Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 291/23.9BELRS |
| Secção: | CT |
| Data do Acordão: | 03/20/2025 |
| Relator: | TERESA COSTA ALEMÃO |
| Descritores: | CESE 2020 INCONSTITUCIONALIDADE |
| Sumário: | I - É inconstitucional, por violação do artigo 13.º da CRP, o artigo 2.º, alínea d), do Regime Jurídico da CESE vigente em 2020; II - O juízo de inconstitucionalidade de tal norma implica a anulação da liquidação impugnada que nela se suportou. |
| Votação: | Unanimidade |
| Indicações Eventuais: | Subsecção Tributária Comum |
| Aditamento: |
| 1 |
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. Relatório P........., S.A. (doravante Recorrente), veio interpor recurso jurisdicional da sentença, proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida, na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, contra o acto tributário de autoliquidação de Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético (CESE) respeitante ao ano de 2020, no valor de € 43.351,01.
A Recorrente apresentou as suas alegações de recurso nas quais formulou as seguintes conclusões: “A. O Acórdão n.° 296/2023 do Tribunal Constitucional (TC), no qual assenta a Sentença recorrida, erra ao pressupor que a discussão em causa nos autos se encontra praticamente esgotada em controvérsias resolvidas desde o Acórdão n.° 7/2019, também do TC, e que assim é porque a questão da conformidade constitucional da CESE estaria fundamentalmente dependente de se saber se aquela constitui um verdadeiro imposto ou antes uma contribuição financeira. B. Com efeito, após aquele Acórdão n.° 7/2019, relativo à CESE em vigor em 2014 (o primeiro ano de vigência do tributo), este Tribunal foi construindo, reiterando e consolidando uma jurisprudência, relativa inicialmente aos anos de 2015 a 2017, da qual resulta que a justificação da CESE - mesmo admitindo que ela é uma contribuição financeira - se manteria apenas enquanto se mantivessem também as obrigações internacionais do Estado português ligadas à emergência do reequilíbrio das contas públicas, obrigações essas vertidas primeiro no Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) e depois no Procedimento por Défice Excessivo (PDE). Ora, como nem um nem outro estavam já em vigor em 2018, a consequência lógica e previsível daquela jurisprudência seria a de que a partir daquele ano a CESE teria perdido a sua razão de ser. C. O Acórdão n.° 101/2023 (com o qual o referido Acórdão n.° 296/2023 está em oposição declarada e frontal) - relativo a 2018 mas aplicável a todos os períodos posteriores -, tem por subjacente o conteúdo dessa jurisprudência. Em parte, é um corolário ou uma consequência lógica da mesma. Isto significa que o Acórdão n.° 296/2023 não foi proferido em contradição apenas com o Acórdão n.° 101/2023: apesar de relativamente a este a contradição ser directa e completa, porque existe um contraste quanto à argumentação e ao sentido da decisão, essa contradição existe igualmente, na dimensão da argumentação, relativamente a todo o percurso jurisprudencial que desembocou naquele aresto. D. No entanto, além de dar importância ao facto de a partir de 2018 se terem deixado de se verificar as condições gerais de excecionalidade financeira que, segundo a jurisprudência anterior, justificavam a vigência extraordinária da CESE (designadamente a vigência do PAEF e do PDE), o Acórdão n.° 101/2023 acrescenta um outro elemento de análise fundamental: no que concerne ao contexto específico do sector energético que justificou a criação da CESE, o TC sublinha que, de novo a partir de 2018, também a traj etória de redução da dívida tarifária do SEN - o principal obj etivo concreto da medida - significa que o tributo deixou de ter o mesmo sentido de urgência que tinha quando foi criado. E. Essa aceleração da redução da dívida tarifária resultou da decisão política de transferir em 2018 a receita necessária para o Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, entidade à qual cabe aplicar a receita da CESE aos fins legalmente previstos (segundo o Decreto-Lei n.° 55/2014, de 9 de Abril) - isto na sequência de uma alteração ao seu regime produzida pelo Decreto-Lei n.° 109-A/2018, de 7 de Dezembro. Antes de tal intervenção legislativa, o Fundo estava obrigado a dirigir apenas um terço daquela receita para o objetivo de redução da dívida tarifária do SEN, enquanto dois terços da mesma seriam destinados a outras políticas gerais de sustentabilidade energética. Após a alteração legal, o Fundo passou a poder aplicar à redução da dívida tarifária dois terços da receita da CESE, podendo utilizar até um terço da mesma no financiamento de outras medidas. F. Daqui o Acórdão retira que a CESE é inconstitucional a partir de 2018 por referência às empresas que não integram o sector da produção de eletricidade. Isto é: dado que a receita da CESE passou a servir maioritariamente para financiar a redução da dívida tarifária do SEN, não faz sentido exigi-la às empresas que não são do sector eletroprodutor. G. Neste sentido, a alínea d) do artigo 2.° do regime da CESE vigente em 2020 é inconstitucional, por quebra do nexo causal entre os objectivos do tributo e os operadores que actuam no sector do gás natural, como a Recorrente. H. A Recorrente adere ao conteúdo do Acórdão n.° 101/2023, que no seu entender deve prevalecer na ordem jurídica sobre a decisão aqui em crise, por constituir uma melhor subsunção da realidade da CESE de 2020 aos princípios constitucionais aplicáveis. I. De resto, assim é porque todos os demais pressupostos em que o Acórdão n.° 296/2023 assenta - e que no seu conjunto constituem uma tentativa de refutar a tese central do Acórdão n.° 101/2023 (a de que que o Decreto-Lei n.° 109-A/2018 produziu a mudança fundamental identificada pelo Acórdão n.° 101/2023) - são igualmente erróneos. J. Desde logo, o Acórdão n.° 296/2023 não tem razão quando diz que o Decreto-Lei n.° 109-A/2018, de 7 de Dezembro, não introduziu qualquer alteração à finalidade das receitas geradas pela CESE, mas apenas à finalidade de todas as disponibilidades financeiras integradas no património do Fundo, advenientes das cinco fontes de receita legalmente previstas. Não tem razão porque a CESE é a única receita do Fundo: não só é a única que se encontra realmente prevista (todas as demais receitas se encontram inscritas na lei enquanto meramente hipotéticas ou potenciais, em termos simplesmente programáticos) como não se conhecem que outras fontes geraram efectivamente receita para o Fundo. K. Saliente-se, ademais, que a criação do Fundo é contemporânea da criação da CESE. Ambos foram criados no mesmo ensejo legislativo (o tributo na Lei do Orçamento do Estado para 2014, para vigorar a partir do início do ano e ser cobrado até Outubro; o Fundo no Decreto-Lei n.° 55/2014, de 9 de Abril, a tempo de vir a gerir a receita da CESE). Ora, antes da existência deste Fundo, o Estado já assumia a responsabilidade de políticas no sentido da sustentabilidade do sector energético, sem que para tal tenha tido a necessidade de criar semelhante instrumento jurídico. Só o criou entã para lhe atribuir a gestão desta nova receita, a provinda da CESE. Por isso, analisar a CESE como se se tratasse de simplesmente mais uma receita do Fundo é um erro. Sem a CESE, o Fundo pura e simplesmente não existiria. L. Essa relação é evidente no preâmbulo do Decreto-Lei n.° 55/2014, seja na identificação indubitável da relação causal entre a criação da CESE e a necessidade de criar o fundo, seja no facto de apenas se referir à receita daquele tributo. Mas importa referir também que, na parte normativa do Decreto-Lei, mais concretamente na alínea b) do artigo 2°, se estatui expressamente que é “mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o sector energético prevista no artigo 228° da Lei n.° 83-C/2013, de 31 de Dezembro” que se deve garantir o objectivo “da redução da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional (SEN)”. No artigo 5°, concretiza-se depois, em pormenor, a forma como a “contribuição” deve ser aplicada àquele objectivo: segundo os n.