Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1304/17.9BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:01/09/2025
Relator:ÂNGELA CERDEIRA
Descritores:DESISTÊNCIA DO PEDIDO
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
RESPONSABILIDADE PELAS CUSTAS
PRINCÍPIO DA BOA FÉ
Sumário:I - A extinção do direito substantivo constitui um efeito “ex lege” da desistência do pedido, não carecendo por isso de decisão judicial a reconhecê-lo expressamente;
II - Resultando expressamente da lei que, no caso de desistência do pedido, as custas são suportadas pelo desistente, para que a aplicação de tal norma fosse afastada teriam que ser demonstrados factos que consubstanciassem um comportamento, por parte da AT, manifestamente atentatório do princípio da boa fé.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I – RELATÓRIO

A Fazenda Pública, doravante Recorrente, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em 28.05.2024, no âmbito da Impugnação judicial intentada por A....... Limited contra a liquidação de IRC n.º …….03, referente ao ano de 2012, de montante de 202.729,12 € e que julgou extinta a instância, por desistência do pedido, condenando em custas a Fazenda Pública.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

«CONCLUSÕES:

4.1. Visa o presente recurso reagir contra a Douta decisão que julgou extinta a instância, por desistência do pedido, na Impugnação judicial, intentada pela ora recorrida contra a liquidação de IRC n.º ..........03, referente ao ano de 2012, de montante de 202.729,12 €.

4.2. Como fundamentos da sua impugnação, invoca a demandante, os factos constantes do seu petitório inicial, que aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos.

4.3. Conclui o seu articulado inicial peticionando a procedência da impugnação, por provada e, em consequência, a anulação da liquidação impugnada e a consequente condenação da Administração Tributária no reembolso à impugnante do montante de 202.729,12 €. Mais peticionou o pagamento de juros indemnizatórios.

4.4. O Ilustre Tribunal “a quo” julgou extinta a instância impugnatória em questão, por força da desistência do pedido apresenta pela impugnante, no seu requerimento apresentado nos autos em 15-04-2024, mais condenando a Administração Tributária no pagamento das custas do presente processo de impugnação.

4.5. Ora, decisão ora recorrida, não perfilhou, com o devido respeito, e salvo sempre melhor entendimento, a acertada solução jurídica, in totum, no caso sub-judice.

Senão vejamos:

4.6. Entendeu o Ilustre Tribunal recorrido, na fundamentação da decisão ora em crise, que, de acordo com a factualidade constante dos autos, a instância impugnatória se extinguia, por desistência do pedido formulado pela impugnante, nos termos do disposto nos artigos 285.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, e 277.º, al. d), todos do CPC, ex vi do artigo 2.º, al. e), do CPPT.

Por outro lado,

4.7. e no que à condenação por custas do processo diz respeito, considerou o Ilustre Tribunal recorrido que “… não obstante o disposto no n.º 1 do artigo 537.º do CPC, de acordo com o qual «[q]uando a causa termine por desistência ou confissão, as custas são pagas pela parte que desistir ou confessar»; serão, no caso, da responsabilidade da pela Fazenda Pública, que, no âmbito do PA a que se refere o artigo 24.º da CDT, procedeu à anulação da liquidação objeto de impugnação nos presentes autos (IRC de 2012), que não se mostrava conforme com a Convenção, assim dando satisfação àquele que era o pedido dos presentes autos, sendo a «desistência do pedido», como refere a Fazenda Pública, condição legal da executoriedade do referido PA.”.

Ora,

4.8. entende a Fazenda Pública que, por um lado, ao desistir da instância impugnatória a impugnante fez extinguir o seu direito de ação, tendo a desistência do pedido, em consequência, o mesmo efeito que teria uma sentença desfavorável à impugnante. Efetivamente,

4.9. e tal como bem foi entendido pelo Colendo Tribunal da Relação de Évora, no seu Acórdão de 24-11-2022, proferido no âmbito do processo n.º 1514/20.1T8TMR.E1, “A desistência do pedido – a que aqui interessa considerar – tem o mesmo efeito que teria uma sentença desfavorável ao autor, formando a sentença homologatória caso julgado material impeditivo da invocação do mesmo direito noutra ação entre os mesmos sujeitos. O que equivale a dizer que a extinção (ou constituição) da situação jurídica provocada pela desistência do pedido releva em todas as situações nas quais a existência desse direito constitua uma questão prejudicial para a apreciação de um outro objeto.”.

