Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 29/25.6BCLSB |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 02/27/2025 |
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Relator: | LUÍS BORGES FREITAS |
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Descritores: | JUSTIÇA DESPORTIVA INJÚRIAS ESPETADOR |
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Sumário: | I - Se determinado indivíduo injuria o treinador depois de ter sido expulso do estádio pela polícia, já não o faz enquanto espetador. II - Não o fazendo nessa qualidade – de espetador -, também não a poderá ter quando passa, por meio reativo, a sujeito passivo das ações injuriosas. III - Se as expressões do treinador não foram dirigidas a um indivíduo com a qualidade de espetador, não se verifica a prática da infração prevista no artigo 136.º/1 do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, por remissão do artigo 168.º/1 do mesmo regulamento. |
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Votação: | Unanimidade |
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Indicações Eventuais: | Subsecção Administrativa Social |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul: I J… demandou, no Tribunal Arbitral do Desporto, a FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL, pedindo a anulação da decisão do seu Conselho de Disciplina que, no âmbito do processo disciplinar n.° 104-2023/2024, o condenou pela prática de uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 136.°/1, por remissão do artigo 168.°/1 e 2 e por referência ao artigo 112.°/1, todos do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, aplicando-lhe uma pena de suspensão pelo período de 11 dias e uma pena de multa no valor de € 1.340,00. Por acórdão de 10.12.2024 o Tribunal Arbitral do Desporto julgou improcedente a ação arbitral. Inconformado, o Demandante interpôs recurso dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo. Formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem: A. O presente recurso tem por objecto o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral em 10 de Dezembro de 2024 na parte em que manteve a condenação proferida pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, em acórdão de 10-07-2024 no qual se condenou o recorrente J...pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 168.°, n.° 1 e 2, com referência aos artigos 112.°, n.° 1, e 136-1 todos do RD, na sanção de 11 dias de suspensão e em multa no valor de € 1.340,00; B. A condenação de J… pela infracção p. e p. pelo art, 136,°- 1 do RD, assenta no pressuposto incorrecto de que as declarações proferidas pelo recorrente no parque de estacionamento, em resposta a múltiplos e constantes insultos de que foi sendo objecto, configuram uma injuria subsumível ao ilícito disciplinar do aludido art.° 136 do RD.: C. O recorrente prestou declarações na audiência disciplinar, onde esclareceu as circunstâncias concretas dos factos, e confessou ter proferido a expressão constante da acusação, nomeadamente que as mesmas ocorreram após o fim do jogo, quando o mesmo já não se encontrava dentro do estádio mas no parque de estacionamento na via pública, e após ter sido reiteradamente insultado e ofendido por um cidadão - que anteriormente foi espectador; D. É importante realçar que o cidadão em causa, aquando da sua qualidade de espectador, esteve durante grande parte do jogo junto ao banco da equipa técnica do A… a proferir os mais variados e ignóbeis insultos ao recorrente, tais como: “J... és um filho da puta; és um boi, és um corno, vai buscar a tua mulher à Kikas”. Tanto assim foi que o referido adepto foi identificado pela GNR e foi detido para identificação e colocado fora do estádio; E. Enquanto o recorrente actuou na qualidade de agente desportivo, na veste de treinador de futebol, este não esboçou qualquer reacção acolhendo estoicamente os insultos e injúrias que lhe foram reiteradamente dirigidos, num exercício de contenção exemplar. Sempre em cumprimento dos deveres de urbanidade e correcção a que estava obrigado, enquanto agente desportivo mormente o art.° 51 do Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol; F. Só após o fim do jogo, e após ter cumprido escrupulosamente as suas funções e obrigações e quando estava lá no exterior do Estádio, enquanto procurava um amigo para recuperar os cartões de camarote que previamente lhe tinha cedido, E SÓ APÓS TER SIDO NOVAMENTE E REITERADO INSULTADO, com a expressão filho da puta, este reagiu com a expressão: “Filho da puta és tu. resolvemos isto mano a mano.” G. Actuando já fora das instalações desportivas onde o encontro se realizou e não como treinador de futebol ou agente desportivo, mas como cidadão, numa situação particular em que viu a sua honra, bom nome e consideração constantemente posta em causa, e como quem não sente não é filho de boa gente, limitou-se a devolver a expressão à origem. H. E não obstante a conexão remota dos factos com o evento desportivo já terminado, não pode o recorrente ter os seus direitos à indignação e à defesa da sua honra constrangidos indefinidamente apenas pelo facto de ser agente desportivo. Tanto mais que, teve um comportamento exemplar durante todo o evento desportivo e só após o fim do mesmo, fora do recinto desportivo e mediante nova factualidade praticada contra si, o mesmo reagiu em defesa da honra; I. Não