Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1165/23.9BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:04/03/2025
Relator:FILIPE CARVALHO DAS NEVES
Descritores:INDEFERIMENTO LIMINAR
OPOSIÇÃO
DUPLICAÇÃO DE COLETA
Sumário:I – Quando o despacho de indeferimento liminar tem por base apenas a petição inicial e factos processuais, ou seja, os factos respeitantes ao processo de execução fiscal e verificáveis em face da consulta dos autos, sendo que estas circunstâncias do processo não são de considerar como «factos objeto do litígio» para efeitos de julgamento pelo tribunal (cf. art.º 123.º, n.º1 do CPPT), a menos que sobre os mesmos exista dissídio, a reclamar a intervenção do tribunal, não há imposição legal no sentido de especificar ou indicar autonomamente factos provados ou não provados, uma vez que a decisão tem por suporte apenas a peça processual apresentada e esses factos que constam do processo.
II – Como de forma manifesta dimana do art.º 205.º do CPPT, um dos requisitos para a verificação de duplicação da coleta consiste precisamente no pagamento estabilizado de um tributo e que, após, seja exigido idêntico pagamento. E essa «identidade» radica na mesma natureza, identidade do(s) facto(s) tributário(s) e coincidência temporal, cabendo ao visado efetuar a respetiva prova (cf. art.º 342.º do CC).
III – O art.º 48.º da Carta dos Direitos fundamentais da União Europeia, o art.º 32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa e o princípio in dubio pro reo não se mostram violados pela conclusão quanto à inexistência de duplicação de coleta numa situação em que o executado não logrou demonstrar que procedeu ao prévio pagamento dos créditos tributários que estão a ser cobrados coercivamente através de execução fiscal.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

S…, Lda., melhor identificada nos autos, veio apresentar recurso do despacho liminar proferido a 27/10/2023 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leira, que indeferiu liminarmente a oposição à execução fiscal apresentada nos processos de execução fiscal («PEF») n.ºs 1430202301059971, 1430202301059998 e 1430202301060953 instaurados pelo Serviço de Finanças de Peniche para cobrança coerciva de dívidas provenientes da falta de pagamento, respetivamente, de Imposto sobre o Valor Acrescentado («IVA») do período de 2020/12T, de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas («IRC») de 2020 e de juros compensatórios de IVA do período de 2020/12T, nas quantias exequendas de € 19.728,25, € 32.223,43 e € 1.740,41, totalizando € 53.692,09.
A Recorrente apresentou alegações, rematadas com as seguintes conclusões:

