Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2404/10.1BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:11/21/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:MAIS-VALIAS IMOBILIÁRIAS
REINVESTIMENTO
FRAÇÕES QUE FUNCIONAM COMO IMÓVEL ÚNICO
EXCLUSÃO DE TRIBUTAÇÃO
IRS
Sumário:I. A manifestação de inconformidade com a decisão proferida sobre a matéria de facto não se confunde com a impugnação dessa mesma decisão.

II. Há exclusão da tributação, em sede de IRS, de mais-valias imobiliárias obtidas na venda de imóvel destinado a habitação própria e permanente quando o valor da realização, deduzido de eventual empréstimo contraído para a aquisição dos imóveis, e dentro do prazo legalmente definido, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel com o mesmo destino.

III. Tendo ficado provado que os Impugnantes reinvestiram praticamente todo o valor de realização na aquisição de duas frações autónomas contíguas e que, na prática, funcionam como um imóvel único, não pode ser descurada esta unidade de facto, esta circunstância fática demonstrada, de que estamos perante uma habitação.

IV.No caso referido em III., ficou provado que a habitação própria e permanente do agregado se situa indistintamente nas duas frações contíguas, unidas e que funcionam como um só apartamento.

V. Sendo uma habitação única, ainda que formalmente discernida em duas frações, estamos no âmbito do alcance daquela que foi a ratio legislatoris: a exclusão da tributação de mais-valias obtidas com a venda de imóvel destinado a habitação própria e permanente aquando da aquisição de imóvel com o mesmo destino.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 28.11.2019, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por Miguel ………………… e Maria …………………….. (doravante Recorridos ou Impugnantes), que teve por objeto o indeferimento tácito do recurso hierárquico apresentado que visou o indeferimento de reclamação graciosa da liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), relativa ao ano de 2005.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

a) Visa o presente recurso reagir contra a decisão proferida nos presentes autos que julga procedente a impugnação judicial deduzida por MIGUEL ………………. (e Outros), devidamente identificado nos autos, contra a decisão de indeferimento do recurso hierárquico deduzido do despacho de indeferimento da reclamação graciosa deduzida do acto de liquidação de IRS referente ao exercício de 2005 no montante de € 31.287,64.

b) Discorda a Fazenda Pública do entendimento sufragado na douta sentença, e com o mesmo não se conforma, e com o devido respeito, porquanto procede a uma errónea apreciação dos factos pertinentes para efeitos de decisão, com consequente erróneo enquadramento jurídico, conforme infra demonstraremos, sendo que a questão em apreciação nos presentes autos tem a ver com a determinação da aceitação ou não do valor da aquisição da fracção “…” como valor de reinvestimento, para efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 10.º do CIRS.

c) Resulta provado que os impugnantes no ano de 2005 apresentaram a declaração de rendimentos, declarando pretender reinvestir o montante de € 199.340,00, e mais declararam ter procedido ao efectivo reinvestimento do montante de € 105.000,00, correspondente ao imóvel adquirido que constitui a fracção … - devendo constar dos factos assentes que o reinvestimento declarado pelos impugnante o foi quanto à fracção …, que destinaram a habitação própria e permanente do agregado familiar.

d) E foi tal declaração consciente e deliberada, não obstante apelar a douta sentença a alegado erro de contabilista, não constante dos factos provados, e, portanto, impertinente, para a presente apreciação.

e) Resulta provado que o impugnante não apresentou declaração de substituição e que a declaração de rendimentos na origem da liquidação impugnada assenta na declaração por si apresentada, na qual declara como imóvel afecto a habitação própria e permanente a fracção …., conforme resulta aliás da escritura de compra e venda das duas fracções aqui em questão – facto que deveria constar do probatório.

f) Assim, não obstante adquirir dois imóveis, que utiliza para efeitos de habitação própria e permanente, contíguos, mantêm os dois a sua autonomia jurídica e física, mercê da susceptibilidade de serem utilizados independentemente um do outro, inclusivamente quanto à cozinha, não resultando dos factos provados quaisquer factos que indiciem da vontade do impugnante de proceder a qualquer unificação dos dois imóveis, o que reafirma a vontade de o impugnante manter as duas fracções como independentes e susceptíveis de tal utilização autónoma.

g) Destarte, ainda que tenha ficado demonstrado nos presentes autos que o agregado familiar depois da celebração de escritura de compra e venda passou a habitar nas duas fracções, tal facto não anula o facto primacial de nos encontrarmos perante duas unidades jurídicas e físicas independentes, que dessa forma foram adquiridas pelos impugnante, que decidiram e expressaram a sua vontade de afectar a habitação própria e permanente a fracção …, em consonância com o regime legal vigente, não o fazendo quanto à fracção contígua, conforme consta da escritura de compra e venda celebrada a 31/10/2005.

h) Pelo que, independentemente da utilização que é levada a cabo pelo impugnante no referente aos dois imóveis em questão nos autos, é inegável estarmos perante dois imóveis autónomos e susceptíveis de utilização independente, não contemplando o benefício concedido pelo legislador o reinvestimento na aquisição de mais do que um imóvel destinado a habitação própria e permanente.

