Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:493/23.8BELLE
Secção:CA
Data do Acordão:11/28/2024
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:PROCESSO CAUTELAR;
INSTRUTOR DE CONDUÇÃO;
CURSO DE ACTUALIZAÇÃO;
LEI N.º 14/2014, DE 18/03;
PORTARIA N.º 1/2024, DE 02/01;
NÃO RETROACTIVIDADE DA INDICADA PORTARIA
Sumário:I – Ao pedido de revalidação do título profissional de instrutor de condução formulado já na vigência da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, não se pode aplicar a regulamentação inscrita no Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril, porque revogado expressamente pela indicada Lei.
II – A Portaria n.º 1/2024, de 02/01, com entrada em vigor em 01/02/2024, tem aplicação imediata, dispondo para o futuro, sem que lhe tenha sido acoplado direito transitório ou disponha de norma que confira aplicação retroactiva.
III – Deste modo, as normas regulamentares da citada Portaria não são aplicáveis retroactivamente a procedimento administrativo já extinto em resultado da tomada da decisão final em data anterior ao momento do início da vigência da referida Portaria.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - Relatório.
Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, doravante Recorrente, que contra si foi deduzido por J......., doravante Recorrido, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé), processo cautelar com vista à adopção das providências de autorização provisória do ora Recorrido a exercer a profissão de instrutor e director de escola de condução automóvel e de emissão de título habilitante válido para apresentação perante as autoridades de fiscalização e em serviço de exames de condução, inconformado que se mostra com a sentença do TAF de Loulé, de 19/01/2024, que decidiu, em antecipação do juízo sobre a causa principal (cf. artigo 121.º, n.º 1, do CPTA), julgar parcialmente procedente a acção e, consequentemente, condenar o ora Recorrente a emitir uma decisão sobre o pedido de revalidação do título profissional de instrutor de condução apresentado pelo Recorrido, deferindo-o, se a tal nada mais obstar, sem que o possa recusar com fundamento na falta de prova de frequência com aproveitamento do curso de actualização, e ainda condenar o Recorrente, em caso de deferimento de tal pedido de revalidação, a emitir o respectivo título profissional de instrutor de condução com o período de validade previsto legalmente, absolvendo o Recorrente do demais peticionado, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):
1. O presente recurso jurisdicional foi interposto contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, em 19.01.2024, que condenou o Réu a «emitir uma decisão sobre o pedido de revalidação do título profissional de instrutor de condução apresentado pelo autor em 20 de abril de 2023, deferindo-o, se a tal nada mais obstar, sem que o possa recusar com fundamento na falta de prova de frequência com aproveitamento do curso de atualização a que se refere o artigo 47.º n.º 3 da Lei n.º 14/2014, de 18 de março».
2. É absolutamente imprescindível para uma correta e melhor apreciação e aplicação do direito, de proceder-se à apreciação de três questões fundamentais e que estão intimamente ligadas: • A Portaria n.º 1/2024, de 02 de janeiro aplicar-se-á apenas às situações constituídas após a sua entrada em vigor ou também aquelas já constituídas e que subsistam à data dessa entrada em vigor? • O aresto em recurso devia ter tido em consideração a iminência da entrada em vigor da Portaria n.º 1/2024, de 02 de janeiro, considerando que os prazos para execução da sentença condenatória se verificariam em momento posterior ao início da sua vigência? • Assumindo a linha interpretativa da douta sentença, quando menciona que a Lei n.º 14/2014 se apresenta como não auto exequível (na qual, diga-se, desde já, que se concorda) poderá conferir-se exequibilidade direta no que se refere ao n.º 3 do art.º 47.º, ignorando a omissão regulamentar necessária à sua concretização?
3. Primo, e salvo melhor opinião, a Portaria n.º 1/2024 é de aplicação imediata aos procedimentos administrativos de renovação de licenças de instrutor de condução, que estiverem pendentes à data da sua entrada em vigor, ainda que tenham sido iniciados anteriormente a essa publicação.
4. Assim, não existindo disposições transitórias acerca da questão em apreço, há que ter em conta os princípios que regem a aplicação da lei administrativa no tempo.
5. O princípio tempus regit actum, previsto no artigo 12.º do Código Civil, constitui a regra geral de aplicação das leis no tempo, em que se traduz na aplicação de normas jurídicas com efeito apenas para o futuro.
6. Este princípio postula que, em regra, a legalidade do ato administrativo se afira pela situação existente no momento da sua prática e pelo quadro normativo então em vigor.
7. Veja-se, neste sentido, a bitola jurisprudencial na matéria, tal como assinalada no acórdão STA n.º 0929/17.7BEPRT 01504/17, de 07.09.2022, e que sustenta o seguinte: «A legalidade dos actos administrativos é aferida pela lei em vigor à data da sua prática. Esse é o princípio "tempus regit actum" chamado e próprio do Direito Administrativo, segundo o qual as condições de validade de um acto administrativo devem ser apreciadas à luz do direito vigente à data em que o acto é praticado (cfr. também o artº 12º nº 2 do CC) e o qual manda, ainda, aferir a legalidade do acto administrativo pela situação de facto e de direito existente à data da sua prolação.». (sublinhado e negrito nosso)
8. O decurso do prazo legal para decidir, não tem qualquer efeito preclusivo sobre a aplicação imediata da nova Portaria n.º 2/2024 ao procedimento de revalidação que se encontra pendente.
9. Com efeito, caso a Administração venha a proferir uma decisão já depois de decorrido o prazo legal, ela deverá «aplicar as disposições entretanto sobrevindas que, mesmo sem possuírem eficácia retroativa, relevam para a definição da situação jurídica que ao ato caiba introduzir» 10 .
10. Assim e contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, o Apelante tem atualmente base legal para pedir à Apelada a apresentação de um certificado de frequência de curso de atualização para instrutores.
11.Secundo, saliente-se que a decisão condenatória foi notificada às partes em 24/01/2024, uma semana antes da entrada em vigor da Portaria n.º 1/2024, pelo que a douta decisão não teve em atenção os prazos decorrentes da obrigatoriedade de execução da sentença que, como é notório, ocorreriam após a data de entrada em vigor da Portaria.
12. É que, o n.º 1 do artigo 175.º do CPTA, prescreve que «(…) o dever de executar deve ser integralmente cumprido, no máximo, no prazo procedimental de 90 dias».
13.O Tribunal a quo, ao impor ao Apelante a emissão de ato administrativo sem a observância das vinculações legais atualmente em vigor, está a pôr em causa os princípios gerais da atividade administrativa, nomeadamente o princípio da legalidade que exige subordinação à lei.
14.Deste modo, é por demais evidente que, ao arrepio das disposições legais atualmente em vigor e que subordinam a atividade administrativa, não poderia aquele Tribunal impor à administração a emissão de um ato administrativo de revalidação de uma licença de instrutor desconsiderando o ordenamento jurídico vigente à data dessa emissão.
