Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:568/25.9BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2025
Relator:LUÍSA SOARES
Descritores:RECLAMAÇÃO DE ATO DO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO
HIPOTECA LEGAL
AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA
Sumário:I - A decisão do órgão da execução fiscal de constituir garantia mediante hipoteca legal - prevista na alínea b) do n.º 2 do art. 50.º da LGT e no n.º 1 do art. 195.º do CPPT - deve qualificar-se como um verdadeiro ato administrativo em matéria tributária, inserido no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva dos tributos
II - Essa decisão fica, por isso, sujeita aos princípios e normas que disciplinam a atividade administrativa tributária, designadamente aos que se referem ao princípio da participação, a assegurar mediante a notificação para o exercício do direito de audiência prévia (cfr. art. 60.º da LGT, art. 45.º do CPPT e art. 121.º do CPA).
III – Nas situações previstas no nº 1 do art. 124º do CPA para a dispensa da audiência prévia, a decisão final deve indicar as razões da não realização da audiência, como estabelece o nº 2 da mesma disposição legal.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I – RELATÓRIO

Vem F… apresentar recurso jurisdicional contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou improcedente a reclamação apresentada nos termos do art. 276º do CPPT contra o despacho proferido em 17/03/2025 no âmbito do processo de execução fiscal nº 1001200601074113 e apensos, de constituição de hipoteca legal sobre o prédio registado como Usufruto, descrito sob o n.° 27-B, da freguesia de Coimbrão, concelho de Leiria.

A Recorrente, nas suas alegações, formulou conclusões nos seguintes termos:

“a) A hipoteca legal é um ato lesivo dos direitos do executado, e, por isso, é impugnável de conformidade com o disposto no nº 3 do artigo 268º e nº 1 do art.º 20º, ambos da CRP, e constitui um prejuízo efetivo;

b) A constituição de hipoteca legal é regida pelo CPA, logo é um ato administrativo, sujeito a direito de audição do art.º 60º da LGT, e, a fundamentação nos termos do artigo 77º da LGT, e não está devidamente fundamentada;

c) Mas o executado não foi notificado para o exercício do direito de audição o que torna todo o demais processado nulo;

d) O executado também não foi notificado do teor do projeto do auto de hipoteca legal, e, quando falamos do teor do projeto, subentendemos que deveria ter sido submetido a direito de audição;

e) Igualmente nunca foi notificado do auto de hipoteca legal;

f) A menção dos juros moratórios no valor da dívida é incorreta, por que o cálculo dos juros de mora estão dependentes de liquidação, nos termos do DL nº 73/99 de 16 de Março, e a liquidação só ocorrerá com o pagamento, que não ocorreu;

g) E, não tendo decidido neste sentido, a sentença errou em toda a linha;

h) Nas decisões a proferir, o julgador terá de considerar os casos que mereçam um tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito [nº 3 art.º 8º CC], identificados em 8º e 9º;

Do pedido:
Que a sentença seja revogada e em substituição seja proferido acórdão em que a hipoteca seja declarada ilegal, pelo simples facto de que a lei não o permite por não estar fundamentada, nem ter havido direito de audição, nem ter sido notificado o respetivo auto [provavelmente por não existir], e consequentemente que seja anulado o despacho que a manda efetuar;
Termos em que, nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve a Sentença recorrida ser REVOGADA, por ser de: LEI, DIREITO, E JUSTIÇA.”.

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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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O Exmº. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu douto parecer defendendo seja negado provimento ao recurso.

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Com dispensa de vistos atenta a natureza urgente do processo, vêm os autos à conferência para decisão.


II – DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cfr. artigo 635°, n.° 4 e artigo 639°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Assim, delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, importa decidir se a sentença padece de erro de julgamento ao ter mantido, por não padecer de qualquer ilegalidade, o despacho de constituição de hipoteca legal proferido pelo órgão de execução fiscal.
* * *
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“Com interesse para a decisão da causa, julgo provada a seguinte factualidade:

A) Em 30/03/2006 o IGFSS, IP instaurou contra a sociedade Os G...– Creche – Infantário, Jardim de Infância e ATL Lda., NIPC 50…, os PEF n.º 1001200601074113 e n.º 1001200601075551, pelas quantias e proveniência de dívidas descritas no quadro infra, nos quais se encontra em cobrança coerciva uma quantia exequenda global de € 15.032,88, assim discriminada:

- cfr. PEF apenso e doc. junto com a resposta do IGFSS, IP;

B) Em data não concretamente apurada, o PEF n.º 1001200601075551 foi apensado ao PEF n.º 1001200601074113 –cfr. ofícios de citação de fls. 3 do PEF apenso;

C) Por despacho de 24/09/2007 o Coordenador do SPE de Leiria do IGFSS, IP determinou a audição prévia da Reclamante face ao projeto de reversão da dívida exequenda PEF n.º 1001200601074113 e apensos contra esta, o que decidiu nos termos e com base nos seguintes fundamentos, entre outros: “(…)

(…)” – cfr. projeto de reversão de fls. 8 do PEF apenso;

D) A Reclamante foi citada para o PEF n.º 1001200601074113 e apenso, em reversão, em 18/12/2007 – cfr. ofício de citação de fls. 11 e 12 do PEF apenso;

E) Em 17/03/2025, a Coordenador da SPE de Leiria do IGFSS, IP proferiu um despacho no âmbito do PEF n.º 1001200601074113 e apenso, no âmbito do qual determina, a constituição de hipoteca legal sobre o prédio descrito como usufruto n.º 27-B, da freguesia de Coimbrão, concelho de Leiria, propriedade da aqui Reclamante, e o registo da mesma a favor da Segurança Social para garantia de uma dívida exequenda global de € 15.032,88, acrescida de juros e custas, o que perfaz o valor global de € 25.059,73, nos seguintes termos: “(…)
(IMAGEM, ORIGINAL NOS AUTOS)
(…)” – cfr. doc. de fls. 192 e ss. do PEF apenso;

F) Por ofício de 17/03/2025, a Coordenadora do SPE de Leiria do IGFSS, IP requereu à Conservatória do Registo Predial de Leiria – 1.ª, o registo de hipoteca legal sobre o prédio descrito sob o n.º usufruto – ....., da freguesia de Coimbrão – cfr. docs. de fls. 191 a 197 do PEF apenso;

G) Pela Ap. n.º 4498 de 19/03/2025, foi registada na Conservatória do Registo Predial de Leiria, a hipoteca legal sobre o prédio descrito sob o n.º usufruto – 27-B, da freguesia de Coimbrão, registado em nome do Reclamante e identificada na alínea anterior – cfr. doc. de fls. 230 e ss. do PEF apenso;

H) O despacho identificado na alínea E), supra, foi remetido à Reclamante a coberto do ofício n.º S-IGFSS/101806/2025, de 06/05/2025, por carta registada com a referência alfanumérica RF 6203 0331 6 PT e com A/R – cfr. ofício e selo dos CTT nele aposto, de fls. 251 e ss. do PEF apenso;

I) E rececionado em 09/05/2025 – facto admitido por acordo entre as Partes (cfr. ponto 1.º da p.i.);

J) A petição inicial foi remetida à SPE de Leiria do IGFSS, IP por mensagem de correio eletrónico datada de 20/05/2025 – cfr. mensagem de correio eletrónico junta com a p.i.

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Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de importar para a decisão de mérito, face às várias e plausíveis soluções de direito.

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A decisão da matéria de facto fundou-se na análise crítica de toda a prova produzida, designadamente nas informações oficiais e documentos constantes dos autos, que não foram impugnados, bem como nos factos admitidos por acordo entre as Partes, conforme remissão feita a propósito de cada alínea do probatório (cfr. artigo 607.º do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT).”.
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Compulsados os presentes autos constata-se que o facto elencado na alínea E) do probatório padece de um erro na transcrição do despacho proferido pelo órgão de execução fiscal, sendo que está repetida a transcrição de uma parte do despacho, não se mostrando integralmente transcrito.

Nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do Código de Processo Civil, por estarem documentalmente provados e serem pertinentes para a boa decisão da causa e das questões colocadas em recurso, acorda-se em alterar a alínea E) do probatório nos seguintes termos:

E) Em 17/03/2025, a Coordenador da SPE de Leiria do IGFSS, IP proferiu um despacho no âmbito do PEF n.º 1001200601074113 e apenso, no âmbito do qual determina, a constituição de hipoteca legal sobre o prédio descrito como usufruto n.º 27-B, da freguesia de Coimbrão, concelho de Leiria, propriedade da aqui Reclamante, e o registo da mesma a favor da Segurança Social para garantia de uma dívida exequenda global de € 15.032,88, acrescida de juros e custas, o que perfaz o valor global de € 25.059,73, nos seguintes termos: “(…)

(IMAGEM, ORIGINAL NOS AUTOS)

– cfr. doc. de fls. 192 e ss. do PEF apenso
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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou improcedente a reclamação apresentada nos termos do art. 276º do CPPT contra o despacho proferido em 17/03/2025 pela Coordenadora do SPEF de Leiria do IGFSS, IP no âmbito do PEF n.° 1001200601074113 e apensos, que determinou a constituição de hipoteca legal sobre o prédio registado como Usufruto, registado sob o n.° 27-B, da freguesia de Coimbrões, concelho de Leiria, de que a Reclamante é titular.

Discordando do decidido, vem a Reclamante, ora Recorrente apresentar recurso jurisdicional, cujas conclusões delimitam o objeto do recurso, invocando para o efeito erro de julgamento com os mesmos fundamentos antes apresentados em sede de reclamação judicial, a saber;
- Desde logo que a hipoteca legal é um ato administrativo sujeito ao direito de audição e ao dever de fundamentação:
- Falta de audição prévia e de notificação do projeto do auto de hipoteca legal;
- Falta ou insuficiência de fundamentação do ato reclamado;
- Falta de notificação do auto de hipoteca legal;
- Erro dos juros moratórios, pois o cálculo destes está dependente do pagamento.

Vejamos então.

Quanto ao entendimento de que a hipoteca legal é um ato administrativo em matéria tributária sujeito ao direito de audição prévia e ao dever de fundamentação, é questão incontroversa, porquanto a sentença recorrida claramente evidencia esse entendimento.

Na verdade, foi mencionada a jurisprudência uniforme do STA quanto a essa matéria, destacando-se o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA de 26/09/2018 – proc. 01419/07.3BESNT – ao afirmar que “I - A decisão de constituir hipoteca no processo de execução fiscal é um acto administrativo em matéria tributária, uma vez que o órgão da execução está ainda a exercer uma actividade materialmente tributária que passa pela expressão de uma vontade própria, enquanto sujeito activo da obrigação tributária, de constituir garantia especial em ordem ao pagamento da dívida exequenda e do acrescido, cabendo-lhe uma avaliação se o “interesse da eficácia da cobrança” recomenda ou não a constituição da hipoteca.
II - A expressão “o órgão da execução fiscal pode constituir hipoteca legal”, contida no n.º 1 do art. 195.º do CPPT, tal como a redacção do n.º 2 do art. 50.º da LGT, apontam no sentido de se estar perante um poder discricionário que é atribuído à AT na qualidade de titular do crédito cujo pagamento o executado deve assegurar.
III - Trata-se de um poder que o sujeito activo da relação tributária obrigacional ou titular do crédito exercerá em conformidade com o juízo que formule, no âmbito de competências próprias, sobre a pertinência da constituição da hipoteca em ordem a assegurar a cobrança, salvaguardando o crédito tributário. Esse juízo deve ser formulado no âmbito de um procedimento específico, “enxertado” no processo executivo, estando a respectiva decisão sujeita aos princípios que regem os procedimentos tributários previstos nos artºs. 55.º e segs. da LGT e, entre eles, ao princípio da participação consagrado no art. 60.º.”