i) E do disposto no n.º 5 do artigo 10.º do CIRS resulta inelutavelmente que o legislador pretendeu conceder o benefício quando o ganho fosse reinvestido noutro imóvel – realce-se o singular do substantivo – destinado a habitação permanente, e não em vários imóveis destinados a tal fim, sendo que a letra da lei, ponto de partida e limite da interpretação que nos propusermos fazer, não se mostra fundadamente contrariada pelo Tribunal a quo.

j) Pelo que, apenas o valor relativo à fracção …. é susceptível de ser aceite como valor reinvestido na aquisição de habitação própria e permanente, a qual foi precisamente a fracção aceite e afirmada pelo impugnante como sendo a destinada à sua habitação própria permanente.

k) E se a douta sentença apela a princípios constitucionais atinentes à protecção da do direito fundamental à habitação em ordem a interpretar o preceito legal de forma a nele incluir o vocábulo imóvel no plural, entendemos, contudo, não estar tal interpretação e aplicação do direito no caso sub judice devidamente ancoradas em pressupostos fácticos que a legitimem, nomeadamente não explicita, nem preenche do ponto de vista dos factos e do direito, como o direito fundamental à habitação do impugnante se possa mostrar comprimido pela interpretação dada à norma pela Administração Tributária, sendo que, aparentemente, tal direito em nada se mostra constrangido, tanto que, não só adquiriu uma habitação, como adquiriu duas, beneficiando quanto a uma delas da possibilidade de reinvestimento previsto no artigo 10.º do CIRS; e quanto ao princípio da igualdade fiscal o mesmo entendimento se afirma.

l) Deste modo, a protecção constitucional conferida ao caso sub judice pelo Tribunal a quo não resulta negada pela não aceitação do reinvestimento em adicional imóvel, porquanto tal exclusão tributária deriva de opção livre do impugnante que, conscientemente, e bem sabendo das consequências tributárias do seu comportamento, decidiu adquirir dois imóveis, em vez de um, e aí estabelecer a sua habitação permanente.

m) Não se questionam opções do impugnante, sujeito passivo, cidadão contribuinte, em relação ao espaço onde pretende situar a sua habitação própria e permanente, mas questiona-se a consideração de a habitação própria e permanente para efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 10.º do CIRS se dispersar em mais do que um imóvel, quando o legislador se refere a reinvestimento a efectuar em imóvel, individual e singularmente considerado.

n) Assim, decorre dos autos e dos factos provados que o impugnante quis alinear imóvel destinado a sua habitação própria e permanente, e adquirir dois imóveis, tendo afectado de imediato e por declaração expressa na escritura pública um deles a sua habitação própria e permanente, factos estes que transpôs para a sua declaração de rendimentos, não substituída, e que deram origem à liquidação de IRS aqui impugnada.

o) Atento o exposto, incorreu a douta sentença, ao decidir anular a liquidação de IRS nos presentes autos impugnada, em errónea apreciação da matéria de facto e de direito, por violação da norma ínsita no n.º 5 do artigo 10.º do CIRS.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue totalmente improcedente a impugnação judicial.

Sendo que Exas. Decidindo farão a Costumada Justiça”.

Os Recorridos apresentaram contra-alegações, nas quais formularam as seguintes conclusões:

A – A Fazenda Pública imputa à douta sentença recorrida o vício de errónea apreciação da matéria de facto e de direito, por violação da norma ínsita no n.º 5 do art.º 10.º do CIRS, contudo, sem fundamento. Vejamos.

B – A Fazenda Pública começa por referir no seu recurso que, o erro no preenchimento na declaração de IRS de 2005 não foi demonstrado pelos Impugnantes nem levado ao probatório, argumentação que, salvo o devido respeito, não tem qualquer sustentação legal, nem se compreende em que medida é que a mesma acarreta “errónea apreciação da matéria de facto e de direito, por violação da norma ínsita no n.º 5 do art.º 10.º do CIRS”

C - Conforme alegado e provado na ação, Impugnantes procederam à entrega da declaração de IRS relativa ao ano de 2005 e quando foram notificados da Liquidação Impugnada detetaram que a declaração de IRS tinha sido erroneamente preenchida, pela sua contabilista, tendo apresentado reclamação graciosa contra essa liquidação e, perante a resposta de indeferimento da reclamação, recorreram hierarquicamente de tal decisão e, posteriormente, deram entrada da competente impugnação judicial dessa Liquidação (vide pontos 6, 7, 13, 17 e 20 da meteria de facto provada na decisão).

D – Na ação de impugnação os Impugnantes demonstraram o erro da declaração, o que a douta sentença recorrida considerou ter sido feito, quer através da prova documental, quer através de prova testemunhal produzida nos autos.

E – Sendo irrelevante, no caso, a existência de um concreto facto probatório relativo ao erro no preenchimento da declaração, o qual se revelaria, aliás, conclusivo, já que, o mesmo foi extraído dos restantes factos provados.

F – Em todo o caso, tal erro foi, não só alegado na petição de impugnação judicial, como sobre ele recaíram declarações do Impugnante marido realizadas na audiência de julgamento, as quais, conforme se refere na douta sentença recorrida “foram claras, objetivas e espontâneas.”.

G - Irrelevante é ainda o facto invocado pela Fazenda Pública de que, os Impugnantes não apresentaram declaração de substituição de IRS, tendo em conta que foi apresentada reclamação graciosa contra a Liquidação de IRS.