4.10. Assim, e conforme bem se entendeu no citado Acórdão, “Extinguindo-se por desistência o pedido, extingue-se também a relação processual, dado o seu carácter instrumental face ao direito substantivo”, sendo que “A consequência processual é a absolvição do réu do pedido (art. 285º, nº 1, do CPC).”.

Por outro lado,

4.11. no que respeita à condenação por custas do processo, entende a Fazenda Pública que, in casu, atenta a desistência da impugnante do pedido impugnatório e conforme o disposto no n.º 1 do artigo 537.º do CPC, ora aplicável ex vi a alínea e) do artigo 2.º do CPPT, as custas em questão devem ficar a cargo da impugnante, não colhendo a conclusão do Ilustre Tribunal a quo, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, que as custas ficam a cargo da Fazenda Pública uma vez que “… no âmbito do PA a que se refere o artigo 24.º da CDT procedeu à anulação da liquidação objeto de impugnação nos presentes autos (IRC de 2012), que não se mostrava conforme com a Convenção, assim dando satisfação àquele que era o pedido dos presentes autos, sendo a «desistência do pedido», como refere a Fazenda Pública, condição legal da executoriedade do referido PA.”.

Isto porque,

4.12. e em primeiro lugar, a circunstância descrita pelo Ilustre Tribunal recorrido a fim de fundamentar a decisão de responsabilizar a Fazenda Pública pelas custas do processo não tem qualquer suporte legal.

Por outro lado,

4.13. a motivação que determinou a desistente do pedido de tutela jurisdicional – ou seja, a impugnante que, livremente e de sua espontânea vontade desistiu do pedido – perfilha-se ser, de todo, ao nível do processo, indiferente e independente do acto de desistência, abstraindo-se tal motivação do acto de desistência.

Ademais,

4.14. através da decisão final tomada pelo Ilustre Tribunal a quo não se conheceu, sequer, do mérito da impugnação, pois a decisão da impugnante, por esta tomada livre e voluntariamente, note-se, de desistir do pedido de tutela jurisdicional levou a que a impugnante renunciasse ao seu direito de acção, que por sua vez impediu o Tribunal recorrido de poder conhecer e, sequer, pronunciar-se sobre qualquer questão material, de fundo, que se encontrasse em discussão na presente lide impugnatória.

Pelo exposto,

4.15. e no que respeita à condenação por custas, é entendimento da Fazenda Pública que as custas da presente impugnação devem ficar a cargo da impugnante, desistente do pedido de tutela jurisdicional, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 537.º do CPC, ora aplicável ex vi a alínea e) do artigo 2.º do CPPT.

4.16. Ao assim não entender, e ao considerar que as custas processuais da presente impugnação ficam a cargo da Fazenda Pública, o Ilustre Tribunal recorrido, no entendimento da Fazenda Pública, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, incorreu em erro de julgamento, violando ademais o disposto no n.º 1 do artigo 537.º do CPC, ora aplicável ex vi a alínea e) do artigo 2.º do CPPT.

Razão pela qual,

4.17. com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, deve ser revogada a decisão ora recorrida, no que à condenação por custas do processo diz respeito, com as legais consequências daí decorrentes.

Pelo que se peticiona o provimento do presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, assim se fazendo a devida e costumada

JUSTIÇA!»

A Recorrida apresentou contra-alegações, concluindo que “deverá manter-se a Sentença Recorrida, por ter sido proferida nos melhores termos de Direito aplicáveis e suportada na jurisprudência de tribunais superiores e na mais reputada doutrina, não merecendo qualquer censura”.


***

O DIGNO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

***

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A decisão recorrida fez referência às seguintes ocorrências processuais:

«A Impugnante, A....... LIMITED, por Requerimento (434886) Requerimento (006772089) de 12/12/2023 19:53:25, quando se encontrava já agendada a realização da audiência de julgamento, veio informar os autos, além do mais, de que:

«[...] 1. Por a Impugnante e as Autoridades Tributárias Portuguesa e do Reino Unido estarem em desacordo quanto à existência de um estabelecimento estável em Portugal para efeitos da aplicação da Convenção bilateral celebrada entre Portugal e o Reino Unido para evitar a dupla tributação em matéria de impostos sobre o rendimento e sobre o património (“CDT”), foi desencadeado, pela Impugnante, um Procedimento Amigável (“MAP” - Mutual Agreement Procedure), ao abrigo do artigo 24.º da referida CDT).

