Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 1045/12.3BEALM |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 12/17/2020 |
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Relator: | DORA LUCAS NETO |
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Descritores: | DEMOLIÇÃO DE OBRA; REPOSIÇÃO DO TERRENO; IMPOSSIBILIDADE DE LEGALIZAÇÃO. |
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Sumário: | Tendo ficado provado que a vedação objeto da ordem de demolição impugnada se encontra em solo qualificado pelo PDM de Palmela como espaço canal destinado à construção da variante à Estrada Nacional n.° 252, o que a A., ora RECORRENTE, não pôs em causa, imperioso se torna concluir que a estrutura em apreço não é suscetível de legalização, sendo de manter a ordem de demolição, por se considerar que a mesma não padece dos vícios que lhe vinham assacados. |
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Votação: | UNANIMIDADE |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. Relatório M..., interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, de 04.04.2019,que julgou improcedente a ação administrativa especial por si intentada contra o MUNICÍPIO DE PALMELA, no âmbito da qual impugnou o Despacho do Vereador da Câmara Municipal, de 28.05.2012, exarado sobre informação técnica da Divisão de Fiscalização do Município, notificado pelo ofício n.° 1417/2012, de 24.07.2012, que ordenou a demolição da vedação existente no terreno sito junto ao caminho municipal 1029, Terrim, Freguesia de Pinhal Novo, Concelho de Palmela, “com reposição das condições anteriores à operação urbanística ilegal”, ao abrigo do disposto no n.° 1, do art. 106.°, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 555/99, de 16.12., na redação introduzida pelo Decreto-Lei 26/2010 de 30.03.
Nas alegações de recurso que apresentou, culminou com as seguintes conclusões – cfr. fls. 339 e ss., ref. SITAF: «(…) 1. O presente recurso visa sindicar erros evidentes na fixação da matéria de facto, bem assim vícios de conhecimento de objeto não definido nesta ação, exorbitando do objeto do litígio e que conduziram a errada aplicação do direito e a uma decisão injusta. 2. O despacho saneador, transitado em julgado, definiu o Objeto do litígio, em dois items, a saber: 1. se o acto que ordenou a ‘‘demolição” da vedação existente no prédio propriedade da autora viola o artigo 4º n.º 2, a/.a) do RJUE. 2. “se o referido acto viola o artigo 62º da CRp”. 3. As aspas (nossas) desde logo justificam-se pela desadequação (paradoxo) de conteúdo e literalidade. Uma vedação em rede não se pode demolir, como se fosse um muro, uma parede ou outra construção. Quando muito retira-se, afasta-se... na verdade já aí vai uma certa dose de imprecisão e de desvirtuamento dos factos. 4. O mesmo saneador definiu os Temas da Prova: - características da vedação; distância ao eixo da via; amovibilidade da vedação; incorporação no solo da vedação. 5. Foi ordenada a perícia que, pese embora de forma não muito assertiva e por vezes confusa, não deixa de reconhecer a amovibilidade da vedação. Vejam-se as respostas dadas: - “A vedação existente é em painéis metálicas de rede, suportadas em estacarias de madeira ou seja, aquilo que constitui o objeto do litígio, isto é a vedação facial à estrada municipal, é suportada por estacaria de madeira: “os prumos que suportam a vedação são de madeira”. “Não tem pilares de betão”-; - “os prumos de madeira sobem a uma altura de 2,00m” ; “ a rede metálica está colocada (sobe) a 1,65m de altura”. “a vedação confinante com a via pública tem uma dimensão de cerca de 30m”. “A vedação dista do eixo da via pública uma medida que varia entre os 7,20 m e os 7,50m”. 6. A perícia distingue três tipos de muros: Muro de vedação; Muro lateral direito; Muro confinante com a via pública - v.fls.180, foto 3/8, superior. 7. Desde logo, aquilo que é objeto do litígio é o terceiro tipo, ou seja, “Muro” confinante com a via pública. 8. quer o de vedação, quer o lateral direito, não foram postos ali pela recorrente, mas já existiam muito antes de esta adquirir a propriedade. 9. O de vedação percorre- no sentido nascente poente - toda a extensão da propriedade a norte, comum ao seu vizinho e tem as características descritas em fls. 180. Este sim é composto de pilares de betão e formado por alvenaria de tijolo, com uma altura media de 80cm e suporta uma rede ovelheira e pilares metálicos. 