faz assim sentido julgar-se como provado que: “O Arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento era ilícito, que ofendia a honra do espectador em apreço, que fazia perigar a segurança do espectáculo desportivo e que prejudicava a imagem das competições profissionais de futebol em que o próprio Arguido se encontra envolvido, porém, não se absteve do mesmo.” (factualidade constante do ponto 7 dos factos provados da decisão proferida); J. Porquanto o sujeito que insultou o recorrente já não actuava na veste de espectador, nem o recorrido na veste de agente desportivo, nem os factos ocorreram durante e no local do espectáculo desportivo, não fazendo perigar a segurança do mesmo ou a imagem da competição. K. O recorrente enquanto cidadão, já fora do evento e do estádio, injustiçado por novos e determinados actos injuriosos, limitou-se, em pé de igualdade, a dar vazão à sua - até aí contida - revolta. L. Não lhe era exigível maior contenção, depois de ter sido objecto de constantes e reiterados ataques à sua honra, à frente de todo um estádio, na presença dos seus familiares e amigos, tendo permanecido firme enquanto a sua função assim o exigia. M. Mas já não seria de lhe exigir que, à maneira dos estóicos, mantivesse, na circunstância (já no recato da sua vida privada, fora do estádio e das vestes de agente desportivo) «a virtude da independência racional e da libertação perante os impulsos e movimentos sensíveis pré- racionais» N. Num acto de justiça e de defesa da sua honra que a situação concreta exigia, e que um qualquer cidadão médio com amor próprio, personalidade e sentido de justiça replicaria - e que sempre estaria ao coberto das cláusulas de exclusão de ilicitude estatuídas nos art.°s 31.°. 32.° e 34.° do Código Penal; O. O legislador teve o cuidado de consagrar e delimitar os deveres de correção e urbanidade dos agentes desportivos para com os espectadores ao interior das instalações desportivas onde o encontro se realiza, numa limitação de espaço e tempo que se coaduna com a função por aqueles desempenhada durante o evento desportivo; P. Findo esse evento e fora do espaço do mesmo, o agente desportivo volta a ser um cidadão de pleno direito, com a possibilidade de reacção e de indignação à injustiça que a sua consciência dita, respondendo nos meios comuns caso assim se exija. Q. A conduta do recorrente só poderia qualificar-se de «infracção disciplinar» se, por um lado, fosse de considerar que tal actuacão era injustificada e fosse concretamente repercutível na reputação e bom nome da competição, o que não é o caso, porquanto a conduta não tem relevância ética e disciplinar para produzir tal efeito: R. Veja-se nesse sentido o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 03-07-2003, com o n.° convencional JSTJ000, disponível in www.dgsi.pt, com as seguintes conclusões: I- Os magistrados judiciais só ante uma "infracção disciplinar" (e só o será, tratando-se de acto da sua vida particular, se, por um lado, se repercutir na sua vida pública e, por outro, se revelar incompatível com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções) poderão ser "disciplinarmente responsabilizados" (art°s. 81°e ss. do EMJ). II- Não o será um acto da vida particular que não seja "de molde a causar perturbação no exercício das funções ou de nele se repercutir de forma incompatível com a dignidade que lhe é exigível". III- "São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis" (art°. 135° do CPA). S. Acórdão que aqui se segue de perto, e no qual se entendeu que um Juiz Conselheiro que, numa conversa privada com outro Juiz Conselheiro, profere a expressão: «O Senhor Dr. faz parte do Conselho, não faz?» Respondi afirmativamente, e então ele disse-me textualmente: «Para mim todos os elementos do Conselho são uns filhos da puta» não comete uma infracção disciplinar, porquanto tal conduta não foi praticada no exercício de funções, mas na esfera da sua vida particular, e a mesma não é suficiente para se revelar incompatível com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções. T. A conduta descrita na Acusação e confessada pelo recorrente não pode ser subsumível à infracção prevista no artigo 168.°. n.° 1 e 2 do RD, ex vi 112.° n.° 1 e 136. N.° 1 todos do Regulamento Disciplinar, tanto mais que não preenche o tipo-de-ilícito objetivo ali previsto. U. O artigo 112.° do RD pressupõe que a conduta seja praticada em virtude do exercício das suas funções desportivas, ou que incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina. V. O recorrente enquanto na veste de agente desportivo teve um comportamento exemplar e irrepreensível, acolhendo e não reagindo às constantes provocações, insultos e atentados à honra que foi sendo sujeito. Não incitando à prática de actos violentos conflituosos ou de indisciplina de qualquer espectador ou agente desportivo; W. Apenas reagiu em defesa da sua honra e consideração após o fim do evento desportivo, após o término das suas funções, fora do estádio e mediante novos insultos e provocações, mas já enquanto cidadão e na esfera da vida privada; X. O aludido art.° 136.