Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:411/19.8BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:06/05/2025
Relator:FILIPE CARVALHO DAS NEVES
Descritores:REVERSÃO
ADMINISTRADOR DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário:I - O n.º 1 do art.º 24.º da LGT exige para responsabilização tributária subsidiária a administração de facto, ou seja, o efetivo exercício de funções de gestão e administração da sociedade devedora originária, não se satisfazendo com a mera administração nominal ou de direito.
II - Cabe à Administração Tributária o ónus da prova do exercício efetivo de funções de administrador por parte do revertido, devendo a demonstração da verificação desse requisito constar, designadamente, do despacho de reversão.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

A Fazenda Pública veio apresentar recurso da sentença proferida a 31/03/2023 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou procedente a oposição judicial deduzida por A…, melhor identificado nos autos, nos processos de execução fiscal («PEF») n.ºs 1112201401249975, 111201481048882, 1112201401249665, 1112201401136704, 1112201501085077, 1112201501085085, 1112201501085050, 1112201901005405, 1112201501085093, 1112201501085069, 1112201401137158 e 1112201501013807, contra si revertidos, depois de originariamente instaurado contra a sociedade «P…, S.A.», para cobrança de dívidas de Imposto sobre o Valor Acrescentado («IVA»), do ano de 2013, e de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas («IRC»), dos exercícios de 2014 a 2017, no valor total de 110.527,17 Euros.
A Recorrente apresentou alegações, rematadas com as seguintes conclusões:

