| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:
1. Relatório
P…, Transportes Marítimos, Lda. (doravante Recorrente, Requerente ou A.), entidade concessionária do Serviço Público de Transporte Regular de Passageiros e Mercadorias por Via Marítima entre o Funchal e o Porto Santo, instaurou, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, a presente ação de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias contra a Guarda Nacional Republicana /Ministério da Administração Interna (MAI) (doravante Requerido, Recorrido ou ER), indicando como Contrainteressada a AT-RAM, Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da RAM, peticionando que a R. “seja intimada para se abster de efectuar acções de fiscalização no âmbito do Regime de Bens em Circulação, nas instalações da A. localizadas no Porto do Porto Santo e afectas ao serviço público de Transporte Regular de Passageiros e Mercadorias prestado pela mesma, com as legais consequências”.
Por sentença de 15 de junho de 2024, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou a intimação procedente e, em consequência, intimou a Entidade Requerida “para se abster de efectuar acções de fiscalização no âmbito do Regime de Bens em Circulação, nas instalações da A. localizadas no Porto do Porto Santo e afectas ao serviço público de Transporte Regular de Passageiros e Mercadorias prestado pela mesma, com as legais consequências”.
Inconformado, o R./Requerido, MAI, interpôs recurso jurisdicional dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, concluindo nos seguintes termos:
«A. Como já referido, nos presentes autos e pretende a A., com a presente ação, obter uma decisão que intime a Guarda Nacional Republicana de "se abster de efetuar ações de fiscalização no âmbito do Regime de Bens em Circulação, nas instalações da A. localizadas no Porto do Porto Santo e afetas ao serviço público de Transporte Regular de Passageiros e Mercadorias prestado pela mesma".
B. Entendeu a Douta Sentença ora recorrida "considerando o elemento sistemático e a letra da lei (...) que o conceito de «instalações portuárias», para efeitos de aplicação do Decreto Regulamentar n.° 86/2007, de 12.12, abrange todas as infraestruturas, mormente o armazém utilizado pela Autora ao abrigo do contrato de concessão do serviço público de transporte de passageiros e mercadorias, que integra o domínio público marítimo da Região Autónoma da Madeira;”.
Concluindo que:
"Nessa medida, assiste razão à Autora quando afirma que a Guarda Nacional Republicana não tem competência para efetuar ações de fiscalização em instalações portuárias, situadas no Porto de Abrigo, na ilha do Porto Santo. Aliás, a violação das normas definidoras da competência já havia sido reconhecida em reunião de coordenação operacional, ocorrida entre a Autoridade Tributária e a Guarda Nacional República no ano de 2021 (cf. facto provado n.° 11).
Assim sendo, a Entidade Demandada estava impedida por lei, no uso de uma competência que não lhe é própria, mas sim da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), de atuar contra legem (cf. artigos 16.° e 17.° do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira).".
C. Não se podendo a administração conformar com tal decisão vamos então abordar cada um dos aspetos mais relevantes que levarão seguramente à anulação desta sentença.
D. Em primeiro lugar, quanto à utilização do processo de intimação previsto no artigo 109.° do CPTA, entendeu o Douto Tribunal, admitir a presente intimação por considerar que mesma se adequava para proteger "(...) todo e qualquer tipo de direitos, liberdades e garantias (pessoais e de conteúdo patrimonial), para os casos em que a emissão célere de uma decisão de mérito imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa que seja indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, um direito, liberdade e garantia, por não ser suficiente o decretamento de uma providência cautelar".
E. Esta contenda iniciou-se em 2021, data em que foi assinado o primeiro parecer do departamento Jurídico da A., a dar conta ao Comando Territorial da Madeira da sua posição relativamente à competência desta Força de Segurança para fiscalizar no seu armazém, sito no Porto do Porto Santo.
F. Ou seja, mais de 3 anos depois da primeira abordagem da A.;
G. Aproveitando o texto citado na Douta Sentença referente aos autores Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha, "a utilização da intimação não está sujeita a prazo de caducidade (cfr. Acórdão do TCA Sul de 2 de julho de 2009, Processo n.° 5139/09), mas, a nosso ver, só se justifica se esse for o único meio que em tempo útil permita evitar a lesão do direito, pelo que está necessariamente associada a uma situação de urgência.’’.
H. Assim, "a utilização do processo de intimação previsto no artigo 109.° do CPTA depende não só da alegação e prova de que o alegado direito, liberdade ou garantia está ameaçado mas também da alegação e prova de que, no caso, se impõe uma urgente decisão de mérito e desse processo ser a única forma da lesão ou ameaça ser removida", (cf. Acórdão de 29.01.2014 do STA, Proc. 1370/13-11).
I. Mais é referido no citado acervo jurisprudencial que "Este meio processual não é, assim, a via normal de reação em situações de lesão ou ameaça de lesão visto a sua utilização só poder ter lugar quando for seguro que a propositura de uma ação administrativa cumulada com um pedido de tutela cautelar é incapaz de proporcionar a efetiva tutela do direito, liberdade ou garantia ameaçada.".
J. De igual modo o Acórdão de 04.03.2016, do TCA Norte, Processo 2931/15.4BEPRT decide que "Só é admissível o uso do processo de intimação previsto no artigo 109.° e ss do CPTA quando esteia em causa a lesão, ou a ameaça de lesão, de um direito, liberdade e garantia ou de um direito fundamental de natureza análoga, cuia proteção careça da emissão urgente de uma decisão de fundo (indispensabilidade) e não se verifique uma impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar, instrumental de uma ação administrativa comum ou especial (subsidiariedade). II. A falta de qualquer um dos referidos pressupostos de admissibilidade consubstancia exceção dilatória inominada de inidoneidade do meio processual.”.
K. Verifica-se na Douta Sentença que nenhuma desta jurisprudência e doutrina foram tidas em conta, não tendo sequer em conta os argumentos aludidos pelo R., provando que esta não era a forma processual para resolver o litígio.
L. Aguardar três anos para evitar a putativa lesão de um direito constitucional não poderá em momento algum ser considerado "célere", nem "em tempo útil" e tão pouco "situação de urgência’’.
M. Aliás, esperar tanto tempo para finalmente a A. se queixar desta matéria, até nos leva a concluir que o problema não seria assim tão premente, porque, a sê-lo, poderia ter lançado mão deste procedimento numa fase muito mais precoce.
N. Também só passados três anos é que o R. veio a ter conhecimento de que a A. se sentia prejudicada no seu direito constitucional à livre iniciativa privada (conforme previsto e garantido no n.° 1 do Artigo 61.° da CRP) a partir do momento em que vem requerer junto do venerando TAF - Funchal a "intimação para proteção de direitos, liberdade e garantias, ao abrigo dos artigos 109.° e seguintes do CPTA".
O. Porque, até esse momento, a grande questão de fundo era tão e somente a competência (ou falta dela) para a GNR efetuar ações de fiscalização no armazém da A., sito na zona portuária do Porto Santo.
P. E bastaria tal alegação de violação de direitos constitucionalmente protegidos por parte da A. para que o R. (enquanto entidade do Estado, vinculada os princípios gerais da Administração Pública e de atuação das Forças e Serviços de Segurança, designadamente garantir os direitos constitucionais dos seus cidadãos e empresas) encetasse de imediato uma avaliação da atuação das nossas Forças, no sentido de averiguar se, de facto, tal violação de direitos estava a ocorrer e adotar os mecanismos corretivos necessários.
Q. Novamente, nunca esta situação foi apresentada pela A. ao R.
R. Logo, também o R. não tinha obrigação de conhecer as angústias da A.
S. Porquanto, considera o R., que o Digníssimo TAF, com o devido respeito, não deveria ter aceite a ação da A. por inexistirem os pressupostos de admissibilidade exigidos no artigo 109.° do CPTA, considerando-se estarmos nitidamente perante uma exceção dilatória inominada de inidoneidade do meio processual utilizado, pelo que se deveria impor, com o devido respeito e s.m.o. face ao disposto no artigo 110.°-A do CPTA a prolação de despacho liminar em que seja fixado prazo para "o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, seguindo-se, se a petição for substituída, os termos do processo cautelar.".
T. Sobre a eventual obstrução ao direito a salvaguardar a liberdade de iniciativa privada, consagrado no artigo 61.° da CRP, refere a douta sentença umas putativas "regras da experiência", sobre as quais não se consegue extrair a sua origem e fundamento, referindo o seguinte:
"As regras da experiência indicam-nos que a permanência constante de agentes da Guarda Nacional Republicana nas instalações privadas da A. pode pôr em causa o direito à liberdade empresarial, por inibi-la de organizar devidamente o tempo de trabalho dos seus colaboradores, inviabilizando o exercício pleno das atividades produtivas da A." implicações na livre circulação de mercadorias, que se vê coibida de, na vida quotidiana, desenvolver a sua atividade de modo livre, dependente sempre das conclusões das fiscalizações diárias pelos elementos da Guarda Nacional Republicana (cf. artigo 607.°, n.° 1, do CPC, ex vi do 1.° do CPTA)."
U. Com este entendimento levantam-se várias questões, já elencadas no ponto 24. das alegações:
V. E sobre esta matéria, refere o Acórdão do STJ 3612/07.6TBLRA que:
"As regras da experiência não são meios de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos do conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extração de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil."
W. Em suma, com esta afirmação, cria-se logo no início da sentença um "espaço oco e vazio", que impede a perceção e entendimento do processo cognitivo que levou ao resultado final da douta sentença.
X. Como pode o Tribunal saber através destas supostas "regras da experiência" que "(...) a permanência constante de agentes da Guarda Nacional Republicana nas instalações privadas da A. pode pôr em causa o direito à liberdade empresarial (...)" considerando que a A. não apresenta qualquer facto que indicie esta alegação, nem são demonstrados quaisquer indícios pelas partes em contenda?
Y. Além de que, voltamos a reforçar, a atividade de fiscalização da GNR é feita de modo a não interferir com as atividades quotidianas nem colocar em causa o desenvolvimento da atividade da A., conforme a GNR declarou em documento próprio, mas que o TAF - Funchal entendeu por bem nem sequer considerar, nem explicando tão pouco na sentença porque não tomou em conta esta informação.
Z. É que exatamente estas "regras da experiência" do R. indicam exatamente o contrário, que esta metodologia de trabalho é a que melhor preenche o princípio da proporcionalidade, ao qual está legalmente vinculada, nunca tendo existido qualquer indício que revelasse uma necessidade de mudar o procedimento após mais de 10 anos a utilizar esta metodologia de fiscalização nos transitários da Região Autónoma da Madeira, sem, até agora, receber qualquer reclamação.
AA. Concluímos assim, que existe, desde logo, um «excesso de pronúncia» por parte do Tribunal, o que, por si só, já é motivo bastante para pedir a nulidade da sentença, considerando que, de acordo com o disposto na alínea d) do n.° 1 do artigo 615.° do Código de Processo Civil (CPC), é nula a sentença quando "o juiz [...] conheça de questões de que não podia tomar conhecimento".