°s 1 e 2, o montante da CESE consignada à redução da dívida tarifária “é deduzido aos custos de interesse económico geral (CIEG) a repercutir em cada ano na tarifa de uso global do sistema aplicável aos clientes finais e comercializadores”’. M. Perante a vontade legislativa traduzida quer no preâmbulo quer na parte dispositiva do Decreto-Lei, não se percebe como pode o TC pensar que, quando falamos do destino das receitas do Fundo, não é do destino das receitas da CESE que estamos realmente a falar. Mais: revela-se que é errada a afirmação do Acórdão n.° 296/2023 segundo a qual “nunca o artigo 4. °, n. ° 2, do Decreto-Lei n. ° 55/2014, de 9 de abril, nem na sua redação originária, nem na introduzida pelo Decreto-Lei n.° 109-A/2018, de 7 de dezembro, alguma vez estabeleceu uma regra de afetação da receita da CESE a determinadas despesas do Fundo para a Sustentabilidade do Setor Energético”. N. O TC diz a esse propósito que ‘a prioridade definida no sobredito preceito respeita às “verbas do FSSSE”, ou seja, a todas as disponibilidades financeiras integradas no património do Fundo, advenientes das cinco fontes de receita legalmente previstas (cfr. artigo 3. °, n. ° 1, do Decreto-Lei n. ° 55/2014, de 9 de abril, acrescidas dos excedentes transportados de exercícios anteriores - cfr. n. ° 2), não à coleta obtida de uma delas, fosse o caso da CESE. Todavia, o TC esquece o que resulta da alínea b) do artigo 2° e do artigo 5°: no que concerne às receitas do Fundo destinadas à redução da dívida tarifária do SEN, o legislador impôs que elas fossem especificamente as receitas da CESE. Em face disto, é também errada a afirmação do Acórdão n.° 296/2023 de que o valor de receita anual da CESE é apenas um “parâmetro de limitação de certas categorias de despesa do Fundo, tendo em vista garantir o equilíbrio da sua orçamentação e da sua conta fmaF, ou um “valor de referência para o limite à despesa com políticas do setor energético’’. O. De qualquer modo, sempre se diga que, mesmo que considerássemos como válida a interpretação do Acórdão n.° 296/2023, no sentido formalista e artificial de que a alteração legal de 2018 implicou uma mudança da chave de repartição das receitas do Fundo, e não da receita da CESE, não se compreende porque é que a conclusão quanto à inconstitucionalidade do tributo relativamente aos operadores que não são do sector eléctrico haveria de ser distinta da retirada pelo Acórdão n.° 101/2023. É que, nessa hipótese, então pelo menos a título potencial ou nocional a receita da CESE teria passado de estar afecta em um terço à redução da dívida tarifária da electricidade para está-lo na proporção de dois terços. O que, em rigor, significaria o mesmo que a Recorrente aqui defende (à semelhança do Acórdão n.° 101/2023) quanto à importância na análise da constitucionalidade da CESE da mudança no peso relativo da sua receita na prossecução dos objectivos do Fundo. P. Mas mais: independentemente do teor do Acórdão n.° 101/2023, convém ainda acrescentar que, posteriormente, o TC, numa outra secção (a 1a Secção), veio proferir o Acórdão n.° 338/2023, no qual se verteu o entendimento de que da alteração às finalidades das receitas da CESE, introduzida pelo Decreto-Lei n.° 109-A/2018, de 7 de Dezembro (no sentido de que elas passaram a ser dirigidas maioritariamente ao objectivo de redução da dívida tarifária da electricidade), não se pode retirar a conclusão do Acórdão n.° 101/2023 - de que, a partir de 2018, se verificou uma extinção ou diminuição do nexo causal entre a CESE e os sujeitos passivos que não actuam no sector da produção de electricidade, pela simples razão de que a alteração só entrou em vigor no final daquele ano, não tendo qualquer relevância por reporte ao mesmo. Apesar de a Recorrente discordar deste entendimento, por razões que nesta sede não importa desenvolver, o que aqui interessa é dizer que este Acórdão n.° 338/2023 concorda com o Acórdão n.° 101/2023 no que concerne aos períodos após 2018. Q. Ou seja, neste momento existe jurisprudência do TC, subscrita por uma maioria de juízes (da 1a e 3a Secções), no sentido de que, pelo menos a partir de 2019 - incluindo ano aqui em causa, 2020 -, a CESE aplicável ao sector do gás natural é inconstitucional. R. Prosseguindo, é igualmente errado o que o Acórdão n.° 296/2023 diz quanto ao facto de a CESE ter um nexo relevante com os operadores do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN) por o regime legal do tributo prever a utilização da receita em fins específicos ligados à sustentabilidade daquele sistema, ou seja, por a receita contributiva obtida das empresas daquele sector, tendo por fonte o valor e excedentes de contratos de aprovisionamento em regime de “take-or-pay” estar alocada ao alívio dos encargos tarifários inerentes à utilização global do sistema (UGS) de gás natural pelos operadores das respetivas redes de transporte e de distribuição. S. Aqui, o Tribunal omite algo que é essencial e inviabiliza totalmente a conclusão retirada: é que a receita identificada não resulta do tributo em causa nestes autos, mas de um outro, em cuja base de incidência subjectiva o legislador nem sequer integrou os operadores das redes de transporte, distribuição ou armazenamento de gás natural (os sujeitos passivos abrangidos pela alínea d) do artigo 2° do regime da CESE), como a Recorrente. Esse outro tributo especificamente dirigido ao alívio dos encargos tarifários inerentes à UGS de gás natural foi enxertado no regime da CESE após criação desta no artigo 228° da Lei n.° 83°-C/2013, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2014). T. O tributo em causa nos presentes autos é a CESE original ou propriamente dita, criada pela Lei do Orçamento do Estado (para simplificar, podemos chamá-la de “CESE I”). Por sua vez, o tributo que serve especificamente, e em exclusivo, para a atenuação dos encargos tarifários do SNGN (um tributo que tem características que o tornam decisivamente distinto daquele primeiro, até porque diz respeito a factos que nada têm a ver com aqueles em que assenta) - chamemos-lhe “CESE II” - foi criado pela Lei n.° 33/2015, de 27 de Abril, para ser cobrada uma só vez, tendo depois sido estipulado um adicional, igualmente para ser cobrado apenas uma vez, pelo artigo 264° da Lei n.° 42/2016, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2017). U. A CESE II foi dirigida ao (único) comercializador do SNGN titular de contratos de aprovisionamento de longo prazo em regime de take-or-pay, previstos no artigo 39°-A do Decreto-Lei n.° 140/2006, de 26 de Julho, celebrados em data anterior à entrada em vigor da Directiva n.° 2003/55/CE, do Parlamento e do Conselho, de 26 de Junho, e que fornece gás ao comercializador de último recurso grossista, no âmbito da actividade de compra e venda de gás natural para fornecimento aos comercializadores de último recurso retalhistas, aos centros electroprodutores com contrato de fornecimento outorgado em data anterior a 27 de Junho de 2006 e a outras entidades. A lei encontra- se construída em termos gerais e abstractos (refere-se, no plural, às entidades que integram o sistema energético nacional como comercializadores do SNGN); porém, esta regra de incidência abrangeu efectivamente apenas um sujeito passivo, (a G........., S.A. que é a única entidade que cabe na incidência do tributo. V. Portanto, em conclusão: o objectivo a que o Acórdão n.° 296/2023 alude - a redução dos custos de acesso à rede de gás natural, incorporados nas facturas de consumo final - não é prosseguido com a receita gerada pelo tributo aqui em causa, mas por um outro tributo distinto, que não incide sobre a Recorrente nem sobre os restantes operadores que se dedicam ao transporte, distribuição ou armazenamento de gás natural. Logicamente, esse objectivo não será inviabilizado pela declaração nos presentes autos da inconstitucionalidade da norma neles analisada (a alínea d) do artigo 2° do regime da CESE). Assim sendo, é totalmente desprovida de sentido a tese do Acórdão n.° 296/2023, de que entre a CESE e a Recorrente existe uma relação de bilateralidade típica das contribuições financeiras, com base no pressuposto de que a receita do tributo por ela suportada reverte também para o fim da redução dos encargos tarifários do SNGN. W. Seja como for, independentemente dos argumentos do Acórdão n.