10. O terceiro, confinante com via pública, é o que importa para o conteúdo do despacho impugnado, pois o que é objeto do litígio é o terceiro tipo, ou seja, Muro confinante com a via pública. 11. Uma vez que, quer o de vedação, quer o lateral direito, não foram postos ali pela recorrente, mas já existiam muito antes de esta adquirir a propriedade. 12. O de vedação percorre- sentido nascente poente - toda a extensão da propriedade a norte, delimitando do seu vizinho e tem as características descritas em fls. 180. Este sim é composto de pilares de betão e formado por alvenaria de tijolo, com uma altura média de 80cm e suporta uma rede ovelheira e pilares metálicos. 13. O terceiro, confinante com via pública, é o que importa para o conteúdo do despacho impugnado. 14. A intervenção da A restringe-se a este terceiro tipo, ao “muro” confinante com a via pública. 15. Não obstante a advertência do senhor perito, não se furtou a confusões para que fora induzido pelas perguntas formuladas, não sendo coerente nem coincidente a designação dada pelo tribunal e o entendimento do senhor perito. 16. Os números 5, 6, 10 e 11 ao falarem de pilares de ferro parece já estar-se a falar do muro lateral direito. 17. Neste é que se situa a porta de acesso ao espaço em causa, porta configurada por dois postes de ferro seguros por parafusos fixados em sapatas de betão. 18. Restringindo-se, ao que parece, o muro confinante com via pública aos números 7, 8 e 9. 19. Falar de “muro de vedação” reportado ao confinante com a via pública encerra confusão, pois que não pode simultaneamente ser de rede metálica e ser muro. Existe contradição in terminis. 20. Em seu lugar deve falar-se tão só de vedação em rede tendo na base, murete, pois que ali nenhum muro existe, como bem elucidam as fotografias juntas. 21. “murete” foi, aliás, a expressão de que se serviu o senhor perito, na segunda perícia ordenada pelo tribunal a quo, com alvo no enunciado em i). 22. Só que, paradoxalmcnte, vindo de um arquiteto, não se coaduna com a realidade atribuir-se à vedação a qualidade de “não é amovível “ pelo facto de se encontrar fixa ao solo através de um murete de betão”. 23. O que significa “através de”?. Ideia instrumental, ou seja que não contacta com o solo diretamente. Bem certo. Até porque das fotografias juntas aos autos, v.g. fls. 187, foto 7/8 superior (com automóvel vermelho ali parado), sobressai a imagem clara de distância da rede ao solo. 24. Mas não deixa de merecer registo a fórmula pouco segura, mesmo frágil, como apresenta a sua resposta: “ salvando melhor opinião”. Vindo de um arquiteto não é admissível este tipo de perícia e de resposta... 25. Então não é ostensivo que a rede não toca sequer no dito murete? E como pode então dizer-se que a vedação “ se encontra fixa ao solo através do murete? Só se o perito não esteve no local. 26. Pois a verdade é que a vedação em rede, objeto do litigio, se encontra fixa às estacas, ou prumos de madeira. 27. E são estes que se apoiam no dito murete de um palmo de altura pelo lado de dentro e de zero em pelo lado de fora (não muro, que ali nenhum muro foi construído pela A). 28. Esse “murete” é em matéria de tijolo e massa para unir e nele se apoiam as estacas de madeira. 29. Quando na perícia se pergunta se o “muro” de vedação existente e confinante com a via pública se é de betão armado. Devia dizer-se se é de matéria rija, diferente de madeira. E devia também perguntar-se qual a altura desse murete. 30. Teríamos como resposta incontornável que o dito murete, como é evidente nas fotos dos autos, nem sequer tem altura do exterior, virado para a estrada. Que apenas é visível pelo lado de dentro da propriedade, por ser o terreno mais baixo e em declive — cf. fls.204, fotos da segunda perícia. 31. Aliás, esse murete tem também a função de segurar, ou suportar as terras e escorrências vindas da berma da estrada, que é mais alta e com as chuvas tudo escorre para a propriedade da autora. 32. E é neste “muro” sem relevo, sem dimensão sequer visível da rua, que “os prumos de madeira que suportam a vedação encontram-se incorporados”. 33. Ora, como pode então afirmar-se que a vedação é inamovível. Claro que não se move por si, mas é move-se, retira-se, desmonta-se, sem grande esforço, não precisa de operações de demolição. 34. Bem vista a prova documental e pericial carreada, dos autos resulta evidente que os atos materiais praticados pela recorrente no seu terreno não integram, nem densificam o conceito de operação urbanística — n° 1 do artigo 4° do RJUE; 35. Igualmente não se trata de loteamento, nem de construção, de ampliação ou de alteração em área não abrangida por operação de loteamento nem por plano de pormenor que contenha as menções referidas na al. a) e c) do n° 2 do artigo 4° do DL 555/99. 