E ainda o Acórdão do STA de 11/04/2018 – proc. 0312/18 (entre outros) “I - No processo de execução fiscal – que tem natureza judicial (cfr. art. 103.º da LGT) – a AT intervém quer como órgão de execução fiscal, praticando actos processuais sem natureza jurisdicional, quer como sujeito activo da relação tributária que deu origem à dívida exequenda, praticando actos administrativos tributários.
II - A decisão do órgão da execução fiscal de constituir de garantia mediante hipoteca legal [prevista na alínea b) do n.º 2 do art. 50.º da LGT e no n.º 1 do art. 195.º do CPPT] deve qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, inserido no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias.
III - Essa decisão fica, por isso, sujeita aos princípios e normas que disciplinam a actividade administrativa tributária, designadamente aos que se referem ao princípio da participação, a assegurar mediante a notificação para o exercício do direito de audiência prévia (cfr. art. 60.º da LGT, art. 45.º do CPPT e art. 121.º do CPA).”

Desta forma, pese embora a decisão de constituição da hipoteca legal esteja sujeita ao princípio da participação, mediante a notificação para o exercício do direito de audiência prévia (cfr. art. 60.º da LGT, art. 45.º do CPPT e art. 121.º do CPA), in casu, o Tribunal a quo sufragou o entendimento de que estava preenchido o requisito previsto na alínea c) do nº 1 do art. 124º do CPA para a dispensa da audiência prévia.

Em sede recursiva, a Recorrente nas suas conclusões afirma que:
b) A constituição de hipoteca legal é regida pelo CPA, logo é um ato administrativo, sujeito a direito de audição do art.º 60º da LGT, e, a fundamentação nos termos do artigo 77º da LGT, e não está devidamente fundamentada;
c) Mas o executado não foi notificado para o exercício do direito de audição o que torna todo o demais processado nulo;
d) O executado também não foi notificado do teor do projeto do auto de hipoteca legal, e, quando falamos do teor do projeto, subentendemos que deveria ter sido submetido a direito de audição;

Vejamos então.