«I - Decidiu a Meritíssima Juiz a quo pela procedência dos autos de Oposição e determinou, em consequência, a extinção dos processos de execução fiscal n.ºs 1112201401249975, 111201481048882, 1112201401249665, 1112201401136704, 1112201501085077, 1112201501085085, 1112201501085050, 1112201901005405, 1112201501085093, 1112201501085069, 1112201401137158 e 1112201501013807, em relação ao Oponente, por considerar que;
II - Refere a Meritíssima Juiz a quo que “Não se pode concluir pelo exercício efetivo da gerência pelo Oponente, unicamente com base no facto dado como provado na alínea B) do probatório (outorga da procuração forense). (…);
III - Ora, face à prova (parca) produzida pela Fazenda Pública, consubstanciada apenas num documento assinado pelo Oponente, o que, per se, nada demonstra (não se compadecendo com o próprio conceito de gestão de facto, que tem um pressuposto de continuidade e regularidade no tempo), há que concluir que o Oponente é parte ilegítima na execução.”;
IV - Salvo melhor e douta opinião, não pode a Fazenda Pública concordar com tal decisão;
V - A questão decidenda prende-se com a alegada ilegitimidade do Oponente;
VI - É entendimento da Fazenda Pública, ao contrário da douta sentença, que existe um mínimo de prova nos autos que permite concluir, salvo melhor opinião, pela existência da administração de facto da devedora originária por parte do revertido, senão vejamos;
VII - Com efeito da alínea B) dos factos provados do probatório da douta decisão a quo consta que " Em 20-09-2013, foi subscrito pelo Oponente o instrumento denominado “Procuração”,
onde consta que “P…, S.A. (…) constitui seus bastantes procuradores o Sr. Dr. L…e a Sra. Dra. A…, Advogados, (…) a quem confere os mais amplos poderes forenses por lei permitidos, incluindo os de substabelecer, os de receber cheques de custas de parte”;
VIII - Ato que ao exteriorizar a vontade da sociedade, vinculando-a e representando-a, manifestamente é um ato de administração, suficiente para que se possa concluir o efetivo exercício dessa função;
IX -Efetivamente, valorando em conjunto o ato praticado e o seu contexto, não se nos afigura
necessário demonstrar a prática de outros atos, como a contratação de trabalhadores, para extrair essa conclusão; na verdade, foi levado a cabo o ato que a situação da sociedade impunha;
X - Aliás, ao ser dado como provado que a procuração ao Ilustre Mandatário daquela sociedade devedora originária datada de 20/09/2013 foi assinada pelo ora Oponente (Administrador Único daquela sociedade), terá que concluir-se que tal documento constitue uma prova inequívoca de que este exercia de facto funções de administração e representava a sociedade perante terceiros;
XI - A lei não exige que aqueles, exerçam uma administração continuada, bastando-se, tão só, que pratiquem atos vinculativos da sociedade, exercitando desse modo o exercício de facto de funções de administração, o que sucedeu no caso vertente, dimanando tal asserção da assinatura daquela procuração;
XII - A responsabilidade subsidiária dos administradores, tem por pressuposto o exercício efetivo do cargo, ou seja, desempenha funções de exercício de facto quem exterioriza a vontade das sociedades nos seus negócios jurídicos, quem manifesta a capacidade de exercício de direitos da sociedade, praticando atos que produzem efeitos na sua esfera jurídica, como seja, a assinatura de procuração;
XIII - Mais, da alínea A) dos factos provados da douta decisão a quo consta que “Por deliberação de 20-09-2013, o ora Oponente foi designado administrador único da sociedade “P…, S.A.”, vinculando-se a sociedade pela assinatura do administrador único – cfr. certidão permanente a fls. 303-307 do sitaf; “;
XIV - No mesmo sentido a Exma Procuradora da República emitiu parecer, do qual se extrai
o seguinte:
Está nos autos cópia do Pedido de Revisão do Acto Tributário dirigido ao TAF de Aveiro apresentado pela sociedade devedora originária na Direcção de Finanças de Aveiro em 25/03/2019(…); acompanha esse requerimento inicial uma procuração ao Ilustre Mandatário
daquela sociedade datada de 20/09/2013 assinada pelo ora Oponente, com certificação de poderes para a outorga do mandato forense nos termos do DL 267/92, 28/11.
Desta prova documental decorre, do nosso ponto de vista, a clara demonstração do efectivo
exercício da administração da sociedade “P…,
SA” pelo seu “Administrador Único” A…, exteriorizando a vontade social perante terceiros: a atribuição pela sociedade de poderes forenses a mandatário para, judicialmente, pugnar pela anulação das liquidações de IVA dos anos de 2013 e 2014.
Nesta conformidade e considerando que no efectivo exercício da gerência/administração “pode o juiz inferi-lo do conjunto da prova, usando as regras da experiência, fazendo juízos de probabilidade, etc.” (ac. do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 21/12/2012, P. 0474/12), concluímos que foi feita pela AT a prova
da administração efectiva da sociedade pelo ora Oponente.”;
XV - Assim, encontrando-se comprovada a administração de direito, assim como o exercício
de facto desse cargo, e dizendo as dívidas tributárias respeito a impostos cujo prazo legal de
pagamento ou entrega terminou no período do exercício do seu cargo, o Oponente é por elas
responsável subsidiário, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT;
XVI - Ao decidir pela procedência do pedido, incorreu a Meritíssima Juiz a quo em erro de
julgamento e violou a douta sentença recorrida o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º
da LGT.
Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente
recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida e substituída por douto acórdão que dê como provada a administração de facto da sociedade devedora originária, por parte do aqui Oponente, A… e conclua pela sua legitimidade e pela legalidade da reversão, contra o mesmo levada a cabo, pelo Serviço de Finanças de Portimão, como é de inteira JUSTIÇA.».
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O Recorrido apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

«1) A responsabilidade subsidiária, só pode ser atribuída em função do exercício efetivo do cargo de gerente e reportada ao período do respetivo exercício, cuja prova compete à Fazenda Pública.
2) A gerência de facto de uma sociedade comercial consiste no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade. Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efectivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo pacto social, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiro.
3) O exercício da gerência de facto pressupõe uma atividade continuada, através da prática reiterada de atos de gestão ou de administração da sociedade, não se evidenciando através do
exercício de atos isolados.
Termos em que e nos mais de direito, deve o recurso da Fazenda Pública ser julgado improcedente, com as legais consequências.».
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O Exmo. Magistrado do Ministério Público («EMMP») pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul para decisão.