H – Acresce que, mesmo não tendo sido apresentada declaração de substituição, a Fazenda Pública não poderia - nem deveria - confiar ou presumir que a situação ficaria definitivamente assente, uma vez que não existiu qualquer renúncia expressa dos Impugnantes ao exercício dos seus direitos de reclamação, recurso hierárquico e subsequente impugnação judicial, direitos que, conforme resulta provado nos autos, foram exercidos pelos Impugnantes.

I – Alega ainda a Fazenda Pública que, dos factos provados não resultam quaisquer factos que indiciem a vontade de os Impugnantes procederem a qualquer unificação dos dois imóveis, o que reafirma a vontade de o Impugnante de manter as duas frações como independentes e suscetíveis de tal utilização autónoma.

J – Alegação que é absolutamente irrelevante, uma vez que os pressupostos de exclusão de incidência tributária constantes do art.º 10.º, n.º 5 do CIRS são analisados tendo por base a situação que existe no momento do reinvestimento do valor de realização do imóvel adquirido pelos Impugnantes em 1995, ou seja, na data da aquisição dos imóveis nos quais foi reinvestido o valor de realização do imóvel adquirido em 1995.

K – Alega ainda a Fazenda Pública que, independentemente da utilização que é levada a cabo pelos Impugnantes, estamos perante dois imóveis autónomos e suscetíveis de utilização independente, não contemplando o benefício concedido pelo legislador o reinvestimento na aquisição de mais do que um imóvel destinado a habitação própria e permanente.

L – Ora, os Impugnantes nunca negaram que, juridicamente, as frações adquiridas, constituíssem duas frações autónomas distintas. Demonstraram, contudo, que, embora tais frações continuassem como frações distintas no título da propriedade horizontal do prédio em que integram, as mesmas eram (e são) não só contíguas como também interdependentes, formando uma só habitação, com cinco assoalhadas (facto que foi, aliás, determinante na aquisição de ambas as frações, atento o n.º de elementos que compunham o agregado familiar dos Impugnantes (marido e mulher e três filhos)) que passou a constituir, desde a sua aquisição, a habitação permanente do seu agregado familiar.

M – E requereram, face a tal prova, o tratamento substancial da situação, reclamando a aplicação do princípio da prevalência da substância sobre a forma, plasmado no art. 11º da LGT, e uma interpretação da lei fiscal, designadamente do art. 10º, n.º 5 al. a) e n.º 7 do CIRS, consentânea com a substância económica dos factos e com os princípios da capacidade contributiva, da igualdade, da consideração fiscal da família e do Estado Social e ainda os princípios da justiça e da proporcionalidade, previstos nos artigos 55º da LGT e 266º, n.º 2 da CRP.

N – Face à prova produzida nos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida, bem andou a douta sentença recorrida em considerar que, as frações em causa constituíam a habitação própria e permanente dos Impugnantes, e que, estando interligadas e ambas constituindo a habitação permanente do agregado familiar dos Impugnantes, o valor de aquisição de ambas as frações deveria ter sido considerado para efeito do valor reinvestido e consequente exclusão da tributação das mais valias decorrentes da venda do imóvel.

O – Tendo, para tanto, interpretado o disposto no art.º 10.º, n.º 5 al. a) e n.º 7 do CIRS em conformidade com o princípio da substância sobre a forma constante do art.º 11.º, n.º 3 da LGT e ainda com os princípios da igualdade fiscal e da capacidade contributiva, interpretação que não merece qualquer reparo e que deverá ser mantida na ordem jurídica.

P - Com efeito, não podem ser ignorados os princípios que enformam o sistema fiscal português, em especial, os princípios constitucionais da igualdade fiscal (art. 13º e 104º, n.º 1 da CRP), da capacidade contributiva (art. 104º da CRP), da consideração fiscal da família (art. 67º, n.º 2 al. f) e 104º, n.º 1 da CRP) e do Estado Social.

Q – Efetivamente, no caso subjudice, resultaria numa desigualdade a sujeição dos Impugnantes a tributação, em sede de mais-valias, por terem adquirido duas frações, que física, material e economicamente representam apenas uma habitação, sendo contíguas e interdependentes, e a não sujeição a tributação, naquela sede, de outros particulares que reinvestissem o mesmo valor de realização na compra de uma fração com as mesmas características físicas, económicas e materiais.

R – A aplicação do princípio da capacidade contributiva conduz exatamente ao mesmo resultado, atendendo a que o mesmo determina que as pessoas devem pagar impostos de acordo com a sua capacidade económica. Ora, a capacidade económica que os Impugnantes revelaram com a aquisição das frações “AG” e “AH” é exatamente idêntica àquela que revelariam outros contribuintes que adquirissem uma fração autónoma em tudo idêntica às duas anteriores. Por essa razão, o tratamento a conferir a estas situações terá de ser idêntico, não podendo a capacidade contributiva do Impugnantes ser desconsiderada por uma razão absolutamente formal: o facto de as frações adquiridas estarem contempladas no título da propriedade horizontal como fogos distintos.

S A interpretação teleológica do art.º 10º, n.º 5 al. a) do CIRS depõe também neste sentido, pois esta norma foi instituída tendo em conta o carácter essencial da habitação dos sujeitos passivos, pelo que a interpretação adequada da lei leva efetivamente a considerar que a aquisição realizada pelos Impugnantes consubstancia a aquisição de um imóvel na aceção legal.

