Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:708/23.2BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:11/06/2025
Relator:ALDA NUNES
Descritores:CONTRAORDENAÇÃO URBANÍSTICA
Sumário:
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo – Subsecção Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:

PPPP veio interpor recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, datada de 12.3.2024, que, nos autos de processo de contraordenação que lhe foram instaurados pelo Município de Cascais, julgou a impugnação judicial interposta pela arguida improcedente e, em consequência, manteve a decisão administrativa recorrida, que lhe aplicou a coima de €: 750,00, pela prática de contraordenação p. e p. no art 98º, nº 1, al d) e nº 4 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, por violação do disposto no art 4º, nº 5 do RJUE, face à utilização, como clínica veterinária, de duas frações, em desacordo com o uso fixado no alvará de utilização que estabelece o uso de comércio.


A recorrente alegou e formulou as seguintes conclusões de recurso:


I – A sentença em crise julgou improcedente o recurso interposto pela Recorrente, mantendo assim a decisão administrativa que aplicou a coima de € 750,00, acrescida de custas.


II – A Recorrente na impugnação judicial deduziu várias exceções e invocou nulidades processuais, dado que a entidade administrativa não cuidou de fundamentar devidamente a decisão proferida.


III – A decisão administrativa é nula, atendendo a que existe uma total omissão de indicação ou descrição, e muito menos, de identificação de quem atuou em representação da pessoa coletiva/Recorrente, não se sabendo se foram os seus “órgãos no exercício das suas funções, nestes se integrando os trabalhadores ao seu serviço, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas”, conforme Acórdãos do TRP de 24/01/2007, do TRE de 18/06/2013, processo n.º 715/12.0TBLSA.E1 e do TRL de 27/06/2019, processo n.º 5840/14.0ECLSB.L1-9.


- A decisão administrativa apenas imputa a prática da infração à Recorrente/pessoa coletiva, mas não descreve a pessoa física natural que perpetrou a ação sancionada, em nome e no interesse da pessoa coletiva, e ainda se a pessoa atuou dolosamente ou a título negligente.


- Em momento algum da decisão é referido quem é que, em nome da Recorrente utiliza como clínica veterinária as frações autónomas designadas pelas letras ..., quem é que requereu a junção de tais frações e quem é que não procedeu ao pagamento das taxas devidas por essa alteração.


- Quer a decisão administrativa, quer o auto de notícia contêm informações inverídicas, pois não foi atendida a prova testemunhal indicada pela Recorrente.


- A autoridade administrativa deveria ter procedido à inquirição das testemunhas arroladas no direito de audição e defesa, tendo sido sonegado o direito de defesa da Recorrente.


- Os factos constantes dos presentes autos datam de 13 de Maio de 2021, tendo a notificação à Recorrente ocorrido apenas em 21 de Setembro de 2021.


III – A Recorrente é uma sociedade unipessoal por quotas, anteriormente designada por RRRR e tem como objeto social há mais de 15 anos a atividade veterinária, venda de produtos veterinários e rações.


IV – As frações autónomas designadas pelas letras ... não são propriedade da Recorrente e têm a licença de utilização número ... emitida em 04/05/1999 pela Autoridade Administrativa.


V – Ora, não sendo a Recorrente a proprietária das frações autónomas referenciadas, estamos perante uma situação de ilegitimidade, sendo uma exceção dilatória, pelo que deveriam os presentes autos serem arquivados.


VI – Mas, mesmo que assim não fosse, a Autoridade Administrativa em 2010 deferiu o pedido de alteração de uso da licença de utilização das frações autónomas designadas pelas letras ....


VII – As frações autónomas encontram-se perfeitamente separadas, com cadernetas e certidões prediais próprias, letras distintas e são contíguas, sendo admissível a sua junção, nos termos do artigo 1422º-A do CC, desde que não se proceda á alteração do uso, como é o caso.


VIII – A Recorrente é titular da autorização de funcionamento número ... emitida em 7 de Fevereiro de 2020 pela DGAV, enquanto entidade responsável e com competência para a emissão de tais documentos.


IX - O tribunal a quo apesar de ter efetuado uma análise pormenorizada a todas as exceções e nulidades invocadas pela Recorrente, manteve a decisão proferida pela entidade administrativa, quanto a nós erradamente;


XXI – O direito de defesa da arguida encontra-se constitucionalmente previsto e deve ser assegurado, de modo a apurar a verdade dos factos.


XXII – O auto de notícia e a decisão administrativa também são nulos pelo motivo invocado, pois não foi admitida a prova testemunhal apresentada pela arguida com base em fundamentos inverídicos.


XXIII – Assim entendemos que o conteúdo constante da decisão administrativa e do auto de notícia são insuficientes para justificarem a aplicação de qualquer coima, pelo que a mesma é nula de acordo com o disposto nos artigos 58º, n.º 1 alínea b) do RGCO, 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1 alínea a) do CPP, aplicáveis estes últimos ex vi artigo 41º, n.º 1 do RGCO.


XXIV – Acresce que, em 2007 surgiu um processo de contraordenação número ... em consequência de fiscalização efetuada pelo Sr. AA…, cabendo defesa – já passaram 15 anos…, tendo o mesmo sido arquivado, pelo que a apensação requerida foi indeferida.


XXV - Desde 2012 que a Câmara Municipal de Sintra mediante Informação – Arq. BB, Processos ... em 03/01/2012 e ... – Arq. CC, DD, Eng. EE, Arq. FF, Dr. GG – 02/02/2012, declaram a autorização de mudança de uso estes últimos, mas, a primeira relata que não cabe às Câmaras decidir por tal tema, mas sim a DGV agora denominada DGAV - Direção Geral de Alimentação e Veterinária.


XXVI - Em reunião havida na DU foi analisado com os responsáveis o alcance da legitimidade para emissão dos alvarás, tendo sido colhida a informação de que na verdade é a DGAV a responsável pela emissão dos licenciamentos.


XXVII - Mesmo assim, surge novo processo ... – ... e com referência ao processo ... de que coube resposta de que até hoje não é conhecida qualquer resposta, nem consta dos autos.


XXVIII – A Autoridade Administrativa ao proceder ao levantamento do auto de notícia constante dos autos age em abuso de direito, dado que pretende convencer a arguida de uma realidade que conhece ser diferente, portanto, deturpando ou corroendo aquilo que sabe que assim não é.


XXIX – Ou seja, a Autoridade Administrativa em 03 de Janeiro de 2012 emite informação no sentido de que a “atividade objeto do pedido já não carece da licença de funcionamento a emitir por parte da Câmara Municipal de Sintra, propõe-se a extinção do procedimento nos termos do n.º 1 do artigo 112º do CPA” e posteriormente em 2020 e 2021 procede ao levantamento de autos de notícia pela prática da infração da necessidade de alteração da licença de utilização e junção das frações autónomas.


XXX - A RRRR conta com 15 anos de existência e tem licenciamento para a prática do seu objeto social, emitido por quem tem competência para o efeito, pelo que dúvidas não restam que estamos perante um caso de abuso de direito por parte da Autoridade Administrativa.


XXXI - O CAE principal da arguida é ... – clínica veterinária -, que segundo o Instituto Nacional de Estatística – CPCAE (fls. 36) – “compreende as atividades veterinárias com e sem … animais doentes”, sendo certo que os alimentos dos animais se nele inserem.


XXXII - a venda tal como é definida no Código Comercial – artigos 463º e ss e Código Civil – artigo 876º - é um ato comercial objetivamente face ao preceito do artigo 463º e subjetivamente por força do artigo 2º do Código Comercial.


XXXIII - Logo, o facto de a licença de utilização ter sido concedida para comércio e indústria, não impede o exercício da atividade da arguida, atendendo a que a DGAV não colocou qualquer obstáculo a tal, não sendo necessário aquela referir que se destina á atividade de um CAMV.


XXXIV – Salienta-se que a sociedade arguida possui licença de utilização, quer para as frações autónomas identificadas na decisão administrativa, quer para a prática da sua atividade, emitidas pelos serviços competentes, não sendo necessária autorização por parte da Autoridade Administrativa para a junção das mesmas.