°. pressupõe que a conduta seja praticada contra órgãos da Liga Portugal ou da FPF, respetivos membros, elementos da equipa de arbitragem, clubes, dirigentes, jogadores» demais agentes desportivos ou espectadores, sendo certo que no momento da prática dos factos, o destinatário da expressão do recorrente não desempenhada qualquer das funções ali descrita ou era possuidor de quaisquer daquelas “qualidades”. Y. Considerando que o evento desportivo já tinha terminado e os factos foram praticados fora do Estádio e o destinatário terminou a sua qualidade de espectador muito antes do término do evento desportivo, porquanto fruto dos insultos e provocações constantes que efectuou ao recorrente foi o mesmo detido para identificação e colocado fora do recinto desportivo, pelas autoridades policiais. Z. Não podem permanecer quaisquer dúvidas quanto à falta de qualidade de espectador do destinatário da expressão, qualidade que é exigida, no momento da prática dos factos, para a subsunção da conduta à infracção disciplinar prevista no art.° 136 do RD, para a qual remete o 168.° do mesmo diploma legal. AA. Além do mais, os deveres de urbanidade e correção para com os espectadores, no que às presentes normais dizem respeito, circunscrevem-se ao interior das instalações desportivas onde o encontro se realiza (art.° §1.° Regulamento das Competições), resultando provado no Acórdão que os factos ocorreram após o término do encontro e fora do estádio. “Dentro das instalações desportivas onde o encontro se realiza, todos os agentes desportivos deverão usar da maior correção e respeito para com o público, elementos das forças de segurança e representantes dos órgãos da comunicação social.” BB. Não se ignora a conexão remota dos factos ocorridos com o evento desportivo iá terminado, porém, é uma factualidade nova que surge após o término do evento desportivo que motiva o recorrente a reagir e a defender a sua honra, sendo que não o fez enquanto na veste de agente desportivo. CC. Sendo certo que a conduta do recorrente não foi motivada pelos factos ocorridos no evento desportivo, tanto mais que o mesmo não efectuou qualquer reacção, mas sim com a nova factualidade, designadamente a conduta e insultos do cidadão na via pública. DD. Que, por outro lado, não se encontrava dentro das instalações desportivas e não tinha a qualidade de espectador. EE. Não faz, assim, sentido a conclusão que o recorrente proferiu as referidas expressões por causa do jogo em causa, na qualidade de treinador ao espectador A…, porquanto dos factos provados resulta que o recorrente não reagiu a nenhuma das provocações e insultos durante o jogo. FF. E só já fora do recinto desportivo, mediante novos insultos pelo mesmo sujeito (nova factualidade), e já não na veste de treinador, agiu em conformidade em defesa da honra, agindo já como cidadão. GG. A qualidade de treinador ou de agente desportivo não pode permitir uma extensão do poder disciplinar sobre factos da vida privada, e cuja conduta ocorre já fora dos recintos desportivos, cuia conexão com o desporto é meramente circunstancial. HH. Como bem se refere na decisão recorrida, do art. 43.º/1 do RJFD de 2008 decorre que a competência sancionatória do Conselho de Disciplina da FPF está circunscrita às infracções disciplinares em matéria desportiva: Artigo 43.° do Decreto-Lei n. ° Decreto-Lei n. ° 248-B/2008 “1 - Ao conselho de disciplina cabe, de acordo com a lei e com os regulamentos e sem prejuízo de outras competências atribuídas pelos estatutos e das competências da liga profissional, instaurar e arquivar procedimentos disciplinares e, colegialmente, apreciar e punir as infrações disciplinares em matéria desportiva”. II. Em conformidade, determina o art. 15.° do Regimento do Conselho de Disciplina que “O Conselho de Disciplina exerce os poderes que lhe são atribuídos pelos Regulamentos, pelos Estatutos ou pela lei, competindo-lhe designadamente instaurar e arquivar procedimentos disciplinares e colegialmente apreciar e punir as infrações disciplinares em matéria desportiva, sem prejuízo da competência do Conselho de Justiça”. JJ. O Regulamento Disciplinar que sustentou a condenação do arguido não é aplicável ao caso dos autos, dado que a factualidade sub judice não constitui matéria desportiva. KK. Não pode, logo por isso, a conduta imputada ao arguido ser objecto de responsabilidade disciplinar. LL. Com efeito, o objecto do RDLPF definido pelo seu art. 1.° está limitado ao “âmbito das competições de futebol organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (Liga Portugal)”. MM. É manifesto, pois, que o Regulamento Disciplinar não se aplica a todo um sem número de actividades dos Clubes e Sociedades Anónimas Desportivas e agentes desportivos alheias ao fenómeno desportivo, ou com uma conexão ténue não relevante. NN. De facto, era o que mais faltava que os Clubes e os agentes desportivos estivessem sujeitos a uma espécie de poder orwelliano de supervisão e controlo totais exercido pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol sobre a generalidade das suas actividades. OO. Bem se sabe que não tem sido esta a compreensão deste Conselho de Disciplina sobre o alcance dos seus próprios poderes: “(...) os deveres e obrigações gerais a que estão sujeitos todos os agentes desportivos, tal como configurado pela norma do artigo 19.° RDLPFP, se projete não só nas relações de natureza desportiva, mas também nas relações de natureza social e até económica, que nada tem a ver com a prática da competição em si” (negrito nosso) PP. O que não admira: a história do poder sancionatório revela que quem dispõe do poder de punir dificilmente consegue conter a pulsão para extravasar as fronteiras desse poder que lhe foi confiado. QQ. Uma interpretação do art. 19.