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II – DO OBJECTO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cf. art.º 635.º, n.º 4 e art.º 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil - «CPC» - ex vi art.º 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário - «CPPT»), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Assim, delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, importa decidir se deve ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo com fundamento em erro de julgamento, atendendo a que ficou demonstrado que o Recorrido exerceu a administração de facto da sociedade devedora originária quando ocorreu o final do prazo legal de pagamento das dívidas exequendas.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

III.A - De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
«A) Por deliberação de 20-09-2013, o ora Oponente foi designado administrador único da sociedade “P…, S.A.”, vinculando-se a sociedade pela assinatura do administrador único – cfr. certidão permanente a fls. 303-307 do
sitaf;
B) Em 20-09-2013, foi subscrito pelo Oponente o instrumento denominado “Procuração”, onde consta que “P…, S.A. (…) constitui seus bastantes procuradores o Sr. Dr. L… e a Sra. Dra. A…, Advogados, (…) a quem confere os mais amplos poderes forenses por lei permitidos, incluindo os de substabelecer, os de receber cheques de custas de parte” - cfr. fls. 34 do PEF apenso aos autos; C) Contra a sociedade “P…, S.A.” foram instaurados os processos de execução fiscal n.ºs 1112201401249975, 111201481048882, 1112201401249665, 1112201401136704, 1112201501085077, 1112201501085085, 1112201501085050, 1112201901005405, 1112201501085093, 1112201501085069, 1112201401137158 e 1112201501013807, para cobrança coerciva de dívidas de IVA de 2013 e de IRC de 2014, 2015, 2016 e 2017– cfr. fls. 18 a 29 do PEF apenso aos autos;
D) Em 27-09-2019, o Diretor de Finanças de Faro proferiu, no âmbito dos processos de execução fiscal referidos na alínea antecedente, em nome do Oponente, “DESPACHO PARA AUDIÇÃO (REVERSÃO)”, com os fundamentos seguintes: “Dos administradores, directores, ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entidades fiscalmente equiparadas, por não terem provado não lhes ser imputável a falta de pagamento da dívida, quando o prazo legal de pagamento/entrega da mesma terminou no período de exercício do cargo [art. 24º/nº1/b) LGT]”. - cfr. fls. 37, 47, 67, 77-verso, 82-verso, 87, 92-verso, 97-verso, 103, e 109 do PEF apenso aos autos;
E) Por despachos do Diretor de Finanças de Faro, foi determinada a reversão dos processos de execução fiscal referidos nas alíneas antecedentes contra o ora Oponente, com os fundamentos referidos em D) – cfr. fls. 41, 51, 61, 69, 74, 89, 94-verso, 99-verso, 105-verso, 111 do PEF apenso aos autos.

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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:
«Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da presente ação.».
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Mais resulta consignado em termos de motivação da matéria de facto o seguinte:
«A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, decorreu da análise crítica dos documentos juntos aos autos, tal como se fez referência a propósito de cada uma das alíneas do probatório e cujo conteúdo não foi impugnado pelas partes.».

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III.B De Direito

Insurge-se a Recorrente contra a sentença recorrida por, alegadamente, padecer de erro de julgamento, concretamente em relação à demonstração do exercício da administração de facto da sociedade devedora originária por parte do Recorrido. Vem, assim, a Recorrente peticionar a revogação da sentença que recaiu sobre a oposição à execução fiscal apresentada nos PEF em causa, defendendo, em suma, que in casu se pode concluir que o Recorrido exerceu a administração de facto da sociedade devedora originária.

Importa, antes de mais, relevar que a Recorrente não procedeu à impugnação da matéria de facto em ordem ao consignado no art.º 640.º do CPC, nada requerendo em termos de aditamento, alteração ou supressão ao probatório, apenas se limitando a convocar, ainda que genericamente, a existência de um erro de julgamento de facto, sem qualquer indicação clara e expressa dos factos que considera provados, nem o específico meio probatório em que sustenta o seu entendimento.

