autoria da administração tributária…”.

Por seu turno, a impugnação judicial é o meio adequado para reagir contra um ato tributário de liquidação, com fundamento em qualquer ilegalidade, tendo por objetivo a anulação total ou parcial dos atos tributários ou a declaração da sua nulidade ou inexistência.

Havendo um pedido de revisão de atos de autoliquidação, como in casu, o meio próprio de reação, em relação à respetiva decisão, pode ser tanto a impugnação judicial como a ação administrativa especial, dependendo do conteúdo do ato recorrido.

Assim, se, na decisão do pedido de revisão, houver uma pronúncia expressa sobre a legalidade da liquidação (ou seja, sendo o seu objeto mediato a liquidação em causa, a respetiva legalidade), é meio adequado a impugnação judicial; já se tal decisão não se debruçar sobre a legalidade da liquidação ou se o A. apenas alegar vícios próprios dessa mesma decisão (v.g., se a decisão for de indeferimento por extemporaneidade), será meio próprio a ação administrativa (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 02.02.2005 – Processo: 01171/04).

In casu, foi apresentado um requerimento pela ora Recorrente, junto dos serviços da AT, pedindo a revisão dos atos de autoliquidação de IVA relativos ao ano de 2010 [in casu, 2009].

Como não é controvertido, a AT, no ato de indeferimento praticado, não se pronunciou sobre o mérito da pretensão da Recorrente, considerando tratar-se de pedido extemporâneo.

Assim, não se tendo a AT pronunciado sobre a validade da pretensão e, bem assim, sobre a legalidade das autoliquidações, nos termos já enunciados supra é meio processual adequado de reação a ação administrativa.

A questão que se coloca é a de saber se é admissível a cumulação dos pedidos formulados sob as alíneas (i) e (ii) [in casu, a) e b) da petição inicial] ou se a mesma não é admissível, em virtude de, como considerou o Tribunal a quo, o meio próprio para a apreciação do pedido formulado em (ii) [in casu, b)] ser a impugnação judicial.

Para a apreciação da questão controvertida, cumpre, antes de mais, atentar no regime contido no CPTA, aplicável ex vi art.º 97.º, n.º 2, do CPPT.

Como decorre do disposto no art.º 37.º, n.º 1, als. a) e b), do CPTA [equivalente ao art.º 46.º, n.º 2, do CPTA na redação em vigor à data da propositura da presente ação], seguem a forma da ação administrativa [então especial], designadamente, os processos que visem a impugnação de atos administrativos ou a condenação à prática de atos administrativos devidos.

Considerando o disposto no art.º 66.º do mesmo diploma:

“1 - A ação administrativa [especial] pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado.

2 - Ainda que a prática do ato devido tenha sido expressamente recusada, o objeto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória”.

Ou seja, resulta desta disposição legal que, reagindo o administrado contra um ato de indeferimento (expresso ou tácito), o objeto do processo é não o indeferimento, mas a pretensão do interessado. Daí que tenha de ser formulado o pedido de condenação à prática de ato devido.

A esse propósito, chama-se ainda à colação o disposto no n.º 4 do art.º 51.º do CPTA, nos termos do qual:

“(…) [4 - Se contra um ato de indeferimento for deduzido um pedido de estrita anulação, o tribunal convida o autor a substituir a petição, para o efeito de formular o adequado pedido de condenação à prática do ato devido, e, se a petição for substituída, a entidade demandada e os contrainteressados são de novo citados para contestar]”.

Na palavras de Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (1)

“O n.º 4, ao impor ao juiz a prolação de um despacho de aperfeiçoamento para efeito da substituição da petição, quando contra um ato de indeferimento ou de recusa da apreciação de requerimento tenha sido deduzido um pedido impugnatório e não o adequado pedido de condenação à prática do ato devido, pretende harmonizar o requisito da impugnabilidade dos atos administrativos, a que este artigo 51.º se refere, com 0 objeto e os pressupostos processuais do pedido de condenação à prática de ato devido”.