T – E, finalmente, conforme defendeu, e bem a douta sentença recorrida, deverá ter-se em conta o disposto no art. 11º, n.º 3 da LGT, segundo o qual, persistindo a dúvida sobre o sentido das normas tributárias de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos.

U E, no caso subjudice, não pode ser ignorada a substância económica do facto tributário em causa: Afetando os Impugnantes duas frações autónomas ao mesmo uso – isto é: à sua habitação própria e permanente e dos seus filhos –, estando ambas interligadas e sendo uma o prolongamento da outra, sem que entre as mesmas exista qualquer distinção de facto, o valor reinvestido na aquisição das mesmas não poderá deixar de ser considerado como valor reinvestido na aquisição da propriedade de um imóvel destinado à habitação própria e permanente do respectivo agregado familiar.

V – Não merece, assim, a douta sentença recorrida qualquer reparo, na medida em que a interpretação que nela foi feita não padece de qualquer vício, e, concretamente, do vício de errónea apreciação de facto e de direito, por violação da norma ínsita no n.º 5 do art.º 10.º do CIRS.

Termos em que, e nos mais que V. Exas. Venerandos Desembargadores doutamente suprirem, deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, mantendo-se, consequentemente, a douta sentença recorrida na ordem jurídica, com o que se fará

JUSTIÇA”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, uma vez que as frações autónomas nas quais foi efetuado o reinvestimento do valor de realização mantêm a sua individualidade, só podendo ser considerado, para efeitos de exclusão da tributação de mais-valias, o reinvestimento na fração AH?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. Em 13.12.1995, no 10.º Cartório Notarial de Lisboa, foi outorgada escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, na qual os Impugnantes declararam comprar, pelo preço de € 79.807,67, a fração autónoma designada pela letra “..” correspondente ao primeiro andar esquerdo, lado C, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado na Avenida ……………., lote ……., freguesia da Nossa ………., concelho de Lisboa, inscrito na respetiva matriz sob o artigo número ……., descrito na segunda Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …….., tendo declarado na mesma que o imóvel se destina à sua residência permanente – cfr. escritura pública, que aqui se dá por integralmente reproduzida, junta aos autos com a petição inicial, como documento n.º3, a fls. 164 a 169 dos autos;

2. Em 31.10.2005, no Cartório Notarial de Lisboa, de Eduardo Marques Fernandes, foi outorgada escritura pública de compra e venda, na qual os Impugnantes declaram vender, pelo preço de € 274.340,00, a fração autónoma referida em 1), constando da mesma que foi cancelada a hipoteca constituída a favor do “Banco ……………….., S.A:” e que a venda em causa é feita livre de quaisquer outros ónus e encargos – cfr. escritura pública, que aqui se dá por integralmente reproduzida, junta aos autos com a petição inicial, como documento n.º6, a fls. 143 a 147 dos autos;

3. Em 31.10.2005, o valor a liquidar, relativamente ao crédito imobiliário para aquisição da fração mencionada em 2), era € 16.887,27 – cfr. documento n.º7, junto aos autos com a petição inicial, a fls. 148 dos autos;

4. Em 31.10.2005, no Cartório Notarial de Lisboa, de Eduardo ……………….., foi outorgada escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, na qual os Impugnantes declararam comprar:

a) A fração autónoma designada pela letra “……” correspondente ao sexto andar C, destinada a habitação, com o estacionamento número quarenta e sete e arrecadação número quarenta e um, do prédio localizado na Praça ……………, n.ºs 7, 7-A e 8, freguesia de ………, concelho de Lisboa, descrita na Oitava Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ………….. daquela freguesia, inscrita na matriz sob o número………., da freguesia de ……………., pelo valor de € 180.000,00

b) A fração autónoma designada pela letra “……..” correspondente ao sexto andar B, destinada a habitação, com o estacionamento número quarenta e seis e arrecadação número quarenta, do prédio localizado na Praça …………, n.ºs 7, 7-A e 8, freguesia de ….., concelho de Lisboa, inscrita na matriz sob o número ……, da freguesia de São ……………., pelo valor de € 120.000,00

- cfr. escritura pública, que aqui se dá por integralmente reproduzida, junta aos autos com a petição inicial, como documento n. º8, a fls. 149 a 162 dos autos;

5. Para aquisição da fração identificada no ponto 4), alínea a), os Impugnantes celebraram um contrato de mútuo no valor de €75.000,00 – cfr. documento complementar da escritura pública, que aqui se dá por integralmente reproduzido, a fls. 156 a 162 dos autos;

6. Na declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2005, apresentada em 11.05.2006, os Impugnantes inscreveram no campo 401 do anexo G, os valores € 274.340,00 e € 79.807,67, a título de realização e aquisição referente a alienação onerosa de direito reais sobre bens imóveis, bem como encargos no total de € 5.589,06 – cfr. documento 11 da reclamação graciosa;

7. Nos campos 503 (valor em dívida do empréstimo), 504 (valor de realização que pretende reinvestir) e 506 (valor reinvestido no ano da alienação sem recurso ao crédito) do quadro 5 daquele anexo, os Impugnantes declararam os montantes de, respetivamente, € 16.316,88, € 199.340,00 e de € 105.000,00 – cfr. documento n. º11 da reclamação graciosa;

