Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 88/23.6BEFUN-S1.CS1 |
| Secção: | CT |
| Data do Acordão: | 11/13/2025 |
| Relator: | LURDES TOSCANO |
| Descritores: | LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ |
| Sumário: | I - O julgador deve ser especialmente cauteloso e prudente na aferição das situações passíveis de constituírem litigância de má fé, apenas devendo determinar a condenação se se patentearem as condutas típicas e, bem assim, o dolo ou a grave negligência na sua prática. II - Vem hoje constituindo entendimento prevalecente na nossa jurisprudência, que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artº. 542º do CPC, havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má fé. |
| Votação: | Unanimidade |
| Indicações Eventuais: | Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul: I. RELATÓRIO .... , com os demais sinais nos autos, veio nos termos do disposto nos artigos 542.º n.º 3, 644 n.º 2 e) e 638.º n.º 1 do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º do CPPT, e do artigo 280.º do CPPT interpor recurso contra o despacho proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que o condenou como litigante de má-fé. Antecedeu ao recorrido despacho, a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, em 13 de julho de 2023, que julgou improcedente, por não provada, a oposição deduzida pelo Recorrente, enquanto responsável subsidiário, contra a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, no âmbito no processo de execução fiscal n.º 2810202001078798, instaurado por dívida de IVA relativa ao período 2020/03, no montante global de € 2 728,06, em que é devedora originária a sociedade comercial “.... , LD.ª. Notificado da sentença, o então Oponente, ora Recorrente, em 07 de setembro de 2023 arguiu a nulidade da decisão do tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 125.º do CPPT. **** **** «Vem o presente recurso interposto do douto despacho que condenou o Oponente em 3 UC por ter litigado de má-fé. No entender do Oponente, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento no douto despacho recorrido, uma vez que: a) o Oponente arguiu legitimamente nulidades na douta sentença proferida, ao abrigo dos artigos 125.º do CPPT e 615.º n.º 4 do CPC; b) no entender do Oponente, o Tribunal a quo, na sua douta sentença, havia omitido a sua pronúncia sobre questões que deveria ter-se pronunciado ou apreciado, e os fundamentos invocados na mesma estavam em oposição ou contradição com a decisão final; c) no que respeita à omissão de pronúncia, entendeu o Oponente que o Tribunal a quo não se pronunciou nem apreciou a alegada inexistência ou insuficiência de bens penhoráveis da devedora originária, que constituía fundamento para a reversão da execução contra o Oponente; d) tal como entendeu que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a inexistência de fundamentação ou prova das concretas diligências adotadas pela Administração Fiscal que lhe permitissem concluir por essa fundada inexistência ou insuficiência de bens penhoráveis da devedora originária; e) do despacho da reversão e da citação não constavam quaisquer diligências concretas adotadas pela Administração Fiscal que lhe permitissem chegar à conclusão dessa inexistência ou insuficiência de bens penhoráveis da devedora originária; f) o Tribunal a quo não identificou nem refere, na douta sentença, um único ato concreto e específico praticado pelo Oponente no período do términus do prazo legal de pagamento da dívida em apreço; g) da matéria de facto dada como assente na douta sentença, consta como provado apenas a prática de um único ato isolado pelo Oponente em 23/12/2019 (Facto assente 6) e o envio de dois emails em Maio de 2021 (facto assente 5); h) não há uma única prova ou evidência nos autos do exercício da gerência de facto por parte do Oponente no período do términus do prazo legal de pagamento da dívida em apreço; i) mesmo que tivesse sido praticado algum ato isolado ou esporádico, o que não resulta da matéria de facto dada como provada, esse ato seria manifestamente insuficiente e inidóneo para comprovar a gerência de facto do Oponente na sociedade devedora originária, que, note-se, no período em questão nos autos, tinha, pelo menos, mais 3 gerentes; j) no entender do Oponente, o Tribunal a quo não identificou os concretos elementos probatórios que demonstram a gerência de facto do Oponente no período do términus do prazo legal de pagamento da dívida em apreço e qual o