No caso, como resulta da petição inicial foi cumulado um pedido impugnatório com (…) [dois pedidos] de condenação à prática de ato devido [um a título principal e outro a título subsidiário].

Nos termos do art.º 4.º, n.º 2, do CPTA,

“É, designadamente, possível cumular:

a) O pedido de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência de um ato administrativo com o pedido de condenação da Administração ao restabelecimento da situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado;

(…)

c) O pedido de condenação da Administração à prática de um ato administrativo legalmente devido com qualquer dos pedidos mencionados na alínea a)”.

Ou seja, daqui decorre que qualquer pedido do tipo impugnatório pode ser cumulado com pretensões condenatórias visando a prática do ato devido.

É ainda de sublinhar que o facto de, aos diferentes pedidos corresponderem formas processuais distintas, não é, per se, óbice à cumulação de pedidos, como resulta, desde logo, do art.º 5.º do CPTA, então em vigor (…).

Deste contexto, e independentemente de se poder considerar irrelevante formular um pedido impugnatório em sede de ação em que se reage de um indeferimento da pretensão do administrado, visando a condenação à prática do ato devido (2) (uma vez que, como já referimos supra, o desaparecimento da ordem jurídica do ato de indeferimento decorre inexoravelmente da pronúncia condenatória), é possível cumular um pedido impugnatório com um pedido de condenação à prática do ato devido.

Ora, a cumulação ilegal de pedidos (ou ilegalidade da cumulação de pretensões) é uma exceção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito, expressamente prevista no art.º 89.º, n.º 4, al. j), do CPTA (3), cuja verificação deve dar lugar, num primeiro momento, à formulação do despacho mencionado no então n.º 3 do art.º 4.º do CPTA (ou seja, convite à indicação do pedido que pretende ver formulado). Só após tal despacho e não tendo sido indicado qual o pedido que o A. pretende ver apreciado é que haverá lugar à absolvição da instância.

Não foi o que sucedeu no caso dos autos, tendo antes o Tribunal a quo decidido pela cumulação ilegal das pretensões, por considerar que nunca a pronúncia condenatória a eventualmente proferir pelo Tribunal pode ter o conteúdo contido no pedido formulado no ponto ii) [nos presentes autos, ponto b)].

Desde já se refira que não se acompanha o entendimento do Tribunal a quo no sentido da procedência da matéria de exceção, não obstante considerarmos que o entendimento distinto também não tem necessariamente o alcance que lhe é assacado pelo Recorrente.

Com efeito, como vimos, foi in casu cumulado um pedido impugnatório com um pedido de condenação à prática de ato devido, o que per se é perfeitamente admissível em sede de ação administrativa.

Na análise da cumulação ilegal de pedidos não tem de se olhar ao mérito da pretensão, mas tão-só à verificação de uma relação de prejudicialidade ou dependência entre os pedidos formulados. E essa relação, in casu, existe: o Recorrente reagiu perante um ato de indeferimento e formulou um pedido de condenação à prática do ato que, na sua perspetiva, é o ato devido.

Coisa diferente é aferir se a pronúncia condenatória pode ter o conteúdo peticionado pelo autor.

Com efeito, o Tribunal não está vinculado a condenar a entidade demandada à prática do ato devido nos exatos termos peticionados, devendo, sim, proceder à condenação que expresse o respeito pelo direito do administrado.

A este propósito, cumpre atentar no disposto no art.º 71.º do CPTA, atinente aos poderes de pronúncia do Tribunal, no âmbito das ações tendentes à condenação à prática do ato devido, nos termos do qual:

“1 - Ainda que o requerimento apresentado não tenha obtido resposta ou a sua apreciação tenha sido recusada, o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão administrativo competente, anulando ou declarando nulo o eventual ato de indeferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do ato devido.

2 - Quando a emissão do ato pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do ato a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido.