BB. Quanto à "questão a decidir" (ponto III da sentença) que refere: "As questões que ao Tribunal cumpre apreciar e decidir, tendo presente a alegação expendida pelas partes, consistem em aferir se a Entidade Demandada deve ser intimada para se abster de efectuar acções de fiscalizações no âmbito do regime de bens em circulação (RBC), no armazém da A. no porto, na ilha do Porto Santo, afecto ao serviço público de transporte regular de passageiros e mercadorias prestado pela A., (i) por falta de competência da GNR. Em caso negativo, (ii) aferir da violação do princípio da proporcionalidade." elucidativa da estratégia adotada pelo TAF - Funchal.
CC. De facto, a questão de fundo desta contenda é, tão e somente: tem o R. competência para fiscalizar no âmbito do RBC, o armazém da A.?
DD. Nos factos provados que sustentaram a convicção do Tribunal, conforme consta no ponto IV da sentença, refere que "Nos presentes autos, a convicção do Tribunal formou-se com base na apreciação das alegações das partes constantes dos articulados e na análise crítica da prova documental oferecida pelas partes e não impugnada (cf. artigos 374.° e 376.° do CC) e do processo administrativo junto aos autos, cuja veracidade não foi colocada em causa pelas partes (cf. artigos 370.° a 372.° do CC), não havendo indícios que ponham em causa a sua genuinidade, tal como se mencionou em cada ponto da matéria de facto provada.".
EE. Ora, se tivesse havido uma leitura atenta da documentação disponibilizada pelo R., e comparando-a com a da A., facilmente se chegaria à conclusão que:
- Não há acordo entre as partes naquele que é o conceito de "instalação portuária”;
-Há divergência de opinião das partes relativamente à competência para o R. fiscalizar no armazém da A.
- Bem como no putativo "prejuízo grave" para o desenvolvimento da atividade económica da A.
FF. Pelo que nunca se poderiam dar como provados os factos constantes na douta sentença havendo notórias posições antagónicas entre estas, verificando-se que nem sequer o Douto Tribunal lançou mão das ferramentas que tinha disponíveis para sanar estas contradições, o que nos leva a concluir que tomou os factos apresentados pela A. como provados e os do R. como não provados.
GG. O que, à luz do dever de fundamentação e os objetivos que este visa alcançar, o douto Tribunal, com a devida vénia, deveria ter-se empenhado na sua explicação e não se cingir a apresentar documentos ou partes destes, destituídos de qualquer densidade, que pouco ou nada dizem e, por isso, nada fundamentam.
HH. Conforme consta no Acórdão 00724/04.3BEVIS do Tribunal Central Administrativo Norte "O dever de fundamentação da sentença abrange realidades distintas (mas conexas) que incluem a fixação dos factos provados e não provados, a respectiva fundamentação de direito, mas também a explicitação das razões pelas quais o julgador considerou provado determinado facto. Ou seja, inclui a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do jugador sobre a prova.’’.
II. Continuando, no ponto "V. Direito" somos iluminados pelo douto exercício de hermenêutica à expressão «instalação portuária» (a questão original!) que, conforme refere a douta sentença, se suportou nos brilhantes ensinamentos de "J. Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 22.- Reimpressão, Almedina, 2012, p. 181 e ss. e Acórdão do STJ de 26.01.2021, Processo n.° 908/19, disponível em www.dgsi.pt".
JJ. No caso em apreço, (apesar de se fazer a devida vénia ao produto final) seria perfeitamente desnecessário, considerando que esta expressão colhe definição legal na legislação que está na génese do próprio Decreto Regulamentar 86/2007, de 12 de dezembro, bastando, para isso, ler o preâmbulo do diploma para retirar esta conclusão (o que incompreensivelmente nem foi tido em conta na Douta Sentença).
KK. O Decreto Regulamentar 86/2007, de 12 de dezembro, surge da necessidade de articular todas as entidades com competência nas zonas portuárias, conforme estabelece e prevê o Decreto-lei n.° 226/2006, de 15 de novembro, que aprova normas de enquadramento do Regulamento n.° 725/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março, relativo ao reforço da proteção dos navios e das instalações portuárias, e transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.° 2005/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro, relativa ao reforço da segurança nos portos.
LL. No âmbito do Decreto-Lei n.°226/2006, de 15 de novembro, que pretende estabelecer "(...) a forma como, ao nível interno, as entidades e organismos se devem articular e a sua responsabilidade de atuação (...)" prevendo a atuação da Guarda Nacional Republicana (GNR) "(...) no âmbito das suas competências em razão da matéria e do território", densificando estas atribuições no Decreto Regulamentar 86/2007, de 12 de dezembro, apresentando ainda um conjunto de definições que melhor ajudam a compreender esta legislação e onde se inclui a definição de «instalações portuárias», nos termos do artigo 3.°, nas suas alíneas r) e s), do Decreto-Lei n.° 226/2006, de 15.11, que estabelece o seguinte:
"r) «Instalação portuária (IP)» o local onde tem lugar a interface navio/porto, incluindo, se aplicável, os fundeadouros, os cais de espera e os acessos pelo lado do espelho de água;
s) «Interface navio-porto» as interações que ocorrem quando um navio é direta e imediatamente afeitado por atividades que implicam o movimento de pessoas ou mercadorias, ou a prestação de serviços portuários, de ou para o navio;"
MM. Que, por sua vez, deriva do Regulamento (CE) n.° 725/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de março de 2004, relativo ao reforço da proteção dos navios e das instalações portuárias, com as mesmas definições.
NN. Bem como na Diretiva 2005/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de outubro de 2005, relativa ao reforço da segurança nos portos, podemos encontrar as as mesmas definições.
OO. Será curioso notar o decalque das definições de «instalação portuária» e de «Interface navio/porto» em todos os diplomas. O que tornaria desnecessário trazer um qualquer outro diploma legal à colação para demonstrar o que já está suficientemente demonstrado.
PP. Também será interessante notar que, das definições apresentadas, se extrai que uma «instalação portuária» tem de obrigatoriamente existir a «interface navio/porto» (que será o mesmo que dizer que o local tem de poder receber um navio e, por conseguinte, ter contacto com o espelho de água) razão pela qual incluímos ambas as definições nas nossas alegações. Uma não pode ser dissociada da outra.
QQ. Estamos, portanto, na presença de um conceito, previsto e enquadrado em lei que não carece de análise hermenêutica, mas sim de verificação técnica.
RR. Na verdade, e conforme alegado pelo R. na documentação junta ao PA, confirma que «instalação portuária» é um espaço muito específico, que pertence ao conjunto mais vasto de infraestruturas que compõem as Zonas Portuárias, e que o Douto Tribunal simplesmente desconsiderou optando por nem sequer se ter pronunciado sobre tal facto.
SS. O que não acontece no caso do armazém da A., que nem sequer tem contacto direto com o espelho de água (leia-se: mar) nem consegue afetar direta e imediatamente qualquer navio através da movimentação de pessoas e mercadorias, visto que o precedem uma estrada (Rua do Porto do Porto Santo) bem como o edifício dos serviços onde estão instaladas algumas das Forças e Serviços de Segurança (onde a GNR tem um gabinete, portanto não precisaríamos de ter um gabinete no armazém da A., conforme esta alega) (Veja-se a imagem junta ao PA identificando o local do armazém da A.).
TT. Logo, não podendo o armazém interagir "direta e imediatamente" com um navio, inviabiliza logo de imediato poder ser considerado como «instalação portuária», nos termos das definições legais, que para o caso importam.
UU. O Douto Tribunal, apesar de o R. ter feito esta análise legal nas suas alegações, optou por desconsiderar completamente.
VV. Verificando-se assim uma miscelânea de conceitos completamente distintos entre si, que tornam ininteligível o sentido lógico e jurídico da douta sentença.
WW. Aliás, e de acordo com a Douta Sentença do TAF - Funchal (e sem aplicar grande exercício hermenêutico) será caricato de concluir que fica estabelecido que um navio pode atracar numa rotunda (considerando que, nos termos desta conclusão, se todas as infraestruturas existentes numa zona portuária são «instalações portuárias», por sentença, foi atingido este feito!).
XX. Dispõe o artigo 9.° do Código Civil, de forma transversal a todo o sistema jurídico, que:
"1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada."
YY. Ora, a lei interpretada e que está na fundamentação da Douta Sentença -Regulamento (UE) 2017/352 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de fevereiro, que estabelece o regime da prestação de serviços portuários e regras comuns relativas à transparência financeira dos portos (título original do diploma, ao qual a Douta Sentença optou por acrescentar ainda "e às taxas de utilização dos serviços portuários e da infra-estrutura portuária") - não está sequer relacionada com a questão em análise nem aflora tão pouco o que é uma "instalação portuária", pasme-se, nem esse conceito é mencionado sequer uma única vez!
ZZ. Também não é minimamente esclarecido pelo Douto Tribunal o porquê de se recorrer a um diploma legal que nada tem a ver com a temática em crise (segurança), quando existem diversos diplomas legais (nacionais e europeus) que a abordam e que apresentam uma definição legal sobre o que é, de facto, uma «instalação portuária».
AAA. Bem sabemos e reconhecemos que o douto Tribunal tem poder discricionário para utilizar a legislação que bem entender para fazer a sua apreciação. Mas também o Douto Tribunal tem a obrigação de justificar a razão pela qual optou por um diploma nem está sequer relacionado com a temática em apreço, nem estabelece uma definição inteligível sobre o que é uma «instalação portuária», sendo necessário um exercício hermenêutico de difícil justificação e impossível compreensão, em detrimento de uma vasta panóplia de diplomas legais nacionais e internacionais que versam precisamente sobre a segurança em zonas portuárias e explicitam claramente o que é a referida instalação.
BBB. Pois nunca poderia o Tribunal a quo decidir a favor da A., com base nestes fundamentos, porquanto o espaço em causa (reiterando uma vez mais) não se integra na definição legal de «instalação portuária», fosse nos termos da Diretiva 2005/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de outubro de 2005, ou do Regulamento (CE) n.° 725/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de março de 2004, ou do Decreto-Lei n.° 226/2006, de 15 de novembro, e para os efeitos constantes do Decreto Regulamentar n.° 86/2007, de 12 de dezembro.
CCC. Considera ainda a douta sentença na parte "V. Direito" que:
"Aliás, a violação das normas definidoras da competência já havia sido reconhecida em reunião de coordenação operacional, ocorrida entre a Autoridade Tributária e a Guarda Nacional República no ano de 2021 (cf. facto provado n.° 11)".
DDD. Ora, esta douta conclusão não poderia estar mais desfasada com a realidade, quando na verdade o que o facto provado n.° 11 refere é que:
"Sobre este assunto referiu-se que a Área competente da AT referiu regular a Portaria n.°388/2019, de 28 de outubro e que efetivamente a competência da GNR para controlar mercadorias dentro de terminais, não estava consagrada."
EEE. Portanto, não é reconhecida qualquer violação das normas definidoras de competência.
FFF. O que é referido nesta ata é - tão e somente - que a aludida competência não ficou plasmada na Portaria n.° 388/2019, de 28 de outubro. Nada mais.
GGG. Menciona ainda a douta sentença que "Em caso negativo, (ii) aferir da violação do princípio da proporcionalidade".