XXXV - Face ao exposto, sem dúvida que não existe qualquer infração ao artigo 4º, nº 5 do RJUE, pelo que deve ser arquivado o presente procedimento.


XXXVI – Assim, deverá o presente procedimento ser arquivado face às exceções, quer perentórias, quer dilatórias, alegadas pela sociedade arguida.


11 - Assim, face à insuficiente fundamentação do despacho recorrido não pode concluir-se pela “clara desnecessidade” da prova requerida, na medida em que se ignora se a matéria de facto sobre a qual se requereu prova testemunhal está efetivamente provada por documentos e/ou se a mesma é claramente desnecessária para a apreciação das questões jurídicas colocadas ou não na ação.


12 - O despacho em crise incorre em nulidade, por manifesta falta de fundamentação – artigo 615º n.º 1 alínea b) do CPC, pois a indicada frase, em que se resume a abordagem à questão da produção de prova, não se vislumbra qual o pensamento, qual o iter cognitivo do Juiz que o leva àquela conclusão, tornando-a, em si, insindicável, conforme Acórdão do TCA do Norte de 16/10/2020, processo n.º 01689/14.9BEPRT.


13 – O Tribunal a quo faz uma errada interpretação e aplicação dos artigos 90º n.ºs 1 e 2 e 87º, n.º 1 alínea c) do CPTA, devendo o mesmo ser revogado, admitindo-se a produção da prova testemunhal requerida.


Por ultimo;


14 – A sentença recorrida é proferida após a entrada em vigor do Dec-Lei 10/2024 de 08/01 vulgo “Simplex” e cuja aplicação é de dever oficioso segundo a qual as obras interiores não carecem de licença, decidindo assim “contra legem.”


15 – Deve pois ser julgado procedente por provado como alegado o presente Recurso absolvendo-se a Recorrente.


O Município não apresentou contra-alegações.


O Ministério Público junto do TAF de Sintra contra-alegou o recurso e formulou as seguintes conclusões:


1. A arguida RRRR apresentou impugnação judicial da decisão administrativa da Câmara Municipal de Sintra, no âmbito do processo de contraordenação n.º 1-112-2022, no qual foi condenada ao pagamento de uma coima no valor de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) pela prática de infração consubstanciada na ocupação de fração autónoma em desacordo com o uso fixado no respetivo alvará, prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 4.º, n.º 5, 74.º, n.º 3 e 98.º, n.º 1, alínea d), todos do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro, sancionada pelo artigo 98.°, nº 1, alínea f), ponto i) e 5 do mesmo diploma legal.


2. Por sentença proferida em 12.03.2024, foi julgado improcedente o recurso interposto da decisão da contraordenação e coima imputada e aplicada à recorrente, mantendo-se a coima aplicada, no valor de € 750,00, e respetivas custas.


3. Vem, pois, o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos.


4. Face ao teor das alegações da recorrente, as questões a decidir são:


a) se a sentença proferida é nula por omissão de pronúncia, quanto à exceção de ilegitimidade, conforme por si alegado, porquanto não é a arguida/recorrente proprietária das frações autónomas, designadas pelas letras ..., não sendo responsável pela prática da infração;


b) se a decisão administrativa de aplicação da coima é nula, por falta de identificação do agente, pessoa singular, que praticou o ilícito contraordenacional, já que, conforme alegado, de tal decisão administrativa não consta quem, em nome da arguida/recorrente, utiliza como clínica veterinária as referidas frações autónomas, quem requereu a junção dessas mesmas frações e quem não procedeu ao pagamento das taxas devidas por essa mesma alteração;


c) se a decisão administrativa é nula por violação do direito de defesa da arguida/recorrente, por ter sido preterida a inquirição das testemunhas arroladas, já que, conforme alega, quer a decisão administrativa, quer o auto de notícia contêm informações inverídicas, por não ter sido atendida a prova testemunhal indicada pela arguida/recorrente;


d) se a sentença proferida é nula, por falta de elementos necessários para a responsabilidade contraordenacional da arguida/recorrente; e


e) se a sentença proferida é nula, porquanto, tal como alegado pela arguida/recorrente, não é necessária qualquer autorização de utilização para a interligação das frações autónomas designadas pelas letras ..., pois foi proferida posteriormente à aprovação e publicação do SIMPLEX e cuja aplicação é de dever oficioso.


5. Reportando-se o recurso exclusivamente a matéria de direito, nos termos do art.º 75º, n.º 1 do RGCO, damos aqui por reproduzida toda a matéria de facto dada por provada na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.


6. No que respeita à alegada nulidade da sentença, por omissão de pronúncia relativamente à ilegitimidade da arguida/recorrente, não tem razão aquela, não merecendo a douta Sentença recorrida qualquer reparo.


7. A douta Sentença recorrida, pronuncia-se extensamente acerca da (i)legitimidade da arguida/recorrente, concluindo que a arguida/recorrente é a autora dessa mesma infração, resultando tal de prova documental junta aos autos, até pela própria arguida/recorrente.


8. Dos documentos juntos aos autos, resulta sobejamente provado que a arguida/recorrente era proprietária das frações em causa à data da fiscalização realizada pelos serviços da Câmara Municipal de Sintra competentes, que ocorreu em 13.05.2021, sendo que a venda de tais frações apenas se verificou em 07.09.2021.


9. Daqui resulta que, à data em que os serviços municipais constataram a prática da infração que vem imputada à arguida/recorrente, era esta e só esta a proprietária das frações em causa e utilizadora das mesmas, pelo que nenhuma outra entidade poderia ser responsabilizada pela contraordenação em causa.


10. Invoca a arguida/recorrente a nulidade da decisão administrativa por omitir a identificação da pessoa singular que atuou em sua representação.


11. No que à falta de indicação do agente, pessoa singular, que praticou o ilícito contraordenacional em causa, em representação da arguida/recorrente, pessoa coletiva, tal como se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 27.01.2020, disponível em www.dgsi.pt, “(…) as pessoas coletivas, ainda que incapazes de atividade física que as concretize, são dotadas de consciência e vontade próprias, devido à sua estrutura organizativa, sendo, pois, suscetíveis de culpa pela violação das normas que visam proteger os bens jurídicos de que são destinatárias, no entanto, na medida em que não podem, por incapacidade natural de ação, cometer por si mesmas infrações, a sua responsabilidade por estas há de derivar os comportamentos, ativos ou omissivos, levados a cabo por determinadas pessoas singulares ou físicas, que lhe são atribuídos segundo um certo modelo de imputação, legalmente definido.”


12. “O modo de expressão da pessoa coletiva traduz uma verdadeira vontade coletiva, capaz de dolo ou culpa visto que é suscetível de ser dirigida tanto para atividades lícitas como para atividade ilícitas.


Daí serem responsabilizadas e coimadas, sem que haja necessidade de identificar a pessoa concreta que agiu ou deixou de agir” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 13.12.2023, Proc. 705/23.8T8GRD.C1).


13. Em face do acima exposto, cumpre facilmente concluir que não se verifica qualquer vício, nomeadamente nulidade, da decisão administrativa e da Sentença proferida que a confirmou, no que respeita à alegada nulidade por falta de identificação do agente, pessoa singular, que atuou em nome e representação da sociedade arguida/recorrente.


14. Vem a arguida/recorrente alegar que a decisão administrativa é nula por ter sido preterida a inquirição de testemunhas por si arroladas e que, no seu entendimento, seriam fundamentais para clarificar os factos em causa no processo de contraordenação no qual é arguida.


15. Também no que a este ponto se refere, a douta sentença não merece reparo, nem tão-pouco a decisão administrativa confirmada.


16. O direito de defesa da arguida, em sede de processo de contraordenação, encontra-se constitucionalmente consagrado, tal como referido pela arguida/recorrente, no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.


17. Contudo, tal direito de defesa não é absoluto, no sentido de a entidade administrativa estar vinculada à realização de todas as diligências de prova requeridas pela arguida/recorrente, nomeadamente a audição de todas as testemunhas indicadas pela mesma.