°. n.° 1. do RDLPFP no sentido de que autoriza o Conselho de Disciplina a transpor, no exercício dos seus poderes sancionatórios, os limites daquilo que constitui a matéria desportiva é incompatível com o art. 43.°/1 do RJFD e deve por isso ser rejeitada. RR. Tal interpretação contraria inclusive a própria letra do art. 19.° do RDLPFP que se refere expressamente a “princípios desportivos”: as relações de natureza desportiva, económica ou social a que a norma se refere só estão a ela sujeitas na medida em que sobre ela possam incidir os princípios desportivos que nela se consignam, ou seja, na medida em que possam representar uma qualquer refracção do fenómeno desportivo. SS. Levada a sério, a ideia de que o Conselho de Disciplina poderia sancionar os clubes e os agentes desportivos por violações de quaisquer normas legais que lhes sejam aplicáveis nas suas relações de natureza social e económica, mesmo que em tudo alheias ao fenómeno desportivo, implicaria coisas tão absurdas como sujeitar um atleta a sanções disciplinares por agredir um vizinho ou não pagar a pensão de alimentos a um filho ou como punir um clube por não ter os impostos em dia. TT. Vale isto por dizer que uma eventual ofensa a direitos pessoais de alguém que na via pública, persiste em insultar e injuriar outra pessoa que desempenhou as funções de treinador num jogo já terminado, tendo este retorquido os insultos, mas completamente à margem das competições desportivas, como sucede in casu, escapa ao âmbito normativo do RDLPFP e concomitantemente aos poderes disciplinares do Conselho de Disciplina. UU. Não obstante a conexão com factos ocorridos durante o evento desportivo, a factualidade é materialmente distinta e o comportamento do recorrente é distinto e independente da conexão. VV. Logo por esta razão deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça determine a absolvição do arguido. Sem prescindir, WW. Para a absolvição concorre ainda a falta de queixa ou participação da pessoa cuja honra se diz terem sido afectadas. XX. Do processo consta não consta qualquer denúncia ou participação formulada pelo ofendido propriamente dita. YY. Sendo que, somos ainda do entendimento que, face aos factos concretos apurados e às condutas dos intervenientes, a ilicitude do recorrente estaria excluída.. nos termos do disposto no art.° 31.°. por referência ao disposto nos art.°s 32.° e 34.° do Código Penal, por ter actuado o recorrente ao abrigo de uma cláusula de justificação. ZZ. Isto posto, e pelas razões supra aduzidas somos do entendimento que a conduta em apreço não é subsumível às infracções disciplinares p. e p. nos artigos 112.°, n.° 1, 136.°, n.° 1 e 168.°, n.° 1 e 2 todos do Regulamento Disciplinar. AAA. Pelo que deverá o Acórdão proferido ser revogado, absolvendo-se o recorrente da infracção disciplinar que o mesmo foi condenado. Termos em que se requer a V.Exas. se dignem julgar procedente o presente recurso, e, consequentemente, revogar o acórdão arbitral recorrido, substituindo-se o mesmo por outro que importe a absolvição do Recorrente J…. * A Recorrida/Federação Portuguesa de Futebol apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões, que igualmente se transcrevem:1. O presente recurso, interposto pelo Recorrente, tem por objeto o Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, proferido no âmbito do processo n.° 41/2024, que negou provimento ao aí peticionado, confirmando a decisão impugnada proferida pelo Conselho de Disciplina, na íntegra, de sancionar o Recorrente pela prática de uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 168.°, n° 1 e 2, no tipo de infração disciplinar p.p. pelo artigo 136.°, n.°s 1, com referência ao artigo 112.°, n.° 1, todos do RDLPFP, situa-se em abstrato, na sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de 15 dias e o máximo de um ano e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 50 UC e o máximo de 300 UC; 2. O Recorrente confessa os factos que estiveram na base da sua condenação, não concordando ainda assim que se demonstrem preenchidos os elementos do tipo dos artigos 168.°, 136.° e 112.° do RDLPFP, acrescentando que não "estava nas vestes" de treinador aquando da prática dos factos, tendo atuado fora das instalações desportivas, concluindo que o poder disciplinar do Conselho de Disciplina da Recorrida não abrange o momento da prática dos factos, por não se tratar de plena competição desportiva; Vejamos, 3. Em concreto, o Recorrente foi condenado por nos termos da factualidade dada como provada pelo Acórdão recorrido, se ter dirigido a um espetador que o havia provocado, dizendo-lhe “Filho da puta és tu, resolvemos isto mano a mano”; 4. As normas legais e regulamentares supra referidas, pelas quais o Recorrente foi sancionado, estabelecem e desenvolvem deontologicamente o princípio da ética desportiva, assumindo-se como concretização do dever constitucional de proteção do bem jurídico “prevenção da violência no desporto” a que alude expressamente o n.° 2 do artigo 79.° da CRP; 5. O valor protegido pelo ilícito disciplinar pelo qual o Recorrente foi condenado, à semelhança do que é previsto nos artigos 180.° e 181°, do Código Penal, é o direito "ao bom nome e reputação", cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa ao mesmo tempo a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play, 6. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112.° do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem; 7. Em concreto, a norma em causa visa prevenir e sancionar a prática de condutas desrespeitosas entre agentes desportivos; 8. Esta atuação da disciplina jurídico-desportiva é assim autónoma do direito penal e civil, nos termos do disposto no artigo 6.° do RD da LPFP; 9. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto facto de realização do valor da ética desportiva; 10. No enquadramento regulamentar dado pelo preceito disciplinar em apreço, reprova-se e sanciona-se especialmente quaisquer atos verbais, gestuais ou escritos que, assumindo natureza desrespeitadora, difamatória, injuriosa ou grosseira, incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina; 11. O juízo de valor desonroso ou ofensivo da honra é um raciocínio, uma valoração cuja revelação atinge a honra da pessoa objeto do juízo, sendo certo que tal juízo não é ofensivo quando resulta do exercício da liberdade de expressão; 12. O direito à liberdade de pensamento e expressão que assiste ao indivíduo [artigo 37.°, n.° 1, da CRP] não é ilimitado, havendo que atentar, designadamente no direito ao bom nome e reputação (artigo 26.°, n.° 1 da CRP); 13. A relevância constitucional atribuída à tutela do bom nome e reputação legitimou, entre outros, a criminalização de comportamentos como a injúria e a difamação e, no âmbito do direito disciplinar desportivo, a tipificação de infrações disciplinares que consubstanciem incitamento à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina; 14. Tratando-se do treinador de uma equipa profissional de futebol, com vasta experiência como jogador profissional, o Recorrente sabe que as expressões e declarações que profere são aptas a influenciar a comunidade e a imagem que a mesma tem das competições e dos agentes desportivos nelas envolvidos, pelo que, impende sobre si, um dever de zelo para prevenir fenómenos de violência e intolerância no desporto; 15. O Recorrente dirigiu-se a um espetador que havia assistido ao jogo em crise nos autos, proferindo a seguinte expressão “filho da puta és tu, resolvemos isto já, mano a mano”. Cfr. Relatório de Policiamento Desportivo a fls. 16 do PD; 16. O referido Relatório de Policiamento Desportivo tem força probatória especial, por se considerar documento autêntico, nos termos do disposto no artigo 363.°, n.° 2 do Código Civil; 17. O que o Recorrente afirma acerca da forma “inocente" como agiu, não corresponde à verdade, isto porque, o que se verificou é que o Recorrente, propositadamente, se dirigiu aos adeptos da equipa adversária no sentido de os confrontar, o que acabou por lograr fazer, proferindo quanto a um desses adeptos a expressão “Filho da puta és tu, resolvemos isto mano a mano”; 18. O Recorrente atuou livremente e sem constrangimentos, até porque atuou no final do jogo, de forma propositada como supra se alude, bem conhecendo a carga desvaliosa da expressão e atuação, que escolheu, apesar disso, usar e praticar; 19. Os factos em crise foram praticados dentro do recinto desportivo, designadamente e nas palavras do Recorrente, o mesmo encontrava-se no local onde os delegados da LPFP, os agentes de arbitragem e os autocarros das equipas, ou seja, dentro do recinto desportivo; 20. O Recorrente não se encontrava no "recato da sua vida privada", ao contrário do que afirma, sendo que, em virtude de insultos que lhe foram dirigidos, após o fim do jogo em crise nos autos, se dirigiu aos adeptos que o haviam insultado, que naquele momento se encontravam na zona exterior da bancada, onde acabou por proferir, quanto a um deles as declarações em crise nos autos - cfr. Ponto B.° dos factos provados; 21. A evidência de que os factos em crise constituem infração disciplinar é a confissão do Recorrente de que, caso soubesse de antemão que a situação evoluiria como evoluiu, não se teria deslocado para a zona exterior da bancada, quando afirma que “não o devia ter feito” - cfr. audiência disciplinar; 22. Para que se possa verificar o tipo disciplinar previsto pelo artigo 136.°, n.° 1 do RDLPFP [Lesão da honra e denúncia caluniosa], é necessário que, voluntariamente e ainda que de forma meramente culposa, um [i] dirigente; [ii] use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros; [iii] para com órgãos da Liga ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos; 23. Ao contrário do que afirma o Recorrente, o evento desportivo não termina no exato momento em que o árbitro dá por concluído o jogo, sendo que, se assim não fosse a partir do momento em que o agente de arbitragem dá por terminado o jogo, tudo seria permitido, nada sendo sancionável disciplinarmente, porquanto os agentes desportivos deixariam de o ser exatamente naquele momento, o que como é bom de ver, não colhe; 24. Não se nega que declarações e expressões como as usadas e difundidas pelo Recorrente são corriqueiramente usadas no meio desportivo em geral e no futebol em particular. Porém já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são suscetíveis de afetar a honra e dignidade de quem quer que seja, sempre na perspetiva da defesa da competição, porquanto tais afirmações têm intrínseco uma injúria e ameaça espetador em causa e um incitamento à violência; 25. Em conclusão, andou bem o Tribunal a quo ao decidir manter a sanção ao Recorrente, não merecendo o Acórdão recorrido, nenhuma censura. Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser negado provimento ao Recurso Jurisdicional e, consequentemente, ser mantido o Acórdão Arbitral recorrido, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA. * Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve merecer provimento. * Com dispensa de vistos, atenta a natureza urgente do processo, vem o mesmo à conferência para julgamento. II Sabendo-se que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste tribunal de apelação consistem em determinar se existe erro de julgamento por: a) Se ter considerado que a conduta do Recorrente preenche o tipo de infração previsto no artigo 136.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal; b) Não se ter considerado que o Recorrente atuou ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude e/ou da culpa. III A matéria de facto constante da decisão recorrida é a seguinte: 1.º - No dia 19.05.2024 disputou-se o jogo oficialmente identificado sob o n.° 23406, entre a A…— Futebol, SAD e a C… - Futebol, SAD, a contar para 34.a jornada da Liga Portugal SABSEG. 2.º - J…, era Treinador da A… — Futebol, SAD, tendo sido inscrito por esta Sociedade Desportiva na respetiva ficha técnica, relativa ao sobredito jogo e, nessa qualidade nele interveio. 3.º - Antes do início do jogo identificado em 1.°, no momento da entrada das equipas no terreno de jogo, os adeptos afetos à C…, SAD, que se encontravam na bancada norte setor O, local ocupada exclusivamente por adeptos afetos à C…, SAD, identificados com adereços alusivos ao clube, nomeadamente camisolas e cachecóis, entoaram em uníssono o seguinte cântico: "J… és um filho da puta", factualidade já sancionada em sede de processo sumário. 4.º - No decorrer do referido jogo, dois espectadores, nomeadamente A… e T…, adeptos afetos à C…, SAD, que assistiam ao jogo a partir da bancada norte setor O, local ocupado exclusivamente por adeptos afetos à C…, SAD, identificados com adereços alusivos ao clube, provocaram o Arguido J…, insultando-o com as seguintes expressões: «J...és um filho da puta; és um boi, és um corno, vai buscar a tua mulher à Kikas». Nessa sequência, os referidos adeptos foram identificados pela polícia e colocados no exterior do estádio, materialidade já sancionada em sede de processo sumário. 5.º - No final do jogo, já depois de terminada a flash interview, J... dirigiu-se ao exterior do estádio, para ir ter com um amigo de modo a recuperar os cartões de camarote que previamente lhe tinha cedido. Nessa altura foi confrontado novamente por adeptos do C…, SAD, que se encontravam na zona do parque de estacionamento dos adeptos e que o insultavam. 6.º - Ato contínuo, o ora demandante, dirigindo-se ao espectador A…, identificado em 4.° supra e que se encontrava num local mais elevado, a cerca de 15/20 metros, para lá de uma grade com cerca de 2 metros de altura, disse-lhe: «Filho da puta és tu, resolvemos isto mano a mano». * No contexto da presente ação, o termo espectador utilizado no facto 6.º tem natureza jurídica na medida em que importa determinar, precisamente, se o mesmo, nesse momento, tinha a qualidade de espetador (o que já não sucede relativamente ao facto 4.º). Aliás, disso mesmo deu conta o acórdão recorrido ao considerar que «para que se possa verificar o tipo disciplinar previsto pelo artigo 136.°, n.° 1 do RDLPFP é necessário que um (i) dirigente; (ii) use de expressões injuriosas, difamatórias ou grosseiras; (iii) para com espetadores» (destaque e sublinhado nossos). Assim sendo, o facto 6.º passa a ter a seguinte redação: 6.º - Ato contínuo, o ora demandante, dirigindo-se a A…, identificado em 4.° supra e que se encontrava num local mais elevado, a cerca de 15/20 metros, para lá de uma grade com cerca de 2 metros de altura, disse-lhe: «Filho da puta és tu, resolvemos isto mano a mano». IV 1. Com resulta da decisão disciplinar de 9.7.2024 da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida/Federação Portuguesa de Futebol, o Recorrente foi condenado «pela prática de uma infracção disciplinar p. e p. pelo artigo 136.º, n.º 1 [Lesão da honra e da reputação e denúncia caluniosa], por remissão do artigo 168.º, n.º 1 e n.º 2 [Disposições gerais] e por referência ao artigo 112.º, n.º 1 [Lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros]». 2. É o seguinte o conteúdo dos artigos invocados: «Artigo 168.º 1. Os delegados dos clubes, os treinadores e os auxiliares técnicos que pratiquem as infrações previstas nos artigos 128.º a 141.º são punidos com as respetivas sanções neles previstas. Disposições gerais 2. No caso das infrações previstas nos artigos 136.º e 139.º-A os limites mínimo e máximo da sanção de suspensão aplicável aos treinadores e aos auxiliares técnicos são reduzidos a metade. (…)». «Artigo 136.º 1. Os dirigentes que pratiquem os factos previstos no n.º 1 do artigo 112.º contra órgãos da Liga Portugal ou da FPF respetivos membros, elementos da equipa de arbitragem, clubes, dirigentes, jogadores, demais agentes desportivos ou espectadores, são punidos com a sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de um mês e o máximo de dois anos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 50 UC e o máximo de 300 UC. Lesão da honra e da reputação e denúncia caluniosa (…)». «Artigo 112.