36. A referida norma legal no seu n° 1 disciplina a realização de operações urbanísticas submetendo-as a licenciamento ou a autorização administrativa. 37. O n°2, trata do licenciamento das operações, obras e atos, previstos nas alíneas de a) a c) 38. O n°3 trata de situações de simples autorização administrativa, sem exigir licenciamento. 39. E o seu n°3 alíneas, a) a g) regula as situações sujeitas a autorização por remissão para o DL 380/99, 22/9 a exigência de licenciamento e autorização administrativa " 40. A contrario do que se prevê naqueles normativos, não se trata in caso de obras de construção, nem de ampliação, nem de alteração em área não abrangida por operação de loteamento, nem por plano de pormenor. 41. Trata-se tão só de uma elementar vedação em rede, que os autos documentam. 42. A dita vedação é manifestamente precária e amovível, não se subsumindo ao conceito de operação sujeita a licenciamento e autorização administrativa. 43. Com efeito, o conceito de licenciabilidade ínsito na al. c) do n° 2 do artigo 4“ é o de que, objetivamente, se tem de estar perante uma atividade ou resultado que represente uma construção ou reconstrução ou ampliação de algo pré-existente ou, por outro lado ainda, a alteração ou conservação de um imóvel destinado a utilização humana e, numa última aceção ainda, de construção que se incorpore no solo com carácter de permanência. 44. No caso dos autos existe erro manifesto em sede de matéria de facto, vício que fere de nulidade a decisão impugnada, porquanto os elementos utilizados e colocados no local, para servir de vedação do terreno da requerente na frente confinante com a via pública municipal, não têm caracter de permanência. 45. Na verdade, nomeadamente são de referir que os prumos de suporte da rede são em madeira a uma altura de 2,00m - facto provado H - e a rede metálica a um 1,65m de altura - idem. A sua distância ao eixo da via e de entre 7,20m c 7,50m. 46. Os dois pilares de ferro existem apenas no local destinado a servir de portão — não confrontam com a via pública, ou seja estão dentro da propriedade da A - e estão assentes e fixados em parafusos, sendo amovíveis a qualquer momento e com a maior das facilidades: basta desaparafusar o que antes se aparafusou. 47. Deve ser dado como não provado o que consta de J. dos factos provados, pois não é verdade que a vedação em painéis de rede metálica só possa ser retirada através de obras de demolição do muro de betão e respetivos pilares — já agora deveria ter-se dito — de madeira. 48. Aliás, toda a vedação que ali foi colocada pode ser retirada, por força da sua não permanência e precaridade, em muito poucos minutos: bastaria um átimo para serrar cada um dos dez postes de madeira. 49. o muro lateral direito que a ré reconhece não ser confinante com a via pública e que, sublinhe-se, não constitui objeto do litigio, não possui entre 2,00m e 2,50m. Essa altura é o somatório do antigo muro acrescentado com a rede metálica. 50. Esse trecho de muro — fora do objeto do litígio - fica no interior da propriedade, perpendicular à via pública, já existia há décadas quando a recorrente comprou a propriedade, pré-existindo com o fim de suportar as terras no plano inclinado vindo da estrada para o interior da propriedade. 51. Com efeito, a autora esclarece que quando adquiriu esta propriedade já ali existia o referido muro ou murete - sem que a R se tivesse incomodado - e que apenas se limitou a aditar-lhe os dois pilares de ferro para servirem de porta de acesso. 52. Por outro lado, é verdade que a autora, receando a invasão das águas fluviais, o que incumbia ser acautelado pelas entidades públicas responsáveis por aquela via, mormente pela ré. Câmara Municipal, que deveria promover a realização de valetas e limpeza dos sistemas de captação de águas, e nunca o fizeram, como é visível no local, obrigaram com isso a autora a implantar um cabouco/murete de 12cm para reforço de protecção exterior contra a invasão da propriedade pelas das águas das chuvas. 53. a matéria de facto existente no local é diversa daquela que vem referida pela R no acto impugnado, bem como diferente daquela que o tribunal a quo deu como provada. 54. O facto G. dos factos provados, deve ser dado como não provado, pois que não existe nenhum “muro confinante com a via pública que tenha sido objeto da ordem de demolição impugnada” e muito menos que seja em betão armado. 