Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:45/25.8BEPDL
Secção:CA
Data do Acordão:11/06/2025
Relator:ANA CARLA TELES DUARTE PALMA
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL; INTEMPESTIVIDADE; DOCUMENTOS CONFORMADORES DO PROCEDIMENTO.
Sumário:I - O âmbito de aplicação do artigo 103.º cinge-se, nos termos do que se dispõe no n.º 1, aos pedidos dirigidos à declaração de ilegalidade das disposições contidas no programa do concurso, no caderno de encargos ou em qualquer outro documento conformador do procedimento de formação de contrato.

II - Para além do programa do concurso, ou do procedimento, e do caderno de encargos, é incontroversa a abrangência, pela disciplina enunciada, da impugnação das peças do procedimento, enunciadas no artigo 40.º, do CCP, ainda que em alguns casos, não se lhes reconheça carácter normativo.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de Contratos Públicos
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos, do Tribunal Central Administrativo Sul.

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Relatório

B…………..-desenho e ……. Lda., intentou contra a Associação ……….. e contra a N………….. – Unpipessoal Lda e a S………………………………. – events e e………….., Lda, ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual na qual peticionou, a final, o seguinte:

«-Declarar anulados os atos administrativos "relatório final" e "decisão de adjudicação", ambos de 17/02/2025, praticados no âmbito do Concurso Público com publicação no Jornal Oficial da UE para a aquisição de serviços no âmbito da participação do destino turístico Açores na Bolsa de Turismo de Lisboa 2025;

- Condenar os exmos. membros do Júri do concurso controvertido a elaborar novo relatório final que fundamente conforme as a exposição contida na audiência prévia praticada pela Autora relativamente ao relatório preliminar de 08/02/2025, que proponha a adjudicação da proposta apresentada pela concorrente B..................... - DESENHO E ………….., LDA;

- Condenar a Ré Associação Visit Azores a praticar novo ato de decisão de adjudicação da proposta apresentada pela concorrente B..................... - DESENHO E ………., LDA, aqui Autora.

- subsidiariamente, ser a Autora Indemnizada.».

Por sentença, proferida pelo TAF de Ponta Delgada, foi julgada procedente a exceção dilatória da intempestividade da prática de ato processual e determinada a absolvição da entidade demandada e das contrainteressadas da instância.

Inconformada, a autora veio interpor recurso para este Tribunal Central Administrativo Sul e concluiu a alegação nos termos seguintes:

«A) A douta sentença recorrida errou ao julgar procedente a exceção de intempestividade, absolvendo da instância a entidade demandada e as contra-interessadas.

B) A Recorrente, na sua petição inicial, formulou pedidos expressos de anulação do relatório final e da decisão de adjudicação de 17/02/2025, praticados no âmbito do concurso público em causa.

C) Tais atos constituem documentos conformadores do procedimento, na aceção do artigo 103.9 do OPTA, porquanto definem, estruturam e condicionam o resultado do concurso.

D) A sentença recorrida desconsiderou que, ao longo da petição inicial, a Recorrente identificou as normas violadas (arts. 124.9, 148.9 do CCP; arts. 152.9 e 153.9 do CPA; princípios da tutela da confiança e da transparência) e invocou jurisprudência pertinente do STA e dos TCA.

E) Resulta inequívoco que a Recorrente sempre imputou ilegalidades ao relatório final e à decisão de adjudicação, designadamente por violação do dever de fundamentação, da ponderação da audiência prévia e por alteração arbitrária da valoração das propostas.

F) A jurisprudência e a doutrina (v.g. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cedilha) reconhecem como impugnáveis, nos termos do art. 103.9 do OPTA, os relatórios do júri (intercalar e final) e a decisão de adjudicação.

G) A decisão recorrida, ao entender que não havia impugnação de documentos conformadores e aplicar, sem mais, o artigo 101.9 OPTA, incorreu em errada interpretação e aplicação da lei.

H) Impunha-se reconhecer que o prazo aplicável é o previsto no artigo 103.9 OPTA, não sendo de admitir a intempestividade declarada.