2. A Impugnante foi recentemente notificada pela Autoridade Tributária do Reino Unido (”HMRC”- His Majesty’s Revenue and Customs) de que “Na sequência de discussões entre as autoridades competentes portuguesas e britânicas, foi acordado que Portugal anulará as correções [em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas] efetuadas relativas aos exercícios de 2012 a 2015”, indicando-se em seguida as correções a que se refere (cfr. notificação que se junta como Documento n.º 1 e dá por reproduzida para todos os efeitos legais).

3. No que importa a estes autos, e nos termos de tal notificação, a AT reconheceu expressamente (nas discussões mantidas com a HMRC) deverem ser anuladas a totalidade das correções na origem do ato contestado nestes autos.

[...]»

(sublinhado nosso).

Após várias insistências deste tribunal no sentido de aferir sobre o desfecho do Procedimento Amigável (PA) a que se refere o artigo 24.º da supra referida CDT, veio a Fazenda Pública informar que:

«[...] a eficácia do acordo alcançado e, consequentemente, a sua executoriedade encontra-se dependente de, entre outras, uma condição suspensiva, cuja verificação se encontra dependente de um comportamento da ora impugnante: a renúncia ao direito a qualquer outra via de recurso, administrativa ou judicial. In casu, a desistência dos pedidos de tutela jurisdicional formulados através dos diversos processos judiciais intentados pela impugnante, respeitantes aos impostos em questão. Condição esta que, até à presente data, não se verificou.» (sublinhado nosso).

Por Requerimento (442121) Requerimento (006840430) de 15/04/2024 19:34:28, veio a Impugnante, expressamente, informar que:

«[...] desiste do pedido impugnatório (que perde por inutilidade superveniente o interesse), mantendo contudo o pedido de condenação da AT em custas, por ter sido a AT, ao não ter reconhecido anteriormente serem indevidas tais correções, a dar causa aos presentes autos e ao pagamento manifestamente indevido do imposto.»

III – APRECIAÇÃO DO RECURSO

A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou extinta a instância, por desistência do pedido, e condenou a Fazenda Pública em custas, insurgindo-se contra estes dois segmentos decisórios.

Da decisão de extinção da instância

O tribunal recorrido declarou extinta a instância, convocando a seguinte fundamentação:

“Nos termos do disposto nos art.ºs 283.º, n.º 1, e 286.º, n.º 2, do CPC, a desistência do pedido é livre, não carecendo de consentimento do réu, ao contrário do que sucede na desistência da instância (cf. n.º 1 do referido preceito legal). No caso, conforme consta da procuração de fls. 53 (do suporte físico dos autos) e substabelecimento junto (cf. Requerimento (442121) Substabelecimento (006840431) de 15/04/2024 19:34:28), os Ilustres Mandatários dispõem de poderes especiais para desistir, pelo que, quer pelo seu objeto, quer pela qualidade dos intervenientes, é válida a desistência do pedido, efetuada por Requerimento (442121) Requerimento (006840430) de 15/04/2024 19:34:28, o que determina a extinção da instância, nos termos do disposto nos artigos 285.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, e 277.º, al. d), todos do CPC, ex vi do artigo 2.º, al. e), do CPPT.”.

Entende a Fazenda Pública que ao desistir da instância impugnatória a impugnante fez extinguir o seu direito de ação, tendo a desistência do pedido, em consequência, o mesmo efeito que teria uma sentença desfavorável à impugnante, ou seja, a absolvição do réu do pedido.

Vejamos.

Conforme resulta do segmento decisório da sentença, a decisão de extinguir a instância fundou-se na validade da desistência do pedido, formulada pela Impugnante, e no disposto no artigo 277º, alínea e) do CPC, segundo o qual “a instância extingue-se” com a “desistência, confissão ou transacção”.

Ora, quer a desistência da instância, quer a desistência do pedido, constituem causas de extinção da instância, ou seja, fazem extinguir o processo, pelo que ao assim decidir a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento.

É certo que, para além de revestir a natureza de um negócio jurídico processual, a desistência do pedido tem igualmente por efeito a extinção do direito substantivo exercitado através da propositura da acção, o que se traduz na absolvição do réu do pedido.

Contudo, não podemos deixar de reconhecer que a sentença recorrida tem implícita essa decisão de absolvição do réu do pedido, na medida em que convoca na sua fundamentação o disposto no artigo 285º, nº 1 do CPC que refere, precisamente, que “a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer”.

Por este motivo, admitimos que o segmento decisório poderia ser mais claro, no sentido de expresso; todavia, não encontramos razão para o alterar, porque a extinção do direito substantivo constitui um efeito “ex lege” da desistência do pedido, não carecendo por isso de decisão judicial a reconhecê-lo expressamente.