HHH. Apesar de, conforme ficou demonstrado até aqui, a sentença padecer de vários vícios que resultarão inevitavelmente na sua nulidade, vamos averiguar a atuação do R. à luz deste princípio, no sentido de, eventualmente, se poder aproveitar alguma coisa do seu articulado.
III. A fiscalização no âmbito do Regime de Bens em Circulação, além de toda a legislação nacional e internacional sobre esta matéria, deriva ainda da necessidade estratégica de combater a fraude e evasão fiscal, definida ao longo dos anos pelos diversos Governos democraticamente eleitos (nacionais e regionais).
JJJ. Para atingir estes desideratos, torna-se necessário fiscalizar as mercadorias e a respetiva documentação, nos termos estabelecidos na legislação e onde o Regime de Bens em Circulação tem especial relevância para o caso em apreço.
KKK. Constata-se ainda que a presente sentença - à medida dos intentos da A., mas com efeitos que vão muito mais além - irá criar uma espécie de «zona franca» no Porto Santo, livre de qualquer fiscalização e, assim, permeável a todo e qualquer crime ou contraordenação, uma vez que inviabiliza toda e qualquer fiscalização do R. no âmbito fiscal e aduaneiro na zona portuária.
LLL. O que, salvo melhor opinião, é exatamente o oposto ao definido na lei e nas estratégias nacionais e regionais relativas à fraude e evasão fiscal.
MMM. Em suma, a sentença arreda, de forma absoluta, a possibilidade de o R. poder efetuar qualquer fiscalização no Armazém da A., o que a torna desproporcional aos fins que se procurariam obter e completamente contrária ao espírito da lei.
NNN. Também aqui a fundamentação apresentada pelo douto Tribunal, que permita compreender os motivos que fundamentam o estabelecimento de um tratamento tão excecional à A., é pouca ou nenhuma.
OOO. Aliás, ao estabelecer-se esta espécie de «zona franca» no armazém da A. será atribuir-lhe um tratamento diferenciado e discriminatório relativamente aos demais operadores económicos e de difícil justificação.
PPP. Adicionalmente, poder-se-á adiantar que esta sentença, a aplicar-se, irá causar grave prejuízo para a segurança, considerando que a GNR deixa de poder cumprir a sua obrigação legal e constitucional nestas áreas, com consequências imprevisíveis.
QQQ. Em suma, conforme estabelece as alíneas b) e c) do artigo 615.° do CPC:
"1 - É nula a sentença quando:
(...)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
(...)".
RRR. Conforme estabelece o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte n.° 00671/14.0BECBR:
"A contradição a que alude alínea c) do n.° 1, do art.° 615° do atual Código de Processo Civil (alínea c) do n.° 1, do art.° 668° do anterior Código de Processo Civil), aplicável por força do disposto no artigo 1° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, é uma incongruência lógica ou jurídica. Esta incongruência lógica ou jurídica pode traduzir-se numa oposição entre os fundamentos e a decisão ou nos fundamentos entre si (os necessários para a decisão) ou no próprio conteúdo decisório em si mesmo. A razão de ser da nulidade é, em qualquer dos casos, a mesma: não se pode aproveitar, de todo, uma sentença cujo sentido lógico ou jurídico não se pode alcançar.".
SSS. Assim, por mais que se tente advogar que o armazém da A. integra o conceito de "instalação portuária", sem se olhar à letra da lei que efetivamente define esse conceito, e que se aplica ao regime aqui em análise, conforme ousou fazer o Douto TAF do Funchal, viola todos e quaisquer princípios do direito em que as partes aqui envolvidas devem respeito.
TTT. Tanto na resposta à intimação, como agora em sede alegações, o R. prova, factualmente, e à letra da lei, que o armazém de A. não integra o conceito de instalação portuária, estando sujeito à fiscalização por parte da GNR no âmbito das suas competências fiscais, tributárias e aduaneiras, não podendo, por mera sentença, e em violação dessa citada lei, decidir-se pelo contrário.
UUU. Em conclusão, e face ao exposto, entende-se e advoga-se, com o devido respeito, que a Douta Sentença recorrida errou na interpretação que faz do disposto nos normativos aplicáveis, motivo pela qual deve ser anulada e substituída por outra que reconheça a total conformidade legal da atuação da GNR na prossecução da sua missão, reconhecendo total legitimidade legal à fiscalização das mercadorias depositadas no armazém de A. localizado na zona portuária do Porto do Porto Santo.
NESTES TERMOS, e nos demais de Direito aplicáveis e com o douto suprimento de V. Exas. deverá o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a Douta Sentença proferida e substituindo-se por outra que reconheça a total conformidade legal à atuação da GNR.».
O recurso foi admitido como de apelação, efeito meramente devolutivo e subida imediata nos próprios autos.
A Requerente/Recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões,
«I. O Recorrente incumpriu o ónus processual previsto no n.º 3 do art. 639.º do CPC, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do art. 140.º do CPTA, apresentando Conclusões complexas e prolixas, nomeadamente, formulando mais de 70 conclusões, que na prática, são uma mera reprodução/repetição exaustiva do alegado em sede de motivação do Recurso, pelo que deve ser notificado para, no prazo e sob cominações legais, esclarecer e sintetizar as mesmas.
II. Considerando que, para que o primeiro dos pressupostos processuais previstos no n.º 1 do art. 109.º do CPTA se considere verificado, se exige a existência de uma situação de urgência, e que essa urgência seja actual, ou seja, a lesão grave e actual de um direito, face aos factos invocados pela Recorrida e considerados provados, bem andou o Tribunal de 1.ª instância ao considerar verificado este pressuposto processual.
III. O facto de o Tribunal de 1.ª instância ter apreciado se a conduta do Recorrente, pode, ou não, pôr em causa o direito fundamental à liberdade empresarial, tal como invocado pela Recorrida, não configura qualquer excesso de pronúncia, mas sim a verificação de um pressuposto processual.
IV. O alegado pelo Recorrente relativamente à falta de fundamentação da Sentença Recorrida e à oposição entre a decisão e os respectivos fundamentos, não constitui qualquer causa de nulidade, mas sim mera discordância do Recorrente com os fundamentos da Decisão recorrida, mais concretamente, com o conceito de “instalações portuárias” acolhido pelo Tribunal de 1.ª instância.
V. A conclusão que, para existir uma instalação portuária, “tem de obrigatoriamente existir a “interface navio/porto” (que será o mesmo que dizer que o local tem de poder receber um navio e, por conseguinte, ter contacto com o espelho de água), para além de ilógica e restritiva, não encontra qualquer respaldo na letra da lei.
VI. Nos termos do 3.º da Directiva 2005/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Outubro de 2005, relativa ao reforço da segurança nos portos, e do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 226/2006, de 15 de novembro, (i) integram o “porto” do Porto Santo, todas as obras e equipamentos que permitam o armazenamento de mercadorias, a recepção e entrega de mercadorias, e (ii) são “instalações portuárias” todos os locais onde são desenvolvidas actividades que afectam directa e imediatamente um navio, nomeadamente, o movimento de mercadorias.
VII. O armazém da ora Recorrida é um local de interface entre o Porto do Porto Santo e o navio Lobo Marinho, também propriedade da Recorrida, nomeadamente, por ser o local onde são carregadas, descarregadas, armazenadas e movimentadas, diariamente, e, por vezes, duas vezes ao dia, todas as mercadorias transportadas no mesmo, sendo, consequentemente, uma instalação portuária.
VIII. A inibição do Recorrente de efectuar fiscalizações no armazém da Recorrida não “irá criar uma espécie de “zona franca” no Porto Santo, livre de qualquer fiscalização”, porquanto, o Porto do Porto Santo e, em particular, as instalações da ora Recorrida ficarão (e continuarão) sujeitas à fiscalização da entidade competente para o efeito, que, nos termos do n.º 2 do art. 13.º do Decreto Regulamentar n.º 86/2007, de 12 de dezembro, é a DGAIEC.
IX. Ao contrário do indevidamente peticionado pelo Recorrente, caso o recurso seja julgado procedente, os autos sempre deverão ser devolvidos à 1.ª instância, nomeadamente, para efeitos da eventual convolação do processo num procedimento cautelar e do eventual decretamento de uma providência cautelar, nos termos e ao abrigo do art. 110.º-A do CPTA, ou para apreciação dos restantes “vícios” invocados pela ora Recorrida na sua Petição Inicial, e cujo conhecimento ficou prejudicado em virtude da Sentença recorrida, em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 149.º do CPTA.
Nestes termos, e sempre com o Douto suprimento de V. Exas, deve ser negado provimento ao Recurso, confirmando-se, com as legais consequências, a Douta Sentença recorrida, Como é de Lei e de Justiça!».
O Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Prescindindo-se dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
2. Delimitação do objeto do recurso
Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA).
Tendo em conta o exposto, as questões que a este Tribunal cumpre apreciar reconduzem-se a saber se a sentença recorrida padece de
a. Nulidade por excesso de pronúncia, falta de fundamentação e ininteligibilidade;
b. Erro de julgamento de facto;
c. Erro de julgamento de direito no que respeita, por um lado, à decisão de julgar verificados os pressupostos do recurso à intimação e, por outro, quanto à decisão de considerar que a Guarda Nacional Republicana não tem competência para efetuar ações de fiscalização no âmbito do regime de bens em circulação, nas instalações da A., localizadas na ilha do Porto Santo e afetas ao serviço público de transporte regular de passageiros e mercadorias prestado pela mesma.
Como questão prévia, haverá que apreciar se o Recorrente deveria ser notificado para, nos termos do artigo 693.º, n.º 3 do CPC, esclarecer e sintetizar as conclusões do recurso.
3. Fundamentação de facto
3.1. Na decisão recorrida foi julgada provada a seguinte factualidade:
« 1) Em 23.02.1996, a A. celebrou com a Região Autónoma da Madeira contrato de concessão do serviço público de transporte regular de passageiros e mercadorias, por via marítima, entre o Funchal e o Porto Santo (cf. documento n.° 1, junto à petição inicial);
2) Consta do instrumento mencionado em 1), além do mais, o seguinte:
“(…)
QUINTA
Estabelecimento da concessão
O estabelecimento afecto à concessão pelas embarcações (navios) e transporte de passageiros ou pelas embarcações de transporte de passageiros ou pelas embarcações de transporte misto de passageiros e mercadorias que o concessionário põe ao serviço exclusivo da concessão, bem como pelos meios de embarque e desembarque de passageiros eventualmente instalados em terra e ainda pelas instalações de atendimento ao público igualmente instaladas em terra.
(...)
OITAVA
PRAZO DA CONCESSÃO
UM - O prazo da concessão é de dez anos.
(...)"