55. Os factos provados em E e F são irrelevantes para a solução do caso dos autos, não constituem objeto de litígio. 56. As citações feitas das missivas do R de 22.11.2011 e de 7.05.2012, são anódinas e exorbitantes em relação ao objeto do litígio. Fala-se de coisas várias, até de gestão de resíduos e de, de momentos e atos vários. 57. O que se não compreende, para depois se remeter à questão cerne, a ordem de demolição da vedação, que é o objeto do litígio - cf. despacho de 28 de maio de 2012 do senhor Vereador L...: “ que deve V. Exa. proceder à demolição da vedação, com reposição das condições anteriores a operação urbanística ilegal...” sob ameaça de crime de desobediência. 58. Mas, qual operação urbanística? Uma rede metálica (não muro) transparente, suportada por estacas de madeira, é isso que faz a R chamar operação urbanística e a faz mover-se contra a A? 59. Outro tanto de inverdade (parcial) existe no tocante às letras K. e L. dos factos provados. Este muro lateral direito, já descrito, não se une ao confinante com a via pública, pois que desta é separado pelo portão referido em L dos factos provados. 60. os atos praticados pela autora não estão sujeitos à jurisdição licenciadora da R sendo ilegal e nula a exigência que a ré faz de subsunção a tais normativos. 61. A vedação em causa é fundamental para afastar os perigos de invasão indesejada de terceiros, em cenas de mau porte pela noite dentro, acoitados naquele recanto da propriedade da autora. 62. Tais perigos eram reais, desvalorizando o gozo e fruição da propriedade. 63. Mas, onde antes era um local de cenas pouco edificantes e de baixa moral, existe hoje, graças à vedação em causa, um belo e viçoso pomar. 64. Sem aquela vedação a autora via-se efetivamente impedida de exercer o pleno direito de propriedade, sendo manifesta a ofensa permanente ao seu direito de propriedade, facto ilegal e inconstitucional. 65. Pela presente ação a autora visa também defender esse direito. 66. Com efeito, a vedação (em rede e estacas de madeira ) que a autora colocou no local, além de amovível, possui qualidade visual e ambiental, é esteticamente louvável, não temendo cotejo com qualquer outra existente em toda aquela via publica. 67. Ao longo daquela via, desde a saída de Pinhal Novo até á vedação em causa, exceção feita ao muro do cemitério, não existe uma só vedação de propriedades digna de respeito —tudo sivas, moitas, redes velhas e degradadas... 68. A decisão administrativa impugnada viola o RJUE e mormente a disposição da al. a) do n° 2 do artigo 4° do DL 555/99 quanto à legalidade da atuação do Município réu. 69. O ato impugnado viola também o normativo constitucional ínsito no artigo 62º da CRP impondo sobre a propriedade da Autora uma limitação e um ónus ilegal e injustificado, diminuindo sem fundamento o uso e fruição da propriedade privada da autora. 70. A inserção da propriedade da autora num eventual e jamais visto espaço canal que se prolonga há alguns anos sem fundamento e por força da inércia e ineficácia da Administração Pública é insustentável e violador daquela norma constitucional. 71. Não há, nem se vislumbra qualquer estrada projetada sobre aquelas propriedades. A R usa esta referência como argumento extravagante para tentar validar o sem ato nulo. Com efeito, 72. A Administração não tem o direito, sem compensar ou indemnizar, de eternizar um ónus, seja qual for, imposto arbitrariamente sobre a propriedade privada cm vista de um infundado interesse público, jamais concretizado nem definido com o que sai lesada a esfera jurídica privada de forma insustentável e ad eternum. 73. Tal imposição é ofensiva do direito à propriedade privada e não pode com base em tal limitação o réu, sem adequação e sem proporcionalidade, de modo radical e ilegal impedir a mínima proteção da propriedade privada, impedindo até a elementar vedação da mesma. 74. Menor acolhimento se deve para tal comportamento, quando é certo que em concreto a vedação objecto dos presentes autos nem sequer é definitiva e inamovível, muito pelo contrário a autora teve a cautela de respeitar aquele ónus enquanto se mantiver, concebendo e executando na sua propriedade uma vedação amovível e não definitiva. 75. Por tais características aquela vedação em nada ofende a eventual existência de um irreal e fantasioso espaço canal, nem ofende os desígnios que com tais espaços se visa um eventual e mal definido interesse público. 76. Em suma, o ato impugnado e ilegal e nulo por violação de lei ordinária e violação da Lei Constitucional, esta de aplicação direta por se referir a direitos fundamentais da A. 77. A sentença recorrida deve ser revogada e substituída por douto acórdão deste Tribunal Superior que, julgando procedente por provada a ação, decrete a nulidade do ato impugnado. (…)».