8. Em data que se desconhece, os Impugnantes alteraram o seu domicílio fiscal para a Praça ………………, n.º8 – 6.º C, freguesia de ………………, Lisboa – cfr. print do Sistema de Gestão e Registo de contribuintes, a fls. 170 a 171 do PAT apenso aos autos;

9. Em 31.07.2006, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2006 5003948408, referente ao ano de 2005, no valor de € 18.262,26 - cfr. fls. 105 dos autos;

10. Os Impugnantes efetuaram o pagamento do valor referente à liquidação mencionada em 9) – cfr. fls. 101 dos autos;

11. Em 17.06.2009, foi emitida, em nome dos Impugnantes, a liquidação de IRS n.º …………….237, referente ao ano de 2005, no valor de € 31.287,64 – cfr. fls. 100 dos autos:

12. Em 20.06.2009, foi emitida a demonstração de acerto de contas n.º ………….568, constando da mesma o valor a pagar de € 13.025,38 – cfr. fls. 103 dos autos;

13. Em 26.11.2009, os Impugnantes apresentaram reclamação graciosa da liquidação de IRS, identificada no ponto 11 - cfr. fls. 4 a 104 do procedimento de reclamação graciosa;

14. Em 26.11.2009, os Impugnantes procederam ao pagamento do valor apurado na Demonstração de Acerto de Contas referida em 12, no montante de € 13.025,38 – cfr. fls. 104 dos autos;

15. Em 17.03.2010, os Impugnantes exerceram o direito de audição prévia, sobre o projeto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada – cfr. fls. 131 a 137 do procedimento de reclamação graciosa;

16. Em 13.04.2010, por despacho do Chefe da Divisão de Justiça Administrativa, a reclamação graciosa, mencionada em 13), foi indeferida, constando da informação que lhe subjaz, designadamente, o seguinte:

“(…) O Serviço de Administração do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares procedeu à liquidação de imposto, resultando a (s) liquidação (ões) n.º(s) ………….237 efetuada(s) em 17/06/2009, e em função dos elementos constantes deste processo e consultados os dados informáticos através do sistema central de informação da Direção Geral dos Impostos, verifica-se que as alegações do reclamante, não têm fundamento dado que:

No dia 11 de Maio de 2006, foi entregue via Internet, a declaração modelo 3 de IRS relativa aos rendimentos auferidos no ano de 2005 (…).

No âmbito do preenchimento do anexo G, consta que foi alienado no mês de Dezembro de 2005, pelo valor de € 274.340,00, o imóvel sob o artigo n.º …….. fração “E” na freguesia de Nossa ……….., concelho de Lisboa (………) que havia sido adquirido em dezembro de 1995 pelo valor de € 79 807,67. Foi ainda declarado no campo 503 – (divida à Instituição de Crédito) o valor de € 16.316,88, no campo 504 – (valor a reinvestir) o valor de € 199.340,00 e no campo 506 – (valor reinvestido no ano de alienação) o valor de € 105.000,00 – fls. 61 a 69 dos autos.

Uma vez que, com base nos valores declarados pelo reclamante, se verifica que houve apenas um reinvestimento parcial e o valor do remanescente não foi reinvestido no prazo de 24 meses como prevê o artigo 10.º, n.º5 do CIRS, foi efetuada pela Administração Fiscal a reliquidação por não reinvestimento das mais-valias a qual apurou a liquidação no valor de € 30.303,60 a favor do Estado a qual é objeto da presente reclamação graciosa.

Na análise aos elementos que constam dos autos, verifica-se que o sujeito passivo apresenta conjuntamente com a Escritura de Compra e Venda efetuada no Cartório Notarial de Lisboa no dia 31 de outubro de 2005, comprovativo da aquisição do novo imóvel, comprovativa da aquisição do novo imóvel sob o artigo n.º ……….. que inclui as frações “…….” e “..” da freguesia de …………….. – fls. 46 a 59 dos autos. Constata-se assim através da mesma escritura que o reclamante procedeu à aquisição de dois imóveis distintos, identificados pela fração “……….” pelo valor de € 180.000,00 e que está afeta à habitação própria e permanente do seu agregado familiar e a fração “…….” pelo valor de € 120.000,00. Também na consulta dos elementos do sistema informático da Direção Geral de Impostos, se verifica que a fração “……..” beneficia de isenção em sede de IMI, enquanto a fração “……..” não beneficia de qualquer isenção o que por si só indicia que não se destina à habitação própria e permanente – fls. 120 a 123 dos autos.

O artigo 10.º, n.º5 diz que são excluídos de tributação, as mais-valias originadas pela alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis se o valor da realização deduzido de eventual empréstimo contraído para aquisição de imóvel for utilizado no pagamento de aquisição de outro imóvel, também para habitação própria e permanente, mas sem recurso ao crédito. Ora, como já foi referido e consta na escritura Pública de Compra e Venda do Imóvel sob o artigo n.º …………., houve recurso ao crédito no valor de € 75.000,00. Assim, tendo em atenção que a fração “……….” é a que está afeta a habitação própria do agregado familiar deverá abater-se o valor de € 75.000,00 do valor do empréstimo chegando-se, assim, ao valor que foi efetivamente reinvestido ou seja € 105.000,00 (€ 180.000,00-€ 75.000,00 = € 105.000,00). Face aos argumentos invocados pelo reclamante e perante os factos e fundamentos expressos nos autos, sou de parecer que deverá ser proferida decisão de indeferir o pedido.