(cf. documento n.° 1, junto à petição inicial);
3) A A. desenvolve parte da sua actividade empresarial no armazém, no porto, na ilha do Porto Santo, que tem a seguinte localização:

(cf. documento n.° 1, junto à resposta);
4) Em 08.04.2021, foi elaborado auto de notícia n.° 289104, no armazém pela Guarda Nacional Republicana, em nome de A… HOTELARIA, LDA., do qual consta que "A mercadoria circulava acompanhada com fatura (...) de 06-04-2021, não sendo válida para o transporte que fiscalizamos em virtude de ter sido válida para o transporte do Funchal para Armazem PSL, (...) por falta de emissão/processamento de documento de transporte antes do início de circulação n.° 1 do art.° 6 do DL 147/03 de 11 de JUL" (cf. documento n.° 6, junto à petição inicial);
5) A A. apresentou junto da Entidade Demandada instrumento datado de 07.05.2021, intitulado "Assunto: Parecer Jurídico sobre a competência da GNR para fiscalizar as mercadorias em circulação em zona portuária" (cf. fls. 3 e ss. do PA);
6) Em 10.05.2021, foi elaborado no Comando Territorial da Madeira parecer no qual se concluiu que “não há necessidade de suspender as ações de fiscalização do Porto Territorial do Porto Santo nas instalações do Grupo Sousa ou em quaisquer outras existentes na zona portuária (...)" (cf. documento n.° 3, junto à resposta);
7) Em 08.09.2021, foi proferido pelo despacho de concordância com a informação elaborada pelos serviços do Departamento de Operações, Comando Operacional da Guarda Nacional Republicana, com sede em Lisboa, na qual se refere “propõe-se que: (...) o CTer da Madeira prossiga a sua missão de fiscalização, das matérias fiscais e aduaneiras, nos armazéns das instalações do Grupo S…, e de todos os outros que "se encontrem fora dos locais de produção, fabrico, transformação, exposição, dos estabelecimentos de venda por grosso e a retalho ou de armazém de retém” (cf. documento n.° 7, junto à resposta);
8) Em 28.07.2021, foi elaborado auto de notícia n.° 289226, no Porto de Abrigo, em Porto Santo, contra a sociedade “O… Distribuição e Logística, Lda.”, qual consta, entre o mais, que “a mercadoria circulava (...) no contentor (...) Após fiscalização constatou-se que o local de destino mencionado no referido documento não corresponde ao local efetivo do mesmo (Porto Santo) (...)Infração n.° 8 Art.° 4 do DL 147/03 de 11 de Julho" (cf. documento n.° 7, junto à petição inicial);
9) Em 23.09.2021, realizou-se a reunião de coordenação operacional da Autoridade Tributária e GNR (UAF), tendo sido elaborada acta da qual consta, entre o mais, que:
“(…)
Competência da GNR para fiscalizar as mercadorias em circulação em instalações portuárias.
Sobre este ponto, foi referido que é relativo a uma situação concreta que ocorre na Madeira e que também o detalhe será melhor explicitado em documento escrito.
Nota: A documentação de suporte a este ponto da agenda foi-nos já remetida dia 1 de outubro e aguarda parecer da Área de Gestão Aduaneira." (cf. documento n.° 8, junto à resposta);
10) Em 19.11.2021, o Chefe do Serviço de Finanças do Porto Santo proferiu despacho de concordância com a informação elaborada no Processo de Contra-ordenação n.°28522021060000002293, sobre "pedido de afastamento de coima", com o seguinte teor:
"(...)
III- ANÁLISE DO PEDIDO
O requerente alega que a GNR se deslocou ao Porto de Abrigo - Porto Santo, ou seja, a uma zona portuária.
De acordo com o disposto nas alíneas b) e d) do decreto-Lei n° 280/93, de 13 de agosto, que estabelece o Regime do trabalho Portuário, conforme alterado pela Lei n° 3/2013, de 14 de janeiro, considera-se zona portuária” o espaço situado dentro dos limites da área de jurisdição das autoridades portuárias, constituído, designadamente, por planos de água, canais de acesso, molhes e obras de proteção, cais, terminais, terraplenos e quaisquer terrenos, armazéns e outras instalações”
A competência da GNR para fiscalizar as mercadorias em circulação, de acordo com o art° 13 do RGIT, não abrange as zonas portuárias: o n°1 do art°4 do Decreto Regulamentar 89/2007 de 12 de dezembro, dispõe que a GNR tem competência nas matérias de infrações tributárias, fiscais e aduaneiras, fora das instalações portuárias. Igualmente o n° 3 do art° 13 deste Decreto reforça que compete à GNR promover as ações de fiscalização e controlo de circulação de mercadorias sujeitas à ação fiscal e aduaneira, fora das instalações portuárias.
Embora o art°4, n°2, preveja a possibilidade da GNR detetar, nas instalações portuárias, alguma infração tributária, fiscal e aduaneira e o comunicar à DGAIC para posterior condução do processo, esta não foi a circunstância no caso em apreço.
Como é mencionado no auto, demonstra que as mercadorias não estavam a circular no momento ação de fiscalização, porquanto a referência ao alegado transporte dos bens numa trela, quanto muito corresponderia a uma atividade de movimentação horizontal de carga dentro de uma zona portuária, a única possível para, depois da descarga do navio, movimentar o contentor do navio para a sua zona de parqueamento sempre no interior da zona portuária. Razão pela qual não é aplicável o Regime Bens em Circulação.
Assim o requerente solicita que o processo seja arquivado e, por conseguinte, seja absolvido da prática de qualquer contraordenação, de acordo com a argumentação supra exposta, com todos os devidos e legai efeitos IV- DA CONCLUSÃO
Analisada a defesa apresentada pelo requerente e tendo em conta o decreto regulamentar n° 89/2007 de 12 de dezembro (n°1 art°4 e n° 13 art° 13), "...a GNR tem competências nas matérias de infrações tributárias, fiscais e aduaneiras, fora das instalações portuárias ..." bem como o Regime de Bens em Circulação (al. a) art° 1,..."é aplicável a todos os bens em circulação seja qual for a sua natureza ou espécie, que sejam objeto de operações realizadas em sede de IVA, devendo os mesmos ser acompanhados dos respetivos documentos de transporte". Isto significa que a entidade autuante apenas está legitimidade a proceder a fiscalizações quando os referidos bens esteiam em circulação", que não foi o caso, visto o auto ter sido levantado no Porto de Abrigo - Porto Santo, dentro das instalações portuários
Face ao exposto, sou de parecer que a presente reclamação deverá ser deferida.
(...)"
(cf. documento n.° 10, junto à petição inicial);
11) Em 20.12.2021, realizou-se a reunião de coordenação operacional da Autoridade Tributária e GNR (UAF), tendo sido elaborada acta n.° 5/2021 da qual consta, entre o mais, que:
"(...)
1. Agenda
(...)
Competência da GNR para fiscalizar as mercadorias em circulação em instalações portuárias.
(...)
Competência da GNR para fiscalizar as mercadorias em circulação em instalações portuárias.
Sobre este assunto referiu-se que a Área competente da AT referiu regular a Portaria n.° 388/2019, de 28 de outubro e que efetivamente a competência da GNR para controlar mercadorias dentro de terminais, não estava consagrada.
A GNR melhor esclareceu que se trata de um operador na Madeira com instalações dentro de área portuária e que é uma situação local muito específica que certamente será resolvida.
Tendo-se falado de ilhas foi transmitido então pela GNR que os Comandos da Madeira e dos Açores também já desmaterializaram as ações RBC. (...)".
(cf. documento n.° 9, junto à resposta);
12) Em 27.11.2023, a Guarda Nacional Republicana, Comando Territorial da Madeira, elaborado o auto de notícia n.° 234202103083com o seguinte teor (por excertos):
"(…)
1- IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO INFRATOR Nome: P… Transp. Maritimos, Lda
(…)
2- DATA E LOCAL DA VERIFICAÇÃO DA(S) INFRAÇÃO(ÕES)
Data/ Hora da Infração: 2023-11-27 09:15:00
Local da Infração: Armazém de Carga P… Porto Santo. Distrito / Concelho / Freguesia: Ilha de Porto Santo (Madeira), Porto Santo, Porto Santo.
(…)
3- FACTOS VERIFICADOS
Verifiquei, pessoalmente, no âmbito do ato de fiscalização efetuada ao abrigo do Regime de Bens em Circulação, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 147/2003, de 11 de julho, na data e local acima referidos, os factos abaixo descritos:
3.1 INFRAÇÃO
Código da Infração: D00272
Normas Infringidas: Art°6 n°1 DL 147/03,11/07- Falta de emissão/processamento de doc. transporte/código identificação, antes do inicio da circulação.
Normas Punitivas: Artigo 117 n° 1 do RGIT- Falta ou atraso na apresentação ou exibição de documento de transporte.
Descrição dos Factos: Circulação de bens, operada em território nacional, entre sujeitos passivos de IVA, com imediata exibição de documento de transporte processado fora dos termos do Regime de Bens em Circulação por/devido a:
Falta de comunicação dos elementos do doc.de transporte, por sujeito passivo c/VN >100.000?,antes do inicio do transporte, nos termos dos artigos 5.° n.° 5 e 14.° n.° 6 do RBC, o que constitui infração e punição às normas acima referidas.
Qualidade do Infractor: Remetente
Descrição da Mercadoria: Tintas da marca Hempel de diversos códigos.
Considerações do Autuante: A mercadoria circulava no contentor PRTU 205107 8, em que no ato da fiscalização não foi exibido qualquer documento de transporte válido, pelo remetente dos bens, havendo falta de emissão de documento de transporte, antes do inicio do transporte.
Os bens em circulação, relacionados no presente auto, encontram-se no/a Armazém, com a designação armazém do p… - porto santo, que segundo as declarações da
testemunha, L…, NIF-----, foram remetidos por P… Transp. Maritimos, Lda, NIF/NIPC 5…, com sede/residência em Largo V…., 9…-5…, Funchal, e local de carga em Vale …, 2…-0… Palmela, no dia 2023-11-10, pelas 22H07, destinando-se a P…, LDA, com sede/residência em Largo …,4, … 9…-5… Funchal, NIF/NIPC 5….
(...)
O presente Auto foi elaborado nos termos do n.° 4 do art- 13 do RBC e instaurado electronicamente pelo Sistema de Contra-ordenações (SCO) da Autoridade tributária que procederá à notificação do infractor de acordo com o art.° 70° do RGIT conjugado com o art.°35 e seguintes do CPPT.
(...)"
(cf. documento n.° 4, junto à petição inicial);
Mais se provou que:
13) Desde o ano de 2021, a Guarda Nacional Republicana mantém a fiscalização nas instalações da A., no Porto de Abrigo, na ilha do Porto Santo, entre 3 (três) ou 4 (quatro) vezes por semana (facto confessado, artigo 14.° da resposta);
14) No local acima referido, desde o ano de 2021, a Guarda Nacional Republicana levantou 9 (nove) autos de notícias que deram origem a processos de contra- ordenações (facto confessado, artigo 14.° da resposta e fls. 60 e ss. do PA).»
3.2. A respeito dos factos não provados consignou-se na sentença recorrida,
«Inexistem factos não provados com relevância para o mérito da presente causa.»
3.3. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:
«Nos presentes autos, a convicção do Tribunal formou-se com base na apreciação das alegações das partes constantes dos articulados e na análise crítica da prova documental oferecida pelas partes e não impugnada (cf. artigos 374.° e 376.° do CC) e do processo administrativo junto aos autos, cuja veracidade não foi colocada em causa pelas partes (cf. artigos 370.° a 372.° do CC), não havendo indícios que ponham em causa a sua genuinidade, tal como se mencionou em cada ponto da matéria de facto provada.»
