Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:187/06.9BEFUN
Secção:CA
Data do Acordão:07/14/2022
Relator:FREDERICO MACEDO BRANCO
Descritores:AÇÃO POPULAR
LEGITIMIDADE ATIVA
INTERESSES DIFUSOS
Sumário:I – A legitimidade ativa é legalmente conferida a quem seja titular de um interesse direto e pessoal, e que apenas na ausência dessa posição processual é justificado o recurso à ação popular, ou seja, a ação popular tem um carácter residual e excecional face à legitimidade conferida pela titularidade de interesse direto e pessoal.
II – Tendo sido proferido despacho saneador tabelar, sem que tivessem sido conhecidas as exceções alegadas pelas partes onde se afirmou que as partes são legitimas, tal constitui um despacho meramente circunstancial, não permitindo que se consolide caso julgado formal, admitindo-se que as exceções suscitadas e a própria legitimidade possa vir a ser apreciada em momento ulterior, atentos os articulados entretanto apresentados e a prova feita.
Efetivamente, há circunstâncias especiais em que a decisão das questões prévias pode ser reapreciada posteriormente pelo tribunal, designadamente quando só possa ser avaliado no final da discussão da matéria de facto e de direito.
A apreciação da legitimidade em momento ulterior ao Despacho Saneador Tabelar ou de qualquer outra exceção, mostra-se admissível, perante a inexistência de elementos para uma decisão imediata, sem que tal ponha em causa o Artº 88º nº 2 do CPTA, atento até o referido n.º 4 do artigo 595.º do CPC.
III – Em concreto, a pretensão dos Autores não se mostra inserida no núcleo de interesses previstos no âmbito do disposto no artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31/08, sendo que, alegar não é provar, de modo que a mera enunciação da violação de normas regulamentares, sem a devida caracterização da sua ofensa mostra-se insuficiente para a demonstração da titularidade de um interesse difuso.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I Relatório
L....., R....., G....., S..... e A....., intentaram “Ação Popular de Ação Administrativa Especial de Impugnação de Atos administrativos”, contra Município do Funchal, e contra C… – A....., Lda., C....., Lda., na qualidade de Contrainteressadas, e outros admitidos posteriormente nessa qualidade, tendente a impugnar os “atos praticados pela Entidade Demandada no procedimento de licenciamento administrativo para construção de um conjunto de Moradias Unifamiliares, a edificar num terreno situado no Caminho dos Saltos n.º….., Imaculado Coração de Maria, 9050-… Funchal, apresentado por M....., posteriormente averbado em nome da Contrainteressada C.... – A...., Lda.“
Inconformados com Sentença proferida em 5 de dezembro de 2021, através da qual foi julgado procedente a exceção de ilegitimidade ativa e, em consequência, absolvida da instância a Entidade Demandada e os Contrainteressados, e julgada improcedente a ação, os Autores interpuseram recurso jurisdicional da referida decisão, proferido em primeira instância no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal.
Formulam os aqui Recorrentes nas suas alegações de recurso, apresentadas em 21 de janeiro de 2021, as seguintes conclusões:
“a. O Tribunal a quo proferiu a fls. 747 do processo físico (III Volume), o despacho saneador, tendo julgado “As partes são legítimas…”;
b. Tal despacho judicial não foi impugnado, pelo transitou em julgado;
c. E passou a ter força obrigatória dentro do processo. - cfr. art. 620º do CPC, ex vi art. 1º do CPTA;
d. A matéria atinente à legitimidade das partes foi julgada pelo Tribunal aquando da prolação do despacho saneador de 12.5.2011;
e. O Tribunal a quo infringiu o caso julgado formal. - cfr. art. 620º do CPC, ex vi art. 1º do CPTA;
f. O regime do art. 87º/2 do CPTA não aplicação porque o Tribunal apreciou, de forma positiva e literal, a questão da legitimidade, julgando-as legítimas;
g. O Tribunal estava impedido a voltar a apreciar e decidir questão relativa à legitimidade das partes por força do caso julgado do despacho de 12.5.2011;
h. A decisão recorrida infringe o caso julgado formal e, bem assim, o disposto nos arts. 620º do CPC, ex vi art. 1º do CPTA, e 87º/2 do CPTA, pelo que é ilegal;
i. A decisão sob recurso alicerça-se na constatação de que a sua petição inicial é deficiente e lacunar;
j. Em face disso, o Tribunal a quo devia ter observado regime contido no art. 7º do CPTA e o correspondente princípio pro actione, o que não ocorreu;
k. A sentença recorrida infringe o principio pro actione, previsto no art. 7º do CPTA, pelo que é ilegal.
l. Impunha-se perante a deficiência da p.i. a prolação de despacho de despacho de aperfeiçoamento “quando a correção oficiosa não seja possível”. – cfr. art. 88º/2 do CPTA;