Do segmento decisório quanto a custas

É o seguinte o teor da sentença recorrida, no segmento da responsabilidade pelas custas do processo:

Da responsabilidade pelas custas:

As custas, não obstante o disposto no n.º 1 do artigo 537.º do CPC, de acordo com o qual «[q]uando a causa termine por desistência ou confissão, as custas são pagas pela parte que desistir ou confessar»; serão, no caso, da responsabilidade da pela Fazenda Pública, que, no âmbito do PA a que se refere o artigo 24.º da CDT, procedeu à anulação da liquidação objeto de impugnação nos presentes autos (IRC de 2012), que não se mostrava conforme com a Convenção, assim dando satisfação àquele que era o pedido dos presentes autos, sendo a «desistência do pedido», como refere a Fazenda Pública, condição legal da executoriedade do referido PA.”

A Fazenda Pública insurge-se contra o assim decidido, alegando que “a circunstância descrita pelo Ilustre Tribunal recorrido a fim de fundamentar a decisão de responsabilizar a Fazenda Pública pelas custas do processo não tem qualquer suporte legal” e “Por outro lado, a motivação que determinou a desistente do pedido de tutela jurisdicional – ou seja, a impugnante que, livremente e de sua espontânea vontade desistiu do pedido – perfilha-se ser, de todo, ao nível do processo, indiferente e independente do acto de desistência, abstraindo-se tal motivação do acto de desistência.”.

Por sua vez, a Recorrida defende que a desistência do presente pedido não pode ser vista de forma isolada, não se tratando de uma situação pura e simples de desistência do pedido, mas sim de uma posição que a Recorrida teve forçosamente que adotar, por tal consubstanciar uma “conditio sine qua non” para a AT efetivar a anulação da liquidação sub judice.

Acrescenta que a AT atuou com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, quando, por um lado, exigiu que fosse apresentada uma desistência dos processos judiciais em curso para dar execução ao MAP e presentemente, por outro, vem defender nas suas alegações de recurso que: (i) o MAP e os processos pendentes gravitam em órbitas distintas; (ii) a Impugnante apresentou a desistência por sua livre e espontânea vontade e (iii) por esses motivos, não tem a AT qualquer responsabilidade pelas custas devidas no âmbito do presente processo.

Vejamos, pois.

A desistência do pedido é o negócio unilateral através do qual o autor reconhece a falta de fundamento do pedido formulado. Diferentemente da desistência da instância, a desistência do pedido representa o reconhecimento pelo autor de que a situação jurídica alegada não existe ou se extinguiu – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lex, 1997, p. 205.

Os negócios processuais que conformam a decisão da causa, como sucede com a desistência do pedido, exigem os requisitos gerais de qualquer negócio jurídico, nomeadamente quanto aos sujeitos, à vontade e sua exteriorização e objecto negocial – ob. cit., p. 198.

Expressão desse regime comum é o disposto no art.º 301º, nº 1: a confissão, a desistência e a transacção podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros actos de idêntica natureza negocial. A esses negócios são igualmente aplicáveis as disposições sobre a conclusão dos negócios (art.s 224º a 235º CC) e sobre a sua interpretação e integração (artºs 236º a 239º CC).

No presente caso, a Impugnante apresentou requerimento nos autos em que declarou “desistir do pedido impugnatório”, na sequência do qual o Tribunal de 1ª instância proferiu sentença julgando válida a desistência do pedido e, em consequência, declarando extinta a instância.

Pese embora a Recorrida apele para as circunstâncias que determinaram a desistência do pedido, a verdade é que em momento algum põe em causa a validade daquela declaração, pelo que a desistência do pedido produziu todos os seus efeitos processuais e substantivos.

Ora, no âmbito da desistência total, quer do pedido, quer da instância, as custas são pagas pela parte que desistir, como o impõe o disposto pelo n.º 1 do artigo 537º do Cód. Proc. Civil.

Argumenta, todavia, a Recorrida que a AT atuou com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, quando, por um lado, exigiu que fosse apresentada uma desistência dos processos judiciais em curso para dar execução ao MAP e presentemente, por outro, vem defender nas suas alegações de recurso que: (i) o MAP e os processos pendentes gravitam em órbitas distintas; (ii) a Impugnante apresentou a desistência por sua livre e espontânea vontade e (iii) por esses motivos, não tem a AT qualquer responsabilidade pelas custas devidas no âmbito do presente processo.