º 1. O clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga Portugal ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC.Lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros (…)». 3. Por força da remissão efetuada pelo artigo 168.º/1 do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal (adiante, apenas RDLP), temos que serão punidos, e no âmbito que agora nos interessa: · Os treinadores que pratiquem os factos previstos no n.º 1 do artigo 112.º contra órgãos da Liga Portugal ou da FPF respetivos membros, elementos da equipa de arbitragem, clubes, dirigentes, jogadores, demais agentes desportivos ou espectadores. 4. Quanto a tais factos – os previstos no n.º 1 do artigo 112.º -, trata-se do uso de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como o incitamento à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina. 5. À luz das conclusões do Recorrente, haverá que apurar, antes de mais, se as expressões em causa foram dirigidas a um espetador, como considerou a decisão punitiva. 6. Para o efeito importa contextualizar a ação punitiva à luz dos poderes da Recorrida/Federação Portuguesa de Futebol, recordando que a mesma exerce a ação disciplinar sobre todos os agentes desportivos sob sua jurisdição (artigo 13.º/1/i) do regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro), poderes esses de natureza pública (artigo 11.º). Ao seu conselho de disciplina «cabe, de acordo com a lei e com os regulamentos e sem prejuízo de outras competências atribuídas pelos estatutos e das competências da liga profissional, instaurar e arquivar procedimentos disciplinares e, colegialmente, apreciar e punir as infrações disciplinares em matéria desportiva» (artigo 43.º/1). O seu regulamento disciplinar tem em «vista a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva» (artigo 52.º/1), sendo «consideradas normas de defesa da ética desportiva as que visam sancionar a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo e a xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo» (artigo 52.º/2). O regime disciplinar deve prever, designadamente, a «[s]ujeição dos agentes desportivos a deveres gerais e especiais de conduta que tutelem, designadamente, os valores da ética desportiva e da transparência e verdade das competições desportivas, com o estabelecimento de sanções determinadas pela gravidade da sua violação» [artigo 53.º/a)]. Por fim, cabe evidenciar que «[n]o âmbito desportivo, o poder disciplinar das federações desportivas exerce-se sobre os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam a actividade desportiva compreendida no seu objecto estatutário, nos termos do respectivo regime disciplinar» (artigo 54.º/1). 7. Por seu lado, o RDLP «disciplina os poderes disciplinares de natureza pública exercidos no âmbito das competições de futebol organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (Liga Portugal)» (artigo 1.º/1), sendo aplicável «a todos os clubes e agentes desportivos que, a qualquer título ou por qualquer motivo, exerçam funções ou desempenhem a sua atividade no âmbito das competições organizadas pela Liga Portugal» (artigo 3.º/1). Agentes desportivos são, nomeadamente, os treinadores [artigo 4.º/1/b)]. Relativamente ao âmbito subjetivo de aplicação das normas disciplinares, o artigo 7.º/1 estabelece que «[a]s pessoas singulares serão punidas pelas faltas cometidas durante o tempo em que desempenhem as respetivas funções ou exerçam os respetivos cargos». 8. Ora, o primeiro pressuposto que importa fixar é o de que o poder disciplinar da Recorrida/Federação Portuguesa de Futebol, exercido através da Secção da Área Profissional do seu Conselho de Disciplina, não está limitado ao recinto ou ao complexo desportivo (o primeiro definido como sendo «o local destinado à prática do futebol, confinado ou delimitado por muros, paredes ou vedações, em regra com acesso controlado e condicionado», o segundo correspondendo ao «conjunto de terrenos, construções e instalações destinado à prática desportiva de uma ou mais modalidades, compreendendo os espaços reservados ao público e ao parqueamento de viaturas» - artigo 4.º/1/f) e g) do RDLP). Esse pressuposto será pacífico, também, para o Recorrente. 9. Um treinador, numa situação como a do Recorrente, é um agente desportivo submetido à aplicação daquele regime disciplinar (cf. artigos 3.º/1 e 4.º/1/b) do RDLP). E essa é uma qualidade do indivíduo, que o acompanha permanentemente, não dependendo, evidentemente, do local ou da ação que em concreto esteja a praticar. Essa qualidade será irrelevante em determinados contextos, mas, como se disse, é permanente enquanto mantiver as condições legais e regulamentares para o efeito. 10. Daí que se o referido treinador injuriar um dirigente da Recorrida/Federação Portuguesa de Futebol, tendo por referência ações ou omissões deste no exercício do respetivo cargo, estará, sem dúvida, submetido à alçada disciplinar daquela Federação, independentemente de as expressões injuriosas terem sido proferidas no complexo desportivo ou num canal de televisão. 11. Ora, ao contrário do que sucede com o treinador, que corresponde a uma qualidade absoluta, o conceito de espetador tem natureza relativa. Porque espetador é aquele «[q]ue assiste, presencia a um acto, a um acontecimento» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, vol. I, p. 1532), é «quem assiste a um espectáculo; observador; testemunha» (Dicionário da Porto Editora, 8.