I) Deve, assim, a sentença ser revogada e substituída por decisão que ordene o prosseguimento dos autos para apreciação de mérito dos pedidos formulados pela Recorrente.

Termos em que deverá o presente recurso ser recebido e, consequentemente, ser declarada ilegal e, consequentemente, revogada a sentença recorrida por errónea aplicação da lei, com as demais consequências legais, fazendo-se desta forma inteira e sã JUSTIÇA!».

A entidade demandada contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:

«A. A acção de contencioso pré-contratual em causa tem por objecto exclusivo a impugnação do relatório final e do acto de adjudicação, não se verificando qualquer impugnação autónoma ou fundamentada dos documentos conformadores do procedimento concursal.

B. A Recorrente nunca identificou normas concursais que considerasse ilegais, nem formulou qualquer argumentação no sentido da invalidade das peças do procedimento, requisito essencial à aplicação do prazo previsto no artigo 103.° do CPTA.

C. O acto de adjudicação, sendo um acto final do procedimento e directamente lesivo, não pode ser qualificado como documento conformador do procedimento, à luz da doutrina e jurisprudência.

D. O prazo aplicável à presente acção é, pois, o previsto no artigo 101.° do CPTA, ou seja, o prazo de um mês contado da notificação do acto de adjudicação.

E. A acção foi proposta para além desse prazo legal, estando, por isso, ferida de intempestividade, o que constitui uma excepção dilatória de conhecimento obrigatório, conducente à absolvição da Recorrida da instância.

F. Mesmo que se entendesse (por mera hipótese) que estaria em causa uma impugnação de documentos conformadores, a Recorrente não cumpriu o ónus de impugnação autónoma e tempestiva dos actos de aplicação, exigido pelo n.° 3 do artigo 103.° do CPTA.

G. Deve, pois, ser integralmente mantida a sentença recorrida, por correcta aplicação do regime legal aplicável ao contencioso pré-contratual, não podendo a Recorrente beneficiar de um prazo que manifestamente não lhe é aplicável.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. Mui doutamente suprirão, em face da fundamentação exposta, deve o presente recurso ser julgado improcedente.».


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O Ministério Público foi notificado para os efeitos previstos no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA.

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Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

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Questões a decidir

O objeto do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas (cfr. artigos 635.º n.º 4, 637.º n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC), é a sentença, proferida pelo TAF, que julgou procedente a exceção da intempestividade da prática do ato processual e absolveu, por isso, a entidade demandada e as contrainteressadas da instância, cabendo a este tribunal de apelação apreciar se incorreu em erro de julgamento o tribunal a quo ao julgar aplicável ao caso o prazo de propositura da ação previsto no artigo 101.º, do CPTA.


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Fundamentação

O tribunal a quo, na sentença recorrida, considerou provados os seguintes factos:

1. Foi promovido pela ASSOCIAÇÃO ……………….., o procedimento précontratual Concurso Público para aquisição de serviços no âmbito da participação do Destino Turístico Açores na Bolsa de Turismo de Lisboa 2025 [cfr. Processo Administrativo (PA)];

2. A ora Autora apresentou proposta no âmbito do procedimento pré-contratual identificado no ponto antecedente, no valor total de € 568.874,00 [cfr. PA];

3. Na sequência do relatório preliminar e relatório final elaborados pelo júri do procedimento pré-contratual, cujos teores se dão por integralmente reproduzidos, no que ora releva, foi proposta a adjudicação do Concurso à Concorrente S…….……… —EVENTS & ……………., LDA. [cfr. PA];

4. Por deliberação do Conselho de Administração da Entidade Demandada, de 17/02/2025, foi autorizada a adjudicação do Concurso, tal como proposta pelo júri [cfr. PA];

5. Em 18/02/2025, foi publicada na plataforma eletrónica Acingov a decisão de adjudicação, com o seguinte teor:

(imagem)

[cfr. PA e documentos juntos pela Autora com o requerimento apresentado em 01/04/2025].