«A - O presente recurso vem interposto da douta decisão do Tribunal Tributário de Leiria, na medida em que, salvo melhor e mais douta opinião, a mesma está ferida de nulidade prevista na última parte do n.º 1, do artigo 125.º, do CPPT, na medida em que o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo fundamenta a sua decisão na pronúncia sobre factos sobre os quais não se podia pronunciar, violando com isso o princípio do in dubio pro reo, previsto no artigo 48.º, da Carta dos Direitos fundamentais da União Europeia, bem como no n.º 2, do artigo 32.º, da CRP.
B - Isto no que tange à questão da duplicação de colecta, sendo certo que, não sendo esta a única parte da decisão com a qual a oponente não se conforma, é no entanto, a única de que decidiu recorrer.
C - Com efeito, o Meritíssimo Juiz afirma, entre outras coisas, sem qualquer base factual existente nos autos, que lhe permita extrair tais conclusões, que se os autos evoluíram para a fase da extração da certidão de dívida e consequente instauração dos processos de execução fiscal é porque os atos de liquidação que lhe deram origem foram considerados certos, líquidos e exigíveis (designadamente, por falta de impugnação graciosa e/ou contenciosa da sua legalidade concreta) e, portanto, atualmente, o valor da dívida exequenda é, também ele, certo, liquido e exigível.”.
D - E aqui haverá que dizer, desde logo, que após o exercício do direito de audição por parte da ora oponente, esta foi imediatamente notificada da presente execução, sendo este, a partir desse momento, o meio de oposição adequado, tal como se encontra previsto previsto na alínea g), do artigo 204.º, do CPPT.
E - Por outro lado, o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo, afirmou ainda na sentença ora recorrida, que a duplicação de coleta, in casu, está intimamente ligada e dependente da resolução de uma questão nuclear que lhe é prévia, que é a de saber se as prestações de serviço faturadas, que foram consideradas simuladas e relativamente às quais foram emitidos os atos de liquidação oficiosa de IVA e de IRC ora em cobrança coerciva (sublinhado nosso).
F - Concluindo que por tal facto estaríamos diante de uma matéria que, por contender com a legalidade concreta dos atos de liquidação ora em cobrança coerciva, deveria ter sido suscitada em sede própria, não constituindo, por conseguinte, fundamento de Oposição à Execução Fiscal subsumível a qualquer das alíneas do n.º 1, do artigo 204.º do CPPT e, designadamente, à sua alínea h).”.
G - E foi esta decisão que mereceu, nos termos da lei processual, a reacção através da oposição, aliás como está previsto na alínea g), do artigo 204.º, CPPT, a qual, se não tivesse sido objecto de reacção no prazo legal, através da oposição que deu origem à sentença ora recorrida, já não seria susceptível de impugnação por outra via, transitando imediatamente em julgado.
H - E a verdade é que tal fundamento, viola de forma flagrante a última parte do n.º 1, do artigo 125.º, do CPPT, na medida em que para além de falso, não existe nos autos nada que permita extrair tal conclusão, sendo certo que é nesse juízo que se funda a decisão, no que concerne à questão suscitada na oposição, relativamente à duplicação da colecta.
I - Sendo certo que a administração tributária nunca levantou qualquer suspeita no que tange à simulação da prestação de um serviço, com o intuito de defraudar os cofres do estado, mas tão somente concluiu que não lhe era possível apurar com rigor quais os serviços adquiridos, nem tão pouco, que os mesmos originassem gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo, para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.
J - Também e ainda, exigir a alguém que inicie um procedimento gracioso, com o intuito de provar que não cometeu um qualquer ilícito de natureza criminal, do qual nem sequer nunca foi acusado, ou indiciado, como acontece na sentença recorrida. constitui, salvo melhor e mais douta opinião, uma violação do princípio da presunção de inocência, de todo inadmissível, em contravenção com o estatuído no artigo 48.º, da Carta dos Direitos fundamentais da EU, do n.º 2, do artigo 32.º, da CRP.