° 296/2023 referidos anteriormente, insiste-se ainda no aresto que os operadores do SNGN têm com o objectivo da dívida tarifária do SEN uma relação suficiente para que os consideremos integrados na “lógica grupal” da CESE. Isto na medida em que, resumidamente, como o gás tem um papel fundamental na produção de electricidade, as empresas do SNGN sofreriam um impacto grande com a redução da procura de electricidade que se verificaria caso o Estado não tivesse implementado as políticas de controlo dos preços ao consumidor que redundaram na criação da dívida tarifária e as que, financiadas pela CESE, posteriormente se dirigiram à redução dessa dívida. Também este pressuposto está errado. X. Para se perceber porquê, convém lembrar o que é que na realidade essa “lógica grupal” das contribuições financeiras significa. O que ela significa é que, para cumprimento do princípio da equivalência (concretizador do princípio da Igualdade), este tipo de tributos tem de representar a contrapartida de prestações de que os respectivos sujeitos passivos são presumíveis causadores ou presumíveis beneficiários. Y. Quanto à primeira das relações aludidas - a relação de presumível causalidade existente entre uma contribuição e os seus sujeitos passivos -, ela deve ser uma relação de causalidade especial entre a actividade pública que é preciso financiar e a actividade do universo de agentes económicos que lhe dá origem. E, quando se diz que a causalidade tem de ser especial, quer-se dizer que a necessidade de intervenção regulatória dos poderes públicos tem de decorrer directamente da natureza da actividade dos particulares ou da natureza das opções estratégicas destes. Z. Portanto, se por referência devemos ter a actividade dos particulares, enquanto factor que gera a situação de desequilíbrio ou o risco de sustentabilidade que determinam a intervenção pública, então a lógica das contribuições pressupõe que os universos de sujeitos passivos considerados sejam grupos económicos bem delimitados. Isto é, necessita-se que o universo de sujeitos passivos de uma determinada contribuição se limite àqueles que, em virtude da natureza da sua actividade ou das suas opções estratégicas, forçaram directamente a intervenção das entidades públicas. Dito de modo reflexo: não tem lógica exigir a determinados operadores o pagamento desse tributo se ele servir para colmatar uma falha de mercado para a qual aqueles não contribuíram directamente. AA. Pois bem: a dívida tarifária, cuja atenuação o legislador identifica como objectivo da CESE, define-se, latu sensu, como a diferença entre o custo real da geração de energia eléctrica, do seu transporte, distribuição e comercialização, e os custos recuperados pelas tarifas aplicadas em razão do consumo da mesma. É verdade que, como se diz no Acórdão n.° 296/2023, ela “é produto directo da forma como foi liberalizado o mercado de energia”. No entanto, não é um produto das opções dos sujeitos passivos da CESE. A dívida tarifária é o resultado de opções políticas exclusivas do Estado tomadas no âmbito dessa liberalização do mercado da energia (da energia eléctrica, bem entendido), conjugadas depois com opções políticas e legislativas no sentido de impedir a formação livre dos preços da actividade do sector eléctrico e a total repercussão de custos, também estes fixados por decisão administrativa. BB. Quer isto dizer que o que deu lugar ao problema em causa não foi a qualquer aspecto concreto da actividade dos operadores privados - qualquer aspecto intrínseco ou decorrente de decisões tomadas em regime de liberdade estratégica. Mais: se assim é quando estamos a falar dos próprios operadores do sector electroprodutor, por maioria de razão o é com ainda mais intensidade quando falamos dos operadores do sector do gás natural ou de outro qualquer sector, que não da electricidade: a dívida tarifária não resultou de quaisquer opções político-legislativas dirigidas a esses sectores. Estes não podem ser considerados, pois, efectivos ou presumíveis causadores, directos ou especiais, do problema da dívida tarifária (a dívida tarifária não é um fenómeno comum a todo o sector económico da energia, sendo antes o produto da forma como ao longo dos anos foi sendo estruturado - apenas - o subsector da produção de electricidade). CC. De resto, que sentido faz a afirmação do Acórdão n.° 296/2023, segundo a qual a dívida tarifária é “filha da privatização e da oportunidade de negócio capturada pelas empresas que atuam no setor energético e é daí que resulta a necessidade de regulação pública”? Estamos a falar da privatização ocorrida no sector eléctrico. Portanto, mesmo aceitando para benefício da discussão que nesse processo houve uma “oportunidade de negócio capturada” por algumas empresas, não é verdade o que o TC escreve logo a seguir - que essa oportunidade foi “capturada pelas empresas que atuam no setor energético'’", em geral. Como é óbvio, as empresas do sector do gás natural não “capturaram” negócio algum na privatização do sector da electricidade. DD. No que concerne, agora à segunda relação que também pode legitimar a criação de contribuições - a relação de presumível benefício -, ela implica que haja uma relação de benefício também especial entre os sujeitos passivos e a intervenção pública, no sentido em que os primeiros são beneficiados directamente pela segunda. Daí, de novo, a indispensabilidade de um grupo de sujeitos passivos limitado ao sector a que as entidades públicas pretendem dar mais sustentabilidade ou equilíbrio, e em cujas regras mexem directamente. Não é possível integrar no âmbito de sujeição de uma contribuição operadores económicos que retirem apenas um benefício reflexo da actividade financiada pelo tributo. Nesse caso, estaremos a falar de operadores de sectores em cujas regras a actividade pública financiada pela contribuição não toca. EE. Remetendo para o caso vertente, é óbvio que as políticas públicas orientadas para o controlo dos preços da electricidade - quer as que originaram o diferimento dos custos através da constituição da dívida tarifária quer as que depois serviram para reduzir essa dívida - beneficiam em geral toda a economia. O Acórdão n.° 296/2023 até refere, no lote dos beneficiários, a “indústria"" e o “público consumidor"". É inevitável que assim seja, porque é da razão de ser da electricidade (uma fonte de energia de importância central) que as vicissitudes do seu custo constituam reflexamente vicissitudes nos custos de produção de todos os sectores económicos - e que se repercutam em todo o “público consumidor"". Vemo-lo perfeitamente na actualidade: a crise inflacionista a que assistimos, traduzida no aumento de preços generalizado em todos os sectores, deriva em boa parte do aumento dos custos de produção das fontes de energia. Porém, significa isso que seria legítimo criar uma contribuição financeira, aplicável a toda a economia, para combater os custos da inflação? Certamente que não. Esse tributo seria ou uma contribuição inconstitucional, por violação do princípio da equivalência, ou então um puro imposto extraordinário. FF.Por outro lado, conforme refere o Acórdão n.° 296/2023, os custos da electricidade também têm influência no universo dos fornecedores das empresas electroprodutores, sejam elas fornecedoras de gás ou de qualquer outro bem, porque, se o aumento do preço da energia eléctrica tem o efeito previsível de reduzir a sua procura, terá igualmente o efeito reflexo de reduzir a necessidade de aquisição de matérias-primas e outros factores de produção. Só que, de novo, se estamos perante uma contribuição financeira, que serve para financiar uma actividade estadual regulatória dirigida a (e provocada por características próprias de) um determinado sector económico, não faz sentido incluir no escopo do tributo o universo de fornecedores das empresas que o constituem (empresas fora do sector), ou parte dele, com o argumento de que, “em potência”, os bens ou serviços que estas últimas empresas fornecem se acabarão por transformar no bem que o sector intervencionado produz. GG. O TC presume, pois, que, em todo o longo processo de intervenção estadual que aqui temos em conta - o que começou com a liberalização do sector eléctrico, prosseguiu com as políticas de controlo de custos na factura dos consumidores finais, com a criação da dívida tarifária e da CESE -, o legislador teve em mente uma interligação ou uma relação de solidariedade natural entre os operadores do SEN e do SNGN. Sucede que, para além de essa relação não