4. Fundamentação de direito
4.1. Da questão prévia
Em sede de contra-alegações veio a Recorrida sustentar que o Recorrente apresentou conclusões complexas e prolixas, incumprindo com o ónus de clareza e síntese, limitando-se a, no essencial, reproduzir nas conclusões as alegações de recuso, misturando a arguição de nulidades com a impugnação da decisão do Tribunal a quo.
Do art.º 639.º, n.º 3, do CPC resulta que quando «as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de não se conhecer do recurso, na parte afectada».
Lendo-se no art.º 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, que o «juiz a quem o processo for distribuído [para julgamento do recurso interposto] fica a ser o relator, incumbindo-lhe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente (…) convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respectivas alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º» do CPC.
Assim, se as conclusões apresentadas se apresentarem deficientes – isto é, «designadamente quando não retratem todas as questões sugeridas pela motivação (insuficiência), quando revelem incompatibilidade com o teor da motivação (contradição), quando não encontrem apoio na motivação, surgindo desgarradas (excessivas), quando não correspondam a preposições logicamente adequadas às premissas (incongruentes) ou quando surjam amalgamadas, sem a necessária discriminação, questões ligadas à matéria de facto e questões de direito» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2022, Almedina, p. 184) -, obscuras – ou seja, «formuladas de tal modo que se revelem ininteligíveis, de difícil inteligibilidade ou que razoavelmente não permitam ao recorrido ou ao tribunal percepcionar o trilho seguido pelo recorrente para atingir o resultado que proclama» (idem, ob.cit., p. 185) – ou complexas - «quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o nº 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados»; ou ainda por se ter transferido «para o segmento que deve integrar as conclusões, argumentos, referências doutrinais ou jurisprudenciais propícias ao segmento da motivação»; ou, ainda, «quando se mostre desrespeitada a regra que aponta para a necessidade de cada conclusão corresponder a uma proposição, evitando amalgamar diversas questões» (idem, ob.cit., p. 185) -, deverá o relator a quem o processo tenha sido distribuído no tribunal ad quem convidar o respetivo autor a aperfeiçoá-las, concedendo-lhe para o efeito o prazo de cinco dias, sob pena de não se conhecer do recurso na parte afetada.
Importa, contudo, dar conta que “[a] prolação de despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efetiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais. […] Parece adequado ainda que o juiz atente na reação do recorrido manifestada nas contra-alegações, de forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2022, Almedina, p. 188).
Isto posto, mostra-se inegável que, no seu essencial, as conclusões evidenciam a reprodução dos argumentos apresentados no corpo das alegações, sem verdadeira preocupação de síntese pelo Recorrente. E, bem assim, que, tal como de resto sucede nas alegações, se deteta uma miscigenação entre a imputação à sentença de nulidades e de erro de julgamento.
Não obstante tal prolixidade, não se revela a necessidade de formular o convite ao aperfeiçoamento previsto no artigo 639.º, n.º 3 do CPC, porquanto a mesma não é para este Tribunal, nem foi para a Recorrida, suscetível de afetar a cabal compreensão dos fundamentos do recurso, revelando as contra-alegações que não se exigiu qualquer esforço desnecessário ou adicional para o exercício do contraditório, nem para a cabal apreciação do recurso.
Razão pela qual se rejeita a requerida formulação de convite ao aperfeiçoamento nos termos do artigo 693.º, n.º 3 do CPC.
4.2. Das nulidades da sentença
O Recorrente aponta à sentença nulidades nos termos do artigo 615.º, n.º 1 als. b), c) e d) do CPC.
Para tanto advoga ocorrer um excesso de pronúncia na medida em que o Tribunal, a partir de alegadas “regras de experiência”, que não identifica, nem demonstra de onde emergem, nem a A. apresenta ou demonstra qualquer facto, conclui que a permanência constante de agentes da GNR nas instalações privadas da A. põe em causa o direito à liberdade empresarial.
Mais sustenta que a sentença padece de falta de fundamentação porquanto se limita a apresentar documentos ou partes destes, sem se conseguir destrinçar qual é o facto provado, não explicando porque considerou provados os factos alegados pela A. e não aceitou os argumentos do R.. Defendendo que a sentença não esclarece porque recorre a legislação, concretamente o Regulamento (UE) 2017/352 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de fevereiro, que reputa inaplicável, quando existem diplomas que definem o conceito de instalações portuárias. Entende que é pouca ou nenhuma a fundamentação aportada pelo Tribunal para compreender os motivos que fundamentam o estabelecimento de um tratamento tão excecional à Requerente e que a sentença errou na aplicação e interpretação do direito, carecendo de fundamentos de facto e de direito que a justifiquem.
Considera, ainda, que se mostra ininteligível o sentido lógico e jurídico da sentença, porquanto o Tribunal confunde conceitos, considerando como instalação portuária um armazém que, opostamente ao que resulta dos conceitos que emergem do artigo 3.º, als. r) e s) do DL 226/2006, do Regulamento (CE) n.º 725/2004 e da Diretiva 2005/65/CE, não tem interface navio/porto. Reputando que se mostram ininteligíveis os motivos que originaram a sentença.
Afigura-se manifesta a não verificação das nulidades apontadas à sentença, revelando-se que o Recorrente confunde o (eventual) erro de julgamento com as nulidades da sentença, entendidas estas como vícios da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença e que se reconduzem às previstas no artigo 615.º, n.º 1 do CPC.
Este normativo prescreve que é nula a sentença se, além do mais, o juiz não especificar os fundamentos, de facto e de direito, que justificam a decisão [al. b)], se ocorrer oposição entre fundamentos e decisão ou se verifique alguma obscuridade ou ambiguidade que torne a decisão ininteligível [al. c)] e se conhecer questões que não devia ou deixe de conhecer questões que tinha de conhecer [al. d)].
No que respeita à nulidade por excesso de pronúncia retenha-se que incumbe ao julgador, nos termos dos artigos 95.º, n.º 1 e 2 do CPTA e 660.º, n.º 2 do CPC, o poder/dever decidir todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, só lhe cabe conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras.
Neste sentido, a nulidade da sentença por excesso de pronúncia a que se refere a al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC verifica-se quando o Tribunal aprecia questão que não lhe foi submetida pelas partes, não sendo a mesma de conhecimento oficioso.
Importa dar nota que a nulidade por excesso de pronúncia, sancionando a violação do estatuído naqueles artigos 95.º, n.º 1 e 2 do CPTA e 660.º, n.º 2 do CPC, “apenas se verifica quando o tribunal conheça de matéria situada para além das “questões temáticas centrais”, integrantes do thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções”. (Ac. do STJ de 6.3.2024, proferido no processo 4553/21.1T8LSB.L1.S!, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c6aeec6e660d904980258ad9003e5976?OpenDocument).
Assim, “[d]e harmonia com o disposto no artigo 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, o juiz na sentença – Acórdão, por força do disposto no nº 2 do artigo 663º do Código de Processo Civil - deve conhecer, em primeiro lugar, de todas as questões processuais (suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, e não se encontrem precludidas) que determinem a absolvição do réu da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.
Seguidamente, devem ser conhecidas as questões de mérito (pretensão ou pretensões do autor, pretensão reconvencional, pretensão do terceiro oponente e exceções perentórias), só podendo ocupar-se das questões que forem suscitadas pelas partes ou daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe (como no caso das denominadas exceções impróprias), salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras questões, de acordo com o preceituado no nº 2 do mesmo artigo 608º.
Nesta linha, constituem questões, por exemplo, cada uma das causas de pedir múltiplas que servem de fundamento a uma mesma pretensão, ou cada uma das pretensões, sob cumulação, estribadas em causas de pedir autónomas, ou ainda cada uma das exceções dilatórias ou perentórias invocadas pela defesa ou que devam ser suscitadas oficiosamente.
Todavia, já não integram o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas.” (Ac. do STJ de 16.11.2011, proferido no processo 1436/15.8T8PVZ.P1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/724c637429c3ee108025879000598d25?OpenDocument).
Ora, no caso dos autos, a Recorrida instaurou a intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias alegando, no essencial, que o R. vem efetuando, quase diariamente, ações de fiscalização, e elaborando inúmeros autos de notícia que deram origem a outros tantos processos de contra-ordenação, no interior ou nos espaços afetos ao armazém localizado no denominado "Porto de Abrigo do Porto Santo", integrado no estabelecimento da concessão (área de acesso condicionado/condicionado) que entende configurar uma instalação portuária, inserida no Porto do Porto Santo e submetida à jurisdição da APRAM, para as quais sustenta que o R. não detém competência legal. Advoga que da circunstância de ter quase em permanência um posto da GNR nas suas instalações, resultam atrasos significativos nas operações de receção, conferência e entrega de mercadorias, obrigando os funcionários a trabalhar para além do seu horário normal, comprometendo o despacho e o processo de embarque no navio, e que a frequência e repetição da conduta lesa o seu direito à iniciativa privada protegido pelo artigo 61.º, n.º 1 da CRP. Adiantando que a invasão e o confisco permanentes de instalações privadas para utilização pela Entidade Demandada viola o princípio da proporcionalidade.
Em sede de resposta, a Requerida/Recorrente pugnou pela inidoneidade do meio processual, aduzindo, em suma, não se verificar a urgência na célere emissão de uma decisão que possibilitasse o recurso à intimação e que, em todo caso, a tutela seria obtida pela instauração de providência cautelar. Quanto ao mais impugnou a pretensão da Recorrente.
Neste quadro, assume-se à evidência que as questões a apreciar correspondiam, por um lado, à verificação dos pressupostos para o recurso à intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias (alegada como idoneidade do meio processual) e, por outro, à questão de mérito correspondente a saber se Entidade Requerida deveria ser intimada para se abster de efetuar ações de fiscalizações no âmbito do regime de bens em circulação (RBC), no armazém da A. no porto, na ilha do Porto Santo, afeto ao serviço público de transporte regular de passageiros e mercadorias prestado pela A., por falta de competência da Requerida ou por violação do princípio da proporcionalidade.
E foram essas as (únicas) questões apreciadas pelo Tribunal a quo, concretamente nos pontos II. Saneamento e V. Direito da sentença, sem que na sua apreciação tenha incorrido em excesso de pronúncia, por conhecer de questão não suscitada pelas partes e que não era de conhecimento oficioso.
A circunstância de, para o efeito dessa decisão, ter tomado em conta as regras da experiência, quando estas não existiriam ou não permitiriam concluir no sentido alcançado pelo Tribunal a quo, podendo constituir um erro de julgamento, não configura, todavia, a apreciação de questão que não poderia ter sido conhecida pelo Tribunal.
De modo idêntico não se verifica a apontada falta de fundamentação de facto e de direito.
Com efeito, prescreve o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, sancionando o incumprimento do disposto no artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPTA, em termos similares ao artigo 607.º, n.º 2 e 3 do CPC, aplicáveis à decisão a proferir no âmbito da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, que é nula a sentença que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Refira-se que de tais normativos emerge que na elaboração da sentença, e após a identificação das partes e do objeto do litígio, deve o juiz deduzir a fundamentação do julgado, expondo os fundamentos de facto e de direito, ou seja, “discriminando os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas, e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
Como se deu nota no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2.11.2017, proferido no processo 42/14.9TBMDB.G1 “não basta que o juiz decida a questão posta; é indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz.