15.Tertio, a Lei n.º 14/2014 é parcialmente não auto exequível, ou seja, carece de um regulamento para poder ser executada ou complementada – regulamento que veio a ser publicado a 02 de janeiro de 2024, pela Portaria n.º 2/2024.
16.Pelo que, no que toca à revalidação da licença de instrutor de condução, a Lei n.º 14/2014 de 18 de março não sendo auto exequível, era inviável a aplicação do diploma sem a disciplina normativa do regulamento para o qual remete.
17.Deste modo, é por demais evidente que, ao arrepio das disposições legais atualmente em vigor e que subordinam a atividade administrativa, não poderia aquele Tribunal impor à administração a emissão de um ato administrativo de revalidação de uma licença de instrutor desconsiderando o ordenamento jurídico vigente à data dessa emissão, sob pena de violação do princípio da legalidade.
O Recorrido apresentou contra-alegações, enunciando as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de contra-alegações inclusa no SITAF):
A) A sentença recorrida não padece de qualquer erro dos invocados no recurso encontra-se juridicamente bem sustentada.
B) Não pode agora a ER, ao abrigo do princípio jurídico tempus regitactum -o qual não soube, e não quis, aplicar em 04.09.2023 (data em que teria de emitir o titulo do recorrente renovado por inexistência da portaria que alude o art.º 69º, nº 3 da Lei 14/2014, de 18.3)- vir impor a aplicação de uma regulamentação nova, que só vigora desde 01.02.2024,
C) Quando a própria ER se recusou a praticar o ato, indeferindo-o em 24.10.2024, desrespeitando esse mesmo princípio, ou seja, tendo em conta que o DR 5/98 de 9.4 estava revogado desde 17.06.2014, não podia exigir, para a renovação dos títulos profissionais dos instrutores um comprovativo de frequência com aproveitamento de um curso de atualização, desde logo por respeito a, entre outos, o princípio da legalidade.
D) Vir agora invocar o princípio do tempus regit actum em sede de recurso consubstancia venire contra factum próprium e roça a má-fé processual.
E) É precisamente o respeito pelo princípio tempus regit actum que a renovação do título profissional do recorrido, correspondente à faixa etária dos 70 anos de idade e até aos 72 anos de idade, tem de ser efetuada de acordo com as normas jurídicas que vigoravam à data dessa renovação obrigatória,
F) Ou seja, em 04.09.2023, quando não vigorava nem sequer estava publicada a Portaria 1/2024 de 02.01.
G) O procedimento administrativo não está, por isso, pendente na ER.
H) Pelo contrário foi concluso com o indeferimento expresso notificado ao recorrido em 24.10.2023, já na pendência da providencia cautelar a ação principal destes autos.
I) Os atos a praticar agora pela ER terão de o ser com as normas que, à data em que se recusou a pratica-los regiam, pois é isso mesmo que significa o princípio do tempus regit actum
J) A ER manhosamente, e de má-fé, confunde regras adjetivas (do CPTA no que respeita ao cumprimento das decisões judiciais) com regras substantivas (aquelas que declaram o direito aplicável à datada prática dos factos ou que os atos deveriam ser praticados).
K) Outro entendimento que não este faria com que a atuação dos tribunais ficasse desprovida de qualquer sentido pois para isso bastava às ER, na pendência dos processos mudar as regras a seu bel prazer, esvaziando-se assim a aplicabilidade fundamental do principio jurídico que a própria ER invoca para recorrer tempus regit actum que mais não é do que o principio da não retroatividade da Lei Nova.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, não emitiu parecer.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se a sentença recorrida enferma dos erros de julgamento que lhe vêm imputados pelo Recorrente, ou seja, visto o teor das conclusões recursivas, importa saber se é como propugna a tese do Recorrente aí ventilada, pois que, no essencial, defende que ao requerimento do ora Recorrido, de 20 de Abril de 2023, contendo o pedido de revalidação do seu título profissional de instrutor, cuja decisão de indeferimento foi comunicada ao Recorrido em 24/10/2023, se aplica o regime regulamentar trazido pela Portaria n.º 1/2024, de 02/01.
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III - Matéria de facto.
Considerando que a fixação da matéria de facto na sentença recorrida não foi impugnada, mormente, segundo o ónus prescrito ao Recorrente pelas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, nem há lugar a qualquer alteração dessa mesma factualidade, remetemos para os termos da decisão da 1.ª instância que a decidiu, por ser suficiente a sua consideração para a apreciação do presente recurso, conforme o disposto no n.º 6 do artigo 663.º do CPC, aplicáveis tais comandos legais “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA.
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IV - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui nos importa perscrutar, vejamos a fundamentação de direito da sentença recorrida, transcrevendo-se o seguinte trecho, por ser aquele que, de modo mais relevante, interessa à decisão do presente recurso:
(…) 3.3. Como ressalta deste enquadramento, e no que em especial releva para o caso concreto, a norma legal do artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, impõe como condição para a revalidação do título profissional de instrutor de condução, da qual depende, por sua vez, a revalidação do certificado de director de escola de condução, a frequência com aproveitamento de curso de actualização, erigindo-o, portanto, a requisito para o exercício destas profissões.
Porém, remete a regulamentação das matérias relativas à organização, duração e conteúdos desse curso de actualização para portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do emprego e dos transportes, a emitir no prazo de 90 dias após a sua publicação (cfr. artigo 69.º, n.ºs 1 e n.º 3).
Ora, quando o autor pediu a revalidação do seu título profissional de instrutor de condução e quando a entidade demandada o indeferiu - quase dez anos depois da publicação da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março - os membros do Governo competentes ainda não haviam emitido a portaria com a regulamentação desta matéria (e de outras), cuja adopção se mostrava necessária para dar exequibilidade à referida norma legal.
E só em 2 de Janeiro de 2024, já na pendência desta lide, é que vem a ser publicada a Portaria n.º 1/2024 (ao abrigo, entre outros, do n.º 3 do artigo 69.º da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março), emitida pelo Secretário de Estado Adjunto e das Infraestruturas e pelo Secretário de Estado do Trabalho, que regulamenta, entre o mais, as condições de organização, duração e conteúdos dos cursos de actualização dos instrutores de condução [cfr. artigo 1.º, alínea c), e artigo 27.º] e estabelece, no que ora releva, os elementos instrutórios que devem acompanhar o pedido de revalidação do título profissional, incluindo entre eles, precisamente, o certificado de frequência com aproveitamento do curso de actualização emitido pela entidade formadora [cfr. artigo 28.º, alínea c)].
Portaria esta que, de resto, e de acordo com o disposto no seu artigo 35.º, apenas entrará em vigor 30 dias após a data de publicação, ou seja, em 1 de Fevereiro de 2024.
3.4. Ora, no caso concreto dos autos, como se apurou, o autor veio pedir a revalidação do seu título profissional de instrutor de condução em 20 de Abril de 2023: fê-lo, portanto, nos seis meses anteriores ao termo da sua validade (em 3 de Setembro de 2023) e, como tal, dentro do período temporal previsto no n.º 3 do artigo 47.º da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março.