facto dado como provado que lhe permitiu sustentar ou chegar a essa conclusão; k) na falta ou insuficiência dessa indicação, ficaria demonstrada a existência de oposição entre os fundamentos da sentença e a própria sentença proferida pelo Tribunal a quo, que expressamente refere que não bastam indícios ou atos isolados para se provar a gerência de facto e que a fundamentação da reversão tem de ser contemporânea à decisão de reversão; l) se não bastam indícios, atos isolados ou esporádicos para se comprovar a gerência de facto, se a fundamentação tem de ser contemporânea à decisão de reversão, se a comprovação da gerência de facto compete à entidade exequente e se não há nenhum facto da matéria de facto dada como provada que comprove a efetiva gerência de facto do Oponente no termo do prazo legal de pagamento da dívida objeto dos autos, jamais poderia o Tribunal a quo ter considerado que essa gerência de facto tinha sido comprovada nos autos e, consequentemente, ter julgado a oposição improcedente; m) o Tribunal a quo errou ao entender que a questão da inexistência/insuficiência de bens da sociedade devedora originária não foi suscitada pelo Oponente na sua petição inicial; n) o Oponente arguiu as nulidades que entendeu estarem em causa, nos termos do n.º 1 do artigo 125.º do CPPT e do n.º 4 do artigo 615.º do CPC, perante o próprio Tribunal a quo, dado que, devido ao valor da ação, a sentença em questão não admitia recurso ordinário; o) o Oponente, entre as nulidades previstas na lei, suscitou a apreciação quanto a alegada omissão ou falta de pronuncia sobre questões que o Tribunal deveria ter apreciado e a possível oposição entre os fundamentos e a decisão; p) ao fazê-lo, o Oponente procurou utilizar as expressões legais (art. 125º do CPPT e 615.º do CPC) para identificação clara dos vícios que entendia existirem; q) ficou demonstrado que o Oponente nunca utilizou tais expressões legais para acusar, faltar ao respeito, alterar a verdade ou com qualquer outra intenção pejorativa; r) ficou comprovado que o Oponente apenas o fez, com o único intuito de ver reapreciadas as questões suscitadas em concreto e identificar bem os vícios da sentença que entendeu existirem; s) o Oponente demonstrou que, na sua oposição, nomeadamente nos artigos 7.º a 14.º e 18.º da petição inicial, a questão da inexistência ou insuficiência de bens da sociedade devedora originária, cuja prova cabia à Administração Fiscal, foi efetivamente mencionada e suscitada; t) se provou que a própria Fazenda Pública, na sua contestação, admite, no artigo 10.º alínea a), que o Oponente invoca a não comprovação da fundada inexistência ou insuficiência de bens penhoráveis da devedora originária; u) se comprovou que a própria Fazenda Pública, na sua contestação, vem impugnar os factos invocados pelo Oponente a esse respeito, nomeadamente nos artigos 19.º, 22.º, 36.º, 37.º e 39.º, entre outros, da contestação; v) quanto à alegada prova da gerência de facto do Oponente, ficou demonstrado que o Tribunal a quo apenas remete de forma genérica para vários elementos probatórios nos autos, comunicações escritas e pedidos efetuados; w) a pronúncia do Tribunal a quo a este respeito deveria ter sido mais especifica e concreta, apontando um a um os elementos probatórios a que se referia, com vista a se verificar e confirmar se estão em causa meros atos isolados ou esporádicos, no período em questão nos autos; x) os factos nºs 5 e 6 da matéria dada como assente não respeitam ao período do términus do prazo legal de pagamento da dívida em apreço; y) a existência de indícios ou a mera prática de atos isolados ou esporádicos não podia conduzir à conclusão que o Oponente efetivamente exerceu a gerência, no período do términus do prazo legal de pagamento da dívida; z) a inexistência de qualquer prova da gerência de facto em concreto, no términus do prazo legal de pagamento da dívida em apreço, ou a existência de mero ato isolado, teria que levar à conclusão de que efetivamente a decisão estava em oposição com os fundamentos invocados na mesma; aa) ficou demonstrado que, quer a Fazenda Pública, parte no processo, quer o próprio Ministério Público, em representação do Estado Português, no seu parecer, entenderam o exercício legítimo de arguição de nulidades suscitadas pelo Oponente, no âmbito dos seus direitos constitucionalmente consagrados; bb) nem a Fazenda Pública nem o próprio Ministério Público entendeu, em nenhum momento, existir má-fé na atuação do Oponente, atitude reprovável, falta de verdade ou falta de respeito do Oponente no seu exercício de defesa, no presente processo; cc) o artigo 20.