Mais cumpre ressalvar, neste concreto particular, que não traduz qualquer impugnação da matéria de facto as alegações contempladas em IX. e X. das respetivas conclusões, desde logo, porque não basta à Recorrente defender, globalmente, que a decisão sobre a matéria de facto está incorreta, carecendo, como visto, de indicar que concretos pontos de facto estão incorretamente julgados, que concretos meios probatórios suportam esse entendimento e que concretos factos entende que devem ser considerados provados ou não provados. E por assim ser, face ao supra expendido, considera-se a matéria de facto devidamente estabilizada.

Feito este breve introito, e mantendo-se, como visto, o probatório inalterado, há, então, que aferir da bondade da censura endereçada pela Recorrente na presente lide recursiva.

Apreciemos.

Adiantando, desde já, a nossa posição, entendemos que a sentença em dissídio não padece do desacerto que lhe vem assacado nas alegações recursivas.

Vejamos porquê.

No que concerne à responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores de sociedades pelas dívidas tributárias, somos remetidos para o art.º 24.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária («LGT»), nos termos do qual:
«1. Os administradores (…) e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.».

O art.º 24.º, n.º 1, da LGT determina que a simples gestão ou administração de facto é suficiente para acionar a responsabilidade em causa, não sendo, por outro lado, suficiente a mera gerência ou administração de direito.

Esta norma, consagra, assim, no seu n.º 1 duas hipóteses distintas de responsabilidade tributária:

(i) a primeira, correspondente à sua al. a), refere-se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções quer no momento de ocorrência do facto tributário, quer após este momento, mas antes do término do prazo de pagamento da dívida tributária, sendo esta responsabilidade pelo depauperamento do património social, de molde a torná-lo insuficiente para responder pelas dívidas em causa. A culpa exigida aos gerentes ou administradores, nesta situação, é uma culpa efetiva — culpa por o património da sociedade se ter tornado insuficiente. Não há qualquer presunção de culpa, o que nos remete para o disposto no art.º 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que cabe à administração tributária («AT») alegar e provar a culpa dos gerentes ou administradores.

(ii) A segunda, constante da al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, refere-se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções no período no qual ocorre o fim do prazo de pagamento ou entrega do montante correspondente à dívida tributária. No art.º 24.º, n.º 1, al. b), da LGT, presume-se que a falta de pagamento da obrigação tributária é imputável ao gestor. Assim, atentando na al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, o momento relevante a considerar é o do termo do prazo para pagamento voluntário. Esta presunção de culpa é ilidível, cabendo ao gestor revertido o ónus de a ilidir.

Como referimos acima, o regime da responsabilidade tributária tem, pois, subjacente o exercício efetivo de funções por parte do gestor.

Trata-se do ponto de partida de aplicação do regime, sendo que, depois de demonstrada a gestão ou administração de facto (cf. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo - «STA» - do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 28/02/2007, proc. n.º 01132/06, disponível em www.dgsi.pt), aplicar-se-á, num segundo momento, a al. a) ou a al. b), do n.º 1 do art.º 24.º da LGT.

Cabe à AT, desde logo e em primeira linha, o ónus da alegação e prova da efetiva gerência ou administração por parte dos revertidos (cf. art.º 74.º da LGT).

A prova da gestão de facto tem de ser evidenciada por referência a atos praticados pelos potenciais revertidos, suscetíveis de demonstrar tal efetividade do exercício de funções, entendendo-se como tal a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas.

Durante vários anos, prevaleceu o entendimento de que, demonstrada que fosse a gestão de direito, a AT beneficiaria de uma presunção de gestão de facto, cabendo, segundo este entendimento, ao revertido demonstrar não ter exercido efetivamente as referidas funções.