K - E a violação daqueles preceitos legais, na medida em que pretende impor uma inadmissível inversão do ónus da prova, obrigando-a em sede de procedimento gracioso a demonstrar que não cometeu qualquer ilícito de natureza criminal, do qual nunca foi sequer indiciada, para além de constituir uma nulidade, tal como supra ficou exposto, extingue o processo, privando a ora oponente de prestar, em momento e sede próprios, a prova que a acusam, ilegalmente, de não ter feito.
L - E salvo melhor e mais douta opinião, no que tange à duplicação de colecta, o meio utilizado foi o próprio, como vem aliás previsto na alínea g) do artigo 204.º, do CPPT e a prova pode e deve ser prestada em audiência de julgamento, uma vez que, nos termos do n.º 1, do artigo 115.º, do CPPT, são admitidos no processo os meios gerais de prova.
M - E no caso concreto, não estando em causa qualquer dúvida no que tange à prestação dos serviços, mas tão só da dificuldade de apuramento rigoroso dos serviços prestados, a oponente até ofereceu como testemunha P…, que foi quem prestou os serviços e elaborou o guia de formação.
N - Sendo certo que é um facto público e notório, a não carecer de melhor prova, que quando uma entidade emite uma ou mais facturas, procede à cobrança de IVA e aumenta o base tributável em sede de IRC, no mesmo montante em que as entidades que as recebem e lançam na sua contabilidade, procedem às suas deduções, uma vez que sendo tributos de taxa fixa, a operação em causa é meramente matemática.
O – Assim, a sociedade comercial H…, quando emitiu as facturas aqui em crise, cobrou à ora oponente, reteve e entregou ao estado o IVA respeitante às mesmas, tendo aumentado a base tributável e pago, em sede de IRC, o montante que a ora oponente deixou de pagar.
P – Assim, a pretensão de obrigar a oponente a devolver, seja com que fundamento for, as mesmas verbas que já foram cobradas e recebidas da H…, constitui inevitavelmente duplicação de colecta, a qual consubstancia, além do mais, fundamento de oposição a execução fiscal (cfr. artigos 286.º, n.º 1, alínea f), e 287.º, do CPT; artigo 204.º, n.º 1, alínea
g), e 205.º, do CPPT), sendo factualidade igualmente de conhecimento oficioso pelo Tribunal (cfr. Artigo 287.º, n.º 2, do CPT; artigo 175.º, do CPPT).
Q - Por outro lado, a duplicação de colecta pode configurar-se como o equivalente, no domínio do direito fiscal, ao Princípio Penal da proibição do "non bis in idem", sendo causa de ilegalidade do acto tributário, traduzindo-se, como in casu, na da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta.
R - Face ao exposto, no caso concreto e salvo melhor e mais douta opinião, encontramse verificados os pressupostos que consubstanciam a duplicação de colecta, a oposição à execução foi o meio próprio de reacção, a mesma foi tempestiva, tendo sido indocados os meios de prova considerados adequados pela oponente (alínea g), do artigo 204.º e n.º 1, do artigo 115.º, ambos do CPPT).
S - Por fim, a prova só poderia ser valorada após a sua produção, o que não aconteceu, na medida em que o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo, deduziu factos que não se verificaram, pretendendo proceder a uma inversão do ónus da prova, no caso concreto, violando frontalmente o princípio do in dubio pro reo, tutelado quer pelo artigo 48.º, da Carta dos Direitos fundamentais da EU, do n.º 2, do artigo 32.º, da CRP.
MOTIVO PELO QUAL O PRESENTE RECURSO DEVERÁ SER RECEBIDO, APRECIADO E PROCEDER POR PROVADO E, CONSEQUENTEMENTE DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA, ORDENANDO-SE, EM CONFORMIDADE, A MARCAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO.
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A Exma. Magistrada do Ministério Público («EMMP») pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso jurisdicional.
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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul para decisão.