Tal como afirmámos supra, o Tribunal a quo considerou que no caso concreto estavam preenchidos os requisitos enunciados na alínea c) do art. 124º do CPA, vertendo o seguinte discurso fundamentador, na parte que ora interessa:
“(…) Importa não descurar, todavia, que o CPA concede ao responsável pela direção do procedimento poderes discricionários para, querendo, dispensar a fase da audiência prévia nos casos previstos nas diversas alíneas do n.º 1, do artigo 124.º do CPA (“pode não proceder à audiência dos interessados”).
Ou seja, vislumbra-se a possibilidade legal abstrata de ser dispensada a audiência dos interessados, hipótese que também é equacionada e avalizada pela nossa jurisprudência (cfr. acórdão do STA de 11/04/2018, processo n.º 0312/18).
Todavia, a ontologia fundamental do direito à participação dos interessados nas decisões administrativas que os possam lesar, que é uma obrigação legal que existe sempre, impõe uma interpretação restritiva da apontada norma.
Mais concretamente, no caso dos autos importa aferir se a justificação alvitrada pelo IGFSS, IP para dispensar a audiência prévia ao ato de constituição da hipoteca é ou não aceitável e legalmente admissível, o que passará pela necessidade de apreciar a validade do “juízo de prognose” por aquela efetuado quanto à possibilidade abstrata de “a sua realização comprometer totalmente a utilidade da decisão ou a possibilidade da sua execução, bastando que se trate de um prejuízo significativo, no que respeita a aspetos fundamentais da decisão” (cfr. Esteves de Oliveira, Costa Gonçalves e Pacheco do Amorim, Código de Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Almedina, 2007, p. 464).
Nessa tarefa, importa ter como pano de fundo a teleologia fundamental da norma ínsita no artigo 195.º do CPPT, que possibilita ao Órgão da Execução Fiscal a constituição de hipoteca legal “[q]uando o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável” (cfr. artigo 50.º, n.º 2, alínea b) da LGT), ou seja, quando “esteja em perigo a possibilidade de cobrança da dívida”, o que passará pela aferição não do montante em causa, “mas sim da necessidade (…) e não inconveniência dessa constituição para assegurar a efectivação da cobrança” (Lopes de Sousa, CPPT Anotado e Comentado, vol. III, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 392.
Por fim, e como referencial máximo, não pode descurar-se a noção de hipoteca legal que desponta do artigo 704.º do CC, que dita que “As hipotecas legais resultam imediatamente da lei, sem dependência da vontade das partes, e podem constituir-se desde que exista a obrigação a que servem de segurança”. Neste jaez, ensina a doutrina que “[a] razão se ser destas hipotecas está, como escreve Vaz Serra, «na necessidade de garantir determinados credores (o Estado ou outras pessoas de direito público; pessoas privadas da administração dos seus bens, etc.), que não poderiam obter o consentimento do devedor para uma hipoteca convencional ou só o poderiam obter com dificuldade ou sacrificando a natural delicadeza existente nas relações entre credor e devedor»” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, p. 726) Ora, no caso sub judice, depreende-se da leitura do despacho que determinou a constituição da hipoteca legal, ora sob escrutínio, que, depois de exposto o contexto em que se encontra a sociedade devedora originária – com avultadas e crescentes dívidas à segurança social –, a fase da audiência prévia foi dispensada com fundamento na urgência da decisão (alínea a), do n.º 1, do artigo 124.º do CPA), na “imperatividade de o órgão da execução fiscal tramitar os presentes autos com observância do prazo previsto no artigo 177.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, bem como a finalidade pública subjacente ao sucesso na cobrança dos valores em dívida, nomeadamente a sustentabilidade financeira do sistema de Segurança Social”, mais antecipando que “é razoável prever, em função das regras da experiência comum, que a eventual realização da audiência dos interessados no caso concreto origine uma eventual alienação ou oneração do património imobiliário do executado (…) e, com isso, ficar comprometida a execução do presente despacho (cfr. alínea c), do n.º 1, do artigo 124.º do Código de Procedimento Administrativo (…)” –
No que concerne a tal decisão (discricionária) de dispensa de audiência prévia, a narrativa do Órgão da Execução Fiscal não padece de erro grave ou notório na apreciação que fez ao circunstancialismo que enforma o caso concreto e, particularmente, no que se reporta à necessidade de acautelar a boa cobrança do crédito exequendo, surgindo fundamentado, em termos factualmente e legalmente sólidos, o motivo pelo qual assim se decidiu (cfr. ponto 12.º da p.i.).
Efetivamente,
(i) em face à invocada crescente acumulação de dívidas ao erário público pela sociedade executada originária (cfr. alínea E) dos factos provados);
(ii) perante as manifestas dificuldades económico-financeiras da sociedade devedora originária, de que a ausência/insuficiência de património suscetível de ser penhorado é fenómeno sintomático (cfr. alínea C) dos factos provados);