6. Em 18/02/2025 a Autora tomou conhecimento da decisão de adjudicação [cfr. documentos juntos pela Autora com o requerimento apresentado em 01/04/2025];

7. Em 20/03/2025, a Autora apresentou neste Tribunal a presente ação contencioso pré-contratual, que foi distribuída sob o n.° 45/25.8BEPDL. [cfr. SITAF].


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Inexistem factos a registar como não provados, com interesse para a decisão.

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A convicção do tribunal que permitiu dar como provados os factos acima identificados assentou no teor dos documentos aí especificados, conjugados com a posição processual expressamente assumida pela Autora.


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Em litígio está a questão de saber se ao caso é aplicável o prazo de propositura da ação previsto no artigo 101.º, do CPTA, que é de 1 mês, ou, pelo contrário, como sustentado pela recorrente, o previsto no artigo 103.º para a impugnação dos documentos conformadores do procedimento.

A recorrente, nas conclusões da alegação de recurso, veio sustentar que os atos impugnados – relatório final e decisão de adjudicação – constituem documentos conformadores do procedimento, por definirem estruturarem e condicionarem o resultado do concurso, imputando à sentença erro de julgamento por ter considerado aplicável ao caso o prazo previsto no artigo 101.º, do CPTA, desconsiderando a disciplina prevista no artigo 103.º.

Vejamos.

No artigo 101.º, do CPTA determina-se que as ações de contencioso pré-contratual, que, nos termos do que se dispõe no artigo 100.º, são aquelas que têm por objeto a impugnação, ou condenação à prática de atos administrativos praticados no âmbito de procedimentos de formação de contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços, devem ser intentadas no prazo de um mês, sendo este o prazo aplicável, independentemente do desvalor jurídico que venha a resultar da causa de invalidade concretamente invocada (cfr., entre outros, o Acórdão proferido pelo pleno da secção de contencioso administrativo do Supremo Tribunal Administrativo a 12.12.2006 (P.º 528/06)).

Quando esteja em causa a impugnação de documentos conformadores do procedimento, ou seja, quando a ação se dirija à declaração de ilegalidade de disposições contidas no programa do concurso, no caderno de encargos ou em qualquer outro documento conformador do procedimento de formação de contrato, designadamente com fundamento na ilegalidade das especificações técnicas, económicas ou financeiras que constem desses documentos, nos termos previstos no artigo 103.º, a ação pode ser proposta durante a pendência do procedimento a que os documentos se referem, sem prejuízo do ónus de impugnação autónoma dos atos de aplicação respetivos. É o que se determina no n.º 3, do artigo 103.º.

A recorrente vem sustentar a alegação recursiva na tese de que quer o relatório final quer a decisão de adjudicação se integram na previsão do artigo 103.º, por se incluírem no conceito de documentos conformadores do procedimento.

Mas esse entendimento não tem suporte na lei.

O âmbito de aplicação do artigo 103.º cinge-se, nos termos do que se dispõe no n.º 1, aos pedidos dirigidos à declaração de ilegalidade das disposições contidas no programa do concurso, no caderno de encargos ou em qualquer outro documento conformador do procedimento de formação de contrato. Para além do programa do concurso, ou do procedimento, e do caderno de encargos, é incontroversa a abrangência, pela disciplina enunciada, da impugnação das peças do procedimento, enunciadas no artigo 40.º, do CCP, ainda que em alguns casos, não se lhes reconheça carácter normativo. O mesmo se tem entendido quanto a outros atos que afetem o conteúdo dessas peças (cfr. Pedro Sanchez, Direito da Contratação Pública, vol. II, AAFDL editora, 2020, pp. 865-866).

Não é o caso dos atos impugnados pela recorrente nos presentes autos. O ato de adjudicação e o relatório final que o sustentou não se enquadram na categoria de documentos conformadores do procedimento a que se refere o artigo 103.º, do CPTA, pois que são destituídos de aptidão reguladora e conformadora dos termos a que vai obedecer o procedimento de formação de contratos.

Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, «Ao incluir no elenco dos atos normativos pré-contratuais ‘qualquer outro documento conformador do procedimento’, o preceito em análise pretende, entretanto, referir-se às restantes peças do procedimento, que, nos termos do artigo 40.º do CCP, devam ser aprovadas e publicitadas pela entidade adjudicante, aí se incluindo o convite à apresentação de propostas, que, em certos tipos de procedimento, se reveste de relevo autónomo. (…)» (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, Almedina, p. 871).

Referiu-se na sentença recorrida que «(…)

O prazo de um mês que resulta do artigo 101.° do OPTA conta-se nos termos da alínea c) do artigo 279.° do Código Civil, transferindo-se o seu termo, quando o mesmo termine em férias judiciais ou em dia em que os tribunais estiverem encerrados, para o 1.° dia útil seguinte (cfr. n.° 2 do artigo 58.°, conjugado com a alínea c) do n.° 1 do artigo 97.°, ambos do CPTA).

Na verdade, "[e]mbora a lei não faça expressa remissão para essa norma, deve considerar-se aplicável o disposto no artigo 58. °, n.º 2, que manda contar o prazo de impugnação nos termos do artigo 279. ° do CC. Esta disposição é aplicável ao contencioso pré-contratual por efeito do disposto no n.º 1 do artigo 97.°" (vide Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2021, págs. 853 e 854). De igual forma, veja-se o ponto III. do sumário do acórdão proferido, em 16.4.2020, pelo Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), no âmbito do processo n.º 885/19.7BEALM, disponível em www.dcisi.pt: «III. Embora a norma do artigo 101. ° do CPTA não preveja a remissão para o artigo 58. °, n.º 2 do citado Código, não se vislumbra qualquer razão para que a mesma não seja aplicável, por aplicação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 97.° do CPTA

Assim, de acordo com a alínea c) do artigo 279. ° do Código Civil, o termo do prazo de 1 mês para a Autora intentar a ação de impugnação do ato de adjudicação sub judice corresponde ao dia 18 de março de 2025 (terça-feira).

Tendo a presente ação sido intentada em 20 de março de 2025 [cfr. facto 7. supra], é manifesto que, à data em que a mesma foi proposta, já havia caducado o direito de ação da Autora. (…)»

O julgado é de acompanhar integralmente.

Compulsada a petição inicial verifica-se que a autora, não obstante ter referido, no introito, a propositura de uma ação de impugnação dos documentos conformadores do procedimento, veio a peticionar, a final a i) anulação dos atos administrativos “relatório final” e “decisão de adjudicação, ambos de 17/02/2025; ii) a condenação dos membros do júri a elaborar novo relatório final que fundamente conforme a exposição contida na audiência prévia praticada pela autora relativamente ao relatório preliminar de 08/02/2025, que proponha a adjudicação da proposta apresentada pela concorrente B.....................-desenho e arquitetura Lda., e iii) a condenação da ré a praticar novo ato de decisão de adjudicação da proposta apresentada pela concorrente B.....................-desenho e arquitetura Lda., sendo manifesto que a ação não foi dirigida à impugnação de qualquer documento conformador do procedimento, nos termos explicitados acima.

Sendo a única questão em controvérsia a de saber se os atos impugnados nos autos se encontram abrangidos pela disciplina prevista para a impugnação dos documentos conformadores do procedimento, prevista no artigo 103.º, do CPTA, designadamente no que ao prazo de propositura da ação respeita, relativamente à qual se concluiu negativamente, é forçoso concluir, como o tribunal a quo, que o prazo aplicável era o prazo de 1 mês, previsto no artigo 101.º, que se mostrava ultrapassado na data em que a presente ação foi proposta, a 20 de março de 2025, atenta a data em que a autora, aqui recorrente, foi notificada da decisão de adjudicação – 18 de fevereiro.

Deve, assim, ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida.

As custas serão suportadas pela recorrente (artigo 527.º, do CPC).

Decisão

Por tudo o que vem de ser expendido, acordam em conferência os juízes que compõem a presente formação da subsecção de Contratos Públicos da secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente (artigo 527.º, do CPC).

Registe e notifique.

Lisboa, 6 de novembro de 2025


Ana Carla Teles Duarte Palma (relatora)

Paula de Ferreirinha Loureiro

Helena Telo Afonso