Neste sentido, a fundamentação da decisão deve ser expressa, clara, suficiente e congruente, permitindo, por um lado, que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que lhe subjazem, em função de critérios lógicos, objetivos e racionais, proscrevendo, pois, a resolução arbitrária ou caprichosa, e por outro, que seja possível o seu controle pelos Tribunais que a têm de apreciar, em função do recurso interposto.”
A respeito da nulidade tipificada no art.º 615.º, n.º 1 al. b) do CPC tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que só a falta absoluta de fundamentação que torne de todo incompreensível a decisão é que releva para efeitos da sobredita nulidade, não abrangendo as eventuais deficiências dessa fundamentação.
Isto posto, no que respeita à fundamentação de facto verifica-se que o Tribunal a quo no ponto IV.1. elencou os factos que julgou provados, indicando, relativamente a cada um deles o meio probatório de natureza documental em que ancorou a sua convicção quanto ao que aí deu como provado. Mais consignando a final que “a convicção do Tribunal formou-se com base na apreciação das alegações das partes constantes dos articulados e na análise crítica da prova documental oferecida pelas partes e não impugnada (cf. artigos 374.º e 376.º do CC) e do processo administrativo junto aos autos, cuja veracidade não foi colocada em causa pelas partes (cf. artigos 370. 2 a 372. 2 do CC), não havendo indícios que ponham em causa a sua genuinidade, tal como se mencionou em cada ponto da matéria de facto provada.”. E no ponto IV.2 considerou que inexistiam factos não provados com relevo à decisão.
Ora, o exposto revela que, de forma suficiente e clara, o Tribunal indicou quais os factos que julgou provados e, bem assim, esclareceu que a sua convicção se formou com base na livre apreciação que fez dos documentos juntos aos autos e ao processo administrativo, que não foram impugnados pelas partes.
Ao contrário do referido a fundamentação não consiste na mera aposição dos documentos, o que sucede é que a factualidade relevante à decisão correspondia à prática dos atos, e ao que neles foi consignado, que se encontram documentados nos meios de prova considerados pelo Tribunal.
Note-se que na fundamentação de facto o que cumpre é, em face das regras do ónus da prova, levar ao probatório – seja como provados, seja como não provados - os factos necessários e relevantes à decisão da causa, elucidando-se as razões que levaram a decidir como se decidiu. E, in casu, esse dever mostra-se integralmente cumprido.
De igual modo, não padece a sentença de falta de fundamentação de direito. De facto, a sentença revela o enquadramento jurídico que considerou – vg. as fls. 24 e ss. da sentença-, subsumindo a factualidade aos normativos que reputou aplicáveis – vg. fls. 27 e ss.. Concretamente, interpretou o conceito de instalações portuárias para efeitos do Decreto Regulamentar n.º 86/2007, recorrendo, além do mais, ao Regulamento (UE) 2017/352 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de fevereiro, para daí concluir pela incompetência da Recorrente para exercer os poderes de fiscalização nos termos em que o fazia.
Se o enquadramento legal aportado à decisão se mostra errado, porque, como defende a Recorrente seriam outros os diplomas aplicáveis, o problema não é de falta de fundamentação, mas sim de erro de julgamento.
Por último, não é a sentença ininteligível.
A nulidade da sentença, fundada em ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, “implica que, seja na decisão, seja na fundamentação, se chegue a resultado que possa traduzir dois ou mais sentidos distintos e porventura opostos, que permita hesitar sobre a interpretação adoptada, ou não possa ser apreensível o raciocínio do julgador, quanto à interpretação e aplicação de determinado regime jurídico, considerados os factos adquiridos processualmente e visto o decisório in totum.” (Ac. do STJ de 12.01.2021, proferido no proc. 4258/18.0T8SNT.L1.S1).
Assim, “[p]ara efeitos da nulidade por ininteligibilidade da decisão, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. e), 2.ª parte do CPC, ambígua será a decisão à qual seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente e, obscura será a decisão cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido” (Ac. do STJ de 7.5.2024, proferido no processo 311/18.9T8PVZ.P1.S1
Entendendo-se que “[é] obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende. E é ambíguo o que se preste a interpretações diferentes. Mas não é qualquer obscuridade ou ambiguidade que é sancionada com a nulidade da sentença pela alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC novo, mas apenas aquela que faça com que a decisão seja ininteligível.” (Ac. do TCA Norte de 12.4.2019, proferido no processo 00510/09.4BEBRG).
Ora, mostra-se perfeitamente compreensível que o Tribunal tomou a decisão de intimar o Recorrente nos moldes em que o fez por considerar que o estabelecimento (armazém) da Autora no Porto de Abrigo, na ilha do Porto Santo, preenche o conceito de "instalações portuárias" – que considerou, à luz do Regulamento (UE) 2017/352, dever ser interpretado como abrangendo todas as infraestruturas na área de porto marítimo - para efeitos de aplicação do Decreto Regulamentar n.º 86/2007, de 12.12, que articula a ação das autoridades de polícia e demais entidades competentes no âmbito dos espaços marítimos sob soberania e jurisdição nacional e que, consequentemente, a GNR não tem competência para efetuar aí ações de fiscalização nos termos do artigo 13.º daquele Decreto-Regulamentar.
Portanto, sem qualquer obscuridade ou ambiguidade que determinem a ininteligibilidade da sentença.
Repete-se, a circunstância de o Tribunal ter errado na definição do conceito de instalação portuária, por serem outros os normativos aplicáveis, apenas faz incorrer em erro de julgamento, não em nulidade da sentença.
Em face do exposto, cumpre concluir que a sentença não padece das nulidades que lhe são apontadas.
4.3. Do erro de julgamento de facto
O Recorrente sustenta que não se poderiam dar como provados os factos constantes na sentença por existirem posições antagónicas entre as partes no que respeita ao conceito de instalação portuária, à competência do R. para fiscalizar o armazém da A. e ao grave prejuízo para o desenvolvimento da atividade económica da A. Mais sustenta que a documentação junta ao PA, confirma que «instalação portuária» é um espaço muito específico, que pertence ao conjunto mais vasto de infraestruturas que compõem as Zonas Portuárias, e que o Tribunal simplesmente desconsiderou optando por nem sequer se ter pronunciado sobre tal facto.
Importa dar conta que, sob pena de rejeição total ou parcial do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente que lhe impõe especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados (cfr. art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC);
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cfr. art. 640.º, n.º 1, al. c), do CPC).
Acrescente-se que à fundamentação de facto, sem prejuízo do pleonasmo, apenas relevam os factos, entendidos estes como “tudo o que se reporta ao apuramento de ocorrências da vida real e de quaisquer mudanças ocorridas no mundo exterior, bem como à averiguação do estado, qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas” , sendo que “(..) além dos factos reais e dos factos externos, a doutrina também considera matéria de facto os factos internos, isto é, aqueles que respeitam à vida psíquica e sensorial do indivíduo, e os factos hipotéticos, ou seja, os que se referem a ocorrências virtuais” (Henrique Araújo, A matéria de facto no processo civil, disponível em https://carlospintodeabreu.com/public/files/materia_facto_processo_civil.pdf, consult. Março 2024). Não integram o elenco factual afirmações ou juízos de natureza conclusiva, tão pouco a valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir ou questões e conceitos de direito.
Feito este enquadramento, verifica-se que o Recorrente, não concretiza, nem indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que sobre os mesmos deveria recair, nem tão pouco os meios probatórios que conduziriam a decisão distinta, omitindo de forma patente o cumprimento dos ónus impugnatórios que sobre si recaíam ao abrigo do referenciado artigo 640.º, n.º 1 do CPC.
Consequentemente, impor-se-á rejeitar o recurso quanto à matéria de facto, nos termos do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
Sem prejuízo, incumbe, ainda, dar nota que se tratam de questões de direito a solucionar no âmbito da fundamentação de direito, como fez o Tribunal a quo, e não factuais, as referentes ao conceito de instalação portuária, à competência do R. para fiscalizar o armazém da A. e ao grave prejuízo para o desenvolvimento da atividade económica da A..
E daí que, por um lado, não seria por documentação junta ao p.a., que revela a opinião dos serviços do Recorrente, que se iria dar como demonstrada a tese deste quanto a conceitos e questões de natureza jurídica, e por outro, nunca poderiam as mesmas ficar consignadas no elenco factual, como de resto assim fez o Tribunal a quo não as integrando no probatório, mas antes sobre as mesmas se pronunciando na fundamentação de direito.
4.4. Do erro de julgamento de direito quanto à idoneidade do meio processual (preenchimento dos pressupostos para o recurso à intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias)
O Recorrente insurge-se quanto à decisão tomada pelo Tribunal a quo de considerar que a tutela do direito fundamental da Recorrida de livre iniciativa económica privada carece de uma decisão definitiva urgente, revelando a alegação da Requerente a urgência na decisão sob pena de colocar em causa o exercício do direito à livre iniciativa económica nos termos do artigo 61.º da CRP.
Sustenta, no essencial, que o recurso à intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias só se justifica se for o único meio que em tempo útil permita evitar a lesão do direito, associando-se a uma situação de urgência, só a ela podendo haver lugar quando se verifique uma impossibilidade ou insuficiência da tutela cautelar, instrumental à ação principal de natureza não urgente.
Em consonância, entende que a circunstância de Recorrida ter aguardado três anos para requerer a intimação, e se queixar da atuação da GNR, revela a desnecessidade de assegurar em “tempo útil” a proteção do direito que alega, demonstrando a falta de urgência na decisão.
Mais sustenta que o Tribunal a quo não se poderia ancorar em supostas regras da experiência porque, na realidade, a atividade de fiscalização é realizada de modo a não interferir com a atividade da A..
A este respeito foi a seguinte a decisão tomada pelo Tribunal a quo,
“No caso em apreço, a A. sustenta que (i) a regularidade e duração da actuação alegadamente ilícita da Entidade Demandada prejudica o normal desenvolvimento da sua actividade empresarial, e, em consequência (ii) causa prejuízos financeiros, (iii) põe em causa a credibilidade e bom nome, e (iv) o trabalho prestado pelos funcionários que são obrigados a prestar trabalhar suplementar.
Assim, com o pedido formulado nos autos de intimação da Entidade Demandada para se abster de efectuar acções de fiscalização consecutivas e diárias, no armazém localizado no porto, na ilha do Porto Santo, a A. visa com isso (i) assegurar o seu direito fundamental à livre iniciativa económica, consagrado no artigo 61.°, n.° 1, da CRP, correspondente a uma liberdade económica-produtiva fundamental, que pertence ao domínio dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e respectivas organizações, com repercussões na vida dos trabalhadores que exercem ali funções e, bem assim, dos utilizadores do serviço de concessão desempenhado pela A., bem como (ii) que tal fiscalização ocorra na via pública e fora das instalações (cf. artigo 62.° da petição inicial).