poder legitimar a CESE fora do campo das empresas do sector eléctrico (pelo menos, a partir de 2018), nos termos do exposto, a verdade é que essa hipotética relação nunca esteve na mente do legislador. HH. Ela não esteve na mente do legislador, desde logo, quando o sector eléctrico e o sector do gás natural tiveram processos de liberalização completamente autónomos e com regras completamente distintas. Por exemplo, a renegociação dos contratos em que assenta a actividade das concessionárias do subsector do gás não desembocou no pagamento às mesmas de quaisquer compensações: pelo contrário, o equilíbrio económico dos contratos de concessão do subsector do mercado do gás natural foi obtido através da solução de alargamento do prazo das concessões e da reavaliação dos activos afectos à prossecução das actividades concessionadas. II. Além disso, que o legislador não teve em mente qualquer relação de solidariedade natural e inevitável entre o SEN e o SNGN resulta óbvio, igualmente, do facto de que, como vimos acima, quando se tratou de criar um tributo para financiar uma intervenção regulatória em ordem à sustentabilidade do SNGN, o legislador criou uma CESE específica (a CESE II) cobrada apenas ao sector do gás natural. Seguindo a lógica do Acórdão n.° 296/2023, o legislador poderia ter decidido cobrar também a CESE II ao sector da electricidade, usando por exemplo o argumento de que, face à percentagem que o gás representa no cômputo das matérias-primas da produção de electricidade, então a sustentabilidade do sector eléctrico depende da sustentabilidade do sector do gás natural. Não fez, claro, precisamente porque às contribuições financeiras tem de subjazer uma relação de causalidade especial e benefício directo, que não se compadece com considerações de causalidade ou benefício reflexos ou indirectos, acerca da situação de sujeitos fora do perímetro do sector económico intervencionado com a receita de uma determinada contribuição. JJ. Após a discussão anterior, que parte de pressupostos relacionados com a incidência subjectiva da CESE, o Acórdão n.° 296/2023 acrescenta por fim que o facto de a base de incidência objectiva da CESE ser o valor global dos activos das empresas abrangidas não implica também a quebra de nexo entre a medida e os sujeitos passivos, uma vez que aquele valor representa a dimensão das empresas e, quanto maior essa dimensão, maior é o seu impacto potencial na sustentabilidade do sector energético, cuja garantia é função da CESE. Nestes termos, conclui o Acórdão, também por esta via se cumpre a regra da equivalência ou bilateralidade subjacente às contribuições financeiras. KK. Esta tese do Acórdão n.° 296/2023 não pode prevalecer. Além de, em geral, um critério ad valorem como este ser próprio dos impostos (ele serve para captar a capacidade contributiva e implica, consequentemente, uma dupla tributação dos lucros - directamente, por via do IRC, e presuntivamente, por via da tributação do valor dos activos), o mais importante, na lógica da presente discussão é lembrar que o valor do activos das empresas do sector energético não é directamente proporcional ao impacto potencial que elas representam na sustentabilidade do mesmo. Daí que o valor do activo não seja um critério adequado, quando apreciado à luz dos objectivos da própria CESE. Ou seja, é contraditório com a própria teleologia da medida. LL. Repare-se, com efeito, antes de mais, que a CESE abrange de modo igual actividades com impacto e risco totalmente distintos, em sectores diversos (petróleos, electricidade, gás, armazenagem, transporte, refinação, etc.). Uma determinada actividade pode significar um risco ou um impacto muito maior ou muito menor do que o que é representado pelo valor dos activos de uma qualquer empresa que a prossiga. Termos em que o risco ou impacto não é de todo medido pelo valor dos activos. MM. Depois, em regra, os activos de maior valor são aqueles que apresentam menor risco e impacto na sustentabilidade do sector energético: se determinados activos das empresas energéticas têm um valor elevado, por comparação com outros, pode perfeitamente ser porque são tecnologicamente mais avançados e/ou mais recentes, caso em que o seu valor está contabilisticamente menos amortizado ou depreciado. Ora, se são tecnologicamente mais avançados e/ou mais recentes, então são mais eficientes e menos poluentes. Isto é, são mais valiosos porque são mais sustentáveis. Isto é, podemos dizer que, em boa medida, o valor dos activos é inversamente proporcional ao seu impacto na sustentabilidade ambiental e energética. NN. Como conclusão de tudo o que vem dito, deve a sentença recorrida ser anulada, prevalecendo neste Tribunal a posição segundo a qual a alínea d) do artigo 2.° do regime jurídico da CESE, vigente em 2020 através do artigo 376° da Lei n.° 2/2020, de 31 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), que prorrogou a CESE para 2020, é inconstitucional, em face pelo menos da aprovação do Decreto-Lei n.° 109- A/2018, o qual significou que, de 2018 em diante, a CESE deixou de constituir um tributo ao qual subjaz uma relação de bilateralidade constitucionalmente aceitável entre a receita gerada e os sujeitos passivos do subsector do gás natural. OO. Por fim, e em total discordância com a posição adotada pelo Tribunal a quo, como adiante melhor se demonstrará, entende a Recorrente que a CESE enferma de um vício de violação da regra da discriminação orçamental, uma vez que a receita proveniente da CESE não se encontra devida e suficientemente especificada, quer na Lei do Orçamento do Estado respeitante ao ano da CESE aqui em causa - 2020 -, quer, aliás, em qualquer uma das Leis do Orçamento do Estado desde a criação da CESE até à presente data - 2014 a 2023. PP. Reitera a Recorrente que as normas contidas nos n.°s 1, 6 e 7, do artigo 11.°, do Regime Jurídico da CESE, ao dispor que a receita da CESE é consignada ao FSSSE, encontram- se inquinadas de ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado, e de inconstitucionalidade, por violação de norma constitucional, pois que a receita da CESE não se encontra devidamente especificada, como se impunha, na Lei do Orçamento do Estado para 2019. QQ. Veja-se que decorre do artigo 11.°, n.°s 1, 6 e 7, do Regime da CESE que a receita obtida com a cobrança deste tributo devia encontrar-se refletida, e suficientemente discriminada, no Mapa V, que integra as "receitas dos serviços e fundos autónomos, por classificação orgânica, com especificação das receitas globais de cada serviço e fundo", ou, pelo menos, no Mapa VI, que integra as receitas dos serviços e fundos autónomos por classificação económica. RR. Da mesma forma, a norma constante do artigo 280.° da Lei n.° 83-C/2013, de 31 de dezembro - Lei do Orçamento do Estado para 2014 - padece dos mesmos vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade ao criar um tributo que viola, desde o momento da sua criação, a regra da discriminação orçamental. SS. Igualmente, também o artigo 376.° da Lei n.° 2/2020, de 31 de março - Lei do Orçamento do Estado para 2020 - padece dos mesmos vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade, ao prorrogar a vigência do regime que cria a CESE, reincidindo nas deficiências de discriminação orçamental apontadas às normas constantes do artigo 11.°, n.°s 1, 6 e 7, do Regime jurídico da CESE e ao artigo 280.° da Lei do Orçamento do Estado para 2014. TT. Veja-se que a receita proveniente da CESE não se encontra devidamente especificada nas Leis do Orçamento do Estado, desde que esta contribuição foi criada, (auto)liquidada e exigida - anos de 2014 a 2023 -, pois, não obstante ser eventualmente possível entender-se estar incluído no Mapa V das sucessivas Leis do Orçamento do Estado, o volume de receitas totais do FSSSE, no Mapa VI, não encontramos a discriminação da mencionada receita de acordo com o classificador económico respetivo; UU. Ora, ao não se terem classificado, adequadamente, estas receitas, viola-se o princípio da legalidade ínsito no art.° 165.°, n.° 1, al. i), e no art.° 105.