Porém, não instruiu o seu pedido com um certificado de frequência com aproveitamento de um curso de actualização: curso este de cuja frequência (com aproveitamento), como vimos, o n.º 3 do artigo 47.º fazia depender a pretendida revalidação do título profissional.
E depois de ter sido notificado pela entidade demandada, ao abrigo do artigo 119.º do Código do Procedimento Administrativo, para apresentar prova do cumprimento deste requisito – a “declaração de conclusão do curso de actualização” – sob pena de não ser dado seguimento ao procedimento, veio o autor declarar expressamente que não a iria apresentar, por considerar que a mesma não lhe podia ser exigida [cfr. alíneas f) e g) dos factos provados].
Pelo que, uma vez confrontada com esta posição do autor, decidiu a entidade demandada, já na pendência da lide e depois de lhe facultar o exercício do direito de audiência, indeferir o pedido que este lhe havia sido dirigido, recusando a revalidação do seu título profissional de instrutor de condução, por considerar, em síntese, não estar preenchido (ou provado) o requisito exigido pelo n.º 3 do artigo 47.º da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março: a frequência com aproveitamento de um curso de actualização.
E para tanto, como resulta dos fundamentos em que esta decisão de indeferimento se baseou, sustentou que a lei impunha como requisito para a revalidação do título profissional a frequência do curso de actualização e que, pese embora a portaria para a qual o n.º 3 do artigo 47.º remetia a regulamentação da organização, duração e conteúdos não estivesse publicada, deviam continuar a aplicar-se (por “prolongamento da [sua] eficácia”), na pendência da lei nova e até emissão de novo regulamento de execução, as normas (não contrárias à lei nova) que regulavam esta matéria no anteriormente vigente Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril (que executava o Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril), apesar de este haver sido revogado, por força do disposto no artigo 119.º do Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, vigente à data em que a Lei n.º 14/2014, de 18 de Março havia entrado em vigor.
Vejamos, pois.
3.5. O Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril, que anteriormente estabelecia o regime jurídico do ensino da condução, prescrevia no artigo 25.º, n.º 5, que, periodicamente e nos termos regulamentares, os instrutores ficam sujeitos à frequência de curso de actualização de conhecimentos, sem o qual não podem proceder à revalidação da licença de que são titulares (redacção dada pela Lei n.º 51/98, de 18 de Agosto), acrescentando, no n.º 6, que em regulamento são fixados os prazos de validade e as formas de revalidação da licença de instrutor, a organização e as condições de acesso aos cursos de formação e de actualização e a forma de avaliação de conhecimentos dos candidatos.
E na dependência deste diploma e por ele habilitado, veio o Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril, com a publicação do qual o Governo visava permitir “a exequibilidade dos novos princípios enformadores da actividade, bem como dos normativos consagrados naquele decreto-lei”, regulamentar a disciplina do ensino jurídico da condução.
Era este decreto regulamentar, pois, que, para além de fixar os prazos de validade e as formas de revalidação da licença de instrutor, no seu artigo 32.º - no qual se prescrevia, no n.º 4, que a revalidação da licença de instrutor depende de aproveitamento em curso de actualização, a ministrar nos termos a que se refere o artigo seguinte – regulamentava especificamente, no artigo 33.º, as matérias relativas à organização e duração dos cursos de actualização, remetendo a definição do respectivo conteúdo (o programa), por sua vez, para despacho do Director-Geral de Viação, nos mesmos termos que então se encontravam previstos para os cursos de formação no artigo 28.º, aplicável com as devidas adaptações por remissão do n.º 3 do referido artigo 33.º (cfr. Despacho n.º 10 991/98, publicado no Diário da República, II série, n.º 147, de 29 de Junho de 1998).
Porém, a Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, veio revogar expressamente não só o Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril, mas também o Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril [cfr. artigo 76.º, alíneas a) e b)]: revogação esta que, na falta de disposição transitória, produziu efeitos a partir da entrada em vigor da lei que a determinou, em 16 de Junho de 2014, 90 dias após a data da sua publicação (cfr. artigo 77.º).
E coerentemente, ordenou a emissão da regulamentação (de execução) necessária para lhe dar exequibilidade, nomeadamente em relação à organização, duração e conteúdos dos cursos de actualização dos instrutores de condução, nesse mesmo prazo de 90 dias após a sua publicação (artigo 69.º, n.ºs 1 e 3), idêntico, portanto, ao que definiu para a sua própria entrada em vigor.
Deste modo, fez coincidir o termo final do prazo para a emissão da nova regulamentação com o início da produção dos efeitos da revogação do decreto regulamentar anteriormente vigente, com tanto pretendendo evitar, como logicamente se depreende, um “vazio” regulamentar.
3.6. Ora, para fundamentar a (continuação da) aplicação das normas do Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril, entretanto revogado, que disciplinavam a organização, a duração e (por remissão para despacho) os conteúdos do curso de actualização de instrutores, a entidade demandada vem convocar, por o considerar aplicável, o artigo 119.º do Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, vigente na data em que a Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, entrou em vigor.
Prescrevia, efectivamente, o então artigo 119.º do Código do Procedimento Administrativo, sob a epígrafe «Regulamentos de execução e revogatórios», no n.º 1, que os regulamentos necessários à execução das leis em vigor não podem ser objecto de revogação global sem que a matéria seja simultaneamente objecto de nova regulamentação, acrescentando ainda, no n.º 2, que nos regulamentos far-se-á sempre menção especificada das normas revogadas.
E aliás, em sentido coincidente, o Código do Procedimento Administrativo actualmente em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro – que, embora não seja aplicável em razão do tempo (cfr. artigo 12.º do Código Civil e, a contrario, artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 4/2015), anuncia no seu preâmbulo procurar, em relação à matéria da revogação dos regulamentos administrativos, “dar resposta às questões colocadas pela doutrina em torno do regime da anterior versão do artigo 119.º” – vem estabelecer, no seu artigo 146.º, sob a epígrafe «Revogação», no n.º 1, que os regulamentos podem ser revogados pelos órgãos competentes para a respectiva emissão, sem prejuízo do disposto nos números seguintes, continuando a prever, no n.º 2, que os regulamentos necessários à execução das leis em vigor (ou de direito da União Europeia) não podem ser objecto de revogação sem que a matéria seja simultaneamente objecto de nova regulamentação, mas dispondo agora, no n.º 3, que, em caso de inobservância do disposto no número anterior, consideram-se em vigor, para todos os efeitos, até ao início da vigência do novo regulamento, as normas regulamentares do diploma revogado de que dependa a aplicabilidade da lei exequenda (e acrescentando, no n.º 4, como já antes determinava, que os regulamentos revogatórios devem fazer menção expressa das normas revogadas).
É, pois, com abrigo neste regime, que pressupõe aplicável, que a entidade demandada vem considerar que a lei (nova) não podia revogar o regulamento (de execução da lei antiga), sem que a matéria fosse simultaneamente objecto de nova regulamentação.