Ora bem, atendendo à pretensão material deduzida nos autos, a A. poderá lançar mão do meio processual de intimação para defesa de direitos, liberdades e garantia para satisfazer o seu direito fundamental de liberdade de organização económica, pelo que não assiste razão à Entidade Demandada ao afirmar que não estamos perante um direito "tal como consagrado na CRP".
No que diz respeito à urgência, que justifica o recurso a esse meio processual tem que se aferida de acordo com as circunstâncias do caso em concreto, tendo em conta a alegação do autor, de modo a apreciar se a actuação da Administração está a ferir o direito fundamental invocado de tal forma que o titular necessita de uma tutela principal urgente, sob pena do exercício do próprio direito ficar posto em causa.
A este propósito, a A. alegou que a actuação da Guarda Nacional Republicana afecta gravemente o funcionamento da sua actividade, com a obrigatoriedade de ter um posto a funcionar nas suas instalações, quase permanentemente, provocando atrasos nas operações de recepção, conferência e entregas de mercadorias, com repercussões na satisfação dos trabalhadores e no horário de trabalho dos funcionários.
In casu, a A. invoca o direito a salvaguardar a liberdade de iniciativa privada, consagrado no artigo 61.° da CRP.
As regras da experiência indicam-nos que a permanência constante de agentes da Guarda Nacional Republicana nas instalações privadas da A. pode pôr em causa o direito à liberdade empresarial, por inibi-la de organizar devidamente o tempo de trabalho dos seus colaboradores, inviabilizando o exercício pleno das actividades produtivas da A., com implicações na livre circulação de mercadorias, que se vê coibida de, na vida quotidiana, desenvolver a sua actividade de modo livre, dependente sempre das conclusões das fiscalizações diárias pelos elementos da Guarda Nacional Republicana (cf. artigo 607.°, n.° 1, do CPC, ex vi do 1.° do CPTA).
Nessa medida, conclui-se que a tutela do direito fundamental da A. de livre iniciativa económica privada carece de uma decisão definitiva urgente.”
Este entendimento, contudo, não se pode manter.
Como emerge do n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, “[a] intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.”.
Este meio processual, que é de utilização excecional, assegura a proteção a título principal, urgente e sumária, de direitos, liberdades e garantias, que estejam a ser violados naquelas situações em que a rápida prolação de uma decisão que vincule a Administração (ou particulares) a adotar uma conduta positiva (facere) ou negativa (non facere) se revele como indispensável para acautelar o exercício em tempo útil de um direito, liberdade e garantia.
Enquanto pressupostos do recurso a este meio processual, encontra-se, um de índole positiva, qual seja a indispensabilidade da emissão urgente de uma decisão que imponha à Administração uma conduta positiva ou negativa como forma de assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, acudindo a lesões presentes e futuras, e um de índole negativa, traduzido na impossibilidade ou insuficiência, nas circunstâncias do caso, do decretamento de uma providência cautelar.
No que respeita ao primeiro pressuposto, exige-se que a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para proteção de um direito, liberdade ou garantia, cabendo ao requerente da intimação alegar e demonstrar a urgência na obtenção de uma decisão definitiva para a tutela dos direitos, liberdades e garantias que alega estarem a ser violados.
Como escrevem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, 2017, p. 883) “(...) é necessário que esteja em causa o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia e que a adopção da conduta pretendida seja apta a assegurar esse exercício. À partida, o preenchimento deste requisito pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”.
É que a defesa ou tutela dos direitos fundamentais, faz-se, por regra, através do recurso à ação administrativa, recorrendo-se à intimação apenas quando aquela via não é possível ou suficiente por se verificar “a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de grave ameaça ou violação do direito, liberdade ou garantia em causa, que só possa ser reparada através do processo urgente de intimação.” (idem, ibidem, p. 883).
O segundo dos requisitos estatuídos no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, refere-se à subsidiariedade da intimação, no sentido de que ou “se trata de uma situação de especial urgência das que o legislador tipificou como tal, ou o processo urgente não é necessário, sendo a forma de tutela mais adequada uma solução combinatória de ação principal e providência cautelar, o que decorre da especificidade ou da excecionalidade, mais do que da subsidiariedade, dos processos urentes.” (Anabela Costa Leão, Comentários à Legislação Processual Administrativa, Vol. II, 5.ª edição, 2020, AAFDL Editora, p. 673). Assim, a intimação é o meio adequado quando a tutela do direito, liberdade ou garantia lesado, ou em vias de o ser, não se compadece com a delonga de um processo não urgente, ainda que acompanhado de uma providência cautelar.
Em primeiro lugar, importa considerar que o processo de intimação se destina a tutelar direitos, liberdades ou garantias ou direitos a estes análogos.
No caso, a Recorrida ancorou a sua pretensão no que reputou configurar uma violação à liberdade de iniciativa económica, reconhecida no artigo 61.º da CRP.
A liberdade de iniciativa económica privada reveste, efetivamente, natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (neste sentido, J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, p. 789), razão pela qual a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida para assegurar, em tempo útil, o seu exercício.
Mas sendo assim cumpre considerar que o sentido da liberdade de iniciativa económica privada, concretamente na sua dimensão de liberdade de organização, gestão e atividade da empresa, enquanto direito institucional, só pode exercer-se “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei” (artigo 61.º, n.º 1 da CRP) e admite a sua sujeição a limites e restrições, justificadas à luz do princípio da proporcionalidade e com respeito do seu núcleo essencial (artigo 18.º da CRP). Uma de tais restrições, de resto constitucionalmente consagrada, é a que resulta da sua sujeição à fiscalização pelo Estado do cumprimento das obrigações legais, fiscalização que a Constituição assume como “em especial por parte das empresas que prossigam actividades de interesse económico geral” (86.º, n.º 1 da CRP).
Deste modo, importa considerar que “[a]s empresas privadas estão sujeitas a fiscalização estadual (rectius: fiscalização pública) do cumprimento das obrigações legais das empresas (n.º 1, 1.ª parte). Ao abrigo da CRP, respeitado o núcleo essencial da liberdade de empresa (artigo 61.º) […] a lei é livre para estabelecer, havendo motivo razoável, um enquadramento da empresa privada que pode variar entre um mínimo de condicionantes à sua actividade e liberdade de actuação e um máximo de exigências maios ou menos apertadas”. Sendo que “[a] noção de fiscalização não pode ser interpretada restritivamente (…). Na verdade, trata-se de verificar se as obrigações legais são cumpridas e punir as infracções verificadas.” e “pode ser especialmente justificada e mais intensa em relação às empresas encarregadas de «atividades de interesse económico geral» (n.º 1, in fine), bem como outros tipos de empresas com relações especiais com o Estado.”, como “é o caso das empresas que utilizam ou exploram bens públicos ou obras públicas, ao abrigo de contratos de concessão (…)” (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, pp. 1014, 1015 e 1020).
E daí que se o autor de uma intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias deve descrever uma situação factual de ofensa ou preterição dos direitos que invoca, não lhe bastando a mera invocação genérica da lesão dos mesmos, no contexto da alegação da violação da liberdade de iniciativa económica por uma entidade abrangida pela parte final daquele n.º 1 do artigo 86.º da CRP, como é o caso da Requerente, o substrato factual aportado deverá caraterizar um comprometimento ao direito em moldes tais que ultrapasse as suas inerentes e especiais restrições, designadamente no que respeita à sua sujeição a ações de fiscalização, pois que só aí se identifica a ameaça, restrição ou violação do direito (nos termos em) que lhe é reconhecido.
Do exposto decorre que, sendo a Requerente/Recorrida a entidade concessionária do Serviço Público de Transporte Regular de Passageiros e Mercadorias por Via Marítima entre o Funchal e o Porto Santo, face ao contrato celebrado com a Região Autónoma da Madeira, a sua liberdade de iniciativa económica, na referida dimensão de liberdade de desenvolvimento de atividade, não assume total amplitude, antes encontrando-se especialmente restringida pela própria Constituição, designadamente no que respeita ao exercício pelas entidades estaduais dos poderes de fiscalização.
O que significa, portanto, que o desenvolvimento da sua atividade está necessariamente sujeito à realização de ações de fiscalização pelas entidades estaduais. Ações essas que, naturalmente, comportam constrangimentos, desde logo, os decorrentes da exigência de colaboração com as entidades fiscalizadoras, tal como a necessidade de facultar o exame das mercadorias e documentação referenciada pela Requerente. E daí que a Requerente não possa deixar considerar tais limitações e ajustar os termos em que desenvolve a sua atividade às exigências que resultam da realização de tais ações de fiscalização.
Todavia cumpre reconhecer que quando, designadamente pelo seu número e/ou constância/regularidade, se revele um excesso manifesto no exercício do direito de fiscalização, de resto configurador de um uso abusivo do direito (artigo 334.º do CC), tal conduta será apta a contender com a liberdade de iniciativa económica da Requerente.
Ora, alega a Requerente/Recorrida que o R. efetua quase diariamente e, por vezes duas vezes por dia, e por várias horas, ações de fiscalização no interior e/ou nos espaços afetos ao armazém (artigos 7.º e 44.ª), “elaborando inúmeros Autos de Notícia que deram /dão origem a outros tantos processos de contraordenação” (artigo 8.º) – a este respeito tendo-se dado como provado o que resulta de 5), 8), 12) 13) e 14). Sustenta que tais ações prejudicam/perturbam, no que qualifica como gravemente, a normal/eficiente prestação do serviço público (artigos 12.º e 38.º), porquanto provocam atrasos significativos nas operações de receção, conferência e entrega das mercadorias. Assim ocorrendo porque o R. transmite instruções aos funcionários da Requerente no sentido de facultarem o exame e documentação de toda a mercadoria transportada/movimentada, o que obriga os funcionários da A. a esvaziar/desconsolidar todos os contentores que são descarregados/movimentados nas instalações das mesmas, e, consequentemente, impede-os de desempenharem as suas funções normais, daí resultando a necessidade de executarem trabalho para além do horário normal de expediente para compensar as horas perdidas “ao serviço da R.”, o que tem conduzido ao aumento significativo dos níveis de cansaço, insatisfação e falta de produtividade. Mais sustenta que a demora que a atuação da R. determina na sua atividade tem motivado inúmeras e sucessivas queixas por clientes, que, por sua vez, podem vir a determinar a aplicação de multas contratuais pela concedente. Adianta que os atrasos podem comprometer o despacho atempado das mercadorias, nomeadamente, a impossibilidade de conclusão do processo de embarque/carregamento do navio na viagem para o Funchal, o que implicaria a sua retenção no Porto Santo, pelo menos, 1 dia.
Em abstrato, este cenário alegado pela Requerente/Recorrida carateriza, efetivamente, um excesso/abuso no exercício pelo R. dos poderes de fiscalização, em termos de ofensa e preterição do direito fundamental à liberdade de iniciativa económica com a amplitude (ainda que condicionada) que a mesma é reconhecida à Requerente.
Todavia, o que já não se reconhece é que a não emissão de uma decisão de mérito célere que imponha à Administração a requerida abstenção de “efectuar acções de fiscalização no âmbito do Regime de Bens em Circulação, nas instalações da A. localizadas no Porto do Porto Santo e afectas ao serviço público de Transporte Regular de Passageiros e Mercadorias prestado pela mesma”, ponha em causa o exercício em tempo útil do seu direito, por não ser possível ou suficiente nas circunstâncias do caso o decretamento de uma providência cautelar.