Na sequência do acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 28/02/2007, proc. n.º 01132/06, disponível em www.dgsi.pt, operou-se uma alteração jurisprudencial, no sentido de que «[a] presunção judicial não tem existência prévia, é um juízo casuístico que o julgador retira da prova produzida num concreto processo quando a aprecia e valora. (...) Ninguém beneficia de uma presunção judicial, porque ela não está, à partida, estabelecida, resultando só do raciocínio do juiz, feito em cada caso que lhe é submetido. (...) Do que se trata é de censurar a aplicação que fez de um regime legal, afirmando a existência de uma presunção judicial e retirando, maquinalmente, de um facto conhecido, outro, desconhecido, como se houvesse uma presunção legal, que não há; e afirmando a inversão do ónus da prova, quando tal inversão não ocorre, no caso, na falta de presunção legal».

Como tal, continua o referido acórdão do Pleno:
«Quando, em casos como os tratados pelos arestos aqui em apreciação, a Fazenda Pública pretende efectivar a responsabilidade subsidiária do gerente, exigindo o cumprimento coercivo da obrigação na execução fiscal inicialmente instaurada contra a originária devedora, deve, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, provar os factos que legitimam tal exigência.
(…) [N]ada a dispensa de provar os demais factos, designadamente, que o revertido geriu a sociedade principal devedora. Deste modo, provada que seja a gerência de direito, continua a caber-lhe provar que à designação correspondeu o efectivo exercício da função, posto que a lei se não basta, para responsabilizar o gerente, com a mera designação, desacompanhada de qualquer concretização” (sublinhado nosso).
Face a este entendimento, unânime há já vários anos na jurisprudência atual, a que se adere, decorre, como referido, que cabe, em primeira linha, à AT alegar e demonstrar que o revertido exerceu, nos termos consignados no n.º 1 do art.º 24.º da LGT, efetivas funções de gerência, entendidas como funções de gestão e representação da sociedade (cfr., para as sociedades por quotas, os art.ºs 192.º e 252.º do Código das Sociedades Comerciais).
O mesmo resulta da interpretação do art.º 11.º do Código do Registo Comercial (CRCom).
Com efeito, nos termos desta disposição legal, “[o] registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida”.
Atentando na finalidade inerente ao registo comercial e, nesse seguimento, chamando à colação o art.º 1.º do CRCom, do seu n.º 1 resulta que “[o] registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico».

Sendo certo que é legalmente obrigatória a inscrição da nomeação dos membros dos órgãos de administração de sociedades comerciais, nos termos do art.º 3.º, n.º 1, al. m), do Código do Registo Comercial («CRC»), da leitura conjunta das disposições legais referidas resulta que as mesmas visam dar publicidade a uma situação jurídica e não a uma situação de facto. Assim, e no que ao registo da nomeação de uma determinada pessoa como gerente/administrador de uma sociedade, a presunção que decorre do art.º 11.º do CRC é uma presunção da gestão de direito («situação jurídica»), e não da de facto.

Portanto, também por esta via, não se pode extrair da gerência de direito a gerência/administração de facto.

Aqui chegados, regressemos, agora, ao caso concreto dos autos.

Ficou provado que no caso que agora nos ocupa as dívidas exequendas respeitam a IVA do ano de 2013 e IRC dos exercícios de 2014 a 2017, tendo sido proferidos despachos pelo Chefe do Serviço de Finanças de Faro para efeitos de reversão das dívidas exequendas contra o Recorrido (cf. pontos C) e E) do probatório).

Para fundamentar o exercício da administração de facto da executada originária pelo Recorrido, e tal como bem se aponta na sentença recorrida, nada é indicado nos despachos de reversão.


Com efeito, dos despachos de reversão não consta referência alguma sobre quaisquer elementos factuais relativos ao exercício efetivo das funções de administrador da executada originária por parte do Recorrido (cf. pontos D) e E) da factualidade assente), o que, como visto, é fundamental para acionar validamente o instituto da reversão.

E assim, a AT, ao contrário do que era seu ónus, não concretizou, materialmente, o exercício efetivo de funções de administrador por parte do Recorrido em sede de despacho de reversão. Ora, como se deixou expresso supra, a AT não goza de qualquer presunção no sentido de que a administração de facto se extrai da de direito, cabendo-lhe sempre, independentemente de estarmos perante administrador que seja ou não de direito, demonstrar e provar a administração de facto, demonstração e prova fundamentais para efeitos de reversão.