iii) atendendo às regras da via e da experiência comum que revelam que em grande parte dos casos e perante a possibilidade abstrata de acionamento do instituto da responsabilidade subsidiária pelas dívidas de outrem, o potencial responsável subsidiário tenta proteger o seu património pessoal, dissipando-o pelas mais diversas formas, de modo a evitar que este seja onerado;
(iv) e tendo em conta, sobremaneira, o caráter indisponível dos créditos tributários (artigo 30.º, n.º 2, da LGT) e a necessidade de acautelar a sustentabilidade financeira do ISS, IP,
A justificação do órgão da execução fiscal para dispensar a audiência prévia, radicada essencialmente na alínea c), do n.º 1, do artigo 124.º do CPA, revela, pois, factos consistentes e subsumíveis a este preceito legal (a notificação da Reclamante para exercer o seu direito de audição antes da constituição da hipoteca legal poderia comprometer, com elevada probabilidade, a execução ou a utilidade da decisão), pelo que tal dispensa afigura-se-nos prudente e sensata, particularmente quando efetuamos um balanceamento de valores entre, por um lado, o direito (particular) da Reclamante a ser ouvida e a participar no procedimento e, por outro, o pagamento de um crédito pertencente ao erário público e que, portanto, a todos pertence e visa satisfazer as necessidades financeiras do Estado/ a sustentabilidade das medidas de justiça social.
É que, convém não esquecer, “[a] tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento” (cfr. artigo 5.º, n.º 1, da LGT) – cfr. artigo 103.º da CRP.
Nessa medida, “[c]onstitui obrigação principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da dívida tributária” (cfr. artigo 31.º, n.º 1, da LGT), que verterá para o erário público e com vista à satisfação das apontadas necessidades e à promoção dos sobreditos valores.
Compreende-se, por esse motivo, que o crédito tributário seja “indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributárias” (artigo 30.º, n.º 2, da LGT) – exigência de tal forma premente que o Legislador realça expressamente que o disposto na citada disposição legal “prevalece sobre qualquer legislação especial”.
Outrossim, é pelos fundamentos elencados nos parágrafos que antecedem que o n.º 3 do artigo 36.º da LGT é perentório ao estabelecer que a Administração “não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei” (cfr. também, o n.º 3 do artigo 85.º do CPPT).
Quer-se com isto evidenciar, pois, que no balanceamento de valores em litígio – por um lado, o direito da Reclamante a participar nas decisões administrativas que lhe digam respeito e que o afetem particularmente e, por outro, a boa cobrança dos créditos tributários, que a todos pertencem e que compõem o erário público e visam satisfazer as necessidades financeiras do Estado e a própria sustentabilidade do sistema de segurança social, com vista à promoção e efetivação da justiça social – deverá prevalecer este último aspeto, especialmente num caso, como o dos autos, em que nem sequer vem apontado qualquer vício material (designadamente, erro sobre os pressupostos) à decisão de dispensa de audição prévia, ou seja, num caso em que não vêm demonstrados, sequer alegados, ainda que minimamente, quaisquer factos que possam sugerir que, nesse particular circunstancialismo, o exercício desse dever de participação se sobrepunha ao interesse público na adoção de medidas destinadas à boa e eficaz cobrança dos créditos públicos.
Com efeito, a Reclamante limita-se a invocar genericamente a preterição da audiência prévia, mas nada aduz, em concreto, no que concerne aos motivos pelos quais considera relevante a sua participação no procedimento de formação do ato (tendentes a demonstrar, designadamente, que a dispensa da audiência prévia colocou em causa o seu direito de defesa contra tal ato e, concretamente, que, se tivesse tipo a oportunidade de participar no procedimento de formação desse ato, a decisão da Administração seria outra) – sendo ademais certo que a presente Reclamação Judicial seria o locus adequado para o Reclamante suscitar quaisquer vícios materiais da hipoteca legal em crise nos autos, prerrogativa que optou por não exercer.
Pelo exposto, tendo em conta que à Administração assiste o poder discricionário de dispensar de audição prévia, contando que respeite os critérios consagrados no n.º 1, do artigo 124.º do CPA; considerando que, no caso concreto, se vislumbra que a decisão de dispensa de audiência prévia vem justificada pela necessidade, factual e legalmente alicerçada, de acautelar a eficácia da garantia de pagamento da dívida exequenda e a utilidade da decisão de constituição da hipoteca (pois caso contrário, correr-se-ia o risco real e sério de dissipação do bem no período compreendido entre a concessão de prazo para audiência prévia e a decisão final do procedimento, com prejuízo para a boa cobrança do crédito exequendo – cfr. alínea c), do n.º 1, do artigo 124.º do CPA), e atendendo a que, por ultimo, a Reclamante não assaca qualquer vício material à decisão de dispensa (ou seja, não evidencia qualquer aspeto que confira caráter prioritário e imprescindível à sua audição prévia), o Tribunal considera que o ato reclamado não é passível do juízo de censura que lhe vem imputados nos autos, por preterição do direito de audição, pelo que a Reclamação improcede nesta parte.”. (fim de citação)