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II – DO OBJECTO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cf. art.º 635.º, n.º 4 e art.º 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil - «CPC» - ex vi art.º 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário - «CPPT»), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Assim, delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, importa decidir se:

(i) o despacho recorrido é nulo, por total ausência de fixação da factualidade relevante para a sua prolação e por se ter pronunciado quanto a questões que não deve conhecer; e,

(ii) deve ser revogado o despacho liminar proferido pelo Tribunal a quo com fundamento em erro de julgamento de direito, uma vez que nada obsta a que a oposição seja aceite liminarmente, porquanto está em causa a duplicação de coleta, fundamento ínsito na alínea g) do n.º1 do art.º 204.º do CPPT.

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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Quanto à nulidade do despacho recorrido

Alega a Recorrente que o despacho recorrido enferma de nulidade, dada a total ausência de indicação da factualidade relevante e «na medida em que o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo fundamenta a sua decisão na pronúncia sobre factos sobre os quais não se podia pronunciar, violando com isso o princípio do in dubio pro reo, previsto no artigo 48.º, da Carta dos Direitos fundamentais da União Europeia, bem como no n.º 2, do artigo 32.º, da CRP».

Vejamos.




Quando o despacho de indeferimento liminar tem por base apenas o teor da petição inicial e factos processuais, ou seja, os factos respeitantes ao processo de execução fiscal e verificáveis em face da consulta dos autos, sendo que estas circunstâncias do processo não são de considerar como «factos objeto do litígio» para efeitos de julgamento pelo tribunal (cf. art.º 123.º, n.º1 do CPPT), a menos que sobre as mesmas exista dissídio, a reclamar a intervenção do tribunal, não há, na nossa perspetiva, imposição legal no sentido de especificar ou indicar autonomamente factos provados ou não provados, uma vez que a decisão tem por suporte apenas a peça processual e esses factos que constam do processo.

Porém, nos casos em que o indeferimento liminar se baseia em factos de outro tipo ou posições jurídicas que são afirmadas com base em pressupostos de facto que não se resumem à petição inicial e à ponderação de factos processuais, impõe-se que nele sejam indicados esses outros factos que se consideram provados, sob pena de se ter de considerar deficiente a fixação da matéria de facto, o que implica nulidade da decisão, nos termos do art.º 125.º, n.º1 do CPPT e dos art.ºs 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC.


Veja-se, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo («STA») de 14/08/2019, processo n.º 0997/19.7BEBRG, disponível em www.dgsi.pt, no qual, além do mais, foi entendido que «recordemos que a Juíza do Tribunal a quo, apesar de ter entendido autonomizar sob a epígrafe “Factos Provados” as circunstâncias processuais que entendeu pertinentes à decisão da causa, não estava obrigada a fazê-lo, uma vez que o processo não ultrapassou a fase liminar.».




No caso dos autos, o despacho recorrido, para fundamentar o indeferimento liminar, baseia-se unicamente no teor das alegações vertidas na petição inicial pela então Oponente – ora Recorrente –, não se vislumbrando que tenha lançado mão de qualquer outra factualidade para motivar a decisão tomada.


De resto, a Recorrente também não indica que factualidade em concreto é que está em crise e que deveria ter sido autonomizada no despacho recorrido, o que seria essencial para substanciar devidamente a imputação feita quanto à verificação, nesta dimensão, de nulidade do despacho sub judice.

Conclui-se, assim, que é manifesto que, porque não estamos perante verdadeiros factos controvertidos que suportem a decisão, mas perante meras circunstâncias processuais e informações que constam do processo executivo e da petição inicial, improcede a invocada nulidade processual por falta de especificação da factualidade relevante para a prolação de despacho de rejeição liminar da petição inicial.


De igual forma, também não vislumbramos que o Tribunal a quo tenha apreciado questões que não devesse conhecer: pela própria razão de ser do instituto da duplicação de coleta, foi entendido elaborar no despacho em dissídio quanto ao contexto fáctico do caso sub judice, tendo por isso, com base no explanado na petição inicial, sido feita menção quanto à natureza alegadamente fictícia das operações que estão na génese do apuramento dos créditos exequendos. Nada mais.

Destarte, também aqui concluímos que não se verifica a nulidade da sentença que é imputada pela Recorrente, nos termos da parte final do n.º do art.º 125.º do CPPT, porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou sobre questões que não devesse conhecer.


E assim sendo, sem necessidade de mais nos alongarmos, improcede nesta parte o recurso jurisdicional apresentado contra o despacho sub judice.

Quanto ao erro de julgamento de direito preconizado no despacho recorrido

Insurge-se também a Recorrente contra o despacho recorrido por, alegadamente, padecer de erro de julgamento na interpretação e aplicação do direito, concretamente por o fundamento alegado na oposição à execução fiscal, respeitando à duplicação de coleta, ser subsumível na alínea g) do n.º1 do art.º 204.º do CPPT.

Apreciemos.

Adiantando, desde já, a nossa posição, entendemos que não tem razão a Recorrente.

Senão vejamos.