m. O Tribunal a quo omitiu qualquer alusão à possibilidade de correção oficiosa e o despacho de aperfeiçoamento;
n. Tais atos são prescritos na lei – cfr. art. 88º/2 do CPTA;
o. E a sua omissão constitui irregularidade que, por afetar a boa decisão da causa, consubstanciam nulidades processuais. - cfr. arts. 195º/1 e 2 CPC, ex vi art. 1º CPTA.
p. Do que os apelantes se prevalecem para todos os efeitos legais.
q. O direito de ação popular, previsto no art. 52º da Constituição, 1º/2 da LAP e 9º/2 CPTA, é um direito, liberdade e garantia de participação política dos cidadãos e um dos instrumentos essenciais dessa mesma participação democrática, sendo expressão do princípio democrático e da democracia participativa previstos nos arts. 2º e 65º/5 da Constituição;
r. O qual visa o “aprofundamento da democracia participativa” (cfr. art. 2º da Constituição) e constitui um objetivo constitucional e legal a alcançar, prosseguir e a efetivar;
s. Aquele direito é um dos instrumentos para a realização deste fim constitucional e legal, ao qual estão todos vinculados (cfr. art. 18º/1 da Constituição);
t. A legitimidade popular é conferida aos cidadãos no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos e os AA. são titulares dessas qualidades;
u. O objeto do direito de ação popular, nomeadamente no elenco dos domínios previstos nos arts. 52º/3 CRP, 1º/2 da LAP e 9º/2 CPTA, aos quais é conferida uma proteção jurídica qualificada.
v. Tal direito, por seu turno, pode incidir sobre qualquer ato/omissão atinente à prevenção, cessação e perseguição judicial das suas infrações, nomeadamente as levadas a cabo pela administração. – cfr. art. 1º/2 da LAP;
w. Os apelantes prevaleceram-se do direito de ação popular para, como decorre dos termos dos pedidos formulados e das causas de pedir constantes na sua p.i., a fazer cessar infrações aos interesses difusos prejudicados e ofendidos pelos atos administrativos da ED que foram impugnados;
x. No cotejo da p.i., tais infrações e tais interesses difusos violados são – e só podem ser - os que decorrem das concretas ilegalidades urbanísticas imputadas aos mesmos atos impugnados;
y. Como a medida da violação desses interesses difusos violados – pelo menos, os do urbanismo e da qualidade de vida – é, como só poder ser, a exata medida de cada uma das ilegalidades imputadas aos atos administrativos impugnados;
z. Pois que foram com estas e através destas que os inerentes interesses difusos são afetados e prejudicados;
aa. A interpretação vertida na sentença recorrida materializa uma efetiva recusa à correta e devida interpretação da petição dos AA. ou uma iníqua interpretação formalista da mesma pode justificar a decisão recorrida;
bb. E, bem assim, a uma interpretação da norma invocada em desconformidade com o direito constitucional de ação popular, em sentido contrário e de forma contraditória com o fim constitucional de “aprofundamento da democracia participativa”, imposto pela Constituição;
cc. Tal interpretação é, também, paradoxal nos seus termos: as ilegalidades imputadas às ações da ED (os concretos atos impugnados) que infringem um são e correto urbanismo ou uma sã e correta qualidade de vida servem para aferir dessa ilegalidade, mas já não para aferir da lesão aos interesses difusos por elas atingidos!
dd. No cotejo destes autos a única infração possível dos interesses difusos é a materializada nas ilegalidades que, por assim o serem, não prosseguem, de forma patente, um são e correto urbanismo ou uma sã e correta qualidade de vida;
ee. Reitera-se: a legitimidade popular depende unicamente das qualidades que os apelantes são titulares [cidadãos no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos];
ff. A interpretação da 1ª instância nega os fins próprios do direito de ação popular e o efetivo aprofundamento da participação democrática. – cfr. arts. 52º, 18º/1 e 2º da Constituição;
gg. Razões pelas quais o decidido infringe o tal direito constitucional e não prossegue os fins constitucionais impostos, sendo materialmente inconstitucional.
hh. A sentença recorrida é ilegal, devendo ser revogada, com as legais consequências.
Nestes termos deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências.”
O Recurso Jurisdicional apresentado veio a ser admitido por Despacho de 31 de janeiro de 2021.
O aqui Recorrido veio apresentar contra-alegações de Recurso em 2 de março de 2022, pugnando pela improcedência do recurso, não apresentando conclusões.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 30 de março de 2022, nada veio dizer requerer ou promover.
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, onde se suscita, predominantemente, a questão da legitimidade dos Autores uma vez que a mesma já teria precedentemente sido decidida no Despacho Saneador.