E é igualmente com abrigo nele que pressupõe, como consequência jurídica da violação desta (alegada) proibição imposta pelo artigo 119.º do Código do Procedimento Administrativo (ora positivada no actual n.º 3 do artigo 146.º do novo Código do Procedimento Administrativo), que a Administração deve continuar a aplicar, até ao início da vigência do novo regulamento, as normas do decreto regulamentar revogado que disciplinavam a organização, duração e conteúdos do curso de actualização de instrutores (alegadamente compatíveis com a lei nova), por delas depender a aplicabilidade do artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março.
Pressupõe-no, porém, erradamente: e erradamente porque, tão-simplesmente, o artigo 119.º do Código do Procedimento Administrativo anteriormente vigente disciplinava apenas o instituto da revogação inter-regulamentar - como, aliás, o evidencia a sua epígrafe («Regulamentos de execução e revogatórios») - e não a revogação legal de regulamentos, isto é, a revogação de regulamentos por lei (expressa ou tácita) (cfr., sobre esta questão, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 7 de Dezembro de 2022, no processo nº 1230/22.0BEBRG, em caso similar ao presente, junto pelo autor com a petição inicial; vd., também, Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e João Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, 2007, pp. 535 a 537, e em relação ao artigo 146.º do actual Código do Procedimento Administrativo, Carlos Blanco de Morais, “Novidades em matéria da disciplina dos regulamentos no Código do Procedimento Administrativo”, in O Novo Código do Procedimento Administrativo, Colecção Formação Contínua, Centro de Estudos Judiciários, 2016, pp. 204 e 205, disponível emhttps://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=y3SQiePJy3w%3d&portalid=30).
Com efeito, esta norma, ao proibir a revogação regulamentar expressa (e meramente ab-rogatória ou supressiva) de regulamentos de execução de leis, quando não acompanhada por nova regulamentação (substitutiva), abrangia exclusivamente, na sua previsão, a hipótese de revogação de um regulamento de execução por outro regulamento (o tal revogatório) (ou por acto de igual hierarquia formal), que não pela lei.
E a proibição nela imposta tinha como único destinatário o titular do poder regulamentar, que não o legislador, dirigindo-se apenas às entidades integradas na Administração Pública (ou a quaisquer outras entidades, actuando no exercício de funções materialmente administrativas). Com este regime, pretendia-se, pois, “evitar que a Administração se [tornasse] senhora da oportunidade de aplicação da lei e se [criassem] vazios jurídicos prejudiciais para a unidade e coerência do ordenamento jurídico” (cfr. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e João Pacheco de Amorim, op. cit., 2.ª edição, 2007, p. 535) e precludir, bem assim, “a génese de potenciais omissões regulamentares” (cfr. Carlos Blanco de Morais, op. cit., p. 204).
E como tal, só em caso de revogação (ab-rogatória) de um regulamento por outro regulamento – ou por acto de igual hierarquia formal - em violação do artigo 119.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, é que a entidade demandada poderia equacionar continuar a aplicar as normas regulamentares (antigas) da lei antiga, até que fossem substituídas por outras, e ignorar (por inoperância ou ineficácia) esse efeito revogatório (puramente supressivo).
No caso, porém, foi o legislador quem expressamente decidiu revogar não só a lei antiga (o Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril), como também o respectivo regulamento executório (o Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril), incluindo, pois, as normas que nele constavam (ou para as quais este, por sua vez, remetia) que regulavam a organização, a duração e os conteúdos do curso de actualização de instrutores.
E porque assim foi, não pode a entidade demandada convocar, para justificar a aplicação das normas regulamentares antigas, o artigo 119.º do Código do Procedimento Administrativo antigo, por estar excluído da sua previsão a hipótese de revogação dos regulamentos por lei, nem tão-pouco o regime da caducidade regulamentar (hoje positivado no artigo 145.º do Código do Procedimento Administrativo), porquanto, neste caso, a revogação do regulamento antigo não resultou “tacitamente” da revogação (apenas) da lei (habilitante) antiga, mas foi, ela própria, expressamente determinada por lei (contrariamente à situação sobre a qual se debruçou o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Janeiro de 2015, no processo n.º 1003/13.
Tendo o precedente Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril, sido revogado por lei expressa - cuja superior hierarquia formal consentia que o fizesse - não pode a entidade demandada continuar a aplicar as normas regulamentares revogadas, ainda que, em substituição das mesmas, não tenha sido emitida uma nova regulamentação, independentemente da sua compatibilidade (ou não) com a lei nova.
E não pode fazê-lo, tão-simplesmente, porque a tanto se opõe a vontade expressa pelo legislador na Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, que propositadamente fez cessar a vigência não só da lei antiga, como também da precedente regulamentação de execução, afastando as normas (secundárias) que antes disciplinavam a matéria, nomeadamente em relação à organização, duração e conteúdos do curso de actualização, e remetendo para portaria a (nova) regulamentação necessária para dar exequibilidade às novas normas legais.
Mas se não pode aplicar as normas regulamentares antigas, também não pode aplicar o artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, por lhe faltar a regulamentação cuja adopção era necessária (e obrigatória) para lhe dar exequibilidade.
Vejamos, pois.
3.7. O artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, como vimos, exigia, como requisito para a revalidação do título profissional de instrutor de condução, a frequência de um curso de actualização.
Esta norma legal, disciplinando o núcleo principal do objecto de regulação, e concretamente a imposição desta condição para a revalidação do título profissional, remeteu para ulterior regulamento (ou para normas regulamentares) de execução, a estabelecer em portaria, a matéria (secundária e remanescente) relativa à organização, duração e conteúdos desse curso de actualização de instrutores (artigo 69.º, n.º 3).
Desta forma, o legislador, repartindo ou parcelando a matéria objecto de regulação, mediante reenvio ou remissão normativa, optou por entregar à Administração a “tarefa de pormenorização, de detalhe e de complemento do comando legislativo” e de “desenvolvimento, operado por via administrativa, da previsão legislativa”, que torna possível a aplicação do comando primário às situações concretas da vida (cfr. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume II, Almedina, 2011, 2.ª edição, p. 185).
Ora, ao remeter para definição ulterior e obrigatória a regulação da matéria relativa à organização, duração e conteúdos do curso de actualização de instrutores, necessária para lhe dar exequibilidade, a norma do artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, (auto-)limita-se explicitamente na regulação da matéria em causa e assume-se expressamente como não auto-exequível (ou não auto-aplicável), porque, recorrendo às palavras de Marcello Caetano, carece de regulamentação própria para se tornar susceptível de observância e aplicação (cfr. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, 1996, págs. 84 e 85).
Com efeito, o artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, é uma norma de regulação material, mas incompleta (ou de previsão incompleta), “posto que, só com a norma remitida, consubstancia a totalidade da regulação material” (cfr. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º P000041996, de 04.01.1996, pesquisável em www.dgsi.pt).