° da Constituição, na sua dimensão de princípio da tipicidade qualitativa; VV. E, não sendo cumprida a regra da especificação, ficam feridos de inconstitucionalidade os atos de liquidação e cobrança das mesmas, por violação das normas supramencionadas, não cumprindo estas receitas a dimensão da legalidade financeira, por não estarem inscritas no orçamento do Estado de forma adequada. WW. Consequentemente, estamos perante tributos que, se não são inexistentes, são equiparáveis a tributos inexistentes, dado que, como escreve Jorge Lopes de Sousa, “(...) A falta de inscrição orçamental de receita liquidada sujeita a tal inscrição será um vício do acto tributário gerador da sua ilegalidade abstracta, equiparável aos vícios de inexistência do tributo”. XX. O fundamento da regra da especificação orçamental reside nos requisitos de clareza e maior verdade e, bem assim, numa perspetiva de racionalidade financeira e controlo político (cf Sousa Franco, A. L.- Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume I e II, Almedina 2007, p. 353). YY. Esta regra orçamental da especificação integra duas proibições: (i) a proibição, para o Governo, da apresentação de aglomerados de receita e despesa públicas e (ii) a proibição, para a Assembleia da República, de implementação de um sistema de votação global do Orçamento. ZZ. Ora, poder-se-á concluir, como faz Maria d’ Oliveira Martins, que a regra orçamental da especificação serve o princípio da publicidade do Orçamento, que “implica a obrigação de tornar públicos todos os documentos que se revelem necessários para assegurar a adequada divulgação e transparência do Orçamento do Estado e a sua execução.” (cf. p. 32 do Parecer Jurídico da Professora Doutora Maria DOliveira Martins, Doc. n.° 6 junto com a Petição Inicial). AAA. Acresce que, com vista à corporização do princípio da especificação orçamental, a Constituição e a LEO (esta última, tanto na versão de 2001, como na versão de 2015), preveem a existência de três classificações orçamentais: a económica, a orgânica e a funcional. BBB. Debruçando-nos sobre a classificação económica, que é a que mais releva para os presentes autos, recorde-se, estabelece o artigo 8.° da LEO de 2001 que “As receitas devem ser suficientemente especificadas de acordo com uma classificação económica’” (cf. também artigo 17.° da LEO de 2015). CCC. Sucede, porém, que a CESE - tendo em conta a sua relevância orçamental e a sua natureza - não se encontra devidamente orçamentada de acordo com a regra da especificação orçamental. DDD. Embora a receita decorrente da CESE em causa se presuma prevista na Lei do Orçamento do Estado - neste caso, por referência ao ano de 2020 -, a especificação e o desdobramento orçamental desta receita não respeitam o disposto na CRP e na LEO, não se afigurando, à luz do que antecede, suficiente a inscrição global das receitas do FSSSE no Mapa V dos vários Orçamentos do Estado até 2020 e, em 2021, 2022 e 2023, da receita da presumivelmente apenas dentro da categoria de “impostos diretos diversos” do Mapa 5. EEE. Com feito, no Mapa V da Lei do Orçamento do Estado para 2020, referente às Receitas dos Serviços e Fundos Autónomos, por classificação orgânica, com especificação das receitas globais de cada serviço e fundo, prevê-se, tão-só, a arrecadação pelo FSSSE do montante global de € 133.140.000 (cento e trinta e três milhões e cento e quarenta mil euros). FFF. Se é certo que, do artigo 3.°, n.° 1, al. a) do Decreto-Lei n.° 55/2014, de 9 de Abril, resulta que constitui receita do FSSSE, designadamente, o produto da CESE, assim como outras receitas provenientes de aplicações financeiras, de doações, heranças, entre outras, no aludido Mapa V, as receitas do FSSSE não estão individualizadas, nem suficientemente discriminadas, pois que não se especifica quais os montantes, a título de CESE, que, afinal, se autoriza que sejam cobradas durante o ano e consignados ao FSSSE, em clara violação da CRP (artigo 105.°, n.° 1, alínea a)) e da LEO (artigo 8,° da LEO de 2001 e 17.° da LEO de 2015). GGG. De onde se conclui que não está, por isso, discriminado de que é constituído o valor inscrito no Mapa V, de € 133.140.000 (cento e trinta e três milhões e cento e quarenta mil euros), e desse valor, assumindo que ali está incluída a CESE, qual o que lhe corresponde. HHH. De facto, considerando os valores arrecadados com a CESE - aproximadamente 665 milhões de euros só no período compreendido entre 2014 a 2017 (v.g. III. Ora, só com o cumprimento efetivo das necessidades de individualização decorrentes do princípio da especificação, poderá a Assembleia da República promover o controlo, político e orçamental, devido e exigido pela CRP e pela LEO, razão pela qual existe este princípio. JJJ. Nesta medida, é forçoso concluir que a receita escapou, inevitavelmente, ao crivo parlamentar, razão pela qual a sua não especificação, concreta e individualizada, nos termos da CRP e da LEO, equivale, em termos práticos, à sua não inscrição - e à sua não autorização - no correspondente Mapa da Lei do Orçamento do Estado. KKK. A este respeito, Casalta Nabais vai ainda mais longe, entendendo que “(...) o cumprimento do princípio da especificação obriga não só ao cumprimento das exigências constitucionais, mas também das exigências legais e destas decorre não apenas a necessidade da sua previsão no Orçamento do Estado, mas também a sua correcta especificação. Assim, as receitas da CESE teriam que constar dos Mapas I, ou seja, conjuntamente com as receitas dos serviços integrados, por classificação económica. Mas a verdade é que, apesar de uma análise muito cuidada não encontramos a sua menção na classificação respectiva, isto é, como receita corrente’ (cf. pág. 9 do Parecer do Professor Doutor José Casalta Nabais, Doc. n.° 8 junto com a Petição Inicial), (sublinhado da Recorrente). LLL. Por outro lado, esta deficiente inscrição orçamental das receitas da CESE atenta, não apenas contra o princípio da legalidade, por violação da regra orçamental da especificação das receitas, mas gera, também, o incumprimento de outros princípios orçamentais, nomeadamente os princípios da transparência, da unidade e da universalidade. MMM. Acresce, ainda, referir que o facto de o recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 7/2019, de 8 de janeiro, ter (pese embora sem força obrigatória geral) qualificado a CESE como uma “contribuição financeira”, e não como uma taxa ou imposto, também não poderá justificar o aligeiramento da especificação orçamental quanto a estas receitas. NNN. Em primeiro lugar, porque quer a CRP, quer a LEO referem-se a receitas, sem especificar a sua origem. OOO. Depois, porque as contribuições financeiras possuem características semelhantes aos impostos, tendo assim sido vistas, quer pelo Tribunal de Contas, que a qualificou, em 2015, na categoria dos “impostos diretos”, quer pelo Estado, que anulou a sua propriedade comutativa (determinante para o Tribunal Constitucional a ter qualificado como contribuição financeira) ao não transferir, em 2014 e em 2015, o produto da receita da CESE para o FSSSE, tendo, assim, servido finalidades públicas gerais. PPP. Por tudo, verifica-se a violação do princípio da especificação orçamental, com a consequente ocultação desta receita do controlo parlamentar, uma vez que a votação da Assembleia da República, em todos os Orçamentos desde 2014 a 2023, foi efetuada sem o pleno e cabal conhecimento do montante de receita previsto cobrar a título de CESE. QQQ. Razão pela qual, a omissão da referência à CESE nos Orçamentos do Estado para 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023 corresponde a uma manifesta violação da regra orçamental prevista no artigo 8.° da LEO de 2001 (aplicável aos Orçamentos de Estado de 2014 e 2015) e do artigo 17.° da LEO de 2015 (aplicável aos Orçamentos de 2016 a 2023) e, bem assim, à violação do Decreto-Lei n.° 26/2002, na medida em que promove uma deficiente inserção dessa receita no classificador económico e, também, a sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 105.° da CRP. RRR. Acresce referir que esta violação da regra orçamental da especificação põe, também, em crise os outros referidos princípios e regras orçamentais, em especial, aqueles que mais se relacionam com esta, como são os da proibição de compensação e da compensação. SSS. Em face de todo o sobredito, o ato de (auto)liquidação da CESE aqui em apreço enferma de um vício gerador de ilegalidade abstrata, porquanto a sua liquidação e cobrança não terão sido devidamente autorizados em conformidade com a CRP e a LEO. TTT. Importa, ainda, chamar à colação o teor do recentíssimo Acórdão n.