18. O direito de a arguida/recorrente intervir no processo contraordenacional, oferecendo provas, deverá ser, necessariamente, conjugado com o poder/dever da entidade administrativa de rejeitar a realização de diligências de prova que não influam no objeto do processo, apenas contribuindo para o protelar do mesmo e o atraso na administração da Justiça, sendo certo que tal rejeição deverá ser devidamente fundamentada.


19. No caso concreto, a entidade administrativa fundamentou devidamente os motivos pelos quais não seria relevante a inquirição das testemunhas apresentadas pela arguida/recorrente, sendo que tal irrelevância resulta da própria natureza da contraordenação imputada.


20. Também sobre esta preterição se pronunciou a douta Sentença, no sentido de negar provimento às alegações da arguida/recorrente, fundamentando devidamente a decisão no que essa alegação respeita, não merecendo, por isso, qualquer reparo.


21. Alega a arguida/recorrente que a sentença proferida é nula porquanto, no caso concreto, não é necessária qualquer autorização para a interligação das frações autónomas, já que à data em que foi proferida, havia já sido aprovado e publicado o SIMPLEX, que veio revogar o disposto no artigo 62.º do RJUE.


22. Ora, à arguida/recorrente vem imputada a contraordenação prevista pelas disposições conjugadas dos artigos 4.º, n.º 5 e 98.º, n.º 1, alínea d), ambos do RJUE, consubstanciada na utilização de duas frações autónomas em desacordo com o uso fixado no respetivo alvará.


23. As referidas disposições legais não sofreram alterações na sequência da entrada em vigor do Decreto-Lei 10/2024, de 8 de Janeiro, nem tão-pouco a conduta em causa foi objeto de despenalização (como aconteceu com as contraordenações contidas na alínea a) do n.º 1 do referido artigo 98.º).


24. Como tal, continua a arguida/recorrente a incorrer na contraordenação que lhe vem imputada – utilização de fração autónoma em desacordo com o uso previamente fixado, uma vez que nenhum procedimento encetou no sentido de suprir a falta em que se encontra, nem à luz da legislação anterior, nem da atual.


25. Acresce que, a contraordenação imputada à arguida/recorrente não foi despenalizada.


26. Do alegado pela arguida/recorrente, parece esta confundir as normas de carácter urbanístico, que têm de ver com a contraordenação que lhe vem imputada, com a necessidade de licença para o exercício da sua atividade, essa a emitir por entidade diversa – a DGAV – e que não se prende com critérios de legalidade urbanística, mas sim com competências de outra natureza para o exercício da atividade.


27. Relativamente à licença necessária para o exercício de atividade de clínica veterinária, o Tribunal a quo não se pronunciou, nem tinha de o fazer, sendo que nenhuma contraordenação foi imputada à arguida/recorrente nessa matéria.


28. A contraordenação imputada à arguida/recorrente restringe-se ao facto de utilizar o espaço físico no qual laborava, para fins diversos daquele para o qual estava autorizada a fazer.


29. E quanto a essa matéria, dúvidas não restam de que a contraordenação se verificou e continua a verificar-se, já que a arguida/recorrente nada fez para lhe pôr cobro.


Face ao exposto, cumpre concluir que a sentença proferida não merece reparo quanto à análise da atuação da arguida/recorrente, nem quanto à inexistência das várias nulidades pela mesma alegadas, devendo o presente recurso ser considerado improcedente e, consequentemente, ser mantida a douta Sentença recorrida, com a condenação da arguida na coima em causa, pela prática de contraordenação que lhe vem imputada.


Não foi proferido despacho de pronúncia sobre as nulidades invocadas à sentença.


Com dispensa dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, vem o processo submetido à conferência para julgamento.


Objeto do recurso:


As conclusões do recurso delimitam o respetivo objeto.


Nos termos do art 412º, nº 1 do Código de Processo Penal (CPP), que aqui se aplica por força do disposto no art 74º, nº 4 do DL nº 433/82, de 27.10 (RGC), a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.


No caso em apreço, a recorrente formula as conclusões em numeração romana e em numeração decimal, sem sequência.


As conclusões começam de I a IX, passam para XXI a XXXVI e terminam com numeração de 11 a 15.


Isto porque as conclusões do recurso com numeração romana são uma reprodução das conclusões da impugnação judicial da decisão administrativa que sancionou a recorrente com coima, sem o cuidado mínimo de lhes dar uma sequência numérica romana ou decimal e lógica. Existindo assim um salto da conclusão número IX para a conclusão nº XXI e da conclusão nº XXXVII para o número 11.


Considerando este esclarecimento, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, a saber, determinar se a sentença recorrida padece de:

i. nulidade por falta de fundamentação (conclusões 11 e 12);

ii. erro de julgamento na interpretação e aplicação dos artigos 90º, nº 1 e nº 2 e 87º, nº 1, al c) do CPTA (conclusão 13);

iii. erro de julgamento na análise da nulidade da decisão administrativa por falta de identificação da pessoa singular que praticou o ilícito contraordenacional (conclusão III, parágrafos 1º, 2º, 3º);

iv. erro de julgamento na análise da nulidade da decisão administrativa por violação do direito de defesa da arguida, por ter sido preterida a inquirição das testemunhas arroladas (conclusões III, parágrafos 4º e 5º, XXI, XXII);

v. erro de julgamento na análise da nulidade da decisão administrativa por falta de elementos necessários para a responsabilidade contraordenacional (conclusão XXIII);

vi. erro de julgamento na análise da falta de legitimidade substantiva da arguida (conclusões III, parágrafo 6º, III) (numeração repetida), IV, V);

vii. erro de julgamento quanto à (des)necessidade de autorização de utilização (conclusões 14, VI, VII, XXIV a XXXV).


Fundamentação:


De facto


O tribunal recorrido julgou provados os factos seguintes:

a. «Através do Processo n.º ..., foi obtido o licenciamento do edifício de habitação coletiva com 43 fogos e 4 lojas, referente ao prédio onde se encontra a sede da Recorrente – (cf. documento, a fls. 93 da referência SITAF ...);

b. Em 04-05-1999, foi emitida a Licença de Utilização n.º ..., para todo o edifício, identificado na alínea anterior – (cf. documento, a fls. 93 da referência SITAF ...);

c. Em 23-09-2010, foi apresentado requerimento à Câmara Municipal de Sintra, que recebeu o número de processo ..., para a licenciamento da junção das frações ..., relativo ao prédio descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém, sob o n.º ..., inscrito na matriz com o n.º ..., sito na Praceta ..., n.º 4, lojas C / D, ………., da freguesia de Agualva-Cacém, e a alteração da sua utilização de comércio ou indústria, para ZZZZ que foi deferido em 14-04-2012 documentos, a fls. 62, 67 e 93 da referência SITAF ...);

d. Relativamente ao procedimento identificado na alínea anterior, foi efetuado pedido de emissão de alvará de autorização de utilização das frações ..., que foi indeferido em 09-01-2020, por não terem sido pagas as taxas correspondentes – (cf. documentos, a fls. 62 e 93 da referência SITAF ...);

e. Em 18-03-2021, foi proferido despacho, declarando a caducidade da licença, referente ao processo n.º ..., e arquivado o processo, dado que não foram pagas as taxas devidas pela alteração – (cf. documentos, a fls. 62, 67, 88 e 93 da referência SITAF ...);

f. Em 07-09-2021, foi registada a aquisição da propriedade, por compra, da fração D, do prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Civil de Agualva-Cacém, sob o n.º ..., pela SSSS, à Recorrente, fração esta sita na Praceta ..., n.º 4, freguesia de São... – (cf. documento n.º 7, junto ao recurso, a fls. 140 do processo físico);

g. Em 06-01-2022, pela Divisão de Polícia Municipal e Fiscalização da Câmara Municipal de Sintra, foi elaborado auto de notícia, com o número ..., referente à Recorrente, cujo teor se dá por reproduzido e de que consta, além do mais, o seguinte:

[imagem]