E apesar de produzir “efeitos após a sua vigência, naturalmente – nomeadamente o efeito de obrigar à regulamentação ulterior” -, “não é apta à regulação das condutas que apenas disciplina parcialmente”, ficando posta em causa, num cenário, como o presente, de omissão de regulamentação, a sua “aplicabilidade da norma remissiva, que apenas regula a conduta parcialmente, não estabelecendo na previsão condições suficientes para o efeito” (cfr. Pedro Moniz Lopes, Derrotabilidade Normativa e Normas Administrativas - O enquadramento das normas regulamentares na teoria dos conflitos normativos, AAFDL Editora, 2019, p. 348).
Pelo que, na falta de regulação da matéria (secundária) relativa à organização, duração e conteúdos do curso de actualização por intermédio de norma regulamentar, que a própria norma legal impôs como necessária e obrigatória para ela própria se tornar exequível, não pode a entidade demandada aplicar o artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, no segmento em que exige a frequência desse curso de actualização como condição para a revalidação do título profissional de instrutor de condução, e nessa medida, como requisito para o exercício da profissão em causa (e da profissão de director de escola de condução).
E não pode fazê-lo, ainda que os cursos existentes estejam sujeitos a “prévia verificação e autorização pelo IMT”, nomeadamente quanto à organização, duração e conteúdos, ou de estar salvaguardada a compatibilidade dos mesmos com as normas previstas na Lei n.º 14/2014, de 18 de Março.
Como não pode fazê-lo para obviar ao “vazio de controlo efectivo da aptidão que o instrutor mantém para o exercício da sua actividade profissional”, em alegada prossecução do interesse público da segurança rodoviária, no caso inerente ao ensino da condução, quando este está subordinado ao respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e quando lhe falta uma norma legal que legitime a restrição ao exercício da profissão que pretende impor (cfr. artigos 18.º e 47.º da Constituição da República Portuguesa).
E tão-pouco pode convocar, para o efeito, o princípio da igualdade, confrontando a situação do autor com o tratamento que deu aos demais instrutores de quem (ilegalmente) exigiu a frequência de cursos de actualização, quando, na relação que tem com aquele (da qual emerge o presente litígio), está vinculada ao princípio da legalidade, sem que lhe seja concedida margem alguma de discricionariedade.
3.8. Tendo presente o acima exposto, resta, pois, concluir que a entidade demandada, à luz do quadro normativo actual – quando não está em vigor a Portaria n.º 1/2024, de 2 de Janeiro (cfr. artigo 35.º) - não pode recusar a revalidação do título profissional de instrutor de condução que lhe foi pedida pelo autor, com fundamento na falta de (prova de) frequência com aproveitamento do curso de actualização previsto no artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março.
E pese embora não seja possível determinar o conteúdo do acto a praticar - porque a revalidação do título profissional também depende do cumprimento do requisito previsto na alínea f) do n.º 1 o artigo 37.º da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março [«ser idóneo para o exercício da profissão, nos termos definidos nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 15.º»], que é de verificação permanente, por força do disposto no artigo 47.º, n.º 1, e cuja apreciação compete em primeira linha à Administração -, deve ainda assim condenar-se a entidade demandada a emitir o acto legalmente devido que, se a tanto nada mais obstar, corresponderá ao deferimento do pedido de revalidação do título profissional de instrutor de condução do autor, sem que o possa recusar com base no pressuposto (errado) de que se serviu para justificar o acto de indeferimento expresso ilegalmente emitido na pendência da lide (e cuja eliminação da ordem jurídica, de resto, resultará directamente da pronúncia condenatória, por força do disposto no artigo 66.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
E em caso de deferimento, deve a mesma ser igualmente condenada, tal como peticionado, a emitir o título profissional de instrutor de condução, com o período de validade determinado no artigo 47.º, n.º 2, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março – porque é este o legalmente devido, à luz do regime jurídico actualmente vigente – de cuja validade depende a do certificado de director de escola de condução (artigo 54.º, n.º 1).
Improcede, porém, o pedido de condenação da entidade demandada a abster-se de indeferir os (futuros) pedidos de revalidação do título profissional de instrutor de condução com fundamento (apenas) na falta (de prova de) frequência de um curso de actualização.
Com efeito, não obstante se reconheça que a entidade demandada não pode recusar a revalidação com fundamento na falta de preenchimento (ou prova) deste requisito enquanto se mantiver o quadro jurídico actualmente vigente, e nomeadamente, enquanto se mantiver inalterada a norma do artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, e até que a portaria a que se refere o n.º 3 do artigo 69.º esteja em vigor, contendo a regulamentação necessária (e obrigatória) sobre a organização, duração e conteúdos do curso de actualização, não é minimamente provável, neste caso, à luz dos factos conhecidos nos autos, que venha a haver lugar, no futuro, à emissão de outros actos (com idêntico conteúdo) lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos do autor, quando se atende ao prazo pelo qual este título profissional será revalidado (se a tal nada mais obstar) e quando, de resto, está iminente a entrada em vigor da referida portaria até ora omissa.
3.9. Tendo presente o disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, devem as custas do processo ser suportadas por ambas as partes, por lhes haverem dado causa, na proporção do respectivo vencimento, que se fixa em 30% para o autor e em 70% para a entidade demandada.
IV – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se, em antecipação do juízo sobre a causa principal, julgar parcialmente procedente a presente acção e, consequentemente:
a) Condenar a entidade demandada a emitir uma decisão sobre o pedido de revalidação do título profissional de instrutor de condução apresentado pelo autor em 20 de Abril de 2023, deferindo-o, se a tal nada mais obstar, sem que o possa recusar com fundamento na falta de (prova de) frequência com aproveitamento do curso de actualização a que se refere o artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março;
b) Condenar a entidade demandada, em caso de deferimento deste pedido de revalidação, a emitir o respectivo título profissional de instrutor de condução com o período de validade previsto no artigo 47.º, n.º 2, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março;
c) Absolver a entidade demandada do demais peticionado; d) Condenar o autor e a entidade demandada no pagamento das custas processuais, na proporção de 30% e 70%, respectivamente.
Desde já adiantamos que a sentença recorrida se mostra proferida com inteiro acerto, rigor e correcção de julgamento e que, como tal, será mantida.
Indaguemos, pois, as críticas que o Recorrente lhe dirige, infundadas, como veremos.
Compulsadas as conclusões recursivas, o Recorrente começa por apontar um primeiro segmento de crítica à sentença recorrida, pugnando, em síntese, que a Portaria n.º 1/2024, de 02/01, é de aplicação imediata aos procedimentos administrativos de renovação de licenças de instrutor de condução que estiverem pendentes à data da sua entrada em vigor, ainda que tenham sido iniciados anteriormente a essa publicação, mais aduzindo que, não existindo disposições transitórias acerca da questão em apreço, há que ter em conta os princípios que regem a aplicação da lei administrativa no tempo, o princípio tempus regit actum, previsto no artigo 12.º do Código Civil, que constitui a regra geral de aplicação das leis no tempo, em que se traduz na aplicação de normas jurídicas com efeito apenas para o futuro, postulando tal princípio que, em regra, a legalidade do acto administrativo se afira pela situação existente no momento da sua prática e pelo quadro normativo então em vigor, mais frisando que o decurso do prazo legal para decidir não tem qualquer efeito preclusivo sobre a aplicação imediata da nova Portaria ao procedimento de revalidação que se encontra pendente e que, caso a Administração venha a proferir uma decisão já depois de decorrido o prazo legal, ela deverá «aplicar as disposições entretanto sobrevindas que, mesmo sem possuírem eficácia retroativa, relevam para a definição da situação jurídica que ao ato caiba introduzir», defendendo, em suma, que tem actualmente base legal para pedir ao Recorrido a apresentação de um certificado de frequência de curso de atualização para instrutores.