No art.º 204.º, n.º 1 do CPPT encontra-se previsto o elenco dos fundamentos de oposição à execução fiscal, o qual é taxativo como se depreende do uso do advérbio «» no corpo deste número. E a utilização desta expressão pelo legislador teve como deliberado propósito consagrar um elenco fechado de fundamentos que podem ser utilizados para substanciar a oposição à execução fiscal.

Assim, a acima citada norma, com a epígrafe «Fundamentos da oposição à execução», preceitua o seguinte:


«1 - A oposição só poderá ter algum dos seguintes fundamentos:
a) Inexistência do imposto, taxa ou contribuição nas leis em vigor à data dos factos a que respeita a obrigação ou, se for o caso, não estar autorizada a sua cobrança à data em que tiver ocorrido a respetiva liquidação;
b) Ilegitimidade da pessoa citada por esta não ser o próprio devedor que figura no título ou seu sucessor ou, sendo o que nele figura, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram, ou por não figurar no título e não ser responsável pelo pagamento da dívida;
c) Falsidade do título executivo, quando possa influir nos termos da execução;
d) Prescrição da dívida exequenda;
e) Falta da notificação da liquidação do tributo no prazo de caducidade;
f) Pagamento ou anulação da dívida exequenda;
g) Duplicação de coleta;
h) Ilegalidade da liquidação da dívida exequenda, sempre que a lei não assegure meio judicial de impugnação ou recurso contra o ato de liquidação;
i) Quaisquer fundamentos não referidos nas alíneas anteriores, a provar apenas por documento, desde que não envolvam apreciação da legalidade da liquidação da dívida exequenda, nem representem interferência em matéria de exclusiva competência da entidade que houver extraído o título.
2 - A oposição nos termos da alínea h), que não seja baseada em mera questão de direito, reger-se-á pelas disposições relativas ao processo de impugnação.».

Esta taxatividade dos fundamentos de oposição não implica uma restrição aos direitos fundamentais de acesso aos tribunais, à tutela jurisdicional efetiva e ao recurso contencioso, uma vez que a impugnação de atos lesivos, designadamente de atos tributários de liquidação de tributos, é permitida sempre que a lei não assegurar um meio de os impugnar contenciosamente, como expressamente refere a alínea h) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT. Neste sentido, veja-se Jorge Lopes de Sousa in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. III, 6ª Edição, 2011, pág. 411.

Por isso, o carácter taxativo dos fundamentos de oposição não consubstancia uma restrição daqueles direitos, mas sim um seu condicionamento, que não é proibido pela Constituição da República Portuguesa («CRP»), e é motivado, sobretudo, pelo desiderato de celeridade na execução fiscal. Quer isto significar que, como regra, não pode discutir-se na oposição à execução fiscal a legalidade da liquidação de tributos, que só pode sê-lo pelos meios próprios de reclamação graciosa ou impugnação judicial, a utilizar dentro dos prazos respetivos. Na execução fiscal, como regra, apenas se discute a exigibilidade do tributo, que foi liquidado em momento anterior e que funda a instauração e prosseguimento da ação contra o visado.

Assim sendo, a oposição à execução fiscal só pode ter como causa de pedir o facto ou factos subsumíveis em alguma das alíneas do art.º 204.º, n.º 1 do CPPT.

No caso que agora nos ocupa, tendo em conta o que se encontra plasmado nas conclusões de recurso, importar atentar, com maior pormenor, no que dimana da alínea g) do n.º1 do art.º 204.º do CPPT, já que a Recorrente apenas se insurge quanto ao decidido neste âmbito pelo Tribunal a quo relativamente ao julgado quanto à duplicação de coleta.

O art.º 205.º, nº 1 do CPPT dispõe que «haverá duplicação de coleta para efeitos do artigo anterior quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo».