Não está em causa, como pretende a Recorrente, a circunstância de a Recorrida ter aguardado três anos para requerer a intimação para assegurar o seu direito, pois que se admite que será a persistência temporal, constância e regularidade da atuação, alegadamente abusiva, do R. o fator determinante da lesão ou ameaça de lesão ao direito.
Do que se trata é de a proteção em tempo útil do direito da Recorrida não carecer da tutela definitiva (urgente) que reclama, pois que a defesa da posição jurídica da Recorrida seria alcançável pela adoção de providência cautelar que, na pendência da ação principal, obstasse ao exercício – que reputa ilegal, seja porque para tal o R. não detém competência, seja porque o faz desproporcionalmente (ou melhor, em abuso de direito) – pelo R. dos poderes de fiscalização no âmbito do Regime de Bens em Circulação no interior do referenciado armazém.
E o que se deteta é que o Tribunal a quo, verdadeiramente, não abordou tal questão. Limitou-se a assumir que, pelo facto de a “permanência constante de agentes da Guarda Nacional Republicana nas instalações privadas da A.” poder pôr em causa o direito à liberdade empresarial, daí resultaria estarem verificados os pressupostos para o recurso ao meio processual.
Sucede que, efetivamente, para garantir a proteção da liberdade de iniciativa económica da Requerente, permitindo-lhe exercer a sua atividade com normalidade – reitera-se, dentro dos condicionamentos resultantes da sua especial sujeição à ação de fiscalização das entidades estaduais -, esta não carece de uma decisão de mérito urgente, isto é, que a título definitivo averigue e decida da legalidade da atuação do Recorrente.
Na verdade, a mesma basta-se com a adoção de uma medida que, provisoriamente e até que seja proferida a decisão da ação principal (de natureza não urgente), impossibilite o R., através dos agentes da GNR, de realizarem as ações de fiscalização, que se refiram ao Regime de Bens em Circulação, no armazém localizado no denominado Porto de Abrigo do Porto Santo afeto à Concessão ou, sendo disso caso, por aplicação do disposto no artigo 120.º, n.º 3 do CPTA, impondo-lhe a obrigação de (apenas) fazê-lo com a regularidade que se revele adequada e sem comprometer a atempada realização, pelos funcionários da Requerente, das operações de receção, conferência e entrega das mercadorias.
Refira-se que, opostamente ao alegado pela Requerente/Recorrida, não se mostra, no caso, impossível ou insuficiente o decretamento de providência cautelar. Designadamente, à mesma não falta o caráter provisório, no sentido de antecipar a decisão a proferir na ação principal.
Recorda-se que a provisoriedade inerente às providências cautelares “consiste no facto de a regulação que elas estabelecem se destinar a vigorar apenas durante a pendência do processo, até ao momento em que a sentença a proferir nesse processo virá a dizer em que termos fica definida a matéria controvertida.
A provisoriedade da tutela cautelar impede que o tribunal adote, como providência cautelar, uma regulação que dê resposta à questão de fundo sobre a qual versa o litígio, desse modo inutilizando o processo em que ele é objeto de discussão.” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, Almedina, pp. 961 e 962). Caso contrário, a tutela cautelar não assegura a utilidade da sentença a proferir no processo principal, mas, pelo contrário, torna inútil qualquer sentença e esvazia de sentido o próprio processo principal.
Neste sentido, no Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul de 17.12.2020, proferido no processo 1203/20.7BELSB (disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/568a8cc5136b051680258642003945e6?OpenDocument) sumariou-se que “[o] pressuposto relativo à provisoriedade da providência cautelar impõe que esta, para além de ter uma duração limitada, não esvazie, ou, pelo menos, não prejudique a eficácia da decisão que vier a ser tomada na acção principal, pois é nesta que se vai conhecer do bem fundado da pretensão do autor, ao passo que no âmbito do processo cautelar apenas se procede a um conhecimento sumário da mesma”.
Também no Acórdão deste TCA Sul 21.11.2019, proferido no processo n.º 464/19.9BELLE (disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/32c114e69217b601802584bd006093af?OpenDocument), escreveu-se a respeito da provisoriedade que “esta constitui outra característica típica das providências cautelares, decorrente da sua própria natureza.
Como refere José Carlos Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, 7ª edição, pág. 342: «a tutela cautelar constitui, por definição, uma regulação provisória de interesses, de modo que um outro aspeto marcante das providências respetivas é o carácter de provisoriedade e de temporalidade, quer da duração da decisão, quer do seu conteúdo, que se manifesta em diversos planos. Desde logo, a decisão cautelar, mesmo que seja antecipatória, sempre será, pela sua função, provisória relativamente à decisão principal, na medida em que não a pode substituir e em que caduca necessariamente com a execução desta».
Ou seja, a provisoriedade da tutela cautelar impede que o tribunal adote uma regulação que dê resposta à questão de fundo sobre a qual versa o litígio, questão de fundo esta a resolver no processo principal. Tem de estar em causa uma composição provisória de um litígio, cabendo à ação principal a composição definitiva do mesmo.
A tutela cautelar visa apenas assegurar o efeito útil de uma sentença a proferir em sede de ação principal, regulando provisoriamente a situação sob litígio até que seja definitivamente decidida, naquela ação, a contenda que opõe as partes. Razão pela qual se exige que as medidas cautelares cumpram as características da instrumentalidade e da provisoriedade.
A partir do momento em que a cognição do pedido cautelar implique a resolução definitiva do litígio, a pretensão do requerente não se compadece com a provisoriedade que caracteriza a tutela cautelar (…)”.
Mostrando-se evidente que as providências cautelares antecipatórias destinam-se a antecipar a resolução do litígio, ou seja, a atribuir o mesmo que se pode obter na composição definitiva, contudo, essa tutela não deixa de ser instrumental e provisória, no sentido de perdurar apenas até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no processo principal e se destinar a assegurar a utilidade da decisão a proferir neste.
E é também de evidenciar que as providências cautelares antecipatórias podem implicar efeitos materiais irreversíveis, “em que a tutela cautelar perde a sua componente de provisoriedade, provocando, assim, um desvirtuamento dos princípios que lhe estão subjacentes”, contudo tais hipóteses “devem distinguir-se as situações em que é a própria providência decretada que, pela sua natureza e conteúdo provoca efeitos definitivos na esfera jurídica do requerido, como sucede quando a imposição de determinada conduta ao requerido corresponda a obrigação instantânea que se extinga com esse acto de cumprimento isolado, ou, também, quando, por exemplo, a providência cautelar consista na destruição de um determinado objeto.” (Nuno Gondar da Cruz, Breves considerações sobre a irreversibilidade, por efeito da morosidade da justiça, dos efeitos resultantes do decretamento de providência cautelar de tipo antecipatório, Julgar n.º 19, 2013, Coimbra Editora, p. 131).
O que demanda a provisoriedade caraterística das providências cautelares, ainda que antecipatórias, é que a tutela que delas resulte seja qualitativamente distinta daquela que é obtida na ação principal, ficando dependente da necessária substituição pela tutela que vier a ser definida nessa ação.
Ora, no caso, sendo o objeto da tutela de mérito a condenação do R. à abstenção de comportamentos, concretamente “a se abster de efectuar acções de fiscalização no âmbito do Regime de Bens em Circulação, nas instalações da A. localizadas no Porto do Porto Santo e afectas ao serviço público de Transporte Regular de Passageiros e Mercadorias prestado pela mesma, com as legais consequências”, naturalmente que a providência cautelar em que, provisoriamente, portanto apenas durante a pendência da ação principal, se requer/obtém (a título antecipatório) tal conduta, não esgota os efeitos da ação principal. Tal medida antecipa os efeitos dessa ação, mas fá-lo (apenas) a título temporário, sem que seja de molde a comprometer ou esgotar a utilidade da decisão de mérito.
É certo que, na pendência da ação principal – cuja duração pode ser maior ou menor -, o Requerido/Recorrente se vê impedido de realizar as ações de fiscalização nas instalações da Requerente, mas esse é um efeito da tutela cautelar de natureza antecipatória e decorre, desde logo, da verificação do preenchimento dos correspondentes requisitos, onde se inclui a demonstração do fumus boni iuris, ou seja, de um juízo de probabilidade de procedência da ação principal que perfunctoriamente salvaguarda a correspondência da medida à legalidade.
Ou seja, no caso, não existe óbice à adoção de medida cautelar, pois que o tribunal não compõe definitivamente, mas apenas transitoriamente, o litígio.
E essa composição provisória, possibilitando que a Requerente/Recorrente, na pendência da ação principal, desenvolva a sua atividade nas condições de normalidade que reclama e que entende comprometidas pela atuação ilegal do R., é suficiente para garantir a proteção do seu direito à liberdade de iniciativa económica.
Daí que se imponha concluir que, no julgamento que fez da questão da “idoneidade do meio processual”, o Tribunal a quo errou, porquanto não se mostra indispensável a célere pronúncia definitiva enquanto meio de assegurar o exercício, em tempo útil, da liberdade de iniciativa económica da Requerente/Recorrida, dado que in casu é possível e suficiente o decretamento de uma providência cautelar de natureza antecipatória.
Mas ainda que se verifique a exceção dilatória de falta de verificação dos pressupostos para o recurso à intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, daí não resulta, como pretende o Recorrente a sua absolvição da instância.
Na realidade, tal como emerge do Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Administrativo do STA de 17.10.2024, proferido no processo 038/24.2BALSB, “[c]aso o juiz conclua, após a prolação do despacho liminar e uma vez cumprido o contraditório, que ao caso é adequada a adoção de uma providência cautelar, atendendo ao princípio do pro actione, e independentemente da vontade da Autora, deve formular o convite para que a mesma substitua a petição de intimação por requerimento para a adoção de providência cautelar”.
Assim, impõe-se revogar a decisão recorrida e, em consequência, determinar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal para que proceda em consonância com o disposto no artigo 110.º, n.º 1 do CPTA.
*
À luz do exposto fica prejudicada a apreciação do erro de julgamento quanto à decisão de considerar que a Guarda Nacional Republicana não tem competência para efetuar ações de fiscalização no âmbito do regime de bens em circulação, nas instalações da A., localizadas na ilha do Porto Santo e afetas ao serviço público de transporte regular de passageiros e mercadorias prestado pela mesma.
4.5. Da condenação em custas
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.
5. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em
a. Rejeitar o recurso quanto à matéria de facto;
b. Quanto ao mais, conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal para que proceda em consonância com o disposto no artigo 110.º, n.º 1 do CPTA.
Sem custas.
Mara de Magalhães Silveira (por vencimento)
Carlos Araújo (vencido, nos termos da declaração de voto infra)
Ricardo Ferreira Leite
* Declaração de voto
Contrariamente à posição que fez vencimento teria conhecido do mérito da intimação, decidindo que a GNR tinha competência para fiscalizar o armazém da Requerente, ordenando a baixa dos autos para que se produzisse prova testemunhal em ordem a averiguar da pretendida violação do princípio da proporcionalidade.
Carlos Araújo |