III – Fundamentação de Facto
Não foi em 1ª Instância fixada qualquer matéria de Facto Provada.
Por se mostrar relevante para a decisão a proferir, infra se fixam nesta instância os seguintes factos (Artº 662º nº 1 CPC):
a) Em 12 de maio de 2011 é proferido Despacho Saneador Tabelar, no qual se refere, nomeadamente que:
“O Tribunal é competente
As partes são legitimas e mostram-se representadas
Não há exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer previamente
(…)”
b) Por Despacho de 2.12.2015, o Tribunal de 1ª Instância determinou, nomeadamente, a notificação dos autores para responderem às exceções deduzidas nas contestações e outra, entretanto, deduzida pelo Município.
c) Por Sentença de 5 de dezembro de 2021, foi julgada procedente a exceção de ilegitimidade ativa e, em consequência, absolvida da instância a Entidade Demandada e os Contrainteressados.

IV – Do Direito
Importa agora analisar e decidir o suscitado.
Desde logo, e no que aqui releva, importa transcrever o essencial do discurso fundamentador da decisão Recorrida.
“Os Autores, na petição inicial, invocam a sua legitimidade decorrente da ação popular, importando analisar se os mesmos têm legitimidade ativa, cf. art. 9.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.
A ação popular ou o direito de ação popular consubstancia um alargamento da legitimidade processual ativa dos cidadãos na defesa de interesses difusos e gerais da coletividade, legal e constitucionalmente protegidos, tais como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, entre outros.
O direito de ação popular visa a obtenção de tutela jurídica de interesses da comunidade em geral, os quais não se confundem com os interesses diretos e pessoais que legitimam o direito de ação judicial para a tutela de posições jurídicas subjetivas.
Para efeitos de impugnação de atos administrativos, a legitimidade ativa é legalmente conferida a quem é titular de um interesse direto e pessoal, cf. art. 55.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Esta é a regra geral válida para os particulares face aos atos da Administração.
Apenas na ausência dessa posição processual é justificado o recurso à ação popular, ou seja, a ação popular (a legitimidade conferida pela mesma) tem um carácter residual face à legitimidade conferida pela titularidade de interesse direto e pessoal.
Assim, a tutela de posições jurídicas coletivas beneficia de um alargamento de legitimidade pela ausência (necessária) de um interesse direto e pessoal que confira o direito de ação judicial.
O contraponto da legitimidade alargada conferida pela ação popular estará na utilização residual da mesma, a qual deve ser afastada aquando da presença de um interesse direto e pessoal face a uma atuação da Administração lesiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
O cariz residual da legitimidade da ação popular implica ainda que a tutela pretendida respeite a interesses suficientemente difusos da comunidade de forma a não se confundirem com os interesses pessoais e diretos de cada um dos seus membros.
Por outro lado, precise-se que os Autores se abstêm de alegar e mencionar, no respetivo articulado, quais os interesses difusos ou os concretos interesses da coletividade que prendem acautelar.
De forma consonante, quando notificados pelo Tribunal para responderem à exceção de ilegitimidade, nada disseram.
É, pois, claro e manifesto que os Autores na enunciação dos vícios imputados aos atos da Administração, não efetuam qualquer concretização da medida em que os mesmos afetam direta ou indiretamente os bens jurídicos relativamente aos quais pretendem obter tutela jurídica. Referem-se exclusivamente à violação de normas legais e regulamentares de direito administrativo o que é claramente insuficiente para a caracterização e identificação de um interesse difuso.
Compulsada a causa de pedir é manifesto que não é possível aferir da posição de autores populares pois não é alegado em que medida os interesses difusos da comunidade em que se inserem – Município do Funchal - são afetados pela atuação da Administração.
Pergunta-se: de que forma os interesses difusos da comunidade em que se inserem os Autores, nomeadamente, o ordenamento do território, o urbanismo, o ambiente, a qualidade de vida, são afetados pelas alegadas ilegalidades dos atos praticados pelas Entidades Demandadas? É claramente omissa a alegação dos Autores sobre a factualidade necessária ao apuramento das eventuais lesões infligidas pelos atos da Administração, aos supra referidos bens jurídicos.
Ou seja, para aferir a legitimidade ativa dos Autores, em sede de ação popular, os mesmos deviam caracterizar a forma como os interesses difusos são ofendidos, o modo como esta ofensa se projeta nos demais cidadãos ou o modo como a coletividade é afetada pela violação dos alegados interesses difusos, vide, neste sentido, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 23/01/2014, processo n.º 10452/13, e de 15/10/2020, processo n.º 165/07.0BEFUN.
Ainda no mesmo sentido, decidiu-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14/06/2018, processo n.º 213/05.9BEFUN (13294/16), disponível em www.dgsi.pt.
(…)
Concluo, assim, pela procedência da exceção de ilegitimidade processual dos Autores na presente ação, o que obsta ao prosseguimento do processo nos termos do art. 89.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Constitui a ilegitimidade processual uma exceção dilatória, a qual impede legalmente o conhecimento pelo Tribunal do mérito da ação e gera a absolvição da instância da Entidade Demandada e dos Contrainteressados, cf. art. 278.º, n.º 1, alínea d), art. 576.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, ex vi do art. 1.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Fica prejudicada a apreciação da restante matéria de exceção.”
Vejamos:
Como resulta do discurso fundamentador da decisão recorrida supra transcrito, concluiu o tribunal a quo que se verificava, a ilegitimidade ativa dos recorrentes, o que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, tendo por consequência a absolvição da instância da Entidade Demandada e dos Contrainteressados, nos termos do art.º 278.º, n.º 1, alínea d), art.º 576.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 1.º e art.º 89.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Aqui chegados, entendem os Recorrentes que a decisão recorrida infringe o caso julgado formal e, bem assim, o disposto nos arts. 620° do CPC, ex vi art. 1 º do CPTA, e 87º /2 do CPTA, pois que já em momento precedente, no despacho saneador, se havia tabelarmente referido que as partes eram legitimas.