– (cf. documento, a fls. 6 da referência SITAF ...);

h. Em 08-07-2022, foi elaborado ofício, dirigido à Recorrente, no âmbito do processo de contraordenação aqui em causa, para o exercício do direito de audição e defesa, tendo sido fixado o prazo de 10 dias úteis para o efeito, cujo teor se dá por reproduzido e de que consta, além do mais, o seguinte:

[imagem]

– (cf. documento, a fls. 14 a 16 da referência SITAF ...);

i. Em 21-09-2022, a Recorrente recebeu o ofício, identificado na alínea anterior – (cf. certidão de notificação, a fls. 21 da referência SITAF ...);

j. Por email de 06-10-2022, a Recorrente apresentou defesa escrita, através de seu mandatário, requerendo a apensação de processos de contraordenação anteriores, defendendo a não verificação a infração, invocando a prescrição e indicando três testemunhas, cujo teor se dá por reproduzido e de que consta, além do mais, o seguinte:

«Em 2007 surgiu um processo de contraordenação ... em consequência de fiscalização de Sr. AA… cabendo defesa conforme doc. 1 – já passaram 15 anos… e por serem absolutamente necessários aos autos requer-se a sua apensação aos mesmos. […]

[…]

12.º

Mas ainda que houvesse dado que os alegados factos datam de 2007 verifica-se a prescrição.

[…]

TERMOS EM QUE:

[…]

2 – Devem ser juntos aos autos todos os processos acima referenciados.

[…]

TESTEMUNHAS:

1 – HH, identificada nos autos;

2 – II, identificado nos autos;

3 – Dr. JJ, casado, Médico Veterinário, Praceta ..., n.º

4 Loja

[…]» – (cf. documentos, a fls. 34 a 43 da referência SITAF ...);

k. Em 26-04-2023, foi proferida a decisão de aplicação de coima, aqui objeto de recurso, cujo teor se dá por reproduzido e de que consta, além do mais, o seguinte:

«[…]

ACTO/PARTICIPAÇÃO

O presente processo foi instaurado e instruído com base no Auto de Notícia PI92- 2021 proveniente da Divisão de Fiscalização Municipal.

Identificação do(a) Arguido(a)

RRRR, titular do Número de Identificação Fiscal N.º ... e com sede em Praceta ... - S...., 4, Loja ... ... AGUALVA-CACÉM, Portugal.

QUESTÕES PRÉVIAS

Da apensação processual:

Em sede do direito de defesa veio a arguida solicitar a apensação do presente procedimento contraordenacional ao Proc. 267-07.

Ora, dispõe o n.º 1 do artigo 24.º do Código de Processo Penal aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO que há conexão de processos quando:

[…]

Considerando que o Proc. ... se encontra arquivado o presente procedimento em fase de instrução, entende-se não existir qualquer conexão entre os processos por contraordenação apreço, pelo que não poderá ocorrer a apensação dos mesmos.

FACTOS IMPUTADOS

Aos 13 dias do mês de Maio de 2021 pelas 11:06 horas, no sítio de Praceta do ..., 4 lojas ..., freguesia de ... e São..., verificou-se conforme auto participação, que o(a) arguido(a) acima identificado(a), praticou a seguinte infração:

Infração I

O presente procedimento contraordenacional teve início com o Auto de Notícia ..., lavrado pelo fiscal municipal n.º ..., da Divisão de Fiscalização Municipal, no qual refere que no dia 13 de maio de 2021, pelas 11h06, acompanhado pelo fiscal municipal n.º ..., HH, se deslocaram à Praceta do ..., n.º 4, Lojas ..., na ... e São..., tendo verificado que a RRRR, com o NIPC ..., está a utilizar, como clínica veterinária, duas frações interligadas com área conjunta total de aproximadamente 120 m2 , em desacordo o uso fixado no alvará de utilização que estabelece o uso de comércio.

Em 28.01.2022, através da AP. ..., RRRR alterou a denominação para PPPP.

As regra de controlo prévio das operações urbanísticas são estabelecidas pelo Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na atual redação, adiante designado RJUE.

O n.º 5 do artigo 4.º do RJUE estabelece que «Está sujeito a autorização a utilização dos edifícios ou suas frações, bem como as alterações da utilização dos mesmos».

De acordo com o n.º 3 do artigo 74.º do RJUE «A autorização de utilização dos edifícios é titulada por alvará».

A ocupação de edifícios ou suas frações autónomas em desacordo com o uso fixado no respetivo alvará, constitui contraordenação, conforme disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 98.º do RJUE, punível com uma coima graduada de (euro) 1500 até (euro) 250 000, por se tratar de pessoa coletiva, cfr. n.º 4 do citado artigo.

Considerando que as alterações de utilização dos edifícios estão sujeitas a autorização de utilização.

Considerando que o local objeto dos autos tem autorização de utilização para comércio, pelo que a mudança de utilização para serviços, com vista à instalação de clínica veterinária, carece de autorização de utilização.

Considerando que em ação de fiscalização realizada em 13 de maio de 2021 foi verificado que RRRR, agora denominada RRRR, estava a utilizar as Lojas ..., do n.º 4 na Praceta do ..., na ... e São..., em desacordo com o uso fixado no respetivo alvará.

Pelo supra exposto, verifica-se que RRRR ao utilizar o edifício em desacordo com o uso fixado no respetivo alvará é suscetível de consubstanciar contraordenação, por incumprimento do disposto no n.º 5 do artigo 4.º do RJUE.

Existindo desta forma indícios suficientes de ilícito contraordenacional, deduz-se a presente acusação, concedendo à arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 50.º do RGCO, o exercício do direito de defesa.

Enquadramento legal

Normativo Violado: Artigo 4.º n.º 5 do Decreto Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na sua atual redação.

Normativo Sancionatório: Artigo 98.º n.º 1 alínea d) e n.º 4 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na sua atual redação.

Regime Sancionatório

Coima Mínima: 1500,00 € Coima Máxima: 250000,00 €

Sanções Acessórias:

[…]

DA NOTIFICAÇÃO

[…]

DO DIREITO DE AUDIÇÃO E DEFESA

Regularmente notificada para o efeito, a arguida apresentou defesa, a qual se dá aqui por integralmente reproduzida, fls. 26 a 48 dos autos, para os devidos efeitos legais.

INQUIRIÇÕES

Não obstante a sociedade arguida ter arrolado testemunhas na sua defesa, designadamente o fiscal municipal autuante II e HH, entende esta autoridade dispensar a sua inquirição, porquanto a prova constante dos autos, designadamente, o Auto de Notícia e a informação n.º S; ..., de 04.07.2022, se revelam suficientes à descoberta da verdade e boa decisão do processo.

[…]

Todavia, não é este o caso, pois esta entidade administrativa indefere a inquirição das testemunhas, no âmbito dos poderes que lhe são concedidos enquanto

autoridade que preside à sede de instrução, justificando os motivos por que o faz.

[…]

FACTOS PROVADOS

No cumprimento do estipulado pelo n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO, esta autoridade administrativa formou a sua convicção, quer quanto à matéria de facto provada, quer quanto à ausência de matéria de facto não provada, pelo princípio da livre apreciação da prova, conforme disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, analisando os meios de prova que teve ao seu alcance, harmonizando-os e confrontando-os criticamente entre si, de acordo com os princípios da experiência comum, de lógica e razoabilidade.

Uma vez aqui aportados e tendo em conta a instrução realizada, consistente na análise crítica da documentação que faz parte integrante do presente processo contraordenacional, designadamente do teor vertido pelo Auto de Notícia, das informações prestadas pela Divisão de Gestão e Licenciamento 2, bem como da defesa apresentada, não se mostrando necessário, para o bom esclarecimento da matéria de facto, a realização de outras diligências instrutórias, para a descoberta

da verdade e boa decisão do processo, ficaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão final:

1.º

Em ação de fiscalização realizada em 13 de maio de 2021, pelas 11h06, à Praceta do ..., n.º 4, Lojas ..., na ... e São..., foi verificado que a RRRR, com o NIPC ..., está a utilizar, como clínica veterinária, duas frações interligadas com a área conjunta total de aproximadamente 120 m2 , em desacordo com o fixado no alvará de autorização de utilização.