° 411/2022, do Tribunal Constitucional (TC), no qual este Tribunal se dedica à análise da eventual violação do princípio da discriminação e da regra da especificação orçamental, pelo disposto no artigo 11.°, n.° 1, do Regime Jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), no qual, salvo melhor opinião, ao mesmo tempo que se defende que a violação do princípio da discriminação da regra da especificação não poderá ter consequências - nem sequer reflexas - ao nível normativo, se defende que tal violação deverá, porém, inquinar o próprio ato de liquidação do crédito, na medida em que os créditos que lhes subjazem são inválidos. UUU. Do que antecede decorre que o TC relega a palavra final para os tribunais tributários, uma vez que, de acordo com o Acórdão em escrutínio, o vício decorrente da violação arguida adere ao ato de liquidação e não à norma que prevê a consignação do tributo, i.e., o 11.°, n.° 1, do RCESE (norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela ali Recorrente). VVV. No que respeita ao desvalor jurídico do acto de autoliquidação em crise, em resultado da violação das regras orçamentais acima descritas, deverá este conduzir-se à nulidade dos "créditos orçamentais que possibilitem a existência de dotações para utilização confidencial ou para fundos secretos (...)", conforme prevêem o artigo 8.° n.° 6, da LEO de 2001 e o artigo 17.°, n.° 3, da LEO de 2015, o que deverá significar que esses créditos se devem ter por não escritos, reconstituindo-se a ordem jurídica como se a cobrança da CESE nunca tivesse sido prevista. WWW. Ora, esta ilegalidade, decorrente da falta de previsão e de especificação das receitas proporcionadas pela CESE resulta, efectivamente, numa ilegalidade grave dos respectivos actos de liquidação e cobrança, a qual, salvo melhor opinião, nunca pode reconduzir-se à mera anulabilidade, devendo materializar-se numa nulidade típica ou integral. XXX. Donde é forçoso concluir-se que as deficiências de orçamentação da CESE, desde a sua criação até à presente data, são tão graves que este tributo deve ter-se, mesmo, por não orçamentado, com a consequente nulidade das respetivas (auto)liquidações, ao abrigo da alínea k) do artigo 161.° do CPA. YYY. Considerando as exigências do ónus de suscitação prévia e as particularidades dos vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade, os quais aderem, em rigor, a todo o escopo normativo conducente à cobrança do crédito tributário nulo, elucida-nos Tiago Duarte que “Deverá, assim, ser suscitada ao Tribunal a quo a inconstitucionalidade da norma que no ano em causa tenha mantido em vigor a CESE, bem como as normas do regime jurídico da CESE (com a redação em vigor nesse ano) que serão aplicadas pelo Tribunal a quo (...). (...) Todas estas normas (na versão em vigor relativamente ao ano a que a impugnação judicial diga respeito) contribuem para a criação da receita não orçamentada e são normas que serão necessariamente aplicadas pelo Tribunal a quo no momento de decidir um litígio em torno da liquidação e cobrança da CESE no contexto de uma impugnação judicial do acto de liquidação da mesma” (cf. Doc. n.° 7 junto com a Petição Inicial, pp. 23 e 24). ZZZ. Concluindo, suscita-se, expressamente e desde já, e nos termos que antecedem, a (in)constitucionalidade e a ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado, (i) da norma que instituiu o regime jurídico da CESE, i.e. da norma resultante do artigo 228.° da Lei n.° 83-C/2013;(ii) da norma que manteve em vigor, no ano 2020, o regime jurídico da CESE, i.e. da norma contida no artigo 376.° da Lei n.° 2/2020, de 31 de março; (iii) da norma que se retira do artigo 1.° do regime jurídico da CESE e que define o objeto do tributo; (iv) da norma que se retira do artigo 2.° do regime jurídico da CESE e que determina a incidência subjetiva do tributo; (v) da norma que se retira do artigo 3.° do regime jurídico da CESE e que determina a incidência objetiva do tributo; (vi) a norma que se retira do artigo 6.° do regime jurídico da CESE e que determina a taxa aplicável; (vii) a norma que se retira do artigo 11.° do regime jurídico da CESE e que determina a consignação da receita ao FSSSE, bem como (viii) da norma que se retira do artigo 12.° do regime jurídico da CESE e que determina a não dedutibilidade da CESE, no sentido de que são devidos pelo contribuinte e não são nulos créditos tributários da CESE respeitantes ao ano de 2020, quando inexista especificação (ou exista insuficiente especificação) no Mapa V da Lei n.° 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020) da receita que o Estado previu arrecadar para o FSSSE, por a CESE não ser a única fonte de receita do aludido Fundo. NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, REQUER-SE A V. EXAS. QUE JULGUEM TOTALMENTE PROCEDENTE O PRESENTE RECURSO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, NOMEADAMENTE A REVOGAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA E A NULIDADE, OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, A ANULAÇÃO DOS ACTOS IMPUGNADOS." A Recorrida não apresentou contra-alegações. *** A Digna Magistrada do M.º Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. *** Questões a decidir no recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º nºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT. Assim sendo, no caso em apreço, atendendo às conclusões de recurso, há que apurar se a sentença sob recurso padece de erro de julgamento por errónea apreciação dos pressupostos de facto e de direito, indagando, para o efeito, se: - a alínea d) do art. 2.º do Regime da CESE vigente em 2020 é inconstitucional por quebra do nexo causal entre os objectivos do tributo e os operadores que actuam no sector do gás natural, como a Recorrente; - a CESE enferma do vício de violação da regra da discriminação orçamental, pelo que se verifica a inconstitucionalidade e a ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado, da norma que instituiu o regime jurídico da CESE, da norma que o manteve em vigor no ano de 2020, das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 6.º, 11.º e 12.º do Regime Jurídico da CESE, ferindo de inconstitucionalidade e nulidade os respectivos actos de liquidação e cobrança.
II.1. Fundamentação de facto O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos: * Da decisão recorrida consta, ainda, a seguinte menção sob o título “Matéria de facto não provada”: “Inexistem factos com relevância para a decisão da causa que importe destacar como não provados.” * Quanto à motivação da matéria de facto ficou consignado o seguinte: “A convicção do tribunal sobre a matéria de facto formou-se com base na análise crítica conjugada dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo tributário apenso, os quais não foram impugnados e aqui são dados por integralmente reproduzidos, bem como na posição assumida pelas partes no processo, conforme referido a propósito de cada número do probatório.” * II.2. De Direito P........., S.A. vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação que interpôs, na sequência do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, contra o acto tributário de autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), referente ao ano de 2020. Em tal sentença, citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, do STA e deste TCA Sul, foi decidido que a CESE, além de configurar a figura da contribuição financeira, não padecia de inconstitucionalidade por violação dos princípios da equivalência e da proporcionalidade.
No processo n.º 1784/19.8BELRS, da mesma Autora, mas referente à CESE de 2018, foi inicialmente proferido Acórdão por este Tribunal no sentido agora propugnado pelo tribunal recorrido, o qual, no entanto, em virtude de recurso para o Tribunal Constitucional, e de nele ter sido proferida decisão sumária julgando inconstitucional a norma da al. d) do art. 2.º do Regime Jurídico da CESE, com vigência prorrogada para o ano de 2018, teve de ser reformado, em 22-06-2023, para cumprimento de tal decisão, tendo concedido provimento ao recurso, revogado a decisão recorrida e julgado procedente a impugnação, com a consequente anulação do acto tributário impugnado.