III – Exercício do direito de audição

Assim sendo, e porque se propôs que a presente reclamação graciosa não fosse deferida na totalidade, houve lugar a audição prévia nos termos do n.º2 do artigo 60.ºda Lei Geral Tributária nos termos do n.º2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, tendo o reclamante apresentado exposição, conforme consta a fls.131 a 144, de onde se retira as seguintes conclusões:

Foi rececionado nesta Direção de Finanças de Lisboa no dia 17 de março de 2010, Entrada com o n.º 26567, uma petição a exercer o direito de audição prévia. No entanto, da análise feita à petição e tendo em atenção os factos e fundamentos invocados no projeto de decisão, e uma vez que não são apresentados elementos novos suscetiveis de alterar o projeto de decisão, propõe-se que se converta em definitivo o indeferimento do pedido.

IV – Conclusão

Assim sendo, constata-se que a situação tributária do contribuinte não carece de correção, pelo que se propõe que a presente Reclamação Graciosa seja INDEFERIDA, pelos motivos antes expostos notificando-se o reclamante desta decisão final.” – cfr. fls. 145 a 147 do PAT apenso aos autos;

- cfr. despacho e informação a fls. 145 a 147 do procedimento de reclamação graciosa;

17. Em 21.05.2010, os Impugnantes apresentaram recurso hierárquico, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, mencionada em 16) - cfr. fls. 1 a 6 do procedimento de recurso hierárquico;

18. Com data de 20.01.2011, foi elaborada informação, tendo, sobre a mesma, sido proferido despacho pela Diretora de Serviços do IRS, em 17.02.2011, no sentido de ser corretamente apreciado o direito de audição, exercido pelos Impugnantes, no procedimento de reclamação graciosa – cfr. fls. 151 a 154 do procedimento de reclamação graciosa;

19. Em 06.05.2011 foi proferido despacho, pelo Chefe da Divisão de Justiça Administrativa, que manteve o indeferimento da reclamação graciosa, constando da informação que lhe subjaz, designadamente, o seguinte:

“(…) VI Reapreciação do direito de audição prévia

Assim sendo, e porque se propôs que a presente reclamação graciosa não fosse deferida na totalidade, houve lugar a audição prévia nos termos do n.º2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, tendo o reclamante apresentado exposição, conforme consta a fls. 131 a 144 dos autos, de onde se retiram as seguintes conclusões:

Da análise feita à petição a exercer o direito de audição prévia rececionada nesta Direção de Finanças de Lisboa ano dia 17 de março de 2010, entrada com o n.º 26567 e tendo em atenção os factos e fundamentos invocados no projeto de decisão, verifica-se que o reclamante invoca os mesmos factos e argumentos já constantes na petição da Reclamação Graciosa, acrescentando apenas a falta de fundamentação, nomeadamente que a decisão final não se pronuncia, valorando ou desvalorizando, a realidade fática invocada pelo ora recorrente na reclamação graciosa e que as duas frações eram, e são, contíguas e interdependentes, formando uma só habitação, com cinco assoalhadas.

O recorrente acrescentou matéria nova à audição prévia, tendo referido que, caso procedesse a reclamação, a tributação – regra em IMI deveria ser reposta, com o que assumiriam o encargo do respetivo pagamento acrescido dos juros compensatórios devidos, mais referindo que renunciavam, desde logo, expressa e formalmente ao direito de impugnação da liquidação de IMI relativa ao ano de 2005 que sobreviesse, não obstante a verificação da respetiva caducidade.

Cumpre referir que, o sujeito passivo não junta no direito de Audição Prévia elementos probatórios inequívocos suscetiveis de se proceder à alteração do Despacho proferido anteriormente e que, na consulta ao sistema da Direção Geral dos Impostos sobre ao “Património – Prédios Urbanos” – fls. 155 Sistema e registo de Contribuintes tanto o reclamante como a esposa tem como morada o 6.º andar Letra C – fls. 161 a 164 dos autos.

Após consulta ao “Detalhe do prédio urbano” – fls. 58 dos autos, não restam dúvidas, no que diz respeito à isenção de IMI, de que a fração “….” corresponde ao 6.º andar Letra C que é habitação própria e permanente do agregado familiar, o que vem reforçar que a análise feita no projeto de decisão se encontra correta.

Neste sentido e porque os pressupostos que levaram à referida decisão se mantêm, sou de parecer que é de manter o indeferimento do pedido.”