Mais referem os Recorrentes que a sentença recorrida infringe o principio pro actione, previsto no art.º 7º do CPTA, pois que se imporia, perante a deficiência detetada na p.i., na densificação de quais os interesses difusos ou os concretos interesses da coletividade que os recorrentes pretendiam acautelar, a prolação de despacho de aperfeiçoamento.

Por fim, afirmam os Recorrentes que a interpretação constante da Sentença materializa uma efetiva recusa à correta e devida interpretação da petição dos AA. ou uma “iníqua interpretação formalista da mesma pode justificar a decisão recorrida”, negando os fins próprios do direito de ação popular.

Como se afirmou na Sentença Recorrida, a legitimidade ativa é legalmente conferida a quem seja titular de um interesse direto e pessoal, e que apenas na ausência dessa posição processual é justificado o recurso à ação popular, ou seja, a ação popular tem um carácter residual face à legitimidade conferida pela titularidade de interesse direto e pessoal.

Ora, verifica-se que em 12 de maio de 2011, foi proferido despacho saneador tabelar, sem que tivessem sido conhecidas as exceções alegadas pela Entidade Demandada e pela Contrainteressada, onde se afirma, nomeadamente, que as partes são legitimas.

Tratando-se de um despacho meramente tabelar e circunstancial, não permite que se consolide o invocado caso julgado formal, admitindo-se que as exceções suscitadas e a própria legitimidade possa vir a ser apreciada em momento ulterior, atentos os articulados entretanto apresentados e a prova feita.