2.º

Na ação de fiscalização foi verificado que o estabelecimento se encontrava com a porta aberta, estando publicitado nas montras como clínica veterinária e que estava apetrechado com mobiliário habitual para a atividade em causa.

3.º

Em 28.01.2022, através da AP. ..., RRRR alterou a denominação para PPPP

4.º

A arguida RRRR, NIPC ... e sede na Praceta ..., n.º 1, …….., Loja, ………… Cacém tem como objeto social «Clínica veterinária, venda de produtos veterinários e rações» e capital de 5.000,00 euros.

5.º

Através da Nota Interna n.º..., de 07.11.2022, veio a Divisão de Gestão e Licenciamento 2 (DGL2) informar que «Para o local em causa (imóvel sito no n.º 4 da Praceta ..., em S....), foram identificados, apenas os processos antecedentes ... e ..., o primeiro referente ao licenciamento da obra de construção desse mesmo edifício e o segundo a um pedido de autorização de alteração de utilização, com obras, das frações .... (…)».

6.º

Mais informa que no processo ..., foi emitida a Licença de Utilização de n.º ..., de 4 de maio, para um «edifício com 14 pavimentos (…), 44 T2, 1 T3, 181 divisões, 4 lojas».

7.º

E que, em 23.09.2010 deu entrada o processo ... onde é requerida a junção das frações ..., tendo sido deferido em 14.04.2012.

8.º

Em 18.03.2021, o processo ... foi arquivado por declaração de caducidade da licença dado que, apesar de deferido o pedido de mudança de uso formulado nesse processo a então requerente não procedeu à liquidação das taxas devidas por essa alteração.

9.º

Em 21.09.2022, a arguida foi notificada para o exercício do direito de audição e defesa referente ao presente procedimento contraordenacional, através do documento com a nossa referência ..., de 08 de julho de 2022.

10.º

Em 06.10.2022, a arguida veio apresentar defesa.

FUNDAMENTAÇÃO

Os factos imputados à arguida RRRR prendem-se com a utilização de duas frações interligadas sem autorização de utilização.

As regras de controlo prévio das operações urbanísticas são estabelecidas pelo Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na sua atual redação, adiante designado RJUE.

Consideram-se obras de alteração, de acordo com a alínea d) do artigo 2.º do RJUE «as obras de que resulte a modificação das características físicas de uma edificação existente, ou sua fração, designadamente (…) o número de fogos ou divisões interiores (…), sem aumento da área total de construção, da área de implantação ou da altura da fachada».

Estabelece o n.º 5 do artigo 4.º do RJUE que «Está sujeita a autorização a utilização dos edifícios ou suas frações, bem como as alterações da utilização dos mesmos.»

O n.º 1 do artigo 1.º do artigo 62.º do RJUE dispõe que «A autorização de utilização de edifícios ou suas frações autónomas na sequência de realização de obra sujeita a controlo prévio, assim como a conformidade da utilização prevista com as normas legais e regulamentares que fixam os usos e utilizações admissíveis, podendo contemplar utilizações mistas.»

A autorização de utilização dos edifícios é titulada por alvará, conforme disposto no n.º 3 do artigo 74.º do RJUE.

A ocupação de edifícios sem autorização de utilização constitui contraordenação, conforme disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 98.º do RJUE.

Considerando que a utilização dos edifícios está sujeita a autorização de utilização.

Considerando que o prédio sito na Praceta ..., n.º 4, em S.... possui Licença de Utilização de n.º ..., de 4 de maio, para um «edifício com 14 pavimentos (…), 44 T2, 1 T3, 181 divisões, 4 lojas».

Considerando que em ação de fiscalização realizada em 13 de maio de 2021, pelas 11h06, à Praceta do ..., n.º 4, Lojas ..., na ... e São..., foi verificado que RRRR, atual RRRR, com o NIPC ..., está a utilizar, como clínica veterinária, as frações interligadas com área conjunta total de aproximadamente 120 m2, em desacordo com o fixado no alvará de utilização.

Considerando que após as obras de alteração designadamente das interligações das frações ... carecia de autorização de utilização que previsse a interligação das mesmas.

Considerando que a arguida não possui o alvará de autorização de utilização.

Face ao exposto, não resta dúvida que a conduta da arguida ao utilizar as frações interligadas sem autorização de utilização para o efeito, foi contrária à lei, preenchendo objetivamente o tipo legal de ilícito contraordenacional que lhe é imputado.

No que concerne ao elemento subjetivo, a culpa pode assumir-se como dolo ou como negligência, sendo que esta última só é punível nos casos especialmente previstos na lei, por força do disposto na n.º 1 do artigo 8.º do RGCO.

A imputação subjetiva do facto ao agente não pode analisar-se numa mera relação psicológica naturalística, antes tem de encarar como uma certa posição de agente para com o facto, capaz de ligar um ao outro e de permitir a censura em que o juízo de culpa se traduz. Esta ligação do agente ao facto pode ter lugar por duas formas: dolo ou negligência.

[…]

No caso em apreço as infrações vertentes ao nível subjetivo, são punidas quer as condutas dolosas, quer as negligentes, por referência ao disposto no n.º 9 do artigo 98.º do RJUE.

Dos elementos constantes nos autos, resulta que a arguida não observou o dever de cuidado que lhe era exigível e de que capaz, tendo atuado de forma negligente.

DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA COIMA

[…]

No caso em concreto, a arguida instruiu o procedimento ... onde foi requerida a junção das frações ... e que foi deferido em 14.04.2012, ou seja, foi verificada a conformidade da utilização com as normas legais e regulamentares que fixam os usos e utilizações admissíveis, bem como a idoneidade do imóvel ao fim pretendido.

[…]

Assim, compulsados os autos, face aos elementos existentes, constataram-se circunstâncias modificativas da moldura sancionatória, enquanto atenuantes, uma vez que tendo ocorrido o deferimento do procedimento ... foi verificada a conformidade da operação urbanística.

Decorre do n.º 3 do artigo 18.º do RGCO que, «Quando houver lugar à atenuação especial da punição por contraordenação, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade», fixando-se assim a moldura contraordenacional abstratamente aplicável num mínimo de 750,00 euros a um máximo 125 000,00 euros, por especialmente atenuada em função dos factos supra descritos.

[…]

DA DECISÃO

Considerando o acima exposto DECIDO, nos termos do Artigo n.º 58.º do Regime Geral das Contraordenações, pela condenação do arguido:

Infração 1

Pela violação do Artigo 4.º n.º 5 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na sua atual redação, ilícito previsto e punido pelo Artigo 98.º n.º 1 alínea d) e n.º 4 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na sua atual redação, ao pagamento de uma coima no montante de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros).

Mais determino, nos termos dos Artigo 92.º e 94.º do referido diploma legal, conjugado com o Despacho n.º 71-P/2011 do Exmo. Senhor Presidente da Câmara, datado de 03.10.2011, o pagamento da importância de 102,00 € (cento e dois euros), a pagar pelo arguido, relativamente às custas do processo.

Total: Coima mais custas (750,00 € + 102,00 €) = 852,00 (oitocentos e cinquenta e dois euros). […]» – (cf. documento, a fls. 100 a 107 da referência SITAF ...)».

De Direito


Nulidade por falta de fundamentação (conclusões 11 e 12).


A recorrente alega que o despacho recorrido padece de falta de fundamentação, nos termos do art 615º, nº 1, al b) do CPC, ao julgar desnecessárias quaisquer outras diligências de prova, porque não se vislumbra qual o pensamento, qual o iter cognoscitivo do juiz que o leva àquela conclusão, tornando-a, em si, insindicável.


Antes de mais cumpre dizer que em processo de contraordenação o regime de recurso interposto para a 2ª Instância de decisões proferidas em 1ª Instância deve observar as regras específicas previstas nos artigos 73º a 75º do DL nº 433/82, de 27.10, com as alterações introduzidas pelos DL nº 36/89, de 17.10, 244/95, de 14.9 e 323/2001, de 17.12, e pela Lei nº 109/2001, de 24.12 (RGC), seguindo, em tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art 74º, nº 4 do RGC), em função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciado no art 41º, nº 1 do mesmo diploma.