Analisemos.
Antes de mais, relembramos que o ora Recorrente opôs-se à pretensão do Recorrido, essencialmente, com base no argumento de que o n.º 3 do artigo 47.º da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, impõe, como condição de revalidação do título profissional de instrutor de condução, a realização com aproveitamento de um curso de actualização de instrutores, e que, pese embora a portaria para que este preceito remetia não tivesse ainda sido publicada à data do requerimento apresentado pelo ora Recorrido, deviam continuar a aplicar-se, relativamente à organização, duração e conteúdos desse curso, as normas regulamentares revogadas, inscritas no Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril, as quais, como defendeu na peça de alegações escritas apresentada anteriormente à prolação da sentença recorrida, se mantinham em vigor até ao início da vigência da nova regulamentação.
Esta foi sempre a tese que o ora Recorrente firmemente defendeu em 1.ª instância, mas cabalmente afastada pelo discurso fundamentado da sentença recorrida a propósito da não aplicação do Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril, cuja argumentação o Recorrente, todavia, não coloca directamente em crise nas conclusões recursivas, deixando-a, por isso, incólume a qualquer erro e que, como tal, aqui não tem que ser sindicada.
O que o Recorrente traz agora, em conclusões recursivas, é outra problemática, desta feita, em torno da entrada em vigor e da aplicação da Portaria n.º 1/2024, de 02/01, diploma esse que sobreveio já depois de todos os articulados apresentados em 1.ª instância, mas antes mesmo da prolação da sentença recorrida, que acabou por a convocar na sua argumentação (à mencionada Portaria), à qual se referiu o Tribunal a quo nos seguintes termos:
3.3. Como ressalta deste enquadramento, e no que em especial releva para o caso concreto, a norma legal do artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, impõe como condição para a revalidação do título profissional de instrutor de condução, da qual depende, por sua vez, a revalidação do certificado de director de escola de condução, a frequência com aproveitamento de curso de actualização, erigindo-o, portanto, a requisito para o exercício destas profissões.
Porém, remete a regulamentação das matérias relativas à organização, duração e conteúdos desse curso de actualização para portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do emprego e dos transportes, a emitir no prazo de 90 dias após a sua publicação (cfr. artigo 69.º, n.ºs 1 e n.º 3).
Ora, quando o autor pediu a revalidação do seu título profissional de instrutor de condução e quando a entidade demandada o indeferiu - quase dez anos depois da publicação da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março - os membros do Governo competentes ainda não haviam emitido a portaria com a regulamentação desta matéria (e de outras), cuja adopção se mostrava necessária para dar exequibilidade à referida norma legal.
E só em 2 de Janeiro de 2024, já na pendência desta lide, é que vem a ser publicada a Portaria n.º 1/2024 (ao abrigo, entre outros, do n.º 3 do artigo 69.º da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março), emitida pelo Secretário de Estado Adjunto e das Infraestruturas e pelo Secretário de Estado do Trabalho, que regulamenta, entre o mais, as condições de organização, duração e conteúdos dos cursos de actualização dos instrutores de condução [cfr. artigo 1.º, alínea c), e artigo 27.º] e estabelece, no que ora releva, os elementos instrutórios que devem acompanhar o pedido de revalidação do título profissional, incluindo entre eles, precisamente, o certificado de frequência com aproveitamento do curso de actualização emitido pela entidade formadora [cfr. artigo 28.º, alínea c)].
Portaria esta que, de resto, e de acordo com o disposto no seu artigo 35.º, apenas entrará em vigor 30 dias após a data de publicação, ou seja, em 1 de Fevereiro de 2024.
Por um lado, sobre a apreciação do Tribunal a quo, acabada de transcrever, de novo, nenhum erro de julgamento foi directamente apontado pelo Recorrente, o que a deixa a salvo de qualquer censura por este Tribunal de recurso.
Aliás, a talhe de foice, não se mostra erróneo o entendimento da 1.ª instância quanto à falta de aprovação de uma nova regulamentação sobre as específicas condições de revalidação do título profissional de instrutor de condução, da qual depende, por sua vez, a revalidação do certificado de director de escola de condução, omissão essa que, na sequência da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, perdurou durante quase de dez anos e que ainda se verificava no momento em que o ora Recorrido apresentou o seu requerimento administrativo, não lhe podendo ser aplicado as regras do Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril, porque revogado expressamente pela indicada Lei, conforme bem explicou a sentença recorrida sobre tal questão e sem que alguma crítica o Recorrente lhe conseguisse dirigir, como atrás já deixámos referido.
De igual modo, também não se mostra errado o raciocínio do Tribunal a quo sobre as datas de publicação e de entrada em vigor da Portaria n.º 1/2024, de 02/01.
Por outro lado, tidas em consideração as conclusões recursivas que sobre tal questão foram esgrimidas, o que se constata é uma série de equívocos a propósito da interpretação que o mesmo Recorrente pretende extrair e extrapolar por conta da entrada em vigor da Portaria n.º 1/2024, de 02/01.
Explicitemos.
Conforme bem apreciou o Tribunal a quo, dúvidas não temos que:
i) “só em 2 de Janeiro de 2024, já na pendência desta lide, é que vem a ser publicada a Portaria n.º 1/2024;
ii) Portaria esta que, de resto, e de acordo com o disposto no seu artigo 35.º, apenas entrará em vigor 30 dias após a data de publicação, ou seja, em 1 de Fevereiro de 2024” (destaques nossos).
O primeiro equívoco do Recorrente, lançado em conclusões de recurso, prende-se com a ideia genérica de que a Portaria n.º 1/2024, de 02/01, tem aplicação retroactiva. Não tem, porquanto, segundo o princípio geral inscrito no artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil (CC), por regra, “A lei só dispõe para o futuro (…)”, princípio geral que vale tanto no direito privado como no direito público.
Neste conspecto, em “O Direito Introdução e Teoria Geral”, de José de Oliveira Ascensão, 13.ª Edição, refundida, Setembro, 2022, Almedina, nas páginas 550 e 551, constam os seguintes apontamentos doutrinais, que aqui se acolhem: “Não havendo regra particular nem critério específico de um ramo do direito vigora o critério universal, consagrado no art. 12 do Código Civil. Mais uma vez deparamos com preceitos que não são específicos do Direito Civil, antes se estendem tendencialmente a toda a ordem jurídica.”; “A ideia geral de que a lei tem aplicação imediata (logo, não actua sobre o passado) parece-nos ser ainda a que tem maior explicatividade”.