O Recorrido, MUNICÍPIO DE PALMELA devidamente notificado para o efeito, apresentou as suas contra-alegações, tendo concluído como se segue - cfr. fls. 373 e ss., ref. SITAF:
I. 2. Questões a apreciar e decidir: As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter julgado improcedente a ação e por não ter considerado: i) que a construção da vedação não está sujeita a controlo prévio, por não ter carácter de permanência, assim incorrendo em erro de julgamento de facto e de direito; ii) verificado o vício de violação de lei por ofensa do direito de propriedade privada consagrado no n.º 1, do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa.
II. Fundamentação II.1. De facto A matéria de facto constante da decisão recorrida é aqui transcrita ipsis verbis: II.2. De direito i) Do erro de julgamento em que incorreu a sentença recorrida ao ter considerado que a construção da vedação está sujeita a controlo prévio. A Recorrente impugna o julgamento sobre a matéria de facto, que terá influído no sentido da decisão recorrida quanto a esta questão, nos seguintes termos: «(…) No caso dos autos existe erro manifesto em sede de matéria de facto, vício que fere de nulidade a decisão impugnada, porquanto os elementos utilizados e colocados no local, para servir de vedação do terreno da requerente na frente confinante com a via pública municipal, não têm caracter de permanência. 45. Na verdade, nomeadamente são de referir que os prumos de suporte da rede são em madeira a uma altura de 2,00m - facto provado H - e a rede metálica a um 1,65m de altura - idem. A sua distância ao eixo da via e de entre 7,20m c 7,50m. 46. Os dois pilares de ferro existem apenas no local destinado a servir de portão — não confrontam com a via pública, ou seja estão dentro da propriedade da A - e estão assentes e fixados em parafusos, sendo amovíveis a qualquer momento e com a maior das facilidades: basta desaparafusar o que antes se aparafusou. 47. Deve ser dado como não provado o que consta de J. dos factos provados, pois não é verdade que a vedação em painéis de rede metálica só possa ser retirada através de obras de demolição do muro de betão e respetivos pilares — já agora deveria ter-se dito — de madeira. (…) 53. a matéria de facto existente no local é diversa daquela que vem referida pela R no acto impugnado, bem como diferente daquela que o tribunal a quo deu como provada. 54. O facto G. dos factos provados, deve ser dado como não provado, pois que não existe nenhum “muro confinante com a via pública que tenha sido objeto da ordem de demolição impugnada” e muito menos que seja em betão armado. 55. Os factos provados em E e F são irrelevantes para a solução do caso dos autos, não constituem objeto de litígio. (…)» Vejamos. Ao imputar à sentença sob recurso um erro de julgamento da matéria de facto, a Recorrente vinculou-se a cumprir os ónus que sobre si incidem, nos termos do art. 640.º do CPC, ex vi art. 140.º do CPTA, aquele, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”: 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 – (…). A este propósito, importa relembrar que não é a este tribunal de recurso que está cometida a tarefa de descortinar no corpo alegatório qual a factualidade impugnada e concretamente qual aquela que deve ser dada como provada. É sim ao impugnante da matéria de facto que cabe, entre outros, o ónus de indicar os concretos meios de prova que suportam a sua impugnação. É certo que o art. 662.º, n.º 1, do CPC, dispõe que «[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.», porém, no caso vertente, os factos assentes não impõem decisão diversa. Necessário é não perder de vista que «os julgamento da matéria de facto os poderes da 2ª instância estão delimitados pelo nº 1 do artº 662º do CPC, pelo que a decisão sobre a matéria de facto só deve ser alterada se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, o que significa que deve especificar-se não meios de prova que admitam, permitam ou consintam decisão diversa da recorrida mas antes que imponham decisão diversa da impugnada.» (1) Tendo presente tais regras e pressupostos orientadores e exigíveis, para que a este