Assim, são requisitos cumulativos desta figura jurídica os seguintes:
(i) unicidade dos factos tributários;
(ii) identidade de natureza entre o tributo pago e o que de novo se exige;
(iii) coincidência temporal do tributo pago e o que de novo se pretende cobrar (neste sentido, vejam-se os acórdãos do STA de 08/06/2022, processo n.º 0915/11.0BEBRG 01037/12, e deste Tribunal de 15/12/2021, processo n.º 810/20.2 BELRA, disponíveis em www.dgsi.pt).

Com refere Jorge Lopes de Sousa, in CPPT anotado, 4ª ed., pág. 930, «o alcance da duplicação de colecta é impedir que seja repetida a cobrança de um mesmo tributo.
A duplicação de colecta resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária.
No entanto, torna-se necessário que a realidade fáctica que está subjacente à pluralidade de liquidações seja a mesma, o que não acontecerá, por exemplo, no caso de liquidações adicionais, em que se pretende cobrar um tributo que, indevidamente, não foi liquidado inicialmente (…)
Distinta da duplicação de colecta é a dupla tributação, que ocorre quando há dois tributos que incidem sobre o mesmo facto tributário».

Aqui chegados, regressemos, então ao caso concreto da presente lide recursiva.

Relembremos o que foi decidido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria quanto à questão de saber se o alegado neste conspecto constitui fundamento de oposição à execução fiscal enquadrável na alínea g), do n.º 1, do art.º 204.º do CPPT. Assim, lê-se na decisão recorrida:

«Com efeito, a alegada duplicação de coleta surge alicerçada numa questão primordial que lhe antecede e que a sustenta, que é a de saber se, efetivamente, os impostos que estão a ser exigidos à Oponente são ou não devidos, o que passaria pela prévia comprovação (ou não) do caráter simulado das operações que deram lugar a deduções de IVA de 2020/12T e à relevação de gastos em sede IRC de 2020, pela Oponente, não permitidos por lei (cfr. artigo 19.º, n.º 3, do CIVA e artigo 23.º, do CIRC) – as asserções vertidas nos pontos 43.º, 48.º e 49.º da petição inicial parecem remeter, claramente, nesse sentido.
Ora, convocando para este instante o que se deixou patenteado supra, tal questão, por se reportar à legalidade concreta da dívida exequenda, também deveria ter sido suscitada e dirimida em momento e sede próprios, ou seja, em sede de Impugnação Judicial. De resto, e como assinala a própria Oponente, só após o esclarecimento desta matéria é que se poderia avançar para aqueloutra, ou seja, para a verificação ou não da apontada duplicação de coleta, que ela própria suscita como hipótese abstratamente possível, mas não certa, de se verificar no caso concreto (cfr. teor dos pontos 51.º e 52.º da p.i.).
Por outras palavras, a questão da duplicação da coleta, nos termos em que vem esgrimida na petição inicial, está intimamente ligada e dependente da resolução de uma questão nuclear que lhe é prévia, que é a de saber se as prestações de serviço faturadas, que foram consideradas simuladas e relativamente às quais foram emitidos os atos de liquidação oficiosa de IVA e de IRC ora em cobrança coerciva, consubstanciam ou não operações reais, o que só se lograria atingir com a impugnação contenciosa e/ou judicial de tais liquidações. Não o tendo feito, não pode a Oponente tentar agora recuperar a oportunidade perdida, tentando retirar de uma (abstrata e hipoteticamente) alegada duplicação da coleta efeitos que a estabilidade de tais atos já não consente.
(…)
Em síntese, também aqui estamos diante de uma matéria que, por contender com a legalidade concreta dos atos de liquidação ora em cobrança coerciva, deveria ter sido suscitada em sede própria, não constituindo, por conseguinte, fundamento de Oposição à Execução Fiscal subsumível a qualquer das alíneas do n.º 1, do artigo 204.º do CPPT e, designadamente, à sua alínea h).»