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva; dd) o artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa garante aos administrados a tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas; ee) os recursos ou meios impugnatórios de uma decisão judicial constituem um direito constitucionalmente consagrado dos cidadãos; ff) apenas através desses meios poderão ser colocadas em crise ou serem revistas as decisões que são proferidas pelos tribunais portugueses; gg) através dos recursos e meios impugnatórios ao dispor dos cidadãos, os mesmos pretendem a reanálise/reapreciação dos processos e a alteração e/ou anulação da decisão anterior; hh) no caso dos recursos, essa reanálise/reapreciação das decisões, nomeadamente, no que respeita às possíveis nulidades é feita usualmente pelos Tribunais Superiores, de forma isenta, imparcial e sem qualquer relação com a decisão anterior; ii) no caso de uma decisão que não admite o recurso ordinário, a reanálise/reapreciação da decisão e das suscitadas nulidades é feita perante o mesmo Tribunal que proferiu a decisão colocada em crise, colocando o próprio Tribunal no papel de julgador em causa própria; jj) se comprovou, através de todos os atos processuais praticados nos autos, que, ao arguir as nulidades, o Oponente nunca teve a intenção de acusar ou faltar ao respeito ao Tribunal a quo, nem nunca deduziu pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; kk) se demonstrou que o Oponente nunca teve qualquer intenção de alterar ou omitir quaisquer factos relevantes para a decisão da causa; ll) se provou que o Oponente limitou-se, no âmbito dos direitos que a lei e a constituição lhe confere, a arguir as nulidades que entendeu existirem na douta sentença proferida, com vista à reapreciação e alteração de decisão encontrada; mm) o Oponente agiu sempre com respeito e no exercício dos seus direitos e limites que a lei lhe confere, estando apenas a procurar a JUSTIÇA perante um ato perpetrado pela Administração Fiscal, com o qual não concordava. Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso e com o douto suprimento de VExas., deve o douto despacho recorrido ser anulado/revogado, com todas as consequências legais, designadamente, absolvendo-se o Oponente da condenação em litigância de má-fé, assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!!!» **** Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. **** Com dispensa dos vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta. **** Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que a recorrente remate a sua alegação (art. 639º do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal. De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo. Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, a questão fundamental a decidir é a de saber se o despacho recorrido errou no seu julgamento quando condenou o Oponente em litigância de má fé. **** II. FUNDAMENTAÇÃOII.1. De facto O despacho recorrido tem o seguinte teor: «Requerimento com a referência Requerimento (97227) Requerimento (004187380) de 25/11/2023 18:57:03, constituindo resposta ao convite dirigido através do despacho com a referência Despacho (004184936) de 13/11/2023 17:13:02: Resulta do art.º 542.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi al. e) do art.º 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, que, tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. Diz-se litigante de má-fé, segundo o referido normativo, quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (al. a)); quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (al. b)); quem tiver praticado omissão grave do dever de cooperação (al. c)); e quem tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (al. d)). A litigância de má-fé assinalada nos art.ºs 542.º e ss. do Código de Processo Civil incide assim sobre a conduta processual (rectius, em e perante o Tribunal ou durante o processo) das partes. Aqui chegados, não há dúvidas, como se deu conta no despacho com a referência Despacho (004184936) de 13/11/2023 17:13:02, que o Oponente acusou o Tribunal de nulidades que sabe que o Tribunal não cometeu, mais faltando à verdade sobre o teor da p.i. por si apresentada e sobre o teor da sentença proferida pelo Tribunal. Como também ali se disse, uma coisa é a discordância, legítima, outra, bem diferente, pela qual o Oponente decidiu enveredar, foi acusar o Tribunal de fazer algo que não o fez, e afirmar que suscitou na sua p.i. questão que sabe que não suscitou. Convidado o Oponente para que se pronunciasse sobre a sua condenação como litigante de má-fé, nos termos das al. a) e b) do n.