Por outro lado, também não resulta da factualidade assente que em sede de procedimento de reversão a AT tenha identificado quaisquer factos relativos ao devir comercial da sociedade devedora originária dos quais se possa extrair a conclusão de que o Recorrido foi administrador da mesma.

Acresce, ainda, que não resulta de modo algum da factualidade assente nos presentes autos que tenha sido o Recorrido administrador de facto nos exercícios concretamente relevantes (2013 a 2017 – cf. pontos C), D) e E) da factualidade assente). Aliás, mesmo depois de notificada pelo Tribunal a quo para proceder à junção aos autos de elementos complementares evidenciadores do exercício da administração efetiva da sociedade «P…, S.A.» por parte do Recorrido, a Fazenda Pública nada juntou (cf. fls. 441 e seguintes na numeração SITAF), tal como também muito bem se deixou consignado na sentença recorrida.



O único facto provado suscetível de evidenciar a administração de facto da executada originária consiste na outorga por parte do Recorrido em 20/09/2013 de procuração forense a favor de L… (cf. alínea B) dos factos provados). Contudo, a prática deste ato por parte do Recorrido não surge minimamente contextualizado no âmbito da atividade da executada originária, razão pela qual consideramos que é insuficiente para dele se extrair o exercício da administração de facto daquela sociedade.

Destarte, consistindo a administração de facto de uma sociedade comercial no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam pela vinculação e representação da sociedade, nomeadamente, através das relações com os clientes, com os fornecedores, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade, ter-se-á de concluir face a todo o exposto que, in casu, nada foi demonstrado no sentido de o Recorrido ser um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo pacto social, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros, pese embora nos períodos a que se reportam as dívidas tenha sido o único administrador.

Ou seja, a prática de um ato isolado pelo Recorrido em que terá agido em representação da executada originária nesse concreto momento, não é suscetível, à luz das regras de experiência comum, de levar à conclusão de que o mesmo exerceu, de facto, a administração da devedora originária, já que o exercício da administração, tal como afirmámos anteriormente, constitui uma atividade tipicamente continuada. Pelo que, tal facto, per se, desacompanhado de atos que manifestem e exteriorizem a vontade societária não permitem ilidir o ónus probatório que impende sobre a administração tributária.

Neste sentido, veja-se o acórdão deste Tribunal de 13/09/2023, proc. n.º 479/14.3 BELRS, consultável em www.dgsi.pt, no qual se consignou, além do mais, que «o facto de ter resultado provado que a oponente assinou um ou outro documento relativo à devedora originária, não altera a conclusão extraída na sentença recorrida porque a assinatura pontual de um ou outro documento não revela de per si e atenta a demais factualidade provada que tenha havido exercício efectivo de funções, exercício esse que, como mencionado, pressupõe a prática reiterada e com carácter de continuidade de actos de administração.».

Pelo que, perante o circunstancialismo fáctico provado (e não impugnado), temos assim de concluir não ter a Fazenda Pública produzido prova demonstrativa de que o Recorrido tenha exercido a administração de facto, sendo que, como antes já dissemos, era sobre a Fazenda Pública que recaía o ónus de provar o exercício da mesma.

Assim, atento este quadro factual e a manifesta ausência de alegação e prova por parte da AT da existência de atuação por parte do Recorrido que evidenciasse o efetivo exercício de funções de administrador da executada originária, impõe-se concluir que, não estando demonstrado tal exercício, essa ausência de prova reverte a favor do Recorrido.

Logo, conclui-se, em linha com a sentença recorrida, que não se encontra preenchido o pressuposto previsto no n.º 1 do art.º 24.º da LGT, motivo pelo qual se verifica a ilegitimidade do então Oponente, ora Recorrido.

Em face do exposto, o recurso não merece provimento, devendo a sentença recorrida ser mantida, o que de seguida se decidirá.
*

IV- DECISÃO

Termos em que acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 5 de junho de 2025

(Filipe Carvalho das Neves)

(Lurdes Toscano)

(Luísa Soares)