3 - Quando tenha sido pedida a condenação à prática de um ato com um conteúdo determinado, mas se verifique que, embora seja devida a prática de um ato administrativo, não é possível determinar o seu conteúdo, o tribunal não absolve do pedido, mas condena a entidade demandada à emissão do ato em questão, de acordo com os parâmetros estabelecidos no número anterior” (sublinhado nosso).

Este n.º 3, decorrente da revisão de 2015 do CPTA, veio justamente clarificar o que já referimos supra, no sentido de que, ainda que o pedido formulado respeite a uma condenação à prática de um ato com um determinado conteúdo, a situação em concreto pode não admitir tal condenação, mas sim outra (ou seja, numa situação em que não foi conhecido o mérito da pretensão requerida, por exemplo, ao invés da condenação peticionada à prática de um ato com um conteúdo material determinado condenar-se à prática de um ato que conheça do mérito do requerimento apresentado).

A este respeito, referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (4)

“O n.º 3, aditado pela revisão de 2015, explicita que os poderes de pronúncia do tribunal não estão confinados pelo pedido tal como foi formulado pelo autor na ação.

Assim, se o autor tiver formulado um pedido de condenação da Administração à prática de um ato com conteúdo determinado, seja porque entende que o ato em causa é vinculado quanto ao conteúdo e à oportunidade, seja porque considera que, embora a Administração disponha de margem de livre apreciação na conformação do conteúdo do ato, nas circunstâncias do caso, não lhe resta senão uma única solução como legalmente possível, e o tribunal verificar que não pode emitir uma sentença condenatória desse tipo, mas que foram violados normas ou princípios jurídicos que justifiquem uma condenação de alcance mais limitado, o tribunal não profere uma sentença de condenação estrita, como foi requerido, mas não deixa de proferir uma sentença de condenação genérica que (…) determina que a Administração, no reexercício do seu poder administrativo, pratique um novo ato que não reincida nas mesmas ilegalidades” (sublinhados nossos).

Ou seja, o facto de o autor formular um pedido de condenação à prática do ato devido com um determinado conteúdo não impede o Tribunal de formular uma pronúncia condenatória de conteúdo diverso, conquanto seja essa que consubstancie o ato a cuja prática o administrado tem efetivamente direito. Aliás, é no fundo isso que é, de certa forma, abordado na decisão sob apreciação. No entanto, esta questão prende-se com a apreciação do mérito, com a definição dos termos da eventual pronúncia condenatória.

(…) Em suma, não existe cumulação ilegal de pedidos, sendo que o alegado no sentido de que é admissível uma pronúncia condenatória com o conteúdo que o A. formulou em sede de petição inicial não pode ser ora apreciado, tendo sim a ver com a decisão de mérito” (fim de citação).

Como tal, considerando o exposto, entende-se, ainda que não com a extensão defendida pelo Recorrente, que pode o A. formular os pedidos condenatórios que entender serem os devidos, sempre se sublinhando que caberá, em sede decisória, ao Tribunal a quo aferir, se for caso disso, qual o ato efetivamente devido. Trata-se, pois, de questão atinente à apreciação do mérito.

Logo, assiste razão ao Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho saneador recorrido, na parte em que julgou procedente a matéria de exceção suscitada pela entidade demandada, julgando-se improcedente tal matéria de exceção;

b) Custas pela Recorrida, que contra-alegou;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 10 de outubro de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Ângela Cerdeira)

(Ana Cristina Carvalho)

(1) Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª Ed., Almedina, 2017, p. 353.
(2) Cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob cit., p. 455: “… a eliminação da ordem jurídica do eventual ato de indeferimento resulta directamente da pronúncia condenatória, não se sendo, por isso, necessário que o autor deduza um pedido de anulação do ato de indeferimento ou que o juiz anule ou declare nulo esse cto”.
(3) Cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob cit., p. 68.
(4) Ob. cit., p. 353.