Aliás, a própria Portaria n.º 1/2024, de 02/01, no seu artigo 35.º, tão-só definiu a sua entrada em vigor em “30 dias após a data de publicação”, inexistindo, nas demais disposições finais e transitórias, qualquer comando que especialmente preveja a sua aplicação retroactiva.
O segundo equívoco do Recorrente, na sequência do primeiro, tem a ver com a errónea aplicação do princípio do tempus regit actum ao caso dos autos, porquanto, embora discorrendo correctamente sobre o seu significado genérico, dele retira, contudo, uma conclusão errada para a situação concreta, porquanto, o procedimento administrativo encetado pelo ora Recorrido não só foi iniciado com um requerimento apresentado em data bem anterior à da entrada em vigor da aludida Portaria (20/04/2023 – cf. alínea c) do probatório fixado na sentença recorrida), como também o acto administrativo de indeferimento que sobre o mesmo veio a ser proferido, o foi em data antecedente ao início de vigência da referida Portaria (24/10/2023 – cf. alínea j) do probatório fixado na sentença recorrida).
Portanto, ao contrário da tese do Recorrente, se bem aplicada a dinâmica do citado princípio, o que resulta, isso sim, face à data da prolação do acto expresso de indeferimento da pretensão do ora Recorrido (24/10/2023), é que os serviços do Recorrente nunca poderiam aplicar ao caso do Recorrido as (futuras) regras contidas na Portaria n.º 1/2024, de 02/01, porque, simplesmente, ainda inexistentes naquela transacta data, e, como vimos, quando vista a luz do dia por tal Portaria, esta só passou a vigorar para o futuro, sem que lhe fosse acoplada, de modo expresso, qualquer eficácia retroactiva ou qualquer direito transitório.
O terceiro equívoco do Recorrente alicerça-se na errónea asserção de que, no momento da entrada em vigor da Portaria n.º 1/2024, de 02/01 (01/02/2024), ainda haveria pendência do procedimento administrativo. É uma conclusão recursiva errada, visto que, uma vez proferido o acto administrativo de indeferimento sobre o requerimento do ora Recorrido (em 24/10/2023), temos de entender que, a partir desta última data, não se podia mais falar de procedimento administrativo “pendente”, pois que, a prolação de tal decisão final constituiu, inevitavelmente, uma causa de extinção do procedimento, atento o disposto no artigo 93.º do CPA, obstativa a que o mesmo se pudesse considerar pendente em 01/02/2024, data da entrada em vigor da mencionada Portaria.
A propósito da temática globalmente acima sindicada, acolhemos o entendimento sufragado no acórdão do STA, de 06/03/2008, proferido no processo sob o n.º 0560/07, consultável em www.dgsi.pt, destacando-se o seguinte excerto:
(…) Como bem se escreve no Parecer da PGR nº 135/2001, de 2.5.2002, na linha de orientação de Mário Aroso de Almeida (in Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes, pags. 706 e segs)
«O princípio tempus regit actum constitui a regra geral de aplicação das leis no tempo e significa que as normas jurídicas têm efeito apenas para o futuro. Trata-se de um princípio geral de Direito, recebido no artigo 12º do Código Civil, mas enquanto princípio geral vale no Direito público e no privado.
Decorre do mencionado princípio que “a lei nova é de aplicação imediata” e tem ínsito o princípio da não retroactividade.
Em direito administrativo, ao princípio tempus regit actum é geralmente imputado “o sentido de que os actos administrativos se regem pelas normas em vigor no momento em que são praticados, independentemente da natureza das situações a que se reportam e das circunstâncias que precederam a respectiva adopção”.
Prosseguindo, o Recorrente lança contra a sentença recorrida um segundo nível de censura, podendo retirar-se das conclusões de recurso, em resumo, que a sentença recorrida foi notificada às partes em 24/01/2024, uma semana antes da entrada em vigor da Portaria n.º 1/2024, de 02/01, pelo que, não teve tal sentença em atenção os prazos decorrentes da obrigatoriedade de execução da sentença, que ocorreriam após a data de entrada em vigor da referida Portaria, mais aduzindo que, por causa do n.º 1 do artigo 175.º do CPTA, o Tribunal a quo, ao impor ao Recorrente a emissão de um acto administrativo sem a observância das vinculações legais actualmente em vigor, está a pôr em causa os princípios gerais da atividade administrativa, nomeadamente o princípio da legalidade, sendo por demais evidente que, ao arrepio das disposições legais actualmente em vigor e que subordinam a actividade administrativa, não poderia a sentença recorrida impor à Administração a emissão de um acto administrativo de revalidação de uma licença de instrutor desconsiderando o ordenamento jurídico vigente à data dessa emissão.
Pois bem, se correctamente compreendemos a alegação recursiva do Recorrente, pretende o mesmo, ao abrigo da invocação das regras de execução de sentenças previstas no CPTA, furtar-se à execução da sentença recorrida com o argumento de que a vai executar contra as normas que já se mostram actualmente vigentes por conta da Portaria n.º 1/2024, de 02/01.
Em primeiro lugar, se para o Recorrente é já um problema de execução da sentença recorrida, então, não é um erro de julgamento intrínseco aquele que lhe pretende agora assacar e, nessa medida, é até uma questão totalmente nova e superveniente, com a qual o Tribunal a quo não teve que lidar, nem teve, naturalmente, que julgar, pois que, só laborou na fase declarativa do processo e não na sua fase executiva. É inócua, portanto, tal conclusão recursiva para ditar qualquer erro de julgamento da sentença recorrida.
Ainda assim, sem olvidar a inocuidade de tal conclusão recursiva, não podemos deixar de dizer, de relance, que o argumento do Recorrente é, de facto, ilusório, pois que, se fosse como defende, estaria descoberto o caminho para a ofensa do caso julgado que se firma com o trânsito da sentença, porquanto, veja-se bem a contradição insanável que emana da tese do Recorrente, em que, por um lado, dita a decisão recorrida que ao caso concreto do Recorrido não se pode aplicar a Portaria n.º 1/2024, de 02/01, e, como tal, não lhe é exigível a prova de frequência com aproveitamento do curso de actualização para a revalidação do seu título profissional de instrutor de condução, e, por outro lado, na execução da sentença, porque entrada em vigor tal Portaria, já poderia a Administração exigir tal prova de conhecimentos, furtando-se, assim, ao sentido decisório e conformador do caso julgado e em total desrespeito ao direito que judicialmente havia sido reconhecido ao ora Recorrido.
Não se admite que possa ser esse o resultado, tal como pretendido pelo Recorrente em conclusões de recurso, o que aqui rejeitamos.