ª edição, 1998, p. 674). Portanto, um indivíduo terá a natureza de espetador sempre por referência a um evento. O evento a que assiste. 12. Assim sendo, se um treinador injuria um indivíduo que está a assistir ao jogo, na respetiva bancada, fá-lo a alguém que é espetador. Mas se o mesmo treinador injuria esse mesmo indivíduo, no dia seguinte, num qualquer centro comercial, não o faz a alguém que é espetador, mas sim a quem foi espetador. 13. A diferença assinalada poderá conduzir a resultados iguais, mas exigirá ponderações diversas. Assim é que uma injúria praticada no decorrer do jogo integrará sempre o tipo de infração em causa, independentemente da conexão com o próprio jogo. Note-se que uma injúria dirigida pelo treinador para um espetador, ainda que motivada por razões totalmente alheias ao próprio jogo – por exemplo, problemas pessoais anteriores -, será sempre apta a fazer perigar a segurança do próprio jogo. Portanto, e como se disse, a injúria praticada no decorrer do jogo será sempre passível de punição disciplinar. 14. O mesmo não se poderá dizer da injúria que é cometida após o jogo, fora do complexo desportivo. Neste caso a injúria já não é cometida relativamente a alguém que é espetador, mas sim que foi espetador. Ora, esta qualidade, quando reportada ao passado, só fará sentido ser invocada quando a injúria apresentar uma conexão com o evento no qual o injuriado esteve presente. Assim sendo, o treinador que, após o jogo e fora do complexo desportivo, injurie alguém que assistiu ao jogo poderá, a priori, ser punido por injúria a um espetador se a mesma apresentar conexão com esse jogo (dispensa-se, porque desnecessária na economia do presente acórdão, qualquer desenvolvimento sobre os eventuais limites, nomeadamente temporais, para essa conexão). 15. Seria o caso, nomeadamente, em que o Recorrido, após o jogo, se dirigiria imediatamente para uma das portas de saída dos espetadores, aguardando por um daqueles que o tinham injuriado, a quem agrediria, já fora do complexo desportivo. 16. Nessa situação o treinador reagiu a um facto ocorrido no decurso do jogo. Nesse caso deve entender-se que a conexão ao evento deve manter-se. E por força dessa conexão o agredido foi um espetador (o mesmo é válido, evidentemente, relativamente a outro ato ilícito, nomeadamente uma injúria). 17. Não é o caso dos autos. O treinador reagiu a um facto ocorrido fora desse âmbito. Se o indivíduo injuria o treinador (aqui Recorrente) depois de ter sido expulso do estádio pela polícia (vd. facto 4.º), já não o faz enquanto espetador. Quebrou-se, juridicamente, a conexão com o evento. Não o fazendo nessa qualidade – de espetador -, também não a poderá ter quando passa, por meio reativo, a sujeito passivo das ações injuriosas. Como alegou o Recorrente, tratou-se de «uma factualidade nova que surge após o término do evento desportivo que motiva o recorrente a reagir (…)». 18. De resto, é impressivo, e difícil de aceitar, que um qualquer desordeiro, e apenas pelo facto de ter assistido ao jogo – do qual, aliás, foi expulso pela polícia -, pudesse manter o treinador sob controlo, tornando aquele como que imune a todos os impropérios que entendesse dirigir-lhe, à boleia do entendimento de que a reação do treinador, ainda que no circunstancialismo conhecido, «fazia perigar a segurança do espetáculo desportivo e […] prejudicava a imagem das competições profissionais de futebol em que o próprio Arguido se encontra envolvido». E nem sabe até que momento, acolhendo o entendimento da decisão punitiva, caucionado pelo acórdão recorrido. 19. De notar, ainda, que nem resulta da factualidade fixada que o injuriado (A…) estivesse no parque de estacionamento dos adeptos. Na verdade, e em rigor, o que se retira do facto 5.º é que o Recorrente «foi confrontado novamente por adeptos do C…, SAD, que se encontravam na zona do parque de estacionamento dos adeptos e que o insultavam». Já quanto a A…, «[encontrava-se] num local mais elevado, a cerca de 15/20 metros, para lá de uma grade com cerca de 2 metros de altura» (facto 6.º). 20. Conclui-se, pois, que as expressões do Recorrente não foram dirigidas a um indivíduo com a qualidade de espetador, pelo que não se verifica a prática da infração prevista no artigo 136.º/1 do RDLP, por remissão do artigo 168.º/1 do mesmo regulamento. Fica, por isso, prejudicado o conhecimento da questão relativa à eventual existência de causa de exclusão da ilicitude e/ou da culpa. V Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o acórdão arbitral recorrido e anular a decisão de 9.7.2024 da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que, no âmbito do processo disciplinar n.º 104-2023/2024, condenou o Recorrente pela prática de uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 136.°/1, por remissão do artigo 168.°/1 e 2 e por referência ao artigo 112.°/1, todos do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, aplicando-lhe uma pena de suspensão pelo período de 11 dias e uma pena de multa no valor de € 1.340,00. Custas pela Recorrida/Federação Portuguesa de Futebol (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil). Lisboa, 27 de fevereiro de 2025. Luís Borges Freitas – relator Rui Fernando Belfo Pereira – 1.º adjunto Ilda Côco – 2.ª adjunta |