tribunal, enquanto tribunal de recurso, seja lícito alterar a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto, dir-se-á que o legislador, muito em particular, aquando as alterações introduzidas ao Código de Processo Civil, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24.08, veio introduzir mais rigor no modo como deve ser apresentado o recurso de impugnação da matéria de facto. Vejamos então se tais exigências foram cumpridas no caso em apreço. i) A Recorrente indicou os segmentos da decisão de facto que considera viciados por erro de julgamento – sim, in casu, as alíneas G) e J) da matéria de facto, que no seu entender, devem ser consideradas não provadas e alíneas E) e F) por irrelevantes para a decisão da causa. ii) Fundamentou as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos que, no seu entender, implicavam uma decisão diversa – não, a Recorrente não cumpriu esta exigência, bastou-se com a alegação do seu entendimento em sentido contrário – cfr. transcrição supra; e, iii) Enunciou a decisão que, em seu entender, deveria ter tido lugar relativamente à questão de facto impugnada – enunciado irrelevante, nos termos do exposto na alínea ii) que antecede. Razões pelas quais improcedem os invocados erro de julgamento sobre a matéria de fato imputado à sentença recorrida.
Vejamos então o suscitado erro de apreciação de direito. A Recorrente, imputa à sentença recorrida o seguinte erro de apreciação: «(…) Ora, como pode então afirmar-se que a vedação é inamovível. Claro que não se move por si, mas é move-se, retira-se, desmonta-se, sem grande esforço, não precisa de operações de demolição. 34. Bem vista a prova documental e pericial carreada, dos autos resulta evidente que os atos materiais praticados pela recorrente no seu terreno não integram, nem densificam o conceito de operação urbanística — n° 1 do artigo 4° do RJUE; 35. Igualmente não se trata de loteamento, nem de construção, de ampliação ou de alteração em área não abrangida por operação de loteamento nem por plano de pormenor que contenha as menções referidas na al. a) e c) do n° 2 do artigo 4° do DL 555/99.» Porém, como bem salienta a DMMP junto deste tribunal, não é correta a posição da A., ora Recorrente, segundo a qual a construção da vedação não está sujeita a controlo prévio, por não ter carácter de permanência, pois não é apenas essa a característica que dispensa a licença de construção se a mesma for necessária. Como ficou demonstrado, existem no local elementos que fixam a estrutura em apreço ao solo e que, ao contrário do que defende a A., ora Recorrente, não são precários. E, bem assim, como considerou a decisão recorrida, «resultou provado (…) que a vedação confinante com a via pública tem uma dimensão de cerca de 30m, dista do eixo da via uma medida que varia entre os 7,20m e os 7,50m, e é constituída por uma rede metálica, com 1,65m de altura, suportada em pilares de madeira, com 2,00m de altura, que estão encastrados num muro constituído, na sua totalidade, em betão armado, só podendo ser retirada através de uma obra de demolição do muro de betão e respectivos pilares. (…) Resultou igualmente provado que o denominado “muro lateral direito”, construído no interior do terreno, tem uma dimensão de 20m e uma altura que varia entre os 2,00 e os 2,50m; une-se ao muro de betão armado confinante com a via pública; é constituído por pilares de betão armado e por dois pilares em ferro que delimitam um portão, encontrando-se estes assentes em sapatas de betão e fixados com parafusos. Não podendo deixar de considerar, face à factualidade provada, que se trata de construções incorporadas no solo com carácter de permanência, não se encontrando a sua realização isenta de controlo prévio (artigo 6.°, do RJEU), resultando da matéria de facto provada, também, que o terreno onde estão implantadas insere-se em área não abrangida por operação de loteamento ou por plano de pormenor, o que, aliás a Autora não pôs em causa, forçoso é concluir que estamos perante uma operação urbanística dependente de licença administrativa, nos termos da alínea c), do n.° 2, do 4.°, do RJUE, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 26/2010 de 30 de Março, como se concluiu na informação da Divisão de Fiscalização do Município de Palmela que integra a fundamentação da ordem de demolição impugnada.» O assim decidido é para manter, pois que o alegado pela Recorrente é frontalmente negado pela matéria de facto provada nos autos, tal como entendeu, com acerto, a sentença recorrida.