Por outro lado, a jurisprudência mais recente do STA acolheu o posicionamento que prevaleceu no Tribunal Constitucional a partir de 2019, que, inflectindo o entendimento seguido até aí, passou a considerar materialmente inconstitucional a CESE. Desta jurisprudência é exemplo o Acórdão proferido no proc. n.º 345/21.6BEVIS, de 12-02-2025, proferido num processo em que estava, também, em causa a CESE de 2020, no qual tinham sido invocadas as questões aqui colocadas, relativamente à natureza do tributo em causa como contribuição financeira, à interpretação e aplicação ao caso dos princípios da proporcionalidade e da igualdade, na vertente da equivalência (se a alínea d) do art. 2.º do Regime da CESE vigente em 2020 era inconstitucional por quebra do nexo causal entre os objectivos do tributo e os operadores que actuam no sector do gás natural, como a Recorrente) e, bem assim, se a CESE enfermava do vício de violação da regra da discriminação orçamental. Tal aresto, fazendo um resumo da evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente, da referida inflexão relativamente aos anos de 2019 e ss., aderiu a esta última, tendo desaplicado, por padecer de inconstitucionalidade material, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE em que se fundava a exigência de pagamento à Recorrente. Em tal acórdão ficou consignado, designadamente, o seguinte: “(…) A questão suscitada nestes autos é, essencialmente, tal como configurada pela Recorrente, a de saber se as normas do regime da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (“CESE”), em particular os artigos 2.º, 3.º, 6.º, 11.º e 12.º, na versão e período de vigência conferidos pelo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), que prorrogou a CESE para 2020, padecem de inconstitucionalidade. Entende a Recorrente que os referidos artigos enfermam de inconstitucionalidade material no que concerne às normas de incidência subjetiva e objetiva, por violação dos princípios: da proporcionalidade, da igualdade, da equivalência, da consignação de receitas a determinadas despesas; por restrição ao direito da proporcionalidade e, por fim, por a CESE assumir natureza não extraordinária, perene e não transitória, não constituindo, por conseguinte, como era o objetivo inicial, uma medida excecional. No âmbito da questão que se coloca, é importante fazer a seguinte contextualização. O problema suscitado não é novo, tendo a CESE sido objeto de múltiplas decisões jurisprudenciais, desde logo no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, mas também no âmbito do próprio Tribunal Constitucional. Todavia, denota-se, no âmbito da jurisprudência existente, uma demarcação clara entre o que foi entendido até 2018 e o posicionamento que tem vindo a prevalecer a partir de 2019. Até ao ano de 2018 foi entendido, de forma reiterada, que não eram inconstitucionais as normas objeto dos sucessivos pedidos de controlo, sempre na esteira do primeiro aresto que se pronunciou sobre esta questão – o acórdão do TC n.º 7/2019. A partir de 2019, porém, houve uma inflexão do posicionamento, até então maioritário. Isto é, do exercício de 2019 em diante, houve uma inversão da jurisprudência, passando-se a decidir no sentido da inconstitucionalidade da CESE (cfr. os acórdãos do TC n.ºs 196/2024, 197/2024, 336/2024, 337/2024, 338/2024 e 427/2024). Havendo, denote-se, uma reiteração desse juízo de inconstitucionalidade da CESE em situações em que estava precisamente em causa a tributação de empresas dos setores de distribuição de gás natural, como é o caso da Recorrente (decorre da matéria provada que – letra A – a Recorrente «dedicava-se à “distribuição de combustíveis gasosos por condutas”»), tal como foi evidenciado pelos acórdãos: 443/2024, 475/2024, 476/2024, 712/2024, 445/2024, 517/2024, 553/2024 e o 930/2024. Esta nova linha jurisprudencial, tem na sua base o acórdão n.º 101/2023 do TC que, sem prejuízo de não ter sido acolhida pelo TC logo no contexto do exercício do ano 2018 (afastada pelos acórdãos n.º 338/2023 e 720/2023), passou, todavia, a dominar a partir do momento em que começam a estar em causa o exercício de 2019 ou seguintes. Linha essa que foi sintetizada, com mestria, pelo acórdão 197/2024, ao dizer: «a linha jurisprudencial traçada pelo Acórdão n.º 101/2023 assenta na ideia de que “[…] as alterações operadas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, ao regime de afetação das verbas do FSSSE, ao qual se encontra consignada a receita da CESE, descaracterizaram o nexo paracomutativo entre certa categoria de sujeitos e as finalidades do tributo a tal ponto que deixou de ser possível, uma vez entrado em vigor o novo quadro legal, fundamentar a oneração do seu património no princípio da equivalência. Para tais sujeitos, pois, a CESE passou a constituir, em virtude de tal alteração de regime, um verdadeiro imposto, sem que o mesmo encontre respaldo algum no princípio da capacidade contributiva». Tendo sido, portanto, sobretudo como decorrência desse posicionamento que no acórdão 101/2023 do TC se decidiu «Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2018 pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2018, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual)»: – Posicionamento seguido e replicado nos vários arestos acima referidos, no contexto de vários exercícios subsequentes a 2018.
Ora, o cerne da linha argumentativa decorrente do acórdão 101/2023 do TC e dos que o seguiram é plenamente transponível para o caso sub judice, relativo à CESE de 2020, que se refere, justamente, a um sujeito passivo que exerce a sua atividade no âmbito do provisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados, atividade expressamente referida nos vários arestos aludidos. Assim sendo, apresenta-se como inelutável o alinhamento deste Supremo Tribunal com a jurisprudência firmada pelo TC quanto à matéria em apreço, no sentido de que, também aqui, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE – (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2020, pelo artigo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1, do artigo 3.º, do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2020, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural – padece de inconstitucionalidade por violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. Alinhamento, aliás, já consumado por este Supremo Tribunal em vários acórdãos, dos quais destacamos, por ser totalmente sobreponível aos presentes autos, o proferido em 5 de fevereiro de 2025, processo n.º 367/23.2BEAVR, disponível in www.dgsi.pt, cuja fundamentação, pela plena adequação ao caso sub judice, seguimos muito de perto. Decorre do exposto a necessária desaplicação do artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE em que se funda a exigência de pagamento da CESE à Recorrente. A inconstitucionalidade da norma atrás identificada, justifica, por si, a procedência do presente recurso e consequente a anulação dos aludidos atos tributários. (…)” (sublinhado nosso) Também este TCA Sul, no Acórdão de 07-11-2024, proferido no proc. n.º 843/20.9BELRA, relativamente a uma CESE de 2019, reformado na sequência de pronúncia do Tribunal Constitucional, deixou consignado o seguinte: “Contudo, na sequência da interposição do competente recurso jurisdicional o Tribunal Constitucional, mediante Aresto prolatado a 20 de junho de 2024, julgou inconstitucional, por violação do artigo 13.º da CRP, o artigo 2.º, alínea d), do Regime Jurídico da CESE, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na redação em vigor em 2019), competindo, ora, proceder à sua reforma. Nesta conformidade, e ao abrigo do consignado nº 2, do artigo 80.º, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LTC), cumpre reformar a decisão em conformidade com o julgamento positivo de inconstitucionalidade do artigo 2.º, alínea d), do aludido Regime Jurídico da CESE, por violação do artigo 13.º da CRP. Face ao exposto, procede-se à aludida reforma, mediante apelo à fundamentação jurídica nele vertida, e que se extrata na parte que, ora, releva e infra se transcreve: “[a] partir de 2018, se encontravam previstas as prestações públicas que a CESE se destinava a financiar, obstam a que se possa firmar o necessário nexo entre tais prestações e o grupo dos sujeitos passivos que exercem as atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, a que diz respeito a norma sindicada no presente recurso. Em primeiro lugar, tornou-se evidente que, por imposição legal, a maior parcela da receita se destinaria, a partir desse momento, a reduzir a dívida tarifária do setor elétrico, sem que sejam claras as razões pelas quais o legislador teve por adequado exigir a operadores não integrados nesse subsetor que participassem nos encargos daí advenientes, quando lhes não deram causa alguma, nem se vê que daí extraiam um especial benefício. Cabe notar que a mera circunstância de todos os operadores integrarem o «setor energético» não é manifestamente suficiente para afirmar que exista uma responsabilidade de grupo do subsetor do gás natural pelos encargos respeitantes a um problema específico do subsetor da energia elétrica. Embora seguramente exista alguma homogeneidade de interesses e interdependência entre os vários operadores do mercado energético, são diferentes as condições em que estes operam e bem assim os problemas de sustentabilidade que a propósito de cada um se colocam. Tanto