O art. 124º do Código de Procedimento Administrativo, sob a epígrafe “Dispensa de audiência dos interessados” determina o seguinte:
“1 - O responsável pela direção do procedimento pode não proceder à audiência dos interessados quando:
a) A decisão seja urgente;
b) Os interessados tenham solicitado o adiamento a que se refere o n.º 2 do artigo anterior e, por facto imputável a eles, não tenha sido possível fixar-se nova data nos termos do n.º 3 do mesmo artigo;
c) Seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão;
d) O número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada;
e) Os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
f) Os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão inteiramente favorável aos interessados.
2 - Nas situações previstas no número anterior, a decisão final deve indicar as razões da não realização da audiência.”. (destacado nosso).

No caso em apreço o órgão de execução fiscal determinou a constituição da hipoteca legal no âmbito do processo executivo nº 1001200601074113 e apensos, com o teor transcrito na alínea E) dos factos assentes e que ora igualmente transcrevemos:







1




(…)


Tratando-se da decisão final de constituição da hipoteca legal, e ocorrendo a dispensa da audição prévia nos termos do transcrito art. 124º do CPA, em cumprimento do disposto no seu nº 2, o órgão de execução fiscal mencionou expressamente as razões para a dispensa da audição prévia, que se mostram consentâneas com o disposto na alínea c) do nº 1 da referida disposição legal.

Na verdade, como o Tribunal a quo salientou, assiste ao órgão de execução fiscal o poder discricionário de dispensar a audição prévia, respeitando os condicionalismos enunciados no art. 124º do CPA, e, atendendo que no caso em apreço a dispensa de audiência prévia assenta na necessidade de “acautelar a eficácia da garantia de pagamento da dívida exequenda e a utilidade da decisão de constituição da hipoteca (pois caso contrário, correr-se-ia o risco real e sério de dissipação do bem no período compreendido entre a concessão de prazo para audiência prévia e a decisão final do procedimento, com prejuízo para a boa cobrança do crédito exequendo – cfr. alínea c), do n.º 1, do artigo 124.º do CPA)”, e, considerando ainda que a Recorrente não invocou qualquer vício material da decisão de dispensa, limitando-se a invocar apenas o seu direito de audição prévia, improcede o fundamento invocado quanto à preterição do direito de audição prévia.

E perante o exposto mostra-se desnecessária a apreciação da alegada falta de notificação do projeto de hipoteca legal.

Prosseguindo.

Alega a Recorrente a falta ou insuficiência de fundamentação do ato reclamado.

Também aqui entendemos que não lhe assiste razão.

A Administração Tributária tem o dever de fundamentar os atos praticados de acordo com o princípio consagrado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77 º da LGT.

O direito à fundamentação tem consagração constitucional como decorre do nº 3 do art. 268º da CRP garantindo aos administrados uma fundamentação expressa e acessível em relação a todos os atos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos. Este princípio encontra-se ainda densificado quanto aos atos tributários no art. 77º da LGT, ao consagrar o seguinte:
1. A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.
2 - A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.
(…)”.

A jurisprudência tem entendido de forma consensual que “II- O acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.
III - Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma muito sintética, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do acto.” (cfr. entre outros Ac. STA de 12/03/2014 – proc. 01674/13).

E como se afirma no recente Acórdão do STA de 12/02/2020 - proc. 01661/14.9BEPRT “A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos arts. 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.
Para que a fundamentação possa ser considerada suficiente terá de ser compreensível para um destinatário médio, o que exige clareza nas razões de facto e de direito apresentadas.