ii) Do erro de julgamento em que incorreu a sentença recorrida ao não ter dado como verificado o vício de violação de lei por ofensa do direito de propriedade privada consagrado no n.º 1, do art. 62.º da Constituição da República Portuguesa. Sobre esta questão, alega a Recorrente, em suma, que «61. A vedação em causa é fundamental para afastar os perigos de invasão indesejada de terceiros, em cenas de mau porte pela noite dentro, acoitados naquele recanto da propriedade da autora. 62. Tais perigos eram reais, desvalorizando o gozo e fruição da propriedade. 63. Mas, onde antes era um local de cenas pouco edificantes e de baixa moral, existe hoje, graças à vedação em causa, um belo e viçoso pomar. 64. Sem aquela vedação a autora via-se efetivamente impedida de exercer o pleno direito de propriedade, sendo manifesta a ofensa permanente ao seu direito de propriedade, facto ilegal e inconstitucional. 65. Pela presente ação a autora visa também defender esse direito. 66. Com efeito, a vedação (em rede e estacas de madeira ) que a autora colocou no local, além de amovível, possui qualidade visual e ambiental, é esteticamente louvável, não temendo cotejo com qualquer outra existente em toda aquela via publica. 67. Ao longo daquela via, desde a saída de Pinhal Novo até á vedação em causa, exceção feita ao muro do cemitério, não existe uma só vedação de propriedades digna de respeito —tudo sivas, moitas, redes velhas e degradadas (…)».
Atentemos nesta parte do discurso fundamentador da sentença recorrida: «(…) Estabelece o n.° 1, do artigo 62.°, da Lei Fundamental, que “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.”. Como sublinham GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4a Edição Revista, págs. 801, a fórmula “nos termos da Constituição” “parece supérflua, mas não o é: trata-se de sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição possa ela remeter ou quando se trate de revelar limitações constitucionalmente implícitas) por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional.”. Nos termos do n.° 4, do artigo 64.°, da Constituição, “O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.”. Como assinalam os citados autores, op. cit. págs. 838, “As regras sobre a ocupação, uso e transformação dos solos urbanos devem constar, basicamente, de instrumentos de planeamento e de normas referentes ao ordenamento do território e do urbanismo.” Essas regras destinam-se a disciplinar as questões urbanísticas do jus aedificandi (o direito de construir), do jus utendi (o direito de usar os solos urbanos), e da mudança de destino do uso dos solos. Conforme se referiu no douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08-01-2009, proferido no Processo n.° 0633/08, disponível in www.dgsi.pt, “ainda que seja certo que a C.R.P garanta a todos ”o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição” (vd. seu art.° 62°/1) e que o mesmo possa ser considerado como um direito fundamental, também o é que esse direito não é um direito absoluto susceptível de ser usado e fruído sem qualquer limitação, visto que tanto a própria Constituição - vejam-se, por ex., as normas que autorizam a expropriação (art.°s 83.° e 88.°) ou que condicionam a sua exploração (art.°s 94.° e 96.°/ 2) — como a legislação ordinária — vd. as condicionantes que lhe são impostas no domínio económico, do urbanismo, do ordenamento do território e do ambiente — sujeitarem esse direito a importantes restrições as quais encontram o fundamento na necessidade da harmonização desse direito com os restantes direitos fundamentais e com o sistema democrático em geral. Os termos em que o direito de propriedade está constitucionalmente desenhado determinam, assim, que o seu uso e fruição não seja inteiramente livre, mas condicionado e enquadrado, de tal modo que os usos ou utilidades que os respectivos titulares dela podem retirar são unicamente aqueles que o ordenamento jurídico — constitucional ou ordinário - lhes permite. Deste modo, e muito embora seja verdade que esse direito integra o poder de gozo sobre o bem objecto do direito também o é que o exercício desse poder não inclui o direito construir — visto que este, estando sujeito às limitações e condicionantes decorrentes do planeamento e do ordenamento territorial e destas poderem impossibilitar a construção, depende de autorização administrativa — nem, tão pouco, quando ele é reconhecido, a construir aquilo que se quer, onde se quer e como se quer mas, apenas e tão só, a construir aquilo que as autoridades administrativas consentirem dentro das limitações e restrições assinaladas na legislação atinente. E, correspondentemente, se o direito de edificação inexiste como elemento integrador do direito de propriedade também dele não faz parte o direito de manter o edificado nas condições em que o proprietário quiser e na forma que quiser visto que tais edificações têm de respeitar as exigências legais a elas referentes (...)”.» (sublinhados nossos).