assim que o próprio regime jurídico da CESE, desde as alterações introduzidas em 2015, passou a afetar ao SNGN uma parte da receita do tributo − a que é exigida aos comercializadores do SNGN, titulares de contratos de aprovisionamento de longo prazo −, com o intuito de prevenir os «desequilíbrios sistémicos» próprios deste subsetor. O que daqui se depreende é que não há motivo algum para fazer correr por conta das empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural encargos associados à redução da dívida tarifária do setor elétrico. Nem há razão nenhuma para supor que a prevenção dos riscos associados à instabilidade tarifária no setor elétrico aproveita em especial medida aos operadores dos demais subsetores − não se podendo admitir como contraprova a suposição de que um tal benefício advém, como que obliquamente, da circunstância de boa parte das empresas credoras da dívida tarifária serem grandes consumidoras de gás natural. Acresce que o regime não define critérios que imponham que uma parte relevante da receita da CESE se mantenha afeta ao financiamento de medidas tendentes a favorecer os interesses de todos os operadores económicos incluídos no seu âmbito de incidência subjetiva (e não isentos). Pelo contrário, na prática, é confiada ao Governo a possibilidade de, em função dos «objetivos que se revelem mais prementes», afetar toda a receita da CESE à redução da dívida tarifária do setor elétrico – ou seja, ao financiamento de prestações públicas de que os operadores do setor do gás natural não podem, como se viu, presumir-se causadores ou beneficiários. Por fim, ainda que um terço da receita da CESE tivesse sido consignado ao «financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», a circunstância de as tarefas que o tributo se destina a financiar não terem sido objeto de densificação mínima, não permite sequer apreender se e em que medida cada um dos subsetores em causa é visado pelas medidas a adotar pelo FSSSE. De facto, mesmo em tais condições – estritamente hipotéticas −, não se poderia presumir que um terço da receita da CESE tivesse sido destinado a medidas de que seriam especiais beneficiários os operadores do subsetor do gás natural, de modo a garantir um certo equilíbrio na participação pelos subgrupos de operadores dos benefícios presumivelmente proporcionados pelo FSSSE. A jurisprudência constitucional tem enfatizado que, em matéria de contribuições financeiras, o legislador tem o ónus de delimitar, com precisão, a base de incidência subjetiva do tributo. A este respeito, afirmou-se no Acórdão n.º 344/2019 o seguinte: «Nesta última espécie de tributos – contribuições – o princípio da equivalência vincula o legislador a definir o universo de sujeitos passivos que se presume provocar ou aproveitar a prestação administrativa. Não podendo dar-se por seguro que cada um dos concretos sujeitos passivos provoca ou aproveita a prestação pública – como ocorre nas taxas – exige-se que o legislador isole os grupos de pessoas às quais estejam presumivelmente associados custos e benefícios comuns. Assim, o princípio da equivalência projeta-se na estruturação subjetiva do tributo através do recorte de um grupo de pessoas que tem interesses e qualidades em comum, que tem responsabilidades na concretização dos objetivos a que o tributo se dirige, e que a prestação tributária seja empregue no interesse dos membros grupo. A propósito destes “requisitos de legitimação” dos tributos de estrutura bilateral grupal refere Sérgio Vasques que “só a provocação de custos comuns e o aproveitamento de benefícios comuns garantem a homogeneidade capaz de legitimar a sobretributação de um qualquer grupo social ou económico no confronto com o todo da coletividade, mostrando-se discriminatória uma contribuição cobrada na sua falta” (O Princípio da Equivalência como Critério da Igualdade Tributária, Almedina, pág. 528).» Ora, a partir de 2018, o legislador reduziu os objetivos a que a CESE se dirige em termos tais, que deixou de ser possível afirmar que as concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural podem ser consideradas responsáveis pela sua concretização, e muito menos presumíveis causadoras ou beneficiárias das prestações públicas que ao FSSSE incumbe providenciar. Resta, pois, concluir que a norma que integra o objeto do presente recurso viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.» Ressuma da fundamentação expendida nesta decisão a conclusão de que a CESE passou a constituir um verdadeiro imposto, em virtude de tal alteração de regime operada pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, ao regime de afetação das verbas do FSSSE, haver descaracterizado o «nexo paracomutativo entre certa categoria de sujeitos e as finalidades do tributo a tal ponto que deixou de ser possível, uma vez entrado em vigor o novo quadro legal, fundamentar a oneração do seu património no princípio da equivalência» (cf. declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 338/2023, bem como os Acórdãos n.os196/2024, 197/2024, 336/2024, 337/2024, 427/2024 e 443/2024). O juízo de censura jurídico-constitucional firmado no Acórdão n.º 101/2023 mostra-se como plena e integralmente transponível para a presente situação e para o juízo a firmar quanto à norma em causa nos presentes autos, já que a conclusão ali alcançada vale, por identidade de razão, para os tributos liquidados por referência ao exercício económico de 2019.” Destarte, o juízo de inconstitucionalidade do artigo 2.º, alínea d), do Regime Jurídico da CESE, por violação do artigo 13.º da CRP, decretado nos moldes expendidos anteriormente, implica que a liquidação impugnada fique sem suporte normativo, o que determina a sua anulação.” Tratando-se de situações similares à dos presentes autos, por economia de meios, visando a interpretação e aplicação uniforme do direito (cf. art. 8.º n.º 3 do Código Civil), acolhemos a argumentação jurídica dos acórdãos citados, o que vale por concluir que o recurso procede e que a sentença recorrida, por padecer do erro de julgamento que lhe foi imputado, não se pode manter. Com efeito, a inconstitucionalidade da norma do art. 2.º d) do Regime Jurídico da CESE justifica, por si, a procedência do presente recurso e a consequente anulação do acto tributário impugnado, ficando prejudicada a apreciação da constitucionalidade suscitada pela Recorrente relativamente às restantes normas que indicou do regime jurídico da CESE.
Resta, finalmente, a apreciação dos pedidos de “reembolso dos montantes que tenham sido ou venham entretanto a ser pagos”, “em caso de efectivo pagamento de qualquer montante, a declaração do direito da Impugnante ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT, de acordo com o princípio estatuído nos artigos 43º e 100º da LGT” e a “a declaração do direito da Impugnante ao pagamento da indemnização prevista nos artigos 53º da LGT e 171º do CPPT em virtude da prestação indevida de garantia para suspensão do processo executivo instaurado para cobrança coerciva do montante não pago voluntariamente”. Do probatório (ponto 3)) resulta apenas que a Impugnante prestou garantia na execução fiscal, nada sendo dito quanto à sua natureza. Ora, assim sendo, estes pedidos terão de improceder, na medida em que inexiste qualquer prova nos autos de que tenha sido efectuado o pagamento da liquidação anulada, inviabilizando, por si só e na presente data, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios e a atribuição de indemnização por prestação indevida de garantia idónea, subsumível no artigo 53.º da LGT. Com efeito, destinando-se os juros indemnizatórios a compensar o contribuinte pelo prejuízo causado pelo pagamento indevido de uma prestação tributária, sendo, portanto, pressuposto do seu reconhecimento o pagamento do tributo, não resultando, no caso concreto, demonstrado o pagamento da liquidação impugnada, não há que reconhecer o direito ao pagamento de juros indemnizatórios, carecendo de qualquer justificação legal a condenação no pagamento de juros indemnizatórios de forma condicional [vide, designadamente, Acórdãos do TCAS, proferidos nos processos nºs 194/20, e 2017/08, de 18.05.2023 e 14.01.2020, respetivamente]. E no mesmo sentido se decidirá no atinente ao pagamento de indemnização por prestação indevida de garantia, atenta, como visto, a ausência de prova do tipo de garantia prestada, essencial à apreciação do direito à indemnização. De relevar, neste âmbito, que tal não obsta, naturalmente, que em sede de execução de julgado anulatório, e sendo caso disso e demonstrada a realidade de facto atinente ao efeito, sejam concedidas as pretensões que, ora, peticiona, mas não prova. Nestes termos, impõe-se, neste âmbito e para já, decidir pela improcedência do pedido de reembolso do tributo acrescido dos juros indemnizatórios e da indemnização por prestação indevida de garantia. [Neste sentido vide, designadamente, Acórdãos deste TCAS, proferidos nos processos nºs 1784/19, e 478/21, datados de 22.06.2023 e 04.05.2023, respetivamente].
III. DECISÃO Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e julgar procedente a impugnação, com a consequente anulação dos acto tributários impugnados.
Custas pela Recorrida (sem taxa de justiça nesta instância uma vez que não contra-alegou). Lisboa, 20-03-2025 _________________ (Teresa Costa Alemão)
__________________ (Maria da Luz Cardoso – em substituição)
___________________ (Margarida Reis) |