Ora, se bem apreendemos o teor da motivação gizada nesta parte no despacho recorrido, constatamos que foi feita uma apreciação já na perspetiva da avaliação do mérito da ação, e não propriamente no sentido de saber se o alegado pela então Oponente tem ou não enquadramento na alínea g) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT. Com efeito, em sede liminar, a ponderação que, num primeiro momento, deve ser feita, para além de aferir da tempestividade da petição inicial, consiste em determinar se as alegações que substanciam a causa de pedir são enquadráveis na baliza normativa definida pelo legislador quanto ao leque taxativo de fundamentos admissíveis de oposição à execução fiscal (cf. art.º 209.º, n.º1, alíneas a) e b) do CPPT); em caso de resposta afirmativa, impõe-se, depois, aquilatar se se verifica uma situação de manifesta improcedência, conducente a uma decisão de rejeição liminar, nos termos do art.º 209.º, n.º1, alínea c) do CPPT.

No despacho liminar sub judice o Tribunal a quo quando aponta que «a questão da duplicação da coleta, nos termos em que vem esgrimida na petição inicial, está intimamente ligada e dependente da resolução de uma questão nuclear que lhe é prévia, que é a de saber se as prestações de serviço faturadas, que foram consideradas simuladas e relativamente às quais foram emitidos os atos de liquidação oficiosa de IVA e de IRC ora em cobrança coerciva, consubstanciam ou não operações reais» está, no fundo, a emitir pronúncia quanto à não verificação de um dos requisitos da duplicação de coleta ínsito no art.º 205.º do CPPT: o pagamento por inteiro de um tributo que está de novo a ser exigido.

O que significa que no caso o Tribunal a quo elaborou, desde logo, sobre o mérito da oposição apresentada pela Recorrente, apesar de na primeira parte do despacho recorrido fazer menção ao não enquadramento das alegações que, nesta parte, substanciam a causa de pedir na alínea g) do n.º1 do art.º 204.º do CPPT, sem que tal ocasione, como veremos, que não tenha decidido com acerto quanto à sorte da petição inicial apresentada pela Recorrente.


É que, na verdade, o despacho recorrido alinhou um discurso fundamentador muito bem gizado para sustentar, com acerto, a manifesta improcedência da oposição, nos termos da alínea c) do n.º1 do art.º 209.º do CPPT.

Recuperemos, então, o que no despacho recorrido se consignou quanto a esta temática:
«Ora, no caso em apreço, a Oponente não logra demonstrar, desde logo, que ela própria ou uma terceira entidade tenha procedido ao pagamento dos impostos referentes às liquidações ora em cobrança coerciva.
Antes pelo contrário, depreendendo-se do teor das alegações vertidas na petição inicial que os impostos ora em cobrança coerciva estão correlacionados com operações fictícias, designadamente, faturas (falsas) emitidas pela prestação de serviços que não ocorreram (operações simuladas), resulta patente que a Oponente nem suportou o IVA patenteado nessas faturas (relativas ao período de 2020/12T) e, em sede de IRC do período de 2020, não poderia ter deduzido como gastos os valores nelas constantes.
Por outras palavras, é manifesta a impossibilidade conceptual de se concluir pela verificação de uma tal figura (a duplicação de coleta) no que respeita ao alegado facto de se estar a exigir o mesmo imposto a terceiros, uma vez que tal duplicação só vingaria se tais impostos estivessem pagos por inteiro e fosse agora, de novo, exigidos à Oponente ou a outra pessoa, o que não é o caso.
Em suma, não se mostram verificados os requisitos cumulativos da duplicação de coleta, nos termos previstos no n.º 1, do artigo 205.º do CPPT e, designadamente, não vem demonstrado que os impostos ora exigidos à Oponente (IVA de 2020/12T e IRC de 2010), ora em cobrança coerciva, já tinham sido previamente pagos.».




E, sopesada a acima transcrita motivação do despacho recorrido e as conclusões recursivas, não vemos razão para não acompanhar o que foi decidido pelo Tribunal a quo.