Como vem afirmando a jurisprudência e a doutrina, o ato encontra-se suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo seguido pelo agente para a sua prática.

A fundamentação do ato deve ser contextual e integrada no próprio ato (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do ato um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação), equivalendo à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato.

Assim, a fundamentação será insuficiente se o seu conteúdo não é bastante para explicar as razões por que foi tomada a decisão, e a fundamentação deve ser suficiente, no sentido de que deve conter todas as razões que expliquem convenientemente a decisão final.

No caso em apreço, do teor do despacho de constituição de hipoteca legal transcrito na alínea E) do probatório resulta evidente a sua fundamentação, encontrando-se enunciadas as razões de facto bem como o suporte legal para a constituição dessa garantia (pontos 1 a 3 do mencionado despacho), sendo que igualmente está fundamentada de facto e de direito a dispensa da audição prévia, razão pela qual improcede a alegada falta ou insuficiente fundamentação.

Quanto à falta de notificação do auto de hipoteca legal, importa salientar que de acordo com o nº 5 do art. 195º do CPPT - “O penhor constitui-se por via eletrónica, ou por auto e é notificado ao devedor e nos termos previstos para a citação”. Desta forma a obrigatoriedade de notificação apenas incide sobre o penhor e não sobre a hipoteca legal como pretende a Recorrente.

E como refere a sentença recorrida “O único ato que importava notificar à Reclamante era o despacho proferido pelo IGFSS, IP em 17/03/2025, no qual é ordenado que seja solicitado à Conservatória do Registo Predial o registo na hipoteca legal em crise nos autos a favor da Segurança Social e figuram enunciados os fundamentos de facto e de direito em que se alicerça tal decisão, sendo certo que é a própria Reclamante quem, afinal, acaba por reconhecer textualmente a notificação do apontado despacho em 09/05/2025 (cfr. ponto 1.º da p.i.).”.

Por fim vem a Recorrente invocar erro quanto aos juros moratórios defendendo que o seu cálculo está dependente do pagamento.

De acordo com o entendimento vertido no Acórdão do Pleno da Seção do Contencioso Tributário do STA, de 13/04/2011, processo n.º 0361/10 – “Os juros de mora integram-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados – embora com autonomia até ao momento do pagamento – decorrendo a sua exigência legal da falta de pagamento voluntário da dívida exequenda”.

No caso em apreço a dívida exequenda é referente a Contribuições e Cotizações para a Segurança Social de vários períodos temporais do ano de 2005 tendo sido apurados juros de mora relativamente a cada um dos períodos como resulta da alínea A) do probatório, encontrando-se devidamente fundamentados no ponto 3.5 do despacho ora reclamado (cfr. alínea E) do probatório).

O regime legal quanto ao pagamento de juros de mora está previsto no artigo 44.º da LGT e, em termos especiais, no Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio (com as alterações introduzidas pelo Decreto‑Lei n.º 275/82 de 24 de agosto), no artigo 16.º do Decreto‑Lei n.º 411/91, no Decreto-lei n.º 73/99, de 16 de março (cfr. artigo 12.º do CC) e nos artigos 211.º e 212.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (entre outros diplomas legais e regulamentares, identificados no despacho reclamado) que preveem, de forma uniforme ao longo do tempo, que são legalmente devidos juros de mora pela falta de pagamento das contribuições e cotizações à segurança social, os quais são apurados por cada mês de calendário ou fração e não, conforme defende a Reclamante, apenas no momento do pagamento da dívida exequenda.

Por tudo o que vem exposto negamos provimento ao recurso por se mostrarem totalmente improcedentes todos os fundamentos invocados pela Recorrente quanto ao erro de julgamento por parte do Tribunal a quo.
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V- DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Lisboa, 30 de setembro de 2025
Luisa Soares
Lurdes Toscano
Isabel Vaz Fernandes