Assim, as nulidades da decisão por despacho judicial proferido nos termos do art 64º do RGC sentença vêm tratadas no artigo 379º do Código de Processo Penal, em concreto a nulidade da decisão por falta de fundamentação vem prevista no art 379º, nº 1, al a) do CPP.


Para a decisão recorrida padecer de falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, al a) do CPP ex vi art 74º, nº 4 do RGC, é necessária a falta absoluta de motivação, não bastando uma insuficiente fundamentação.


O art 64º, nº 2 do RGC estatui que o juiz pode decidir por despacho o processo de recurso de decisão de aplicação de coima quando, cumulativamente, se verifiquem três condições cumulativas, a saber: (1) o juiz considerar desnecessária a audiência de julgamento; (2) o arguido não se opor à decisão por despacho; (3) o MP não se opor à decisão por despacho. Faltando uma das identificadas condições o juiz tem de marcar audiência de julgamento proferindo depois sentença.


Na situação em apreço as três condições estão reunidas.


Com efeito, a 12.9.2023 o juiz a quo proferiu despacho a convidar a arguida e o Ministério Público a declarar, querendo, a sua oposição à decisão por simples despacho, com a indicação de que o seu silêncio será entendido e valorado como não oposição, com o seguinte fundamento: atenta a natureza das questões a decidir e a prova documental constante dos autos afigura-se dispensável a realização da audiência de julgamento.


A arguida, por requerimento de 25.9.2023, expressamente veio declarar que não se opõe a que a decisão seja proferida por despacho.


Em face do exposto e considerando que o processo de contraordenação contém todos os elementos necessários à decisão de mérito, julgando-se desnecessárias quaisquer outras diligências probatórias, e que a Recorrente e a DMMP se pronunciaram no sentido da sua não oposição, torna-se possível a decisão por simples despacho, nos termos previstos no artigo 64.º, n.º 2, do RGCO. O que fez a 12.3.2024, proferindo o despacho decisório objeto deste recurso.


O despacho que convidou as partes a deduzirem ou não oposição à decisão por simples despacho fundamentou-se, por um lado, na natureza das questões a decidir e, por outro lado, na prova documental constante dos autos.


O despacho decisório é antecedido do considerando que reproduzimos, de cujo teor retiramos que o processo de contraordenação contém todos os elementos necessários à decisão de mérito, julgando-se desnecessárias quaisquer outras diligências probatórias e ainda que a Recorrente e a DMMP se pronunciaram no sentido da sua não oposição.


Assim sendo, o despacho recorrido não padece de nulidade por falta de fundamentação, a mesma existe e permite descortinar as razões que ditaram a decisão, sujeitando-a à possibilidade de ser revogada ou alterada neste recurso.


Pelo que improcede a arguida nulidade.


Erro de julgamento na interpretação e aplicação dos artigos 90º, nº 1 e nº 2 e 87º, nº 1, al c) do CPTA (conclusão 13).


A recorrente imputa à decisão recorrida errada interpretação e aplicação dos artigos 90º, nº 1 e nº 2 e 87º, nº 1, al c) do CPTA, ao julgar desnecessária a produção de prova testemunhal requerida na impugnação judicial.


Os preceitos legais citados pela recorrente – o art 87º, que disciplina o despacho pré-saneador das ações administrativas, e o art 90º, que regula a instrução nas ações administrativas, ambos do CPTA – não se aplicam a este processo.


O regime legal que aqui se aplica, por estar em causa um processo de contraordenação é, como adiantámos, o regime específico das Contraordenações e, subsidiariamente, os preceitos reguladores do processo criminal (cfr art 41º, nº 1 do RCO).


De todo o modo, o tribunal a quo previamente à prolação da decisão sob recurso ouviu as partes sobre a desnecessidade, nomeadamente, da produção da prova testemunhal requerida, e, com a anuência da arguida e do MP, avançou para o conhecimento do recurso de decisão administrativa de aplicação de coima por despacho, ao abrigo do art 64º, nº 2 do RGC, porque as questões a decidir e a prova documental dos autos oferecia todos os elementos necessários para a decisão de mérito.


E, sem prejuízo de ulteriores fundamentos, a prova documental junta ao processo, designadamente, o auto de notícia (elaborado pelos fiscais arrolados como testemunhas pela recorrente) e a informação dos serviços camarários, revelaram-se suficientes à descoberta da verdade, sem que a defesa da arguida tivesse colocado em causa os factos de que vinha acusada.


Improcede assim este erro de julgamento de direito.


Erro de julgamento na análise da nulidade da decisão administrativa por falta de identificação da pessoa singular que praticou o ilícito contraordenacional (conclusão III, parágrafos 1º, 2º, 3º).


A decisão administrativa objeto do recurso aplicou uma coima à arguida, ora recorrente, sociedade comercial por quotas, por no dia 13.5.2021, pelas 11h06, na Praceta do ..., n.º 4, Lojas ..., na ... e São..., estar a utilizar, como clínica veterinária, duas frações interligadas com a área conjunta total de aproximadamente 120 m2, em desacordo com o fixado no alvará de autorização de utilização.


O tribunal a quo considerou ser dispensável a identificação de um concreto agente para que haja a imputação da prática de uma contraordenação a uma pessoa coletiva, por o art 7º, nº 2 do RGC admitir a responsabilidade das pessoas coletivas por regra, não limitando a existência desta responsabilidade por referência a determinados tipos de infrações. Assim, se o art 7º, nº 2 do RGC não exige os mesmos requisitos que o direito penal [art 11º, nº 2 do Código Penal], colocando em igualdade as pessoas singulares e as pessoas coletivas, para efeitos da culpa e da imputação da responsabilidade contraordenacional, é porque admite que é desnecessária a identificação em concreto do agente, pessoa singular, respondendo a pessoa coletiva por si própria.


A recorrente, acriticamente, repete no recurso ipsis verbis as conclusões XVI, XVII, XVII que verteu na impugnação judicial que deduziu, quanto à nulidade da decisão administrativa por não descrever a pessoa física que utiliza as frações interligadas para exploração da atividade veterinária em desacordo com o alvará de autorização de utilização concedido, em nome e no interesse da pessoa coletiva, ora recorrente, e ainda se a pessoa atuou dolosamente ou a título de negligência.


A questão aqui posta em causa não é nova e não tem merecido sempre o mesmo entendimento por parte da doutrina e da jurisprudência dos nossos tribunais.


O tribunal a quo segue o entendimento defendido pela jurisprudência dominante (cfr, entre outros, o ac do TRL de 12.1.2021, processo nº 1874/19 (citado pelo tribunal), ac do TRC, de 13.12.2023, processo nº 705/23 (invocado pelo MP na resposta às alegações de recurso), ac do TRL de 2.5.2025, processo nº 44/24) e pelo Conselho Consultivo da PGR nº 11/2013, de 10.7, no sentido de que o estabelecido no art 7º, nº 2 do RGC deve ser interpretado extensivamente por forma a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, sem ser necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infração para que a mesma seja imputável à pessoa coletiva.


Como decidiu o recente acórdão do TRL, de 2.5.2025, no Direito de mera ordenação social, a pessoa coletiva assume culpa própria, sem necessidade da concorrente imputação individual dos factos a pessoas físicas, devendo assumir contornos alargados e muito abrangentes a noção de órgãos em exercício de funções subjacente ao n.º 2 do art. 7.º do RGCO por forma a englobar todos os que atuem como «longa manus» ou agentes de ação no mundo físico de uma pessoa coletiva sujeita a deveres de conduta de emanação normativa que, sob proteção coativa do Direito de mera ordenação social, sejam tributários de finalidades pré-assumidas pelo legislador tuteladas através da imposição de coimas a quem quer que os viole e qualquer que seja o meio ou a intermediação usada.