º 2 do art.º 542.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi al. e) do art.º 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, veio o mesmo alegar que se limitou a expor a sua convicção, peticionando a sua não condenação. Sucede que, como já se referiu, o Oponente ultrapassou largamente os limites da legítima discordância, acusando o Tribunal de nulidades que sabe que o Tribunal não cometeu, e faltando à verdade sobre o teor da p.i. por si apresentada e sobre o teor da sentença proferida pelo Tribunal. Com o que é evidente que com a sua conduta o Oponente preencheu o circunstancialismo determinativo da sua condenação como litigante de má-fé com fundamento nas al. a) e b) do n.º 2 do art.º 542.º do Código de Processo Civil (a também designada na doutrina litigância substancial). Ao menos com a negligência grave que transparece da sua atuação, dado que não podia ignorar a falta de fundamento da sua pretensão e o teor da p.i por si apresentada e ainda da sentença proferida por este Tribunal. No mesmo sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/01/2017, tirado no processo n.º 402/10.4TTLSB.L1.S1, disponível para consulta in www.dgsi.pt. Assim, ainda que a condenação a proferir se situe perto do liminar mínimo da moldura sancionatória aplicável (cfr. n.º 3 do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais), não pode o Tribunal deixar de proferir uma decisão condenatória, ponderando designadamente os critérios apontados no n.º 4 do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais, de onde se destaca, in casu e necessariamente, o impacto da conduta do Oponente na regular tramitação do processo, obrigando este Tribunal a um esforço extra e necessariamente alheio à normal tramitação do processo, com necessários impactos na administração da justiça, dado que os recursos aqui despendidos pelo Tribunal não puderam ser afetos a outros processos, o que, diga-se, se a conduta do Oponente se tivesse pautado pela prudência e respeito, não teria sucedido. Termos em que vai o Oponente condenado em 3 UC por ter litigado de má-fé. Notifique.» **** II.2. De Direito Vem o Oponente, interpor recurso do despacho que o condenou em 3 UC por litigância de má fé. Vejamos o que dispõe o art. 542º do CPC: Artigo 542.º Responsabilidade no caso de má-fé - Noção de má-fé
Feito o enquadramento legal, importa apreciar se o Tribunal a quo errou no seu julgamento quando condenou o oponente em litigância de má fé, sendo esse e só esse, o objecto do presente recurso. Antes de analisarmos o caso concreto, importa rever as noções básicas sobre esta temática, sendo que para isso vamos apoiar-nos no Acórdão do TRG de 08/05/2025, Proc. 149/22.9T8VPA.G1, disponível em www.dgsi.pt: «De facto, exige-se que as partes ajam com probidade processual nas ações por si propostas ou contestadas, ou seja, não devem fazer “um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” – cfr. artº 542º nº2 al. d) do CPC. Para se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má-fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devesse ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes ou, ainda, que tenha praticado omissão grave do dever de cooperação, de acordo com o artº 542º nº2 do CPC. Com efeito, o dever de litigar de boa-fé, isto é, com respeito pela verdade, mostra-se como um corolário do princípio do dever de probidade e de cooperação, fixados nos artºs 7º e 8º do CPC para além dos deveres que lhe são inerentes, imposto sempre às respetivas partes. Se a parte, com propósito malicioso, ou seja, com má-fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar - má-fé instrumental -, deve ser condenada como litigante de má-fé. Mas tem-se entendido que tal sanção apenas pode e deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, cujo fim último é a busca em descobrir a verdade e cumprir a justiça, como também ao seu antagonista no processo. E esta atuação da parte, conforme se vinha entendendo na doutrina e Jurisprudência, exige que haja dolo ou negligência grave do atuante (Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 343 e Alberto dos Reis, Código Proc. Civil Anotado, II, pág. 259 e Ac. TRL de 09.01.97, Col. Jur., Ano XXII, Tomo I, pág. 88). Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/5/2019, disponível in www.dgsi.pt: “Vem hoje constituindo entendimento prevalecente na nossa jurisprudência, que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artº. 542º do nCPC, havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má fé. Donde que, como constitui hoje entendimento claramente prevalecente na nossa jurisprudência, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, com e/ou no processo entrado em tribunal. (No sentido do que se deixou exposto, vide, entre, outros, Acs. do STJ de 21/04/2018, proc. nº. 487/ 17.5T8PNF.S; de 26/01/2017, proc. nº. 402/10.4TTLSB.L1.S1; de 02/06/2016, proc. nº. 1116/11.3TBVVD.G2.S1; de 21/04/2016, proc. nº. 497/12.6TTMR.E1.S1, de 11/9/2012, proc. nº. 2326/11; Ac. da RC de 16/12/2015, proc. 298/14.7TBCNT-A.C1, e Ac. da RE de 26/02/2014, todos publicados in www.dgsi.pt)”. Assim, não podemos confundir litigância de má-fé com lide meramente temerária ou ousada, com pretensão de dedução ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova e de não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento, na eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, ou com discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou até na defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer (Vide Ac. TRP de 09/03/2006 disponível em www.dgsi.pt). Na “base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada. O que importa é que exista uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas imprudência (má fé em sentido ético), não bastando a imprudência, o erro, a falta de justa causa, é necessário o querer e \o saber que se está a atuar contra a verdade ou com propósitos ilegais. A condenação por litigância de má fé, em qualquer das suas vertentes – material e instrumental – pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave (art. 456º, nº2, do CPC) pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida” ( In AC da RG de 04.10.2018, disponível em www.dgsi.pt). A litigância de má fé configura-se “ como um instituto em que o pretendido não é ou não é predominantemente, o acautelar de posições privadas e particulares das partes, mas sim um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela própria justiça. Conforme referia a propósito Paulo Cunha, num passo recordado também por Luso Soares e Menezes Cordeiro, todo o processo tende à obtenção de uma decisão donde resulta em última análise o sujeito passivo da má fé será sempre o tribunal. A proibição de litigância de má fé apresenta-se, assim, como um instituto destinado a assegurar a moralidade e eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça. O dolo ou má fé processual não vicia vontades privadas nem ofende meramente interesses particulares das partes envolvidas. A virtualidade específica da má fé processual é outra bem diversa e mais grave: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial” ( in Pedro de Albuquerque, “ Responsabilidade Processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo”, p. 55, 56) Esta conclusão é confirmada pela análise da nossa jurisprudência e de que dá eco o mesmo autor ( in ob cit, p. 56 a 58). Por outro lado, não se olvide que declarar desconhecer a realidade de um facto não é a mesma coisa que negá-lo - com a consequente necessidade de sobre ele se produzir prova - distintas sendo as consequências processuais de uma e outra atitude e a possibilidade de uma e outra conduzirem à “alteração da verdade dos factos” ( vide neste sentido AC da RG de 07-12-2017, in dgsi). Contudo, o julgador deve ser especialmente cauteloso e prudente na aferição das situações passíveis de constituírem litigância de má fé, apenas devendo determinar a condenação se se patentearem as condutas típicas e, bem assim, o dolo ou a grave negligência na sua prática. Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Processo 280/18.5T8OAZ.P1, rel. RITA ROMEIRA): “A responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; O autor deve ser condenado como litigante de má-fé se nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados”. Ou seja: “(…) a ousadia de apresentação duma determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa fé e da cooperação, havendo por isso que ser-se prudente no juízo a fazer sobre a má fé processual” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-11-2015, Processo 3067/12.5TBTVD.L1-2, rel. SOUSA PINTO).» - fim de citação. Aqui chegados, vejamos o caso concreto. O TAF do Funchal proferiu sentença