Efetivamente, a análise definitiva, designadamente da questão da legitimidade, só poderá ser verificada com segurança em momento ulterior, mormente após as alegações das Partes, sintetizadas e sistematizadas em conclusões.
Neste sentido aponta, designadamente, o entendimento de Vieira de Andrade (in “Justiça Administrativa” pag. 283) quando refere que “há circunstâncias especiais em que a decisão das questões prévias pode ser reapreciada posteriormente pelo tribunal, designadamente quando (…) só possa ser avaliado no final da discussão da matéria de facto e de direito, que constitui o objeto do processo”.
Correspondentemente, como sumariado no Acórdão do TCAN nº 01489/16.1BEBRG-R1 de 31-10-2019 “Aliás, já relativamente à anterior versão do CPTA se havia pronunciado Vieira de Andrade nesse sentido, quando referiu que há circunstâncias especiais em que a decisão das questões prévias pode ser reapreciada posteriormente pelo tribunal, designadamente quando “… só possa ser avaliado no final da discussão da matéria de facto e de direito, que constitui o objeto do processo”.
Como sumariado no Acórdão do TCAS nº 867/05, de 07/12/2011, “A declaração tabelar ou genérica sobre os pressupostos processuais não faz caso julgado formal.”
Igualmente se sumariou no Acórdão do TCAS nº 1267/05, de 25/11/2009 que “(…) limitando-se o Mmº Juiz “a quo” a fazer uma declaração genérica da legitimidade do Autor (tabelar) sem efetuar uma apreciação concreta, o despacho saneador, não constitui nesta parte caso julgado formal, nada obstando e até se impondo a apreciação da legitimidade em momento subsequente, ou seja, não está precludida a possibilidade de apreciar a questão da legitimidade ativa – objeto deste recurso.”

A apreciação da legitimidade em momento ulterior ao Despacho Saneador Tabelar ou de qualquer outra exceção, mostra-se pois admissível, perante a inexistência de elementos para uma decisão imediata, sem que tal ponha em causa o Artº 88º nº 2 do CPTA, atento até o referido n.º 4 do artigo 595.º do CPC.

Mesmo que assim não fosse, se é certo que em 12.5.2011, foi proferido despacho saneador tabelar, no qual se entendeu que “o tribunal é competente. As partes são legitimas e mostram-se representadas. Não há exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer previamente”, o que é facto é que o mesmo tribunal em 2.12.2015, mandou notificar os autores para responderem às exceções deduzidas nas contestações e a outra, entretanto, deduzida pelo Município, o que sempre legitimaria a reapreciação das exceções, nomeadamente a questão da legitimidade ativa dos Autores.

Suscitam ainda os Recorrentes a circunstância de que deveria ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento que lhes permitisse definir quais os interesses difusos ou os concretos interesses da coletividade que pretendiam acautelar com esta ação, o que, ao não ter acontecido acarreta a violação do principio pro actione, previsto no art.º 7º do CPTA.

Importa realçar que não está aqui em causa, por exemplo, a ininteligibilidade da Petição, o que permitiria, sendo caso disso, a sua correção, mas antes a ilegitimidade ativa dos Autores, o que se mostra, por natureza, insuscetível de ser corrigido.

Preceituavam os n.ºs 1 e 2 do artigo 88.º do CPTA, na sua versão originária, com a epígrafe “Suprimento de exceções dilatórias e aperfeiçoamento dos articulados”, o seguinte:
“1 – Quando, no cumprimento do dever de suscitar e resolver todas as questões que possam obstar ao conhecimento do objeto do processo, verifique que as peças processuais enfermam de deficiências ou irregularidades de carácter formal, o juiz deve procurar corrigi-las oficiosamente.
2 – Quando a correção oficiosa não seja possível, o juiz profere despacho de aperfeiçoamento, destinado a providenciar o suprimento de exceções dilatórias e a convidar a parte a corrigir as irregularidades do articulado, fixando o prazo de 10 dias para o suprimento ou correção do vício, designadamente por faltarem requisitos legais ou não ter sido apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.”

No mesmo sentido, aponta o CPTA de 2015 ao afirmar no artigo 87.º que o juiz (i) conhece de todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo, (ii) providencia pela correção das irregularidades formais ou substanciais dos articulados e (iii) o suprimento de exceções dilatórias, em respeito do disposto no artigo 88.º do CPTA e do dever de gestão processual, previsto no n.º 2 do artigo 6.º do CPC e no n.º 2 do artigo 7.º-A do CPTA.

O Tribunal tem assim um poder-dever de suprimento oficioso de exceções dilatórias, seja por regularização por sua iniciativa, seja por sanação por impulso processual da parte mediante convite do tribunal.