É que como de forma manifesta dimana do art.º 205.º do CPPT, um dos requisitos para a verificação de duplicação da coleta consiste precisamente no pagamento estabilizado de um tributo e que, após, seja exigido idêntico pagamento. E essa «identidade» radica na mesma natureza, identidade do(s) facto(s) tributário(s) e coincidência temporal, cabendo ao visado efetuar a respetiva prova (cf. art.º 342.º do Código Civil - «CC»).

No caso vertente, como bem se indicou no despacho recorrido, a Recorrente – então Oponente – não logrou demonstrar que tenha procedido ao pagamento dos créditos exequendos, ou que tal tenha sido feito por terceiro, o que seria indispensável para pugnar pela verificação in casu de uma situação de duplicação da coleta. De resto, o presente PEF foi instaurado precisamente para a cobrança coerciva de liquidações adicionais de IVA e de IRC que não terão sido oportunamente pagas pela Recorrente.

Mas mais: estando em causa, como se esclarece na oposição apresentada e nas alegações recursivas, que os créditos exequendos decorrem da emissão por parte da Autoridade Tributária de liquidações adicionais com fundamento em alegadas operações simuladas, em que estaria em causa a não dedução de IVA e a não aceitação como gastos em sede do IRC de valores faturados por um fornecedor, é ainda mais patente que poderá nem sequer ter sido pago qualquer valor com referência a essas transações em concreto.





Neste sentido, veja-se a posição assumida no acórdão do STA de 23/10/2019, processo n.º 0492/16.6BELRA 0358/18, consultável em www.dgsi.pt:
«“não se verific[a] tal vício, atento que não se mostram reunidos os requisitos de tal figura jurídica previstos no n.º 1 do artigo 205.º do CPPT, designadamente por não ter sido demonstrado o pagamento do imposto exigido à sociedade. E de facto assim é, pois nos termos do citado preceito legal só haveria duplicação de coleta se estivesse a ser exigido à [Oponente]
imposto já pago e referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo, o que manifestamente não ocorre no caso concreto.
Por outro lado, o facto de a AT ter considerado, no caso das sociedades que figuram nas faturas como adquirentes dos serviços, o imposto indevidamente deduzido, e ao mesmo tempo exigir, no caso da sociedade emitente das faturas, o pagamento do imposto liquidado, não é ilegal ou contraditório, no pressuposto de que neste último caso o imposto tenha sido efetivamente pago e recebido.
Como decorre do acórdão do TJUE de 18/06/2009 (proc. C-566/07): «Ao estabelecer que o IVA mencionado na factura é devido independentemente de qualquer obrigação de o pagar por
uma operação sujeita ao IVA, o artigo 21.°, n.º 1, alínea e), da Sexta Directiva visa eliminar o
risco de perda de receitas fiscais que pode decorrer do direito à dedução previsto no artigo 17.º da Sexta Directiva (v., neste sentido, acórdãos Schmeink & Cofreth e Strobel, já referido, n.º 57 e 61; de 6 de Novembro de 2003, Karageorgou e o., C-78/02 a C-80/02, Colect., p. 1-13295, n.º 50 e 53, bem como Reemtsma Cigarettenfabriken, já referido, n.º 23)»

E por ser assim, acompanhamos a conclusão retirada no despacho recorrido, no sentido de ser manifesta a impossibilidade de se concluir pela verificação de uma situação de duplicação de coleta. Consequentemente, contrariamente ao que alega a Recorrente, não se mostram violados os art.ºs 48.º da Carta dos Direitos fundamentais da União Europeia, o n.º 2 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio in dubio pro reo.

Resulta, assim, do que vem de ser dito, que improcedem as conclusões recursórias, pelo que o recurso não merece provimento, devendo o despacho recorrido ser mantido, o que de seguida se decidirá.

*
IV- DECISÃO

Termos em que acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 03 de abril de 2025

(Filipe Carvalho das Neves)

(Lurdes Toscano)

(Susana Barreto)