No n.º 2 do art. 7.º, ao responsabilizar-se também as pessoas coletivas, está-se, necessariamente, a pressupor a intervenção física de pessoas singulares num quadro que àquelas vincule e lhes seja atribuível, atenta a sua imaterialidade ontológica, sem que isso pressuponha, necessariamente, a responsabilidade subjetiva individual dessas pessoas singulares.


Neste âmbito, revela acerto e adequação ao Direito constituído o referido no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26.04.2022 (Processo nº 664/21.1Y4LSB.L1-5), nos seguintes termos:


Contrariamente ao Código Penal que exige no art 11º um facto individual de conexão entre quem age e a pessoa coletiva (em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança, ou por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem), o art 7º, do Regime Jurídico das contraordenações não faz referência a tal conexão, sendo as pessoas coletivas e as pessoas singulares colocadas em posição de igualdade: ambas são indiferenciadamente destinatárias das normas que tipificam contraordenações e das coimas nelas cominadas. (…)


No regime contraordenacional é admissível a imputação de um facto à pessoa coletiva sem que seja necessária a ocorrência de uma transferência da culpa e da ação dos agentes individuais para a pessoa jurídica pois esta, ao nível das contraordenações, possui culpa própria.


Não desconhecendo a jurisprudência em que a recorrente se sustenta para reiterar, nesta sede, que a decisão administrativa padece da nulidade que lhe assaca, como seja, o entendimento do acórdão proferido pelo TRC, de 11.1.2023, processo nº 411/22 [que sumaria: Para que as pessoas coletivas possam ser responsabilizadas pelas contraordenações “praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções” é estritamente necessária a indicação da entidade singular (órgão, agente, representante ou trabalhador) perpetrante dos pertinentes factos e a determinação da relação destes com o ente coletivo], revemo-nos na decisão que estamos a sindicar e na jurisprudência invocada pelo tribunal, bem como na que mencionámos e transcrevemos.


O modo de expressão da pessoa coletiva traduz uma verdadeira vontade coletiva, sem que haja necessidade de identificar a pessoa concreta que agiu ou deixou de agir.


Assim sendo, julga-se improcedente este fundamento do recurso.


Erro de julgamento na análise da nulidade da decisão administrativa por violação do direito de defesa da arguida, por ter sido preterida a inquirição das testemunhas arroladas (conclusões III, parágrafos 4º e 5º, XXI, XXII).


Alega a recorrente que a decisão administrativa e o auto de notícia contêm informações inverídicas, pois não foi atendida a prova testemunhal que arrolou, tendo sido sonegado o direito de defesa da recorrente.


Analisemos.


Em recursos interpostos de decisões do Tribunal de 1ª Instância, no âmbito de processos de contraordenação, a 2ª Instância apenas conhece, em regra, de matéria de direito (cfr art 75º, nº 1 do RGC). No entanto, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o art 410º, nº 2 do CPP permite que o recurso tenha como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:


a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;


b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;


c) Erro notório na apreciação da prova.


A recorrente não questiona a matéria de facto provada na decisão recorrida, fazendo uso das exceções que constam do art 410º, nº 2 do CPP (cfr art 75º, nº 1 do RGC).


Discorda da decisão recorrida por esta ter confirmado a improcedência da preterição do seu direito de defesa, ao não admitir a prova testemunhal que indicou.


O art 50º do RGC consagra o direito de audição e defesa do arguido.


Este direito de audição e defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contraordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências.


Porém, a autoridade administrativa tem o poder de direção da investigação e da instrução do processo, nos termos do art 54º, nº 2 do RGC, é a ela que cumpre decidir pela realização ou não das diligências de prova que lhe forem requeridas.


A autoridade decidirá da admissão das provas requeridas pelo arguido segundo critérios muito mais flexíveis do que os do processo penal.


Mas, a autoridade administrativa, ao não aceitar as diligências de prova requeridas pelo arguido, terá de fundamentar a sua decisão, em obediência ao princípio da legalidade (art 43º do RGC e art 266º, nº 1 da CRP).


Na fase administrativa deste processo de contraordenação, na decisão administrativa, o Município justificou assim a não inquirição das testemunhas indicadas pela arguida/ recorrente: não obstante a sociedade arguida ter arrolado testemunhas na sua defesa, designadamente, o fiscal municipal autuante II e HH, entende esta autoridade administrativa dispensar a sua inquirição, porquanto a prova constante dos autos, designadamente, o auto de notícia e a informação nº ..., de 4.7.2022 se revelam suficientes à descoberta da verdade e boa decisão do processo.


Com efeito, o auto de notícia por contraordenação e a informação posteriormente junta aos autos revelam desde logo a veracidade dos factos, na medida em que na data da fiscalização foi possível verificar que as frações estão a ser utilizadas como clínica veterinária, com a porta aberta, publicitado nas montras e com mobiliário habitual para a atividade em causa.


A defesa da arguida também não vem colocar em causa a veracidade dos factos, uma vez que não veio contradizer o descrito nem alegar que as frações não estão a ser utilizadas como clínica veterinária … e o que está precisamente em causa no presente procedimento contraordenacional é a utilização de duas frações interligadas sem autorização e utilização.


Ante o exposto, resulta claro que o indeferimento da inquirição das testemunhas foi decidido pelo Município no uso dos poderes de direção do processo contraordenacional e encontra-se fundamentado.


Por isso, não se pode imputar qualquer nulidade à autoridade administrativa por não ter procedido à inquirição das testemunhas arroladas pela arguida, porquanto entendeu ser desnecessária a sua audição, face aos elementos de prova documental existentes nos autos, à factualidade em causa no processo, às testemunhas arroladas serem dois fiscais municipais e um deles o autuante e a terceira ser o sócio da arguida.


Como bem decidiu o tribunal a quo, o direito de defesa da arguida in casu não foi preterido, improcedendo também este fundamento do recurso.


Erro de julgamento na análise da nulidade da decisão administrativa por falta de elementos necessários para a responsabilidade contraordenacional (conclusão XXIII).


A recorrente considera o conteúdo da decisão administrativa e do auto de notícia insuficientes para a aplicação de qualquer coima, imputando à decisão administrativa nulidade, de acordo com o disposto no art 58º, nº 1, al b) do RGC e nos arts 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al a) do CPP.


As normas citadas pela recorrente exigem que a decisão final de um processo de contraordenação descreva os factos dados como provados e os factos dados como não provados e indique as provas que os sustentam.


Tendo aqui presente o facto provado na al K) do probatório, relativo ao conteúdo da decisão de aplicação de coima, facilmente se alcança a falta de razão da recorrente.


Do conteúdo da decisão administrativa que condena a arguida no pagamento da coima constam os elementos que constituem a sua fundamentação, a saber: os factos provados, inexistindo factos não provados, motivos de facto (e também de direito) que fundamentam a condenação na coima, a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e o indeferimento motivado da audição das testemunhas arroladas pela arguida.


Improcede assim este fundamento do recurso.


Erro de julgamento na análise da falta de legitimidade substantiva da arguida (conclusões III, parágrafo 6º, III) (numeração repetida), IV, V).


A recorrente sustenta este erro de julgamento no facto de não ser a proprietária das frações autónomas que estavam a ser utilizadas como clínica veterinária em desacordo com o uso licenciado. Dai que não seja a responsável pela infração contraordenacional.


Esta questão improcede com fundamento na matéria de facto provada, nas als g), f), k) do probatório.


Os factos imputados à arguida datam de 13.5.2021, dia em que a fiscalização municipal verificou que a arguida estava a utilizar, como clínica veterinária, duas frações autónomas, interligadas, sitas na Praceta da Baia, nº 4, lojas ..., na União de freguesias de Cacém – São..., em desacordo com o uso fixado no alvará de utilização n.º ..., emitido a 4.5.1999.


Ora da matéria de facto provada na al f) resulta que em 7-9-2021, foi registada a aquisição da propriedade, por compra, da fração D, do prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Civil de Agualva-Cacém, sob o n.º ..., pela SSSS, à recorrente.


Sem dúvida o proprietário de ambas as frações no dia 13.5.2021 era a arguida/ recorrente. E apenas a partir de 7.9.2021 a fração se encontra registada em nome de outra sociedade.