Por fim, perscrutemos o terceiro nível de crítica que o Recorrente lança contra a sentença recorrida. Sustenta, em síntese, que a Lei n.º 14/2014, de 18/03, é parcialmente não auto exequível, ou seja, carece de um regulamento para poder ser executada ou complementada – regulamento que veio a ser publicado a 02 de Janeiro de 2024, pela Portaria n.º 2/2024, pelo que, no que toca à revalidação da licença de instrutor de condução, tal Lei, não sendo auto exequível, era inviável a aplicação do diploma sem a disciplina normativa do regulamento para o qual remete.
Ora bem, mal se compreende o que pretende dizer o Recorrente com tal afirmação e qual o seu real objectivo recursivo, porquanto, neste especial conspecto, a sentença recorrida foi, novamente, bem explícita, asseverando o seguinte: 3.7. O artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, como vimos, exigia, como requisito para a revalidação do título profissional de instrutor de condução, a frequência de um curso de actualização.
Esta norma legal, disciplinando o núcleo principal do objecto de regulação, e concretamente a imposição desta condição para a revalidação do título profissional, remeteu para ulterior regulamento (ou para normas regulamentares) de execução, a estabelecer em portaria, a matéria (secundária e remanescente) relativa à organização, duração e conteúdos desse curso de actualização de instrutores (artigo 69.º, n.º 3).
Desta forma, o legislador, repartindo ou parcelando a matéria objecto de regulação, mediante reenvio ou remissão normativa, optou por entregar à Administração a “tarefa de pormenorização, de detalhe e de complemento do comando legislativo” e de “desenvolvimento, operado por via administrativa, da previsão legislativa”, que torna possível a aplicação do comando primário às situações concretas da vida (cfr. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume II, Almedina, 2011, 2.ª edição, p. 185).
Ora, ao remeter para definição ulterior e obrigatória a regulação da matéria relativa à organização, duração e conteúdos do curso de actualização de instrutores, necessária para lhe dar exequibilidade, a norma do artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, (auto-)limita-se explicitamente na regulação da matéria em causa e assume-se expressamente como não auto-exequível (ou não auto-aplicável), porque, recorrendo às palavras de Marcello Caetano, carece de regulamentação própria para se tornar susceptível de observância e aplicação (cfr. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, 1996, págs. 84 e 85).
Com efeito, o artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, é uma norma de regulação material, mas incompleta (ou de previsão incompleta), “posto que, só com a norma remitida, consubstancia a totalidade da regulação material” (cfr. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º P000041996, de 04.01.1996, pesquisável em www.dgsi.pt).
E apesar de produzir “efeitos após a sua vigência, naturalmente – nomeadamente o efeito de obrigar à regulamentação ulterior” -, “não é apta à regulação das condutas que apenas disciplina parcialmente”, ficando posta em causa, num cenário, como o presente, de omissão de regulamentação, a sua “aplicabilidade da norma remissiva, que apenas regula a conduta parcialmente, não estabelecendo na previsão condições suficientes para o efeito” (cfr. Pedro Moniz Lopes, Derrotabilidade Normativa e Normas Administrativas - O enquadramento das normas regulamentares na teoria dos conflitos normativos, AAFDL Editora, 2019, p. 348).
Pelo que, na falta de regulação da matéria (secundária) relativa à organização, duração e conteúdos do curso de actualização por intermédio de norma regulamentar, que a própria norma legal impôs como necessária e obrigatória para ela própria se tornar exequível, não pode a entidade demandada aplicar o artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, no segmento em que exige a frequência desse curso de actualização como condição para a revalidação do título profissional de instrutor de condução, e nessa medida, como requisito para o exercício da profissão em causa (e da profissão de director de escola de condução).
E não pode fazê-lo, ainda que os cursos existentes estejam sujeitos a “prévia verificação e autorização pelo IMT”, nomeadamente quanto à organização, duração e conteúdos, ou de estar salvaguardada a compatibilidade dos mesmos com as normas previstas na Lei n.º 14/2014, de 18 de Março.
Como não pode fazê-lo para obviar ao “vazio de controlo efectivo da aptidão que o instrutor mantém para o exercício da sua actividade profissional”, em alegada prossecução do interesse público da segurança rodoviária, no caso inerente ao ensino da condução, quando este está subordinado ao respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e quando lhe falta uma norma legal que legitime a restrição ao exercício da profissão que pretende impor (cfr. artigos 18.º e 47.º da Constituição da República Portuguesa).
E tão-pouco pode convocar, para o efeito, o princípio da igualdade, confrontando a situação do autor com o tratamento que deu aos demais instrutores de quem (ilegalmente) exigiu a frequência de cursos de actualização, quando, na relação que tem com aquele (da qual emerge o presente litígio), está vinculada ao princípio da legalidade, sem que lhe seja concedida margem alguma de discricionariedade. (sublinhados nossos).
Não só se mostra isento de qualquer mácula o excerto da sentença recorrida acabado de transcrever, que o Recorrente não logra colocar em crise de modo algum, como também se tem por cristalinamente correcto o entendimento aí vertido, isto é, não sendo o artigo 47.º, n.º 3, da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, uma norma auto-exequível (ou não auto-aplicável), o Recorrente, à míngua da inércia regulamentar que deixou perdurar durante quase dez anos, o que só a si é imputável, não podia exigir ao ora Recorrido a frequência desse curso de actualização como condição para a revalidação do título profissional de instrutor de condução, e, nessa medida, como requisito para o exercício dessa profissão e da profissão de director de escola de condução, sobretudo, se feita tal exigência à sombra de um Decreto Regulamentar expressamente revogado (e com igual revogação da sua lei habilitante) e sem que o novo regulamento, aprovado somente pela Portaria n.º 1/2024, de 02/01, se encontrasse sequer em vigor no momento em que foi apresentado o requerimento administrativo do ora Recorrido ou quando foi proferida a decisão final sobre tal pretensão, como atrás vimos.
Por conseguinte, improcede tal conclusão recursiva.
Tudo visto, é de negar provimento ao presente recurso, merecendo a sentença recorrida ser confirmada na íntegra.
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Custas a cargo do Recorrente – cf. artigos 527.º, n.º 1, do CPC, 1.º e 189.º, n.º 2, do CPTA, 7.º, n.º 2, e 12.º, n.º 2, do RCP.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I – Ao pedido de revalidação do título profissional de instrutor de condução formulado já na vigência da Lei n.º 14/2014, de 18 de Março, não se pode aplicar a regulamentação inscrita no Decreto Regulamentar n.º 5/98, de 9 de Abril, porque revogado expressamente pela indicada Lei.
II – A Portaria n.º 1/2024, de 02/01, com entrada em vigor em 01/02/2024, tem aplicação imediata, dispondo para o futuro, sem que lhe tenha sido acoplado direito transitório ou disponha de norma que confira aplicação retroactiva.
III – Deste modo, as normas regulamentares da citada Portaria não são aplicáveis retroactivamente a procedimento administrativo já extinto em resultado da tomada da decisão final em data anterior ao momento do início da vigência da referida Portaria.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo do Recorrente.
Registe e notifique.
Lisboa, 28 de Novembro de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Lina Costa – (1.ª Adjunta)
Ana Lameira – (2.ª Adjunta)