- cfr. despacho e informação a fls. 165 a 170 do procedimento de reclamação graciosa;

20. Em 14.10.2010, a petição que deu origem aos presentes autos foi apresentada neste Tribunal – cfr. carimbo aposto a fls. 2 dos presentes autos;

21. A fração “…….”, tem a seguinte descrição na matriz: “6.º C - 3 assoalhadas, cozinha, despensa, 1 casa de banho, e garagem n.º 47 e arrecadação n. º41” – cfr. certidão de teor a fls. 174 do PAT apenso aos autos;

22. A fração “………” tem a seguinte descrição na matriz “6.º B - 2 assoalhadas, cozinha, despensa, 1 casa de banho, e garagem n.º 46 e arrecadação n. º40” – cfr. certidão de teor a fls. 175 do PAT apenso aos autos

23. As frações “…” e “….” são contíguas, tendo sido eliminada, antes da data da aquisição pelos Impugnantes, uma parede que as unia – cfr. documento n. º9 da reclamação graciosa, prova testemunhal e declarações de parte;

24. À cozinha da fração “…” não se encontra construída – cfr. documento n.º9 da reclamação graciosa, prova testemunhal e declarações de parte;

25. Ambas as frações possuem porta de entrada para o patamar do elevador, sendo utilizada apenas a porta da fração “….” – declarações de parte e prova testemunhal;

26. A fração “…” beneficiou de isenção de IMI nos anos de 2005 a 2012 – cfr. fls. certidão de teor, a fls. 158 do procedimento de reclamação graciosa;

27. Após a aquisição das frações “….” e “…”, os Impugnantes e os seus três filhos passaram a morar nas mesmas, aí dormindo, fazendo as suas refeições e recebendo os seus amigos – prova testemunhal e declarações de parte”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não existem factos não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

O Tribunal julgou provada a matéria de facto, relevante para a decisão da causa, com base na posição das partes, vertidas nos articulados, e na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, nomeadamente do processo administrativo apenso, conforme identificado nos factos provados.

No que se refere à matéria de facto provada nos pontos 23), 24), 25), 26) e 27) o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações de parte do Impugnante Miguel ……………… e dos depoimentos prestados pelas testemunhas Delfim ……………, porteiro do prédio onde se localizam as frações e António ………………………, amigo dos Impugnantes.

As declarações do Impugnante foram claras, objetivas e espontâneas, tendo o mesmo afirmado que, após a aquisição das frações em causa, passou a residir nas mesmas, com o seu agregado familiar, composto pela mulher e três filhos, mantendo-se tal situação na atualidade.

Declarou que, à data em que adquiriu as frações, as mesmas já se encontravam interligadas, tendo sido por determinação do anterior proprietário “derrubada” a parede que as unia.

Mais referiu que foi o facto de as frações estarem interligadas que levou os Impugnantes a procederem à aquisição das mesmas, considerando a tipologia de cada uma e a dimensão do agregado familiar.

Mais logrou esclarecer que a entrada na casa, se faz pela porta da fração “AH”, encontrando-se a porta da outra fração, desde sempre, fechada.

A testemunha Delfim ………………, com a razão de ciência suprarreferida, depôs de forma esclarecedora e coerente, revelando conhecer bem a realidade do prédio em questão, por no mesmo exercer funções desde meados de 1987.

Corroborou em tudo as declarações do Impugnante, reafirmando que sabe, porque viu, que as frações “….” e “….” se encontram unidas tendo a parede que as separava sido derrubada antes do anterior proprietário ter ido para lá residir.

Afirmou igualmente que a entrada da casa se faz apenas pela porta da fração “….” encontrando-se a porta da outra fração permanentemente fechada.

Declarou que o agregado familiar dos Impugnantes, composto pelos mesmos e por três filhos, reside permanentemente nas duas frações desde a data da aquisição.

A testemunha António ……………………., amigo dos Impugnantes afirmou conhecer as frações em causa, por ser visita da casa há vários anos, corroborando também, o que foi declarado pelo Impugnante, tendo o seu testemunho sido claro e coerente”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente, em suma, que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, uma vez que as frações autónomas …. e …. em causa mantêm a sua individualidade, pelo que apenas pode ser considerado que houve reinvestimento na …., para efeitos de exclusão da tributação em sede de mais-valias para efeitos de IRS.

Vejamos.

Antes de mais, refira-se que, ao longo das suas alegações, a Recorrente vai mencionando, a latere, que determinados factos deveriam constar ou não do probatório. No entanto, como é sabido, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto obedece a uma série de exigências processuais, previstas no art.º 640.º do CPC.

Considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão (1).

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus já mencionados (2).

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus não foram cumpridos.

Com efeito, a manifestação de inconformidade com a decisão proferida sobre a matéria de facto, que é, no fundo, o que aqui sucede, não se confunde, como referimos, com a impugnação dessa mesma decisão, que não foi feita neste caso, nem expressa, nem implicitamente, como decorre da perfeita ausência de respeito pelos pressupostos previstos no art.º 640.º do CPC.

Como tal, não tendo sido efetivamente impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, cumpre apreciar a apelação, considerando a decisão transcrita supra.

Do ponto de vista fático, temos, em síntese, a seguinte situação:

a) Os Recorridos venderam, em 2005, por 274.340,00 Eur., um imóvel que tinham adquirido em 1995 (por 79.807,67 Eur.) e onde tinham a sua residência permanente;

b) No mesmo dia, adquiriram duas frações autónomas (cfr. facto 4), a que, simplificadamente, nos referiremos apenas por menção às respetivas letras, ou seja, … e …, pelo valor total de 300.000,00 Eur., tendo ainda recorrido a crédito de 75.000,00 Eur. (cfr. facto 5);

c) As frações são contíguas e, antes da aquisição pelos Impugnantes, já estavam, de facto, unidas, inexistindo a parede que as unisse (cfr. facto 23), só existindo uma cozinha e sendo, na prática, uma única habitação para os Impugnantes e seus três filhos;

d) Na declaração modelo 3 de IRS dos Recorridos, foi declarado, a título de reinvestimento no ano, o valor de 105.000,00 Eur. e, a título de valor de realização que pretende reinvestir, o de 199.340,00 Eur.;

e) Na sequência da apresentação da declaração, foi emitida a liquidação referida em 9. e, em 2009, nova liquidação foi emitida (cfr. facto 11.), da qual foi apresentada reclamação graciosa;

f) Perante a AT, a fração … é aquela que foi declarada como sendo o domicílio fiscal.