É certo que a recorrente refere na conclusão III, parágrafo 6º, ter sido notificada dos factos de 13.5.2021 a 21.9.2021. Mas bem sabemos que a notificação é mero requisito de eficácia, não bulindo com a validade da atuação administrativa.


Daqui resulta que, como refere o MP, à data em que os serviços municipais constataram a prática da infração que vem imputada à arguida/ recorrente era esta e só esta a proprietária das frações por ela utilizadas para exercício da atividade de veterinária.


Assim, bem decidiu o tribunal a quo ao imputar a conduta em causa à recorrente, em virtude de ser a proprietária das frações, responsável pela regularidade urbanística do imóvel.


Termos em que improcede este fundamento do recurso.


Erro de julgamento quanto à (des)necessidade de autorização de utilização (conclusões 14, VI, VII, VIII, XXIV a XXXV).


O último erro de julgamento alegado pela recorrente prende-se com o fundo da imputação e condenação na coima que lhe foi aplicada, mais precisamente com o (in)cumprimento pela recorrente do disposto no art 4º, nº 5 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.


A recorrente alega que não existe infração ao art 4º, nº 5 do RJUE porque:


- a autoridade administrativa em 2010/ 2012 deferiu o pedido de alteração de uso da licença de utilização das frações autónomas designadas pelas letras ... e reconheceu que não cabia às CM decidir acerca do licenciamento da atividade da clínica veterinária;


- as referidas frações encontram-se perfeitamente separadas e são contíguas;


- é titular da autorização de funcionamento nº ..., emitida em 7.2.2020, pela DGAV;


- a autoridade administrativa ao levantar o auto de notícia dos autos, depois dos procedimentos de 2010 e de 2012, agiu em abuso de direito;


- as frações em causa têm licença de utilização concedida para comércio e indústria e para a prática da atividade de veterinária, não sendo necessária autorização da autoridade administrativa para a junção das duas frações.


- De todo o modo, a sentença recorrida foi proferida após a entrada em vigor do DL nº 10/2024, de 8.1, vulgo «Simplex», nos termos do qual as obras interiores não carecem de licença, decidindo aplicar ao caso o disposto no art 62º, nº 1 do RJUE decidiu contra legem.


Não assiste razão, de facto e de direito, à recorrente.


À recorrente vem imputada a ocupação de duas frações autónomas sem autorização de utilização, por no dia 13.5.2021, pelas 11h06m, na Praceta do ..., nº 4, lojas ..., em Cacém/São..., concelho de Sintra, estar a utilizar, como clínica veterinária, duas frações interligadas … em desacordo com o uso fixado no alvará de autorização de utilização.


O alvará de autorização de utilização das frações foi emitido em 4.5.1999, com o nº ..., para comércio ou indústria.


Em 23-09-2010, foi apresentado requerimento à Câmara Municipal de Sintra, que recebeu o número de processo ..., para a licenciamento da junção das frações ..., relativo ao prédio sito na Praceta ..., n.º 4, lojas C / D, e a alteração da sua utilização de comércio ou indústria para ZZZZ.


Este pedido foi deferido em 14-04-2012.


Foi efetuado pedido de emissão de alvará de autorização de utilização das frações ..., que foi indeferido em 09-01-2020, por não terem sido pagas as taxas correspondentes.


Em 18-03-2021 foi declarada a caducidade da licença, referente ao processo n.º ..., e arquivado o processo, dado que não foram pagas as taxas devidas pela alteração.


Portanto, no dia 13.5.2021 a recorrente não era titular da licença concedida no processo n.º ..., de junção das frações ... e de alteração da sua utilização de comércio ou indústria para ZZZZ.


As duas frações dispunham (apenas) de licença de utilização para utilização de comércio ou indústria.


A utilização das frações não estava licenciada para a prestação de serviços.


Pelo que, mesmo dispondo a recorrente de licenciamento, concedido pela DGAV, para o exercício da atividade de veterinária, no dia 13.5.2021, utilizava as frações onde explorava a sua atividade comercial para fim diverso do que estava autorizada a fazer: comércio ou indústria.


Efetivamente, a recorrente utilizava as frações em desacordo com o fim fixado no alvará de autorização de utilização, com o nº ..., de 4.5.1999.


A factualidade apurada no dia 13.5.2021 foi enquadrada como prática da contraordenação prevista e punida pelos arts 4º, nº 5 e 98º, nº 1, al d) do DL nº 555/99, de 16.12, na redação em vigor nessa data, ou seja, na redação dada ao RJUE pela Lei nº 118/2019, de 17.9.


O art 4º, nº 5 do DL nº 555/99, na redação então em vigor, dispunha: Está sujeita a autorização a utilização dos edifícios ou suas frações, bem como as alterações da utilização dos mesmos.


O art 98º, nº 1, al d) previa a punição como contraordenação da A ocupação de edifícios ou suas frações autónomas sem autorização de utilização ou em desacordo com o uso fixado no respetivo alvará ou comunicação prévia, salvo se estes não tiverem sido emitidos no prazo legal por razões exclusivamente imputáveis à câmara municipal.


Fundamentando o tribunal recorrido corretamente que a contraordenação que vem imputada à recorrente tem carácter estritamente urbanístico e diz apenas respeito à falta de autorização de utilização, para que as duas frações pudessem ser utilizadas com a interligação entre as mesmas para ZZZZ.


Logo, no que diz respeito à licença para a atividade de clínica veterinária, não releva para efeitos da contraordenação em questão, posto que não tem a virtualidade de autorizar a utilização das frações, após a interligação das mesmas.


Da mesma forma, a licença de utilização para comércio ou indústria detida antes da interligação das frações não releva para efeitos da utilização do edifício após a interligação, sendo necessária nova autorização de utilização, nos termos do artigo 62.º, n.º 1, destinando-se a verificar a conclusão da operação urbanística.


O DL nº 10/2024, de 8.1 (vulgo «Simplex») procedeu à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria, entrou, em geral, em vigor no dia 4.3.2024. Como se pode ler no preâmbulo do diploma (em sexto lugar) são adotadas medidas destinadas a simplificar o processo de obtenção da autorização para utilização. Deste modo, é eliminada a autorização de utilização quando tenha existido obra sujeita a um controlo prévio, substituindo-se essa autorização pela mera entrega de documentos, sem possibilidade de indeferimento, mas, naturalmente, mantendo-se todos os poderes de fiscalização durante e após a obra.


Por seu turno, quando exista alteração de uso sem obra sujeita a controlo prévio, deve ser apresentada uma comunicação prévia com um prazo de 20 dias para o município responder, considerando-se aceite o pedido de autorização de utilização, caso o município não responda.


Este regime não se aplica à situação em apreço.
Está em causa a prática de contraordenação no dia 13.5.2021, é esta data que releva para determinar o regime jurídico aplicável à situação concreta, não a data em que a sentença recorrida foi proferida (em 12.3.2024, isto é, 9 dias após a entrada em vigor do regime «Simplex»). Acresce que a junção das frações ... e a alteração da sua utilização de comércio ou indústria para ZZZZ não foi precedida de um controlo prévio nem foi apresentada uma comunicação prévia, considerando o novo regime.

Assim sendo, como refere o Ministério Público na conclusão 24 das contra-alegações, continua a arguida/ recorrente a incorrer na contraordenação que lhe vem imputada – utilização de fração autónoma em desacordo com o uso previamente fixado, uma vez que nenhum procedimento encetou no sentido de suprir a falta em que se encontra, nem à luz da legislação anterior, nem da atual.

Em suma, a decisão recorrida interpretou e aplicou corretamente a lei à matéria de facto provada, não incorrendo no erro de julgamento de direito que lhe vem imputado.

Decisão


Pelo exposto, decide o Tribunal Central Administrativo Sul, Secção de Contencioso Administrativo, Subsecção Comum, negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.


Custas a cargo da recorrente.


Notifique.


Lisboa, 2025-11-06,


[O relator consigna e atesta o voto de conformidade com o presente Acórdão dos restantes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Joana Costa e Nora e Lina Costa]


(Alda Nunes).