Na situação em apreciação, no entanto, não se impunha ao Tribunal a quo a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, por não estar em causa matéria que pudesse ser aperfeiçoada pois que, em bom rigor o articulado não padecia de qualquer irregularidade, antes os Autores se mostravam partes ilegítimas, o que não é suscetível de ser ultrapassado pelo mero recurso ao princípio pro actione, previsto no artigo 7.º do CPTA.

Em qualquer caso, vejamos o que está em causa:
Os recorrentes impugnam atos praticados pela Entidade Demandada no procedimento de licenciamento administrativo para construção de um conjunto de Moradias Unifamiliares, a edificar num terreno situado no Caminho dos Saltos n.º…., Imaculado Coração de Maria, apresentado por M....., posteriormente averbado em nome da Contrainteressada Conselheiro - A....., Lda., peticionando que se:
- declare a nulidade ou que decrete a anulação dos atos administrativos impugnados;
- condene a Entidade Demandada e os Contrainteressados a cumprir com as normas de direito administrativo;
- ordene o cancelamento do registo do prédio destacado a favor de D..... e M…. e em consequência da escritura pública de compra e venda lavrada no 2° Cartório Notarial do Funchal.

Na Petição os Autores invocam a sua legitimidade decorrente de ação popular, nos termos do art. 9.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.

Tal como enunciado em 1ª Instância mostra-se que o peticionado se não enquadra em matéria inserida no núcleo de interesses previstos no âmbito do disposto no artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31/08, tanto mais que se abstêm de alegar e mencionar, no respetivo articulado, quais os interesses difusos ou os concretos interesses da coletividade que prendem acautelar.

É certo que de acordo, com o disposto no artigo 9.º n.º2 do CPTA, qualquer pessoa bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, sendo que os termos previstos na Lei vêm regulados na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (direito de ação popular).

Em qualquer caso, na situação em apreciação, a legitimidade que está em causa é para o exercício de ação popular destinada à defesa de interesses difusos, a que se reporta o artigo 52.º n.º 3 da CRP.

O objeto da ação popular centra-se nos chamados interesses difusos, ou seja “interesses sem titular determinável, meramente referíveis na sua globalidade a categorias indeterminadas de pessoas evidenciados(s) pela sua adstrição a um conjunto de pessoas caracterizado pela sua indivisibilidade e pela indeterminabilidade dos seus componentes (…) A necessidade de admitir a iniciativa processual popular relativamente aos interesses materiais selecionados no nº3 do artigo 52º da CRP resulta de, em muitas circunstâncias, eles se apresentarem para a grande maioria dos cidadãos como meros interesses difusos, pelo que ninguém poderá invocar um interesse pessoal e direto na prevenção, cessação ou perseguição judicial das infrações contra esses bens cometidas”. (Cfr. Acórdão TCAS – Procº nº 10452/13, de 23 de janeiro de 2014 – citando Sérvulo Correia, in “Direito do Contencioso Administrativo”, I, LEX, 2005, págs. 245 e 261).

Na situação concreta, verifica-se que na caracterização dos vícios, não é efetuada qualquer concretização da medida em que os invocados vícios afetam direta ou indiretamente os cidadãos do Funchal, ou qualquer interesse difuso, pois que não procedem sequer à enunciação de qualquer direito difuso que tenderiam a proteger.

Do mesmo modo, nada se invoca relativamente a factos e circunstâncias que pudessem afetar, direta ou indiretamente, o direito à qualidade de vida dos cidadãos ou do ordenamento do território.

A pretensão dos Autores não se mostra igualmente inserida no núcleo de interesses previstos no âmbito do disposto no artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31/08, sendo que, alegar não é provar, de modo que a mera enunciação da violação de normas regulamentares, sem a devida caracterização da sua ofensa mostra-se insuficiente para a demonstração da titularidade de um interesse difuso.

Assim, tal como decidido em 1ª Instância, não se reconhece que os aqui recorrentes detivessem legitimidade, à luz do art. 9.º, n.º 2 do CPTA, em face do que não detêm interesse em demandar na presente ação, o que determinará que seja negado provimento ao Recurso, confirmando-se a Sentença Recorrida.

* * *

Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao Recurso, confirmando-se a Sentença Recorrida.

Custas pelos Autores, aqui Recorrentes, nos quais não se inclui o autor Gil Canha o qual desistiu do pedido, o que foi homologado em 3.4.2009.

Lisboa, 14 de julho de 2022
Frederico de Frias Macedo Branco

Alda Nunes

Lina Costa