que julgou improcedente, por não provada, a oposição deduzida pelo, ora, recorrente. Notificado da sentença, o então oponente veio arguir a nulidade da decisão, ao abrigo do disposto no art. 125º do CPPT, por entender que o Tribunal a quo na sentença proferida havia omitido a sua pronúncia sobre questões que deveria ter-se pronunciado ou apreciado (omissão ou falta de pronúncia), e os fundamentos invocados na mesma estavam em oposição ou contradição com a decisão final (oposição entre os fundamentos e a decisão). O Tribunal a quo condenou o Oponente em litigância de má fé porque entendeu que o mesmo «ultrapassou largamente os limites da legítima discordância, acusando o Tribunal de nulidades que sabe que o Tribunal não cometeu, e faltando à verdade sobre o teor da p.i. por si apresentada e sobre o teor da sentença proferida pelo Tribunal. Com o que é evidente que com a sua conduta o Oponente preencheu o circunstancialismo determinativo da sua condenação como litigante de má-fé com fundamento nas al. a) e b) do n.º 2 do art.º 542.º do Código de Processo Civil (a também designada na doutrina litigância substancial). Ao menos com a negligência grave que transparece da sua atuação, dado que não podia ignorar a falta de fundamento da sua pretensão e o teor da p.i por si apresentada e ainda da sentença proferida por este Tribunal. (…) Assim, ainda que a condenação a proferir se situe perto do liminar mínimo da moldura sancionatória aplicável (cfr. n.º 3 do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais), não pode o Tribunal deixar de proferir uma decisão condenatória, ponderando designadamente os critérios apontados no n.º 4 do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais, de onde se destaca, in casu e necessariamente, o impacto da conduta do Oponente na regular tramitação do processo, obrigando este Tribunal a um esforço extra e necessariamente alheio à normal tramitação do processo, com necessários impactos na administração da justiça, dado que os recursos aqui despendidos pelo Tribunal não puderam ser afetos a outros processos, o que, diga-se, se a conduta do Oponente se tivesse pautado pela prudência e respeito, não teria sucedido.» Não andou bem o Tribunal a quo. O julgador deve ser especialmente cauteloso e prudente na aferição das situações passíveis de constituírem litigância de má fé, apenas devendo determinar a condenação se se patentearem as condutas típicas e, bem assim, o dolo ou a grave negligência na sua prática. No caso dos autos, o despacho recorrido limita-se a dizer que o oponente sabia não serem verdadeiras as nulidades que invoca. Ora, as nulidades invocadas estão legalmente previstas, sendo que o oponente agiu no âmbito dos direitos que a lei e a CRP lhe confere. Tanto assim é, que a Fazenda Pública nada invocou, e o próprio Ministério Público junto deste Tribunal, emitiu parecer onde se pode ler, em conclusão: 1. O oponente foi condenado como litigante de má fé porque, segundo despacho recorrido, alegou nulidades da sentença que sabia não se terem verificado. 2. Todavia, consideramos que o oponente se limitou a invocar factos com vista a que a sentença fosse revista, invocando nulidades que, segundo a sua opinião, se verificaram. 3. Não se verificaram factos de negligência grosseira, de malícia ou quaisquer juízo de censura que justifique tal condenação. Como se afirma no acórdão, já supra referido, do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/5/2019, disponível in www.dgsi.pt: Vem hoje constituindo entendimento prevalecente na nossa jurisprudência, que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artº. 542º do nCPC, havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má fé. Donde que, como constitui hoje entendimento claramente prevalecente na nossa jurisprudência, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, com e/ou no processo entrado em tribunal. Como facilmente se conclui, no presente caso não está demonstrado de forma manifesta e inequívoca que o Oponente agiu dolosamente ou com negligência grave de modo a ser condenado por litigância de má fé, pelo que se irá conceder provimento ao recurso, e consequentemente, revogar o despacho recorrido. **** III. DECISÃO Face ao exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido. Sem Custas. Registe e notifique. Lisboa, 13 de Novembro de 2025 -------------------------------- [Lurdes Toscano] ------------------------------- [Filipe Carvalho das Neves] -------------------------------- [Luísa Soares] |