A questão aqui centra-se, em suma, em saber se as frações em causa podem ou não ser encaradas de acordo com a realidade fática que consubstanciam, ou seja, como uma só realidade, ou se devem ser encaradas como duas frações distintas, cuja conexão é irrelevante, para efeitos de cálculo de reinvestimento de mais valias.

Antes de mais, refira-se que carece de qualquer pertinência o alegado pela FP, quanto ao facto de a declaração modelo 3 de IRS ter um determinado preenchimento, porquanto nada impede os contribuintes de reagirem graciosa e contenciosamente nestes casos. O que fizeram.

Posto isto, há que atentar que, à época (em termos que, na essência, se vão mantendo ao longo dos anos), estava prevista a exclusão da tributação, em sede de IRS, de mais-valias imobiliárias obtidas na venda de imóvel destinado a habitação própria e permanente, quando o valor da realização, deduzido de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóveis, e dentro do prazo legalmente definido, fosse reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel com o mesmo destino [cfr. art.º 10.º, n.º 1, al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código do IRS (CIRS)].

In casu, ficou, efetivamente, provado que os Recorridos reinvestiram praticamente todo o valor de realização na aquisição de duas frações autónomas contíguas e que, na prática, funcionam como um imóvel único.

Ou seja, apesar de, em termos formais, estarem discriminadas as frações …. e …, ao contrário do que refere a Recorrente, ficou provado que não há autonomia física entre ambas e essa ausência de autonomia já existia antes do momento da aquisição.

Aliás, está provado, e não foi impugnado, que, antes da aquisição, já tais frações estavam unidas, tendo uma só cozinha e funcionando como um único apartamento T5.

Consideramos, pois, tal como a instância, que não pode ser descurada esta unidade de facto, esta circunstância fática demonstrada, de que estamos perante uma habitação.

E, sendo uma habitação única, ainda que formalmente discernida em duas frações, estamos no âmbito do alcance daquela que foi a ratio legislatoris: a exclusão da tributação de mais-valias obtidas com a venda de imóvel destinado a habitação própria e permanente aquando da aquisição de imóvel com o mesmo destino.

Seria, com certeza, menos controvertido se, em momento anterior à aquisição, se tivessem formalmente unido as duas frações numa só. No entanto, não tendo isto sucedido formalmente, mas sendo uma realidade efetiva, a de que aquelas duas frações são uma única habitação, o entendimento que mais se aproxima da ratio legislatoris representa, em nosso entender, uma situação de desconsideração da substância sobre a forma, sendo que o intérprete deve atender sempre a essa substância (art.º 11.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária).

A habitação própria e permanente daquele agregado situa-se nas duas frações contíguas, unidas e que funcionam como um só apartamento, como já referimos.

Não na …, não na …., mas em ambas, indistintamente.

Pela particular clareza discursiva, chama-se à colação o decidido pela instância, onde se referiu:

“[C]onsiderando o princípio da substância sob a forma, o elemento teleológico da interpretação, considerado no referido artigo 9.º do CC e o princípio da igualdade fiscal que decorre dos artigos 13.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa, é de concluir que a aquisição de duas frações, que unidas têm 5 assoalhadas, não pode ter diferente tratamento fiscal da aquisição de uma só fração, com a mesma tipologia e com as mesmas características, verificada a condição de habitação permanente do agregado familiar. Em causa está, igualmente, o princípio da capacidade contributiva, que concretiza o princípio da igualdade fiscal e que se traduz, na presente situação, no facto de a capacidade económica revelada pelos Impugnantes ser a mesma que a revelada, por outros contribuintes, na aquisição de uma única fração, com as mesmas caraterísticas das duas frações”.

Conclui-se, assim que, estando, de facto, em causa, a aquisição de uma habitação permanente do agregado familiar, composta por duas frações, o valor da aquisição da fração “……..” deve ser considerada, para efeito do valor reinvestido e consequente exclusão da tributação das mais-valias decorrentes da venda do imóvel”.

Em suma, entende-se, tal como a instância, que o objetivo do legislador foi o de excluir de tributação a situação de reinvestimento em habitação própria e permanente.

O facto de o legislador ter referido no n.º 5 do art.º 10.º do CIRS, no singular, a palavra “imóvel” não é, s.m.o., argumento suficientemente ponderoso para afastar a realidade fática com que nos deparamos in casu: os Recorridos reinvestiram a quase totalidade do valor de realização (nos termos calculados pela instância, não postos em causa) na sua habitação, composta por duas frações autónomas que estavam já unidas e que tinham um funcionamento interdependente e uma utilização como se de um imóvel único se tratasse. A ratio legislatoris foi, pois, salvaguardada.

Como tal, não assiste razão à Recorrente.


IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 21 de novembro de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Isabel Silva)

(Ana Cristina Carvalho)

(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
(2) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.