Vejamos.

O abuso de direito constitui a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé que se encontra consagrado, no âmbito processual, no artigo 8º do CPC, segundo o qual “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.”.

Conforme jurisprudência consolidada do STJ, o comportamento, manifestamente atentatório da boa fé, deve ser repudiado pela ordem jurídica, qualificando como ilegítimo o exercício do direito baseado nesse comportamento e obstando à concretização da respetiva pretensão jurídica – cfr. acórdão de 28-09-2017 (proc. n.º 97/14.6T8ACB-A.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt.

Saliente-se, ainda, que a aplicação geral do instituto do abuso do direito no domínio do direito processual civil, designadamente quanto ao direito de ação judicial, é hoje indiscutível – cfr., neste sentido, o acórdão do STJ de 12-01-2021 (processo 2689/19.8T8GMR-B.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt.

No caso concreto, a Recorrida sustenta que “existiu um comportamento da AT, anterior à apresentação da desistência do pedido pela Impugnante que foi suscetível de gerar confiança na Impugnante de que a AT executaria voluntariamente o acordo alcançado no âmbito do MAP, desde que a Impugnante declarasse a desistência do pedido que esteve na origem da extinção da presente instância - nunca se colocando em causa, obviamente, a responsabilidade da AT pelas custas processuais decorrentes de tal extinção, o que, aliás, nunca foi invocado pela AT durante todo o processo”; e que “da análise das alegações de recurso da Recorrente, extrai-se uma conduta contraditória com esta - a posição da AT de que o comportamento por si imposto à Recorrida - de desistência do pedido - era, na verdade reputado por aquela como uma desistência da Recorrida por sua livre e espontânea vontade e que tal significaria, no seu entender, que à AT não caberia a responsabilidade pelas custas processuais”.

Ora, no entendimento deste Tribunal a conduta da AT não é reconduzível ao abuso de direito, nomeadamente, na modalidade de venire contra factum proprium, pois da análise dos factos e ocorrências processuais referidas na sentença recorrida não se vislumbra qualquer motivo objectivo para que a Recorrente tivesse criado a convicção de que a AT iria suportar as custas do processo.

Efectivamente, resultando expressamente da lei que, no caso de desistência do pedido, as custas são suportadas pelo desistente, para que a aplicação de tal norma fosse afastada teriam que ser demonstrados factos que consubstanciassem um comportamento, por parte da AT, manifestamente atentatório do princípio da boa fé, o que não se verificou.

Com efeito, o facto de a AT ter feito depender a execução formal do acordo alcançado no âmbito do Procedimento Amigável, desencadeado ao abrigo do artigo 24º da Convenção bilateral celebrada entre Portugal e o Reino Unido para evitar a dupla tributação em matéria de impostos sobre o rendimento e sobre o património, da desistência, pela Impugnante, dos processos judiciais em curso, por si só não consubstancia um comportamento susceptível de basear uma situação objectiva de confiança em matéria de responsabilidade pelas custas daqueles processos, em que se inclui a presente impugnação.

Em consonância com exposto, é de concluir que a sentença recorrida, ao condenar a Fazenda Pública em custas, incorreu em erro de julgamento, devendo ser revogada.

E, assim, formulamos as seguintes conclusões/Sumário:

I. A extinção do direito substantivo constitui um efeito “ex lege” da desistência do pedido, não carecendo por isso de decisão judicial a reconhecê-lo expressamente;

II. Resultando expressamente da lei que, no caso de desistência do pedido, as custas são suportadas pelo desistente, para que a aplicação de tal norma fosse afastada teriam que ser demonstrados factos que consubstanciassem um comportamento, por parte da AT, manifestamente atentatório do princípio da boa fé.

Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção do Contencioso Tributário Comum deste Tribunal Central Administrativo Sul em CONCEDER PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO, E EM CONSEQUÊNCIA:

a) REVOGAR A DECISÃO RECORRIDA NO SEGMENTO QUANTO A CUSTAS;

b) CONDENAR A IMPUGNANTE NAS CUSTAS DA AÇÃO.

NO MAIS, NEGA-SE PROVIMENTO AO RECURSO.

As custas da apelação são a cargo de ambas as partes, em igual proporção.

Registe e notifique.

Lisboa, 9 de janeiro de 2025


(Ângela Cerdeira)

(Cristina Coelho da Silva)

(Tiago Brandão de Pinho)

Assinaturas eletrónicas na 1ª folha