Termos em que, improcedendo o primeiro erro de julgamento imputado à sentença recorrida, imperioso se torna julgar improcedente também este vício, na medida em que o ato impugnado se encontra escudado no disposto no art. 24.°, do RJUE, aprovado pelo Decreto-Lei n° 555/99, de 16.12., na redação conferida pelo Decreto-Lei n.° 26/2010, de 30.03., por violação do PDM de Palmela e, bem assim, no art. 106.°, do mesmo diploma, na redação conferida pelo Lei n.° 60/2007, de 04.09., sob a epígrafe “Demolição da obra e reposição do terreno”, tendo a sentença recorrida analisado ainda o disposto no n.° 3, do artigo 14.°, o Regulamento do PDM de Palmela, tendo ficado igualmente provado que a vedação objeto da ordem de demolição impugnada se encontra em solo qualificado pelo PDM de Palmela como espaço canal destinado à construção da variante à Estrada Nacional n.° 252, o que a A., ora Recorrente, não pôs em causa, pelo que a estrutura em apreço não é suscetível de legalização, como concluiu a sentença recorrida, mantendo a ordem de demolição impugnada por considerar que a mesma não padece dos vícios que lhe vinham assacados, não merecendo, pois, a decisão recorrida, qualquer censura. Por fim, uma última nota para referir que a Recorrente, ao referir que a «70. A inserção da propriedade da autora num eventual e jamais visto espaço canal que se prolonga há alguns anos sem fundamento e por força da inércia e ineficácia da Administração Pública é insustentável e violador daquela norma constitucional. 71. Não há, nem se vislumbra qualquer estrada projetada sobre aquelas propriedades. A R usa esta referência como argumento extravagante para tentar validar o sem ato nulo.» E que, «72. A Administração não tem o direito, sem compensar ou indemnizar, de eternizar um ónus, seja qual for, imposto arbitrariamente sobre a propriedade privada cm vista de um infundado interesse público, jamais concretizado nem definido com o que sai lesada a esfera jurídica privada de forma insustentável e ad eternum.» Extravasa o âmbito da ação de impugnação que intentou, pois o que alega não consubstancia, face a todo o exposto, um vício do ato, sem prejuízo de poder ser fonte de responsabilidade civil da Administração por ato lícito, verificados que estejam os seus pressupostos. Porém, a Recorrente não formulou o competente pedido, razão pela qual o tribunal a quo do mesmo não conheceu enquanto tal, o que impede também que este tribunal de recurso o conheça (2).
III. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 17.12.2020. Dora Lucas Neto * A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.°- A do Decreto-Lei n.° 10- A/2020, de 13.03., aditado pelo art. 3.° do Decreto-Lei n.° 20/2020, de 01.05., têm voto de conformidade com o presente acórdão os senhores magistrados integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Pedro Nuno Figueiredo e Ana Cristina Lameira. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------- (1) v. a título de exemplo, ac. de 14.06.2017 do TRG, P.620/13.3TTVCT.G1. |