Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:736/18.0BESNT
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:12/06/2021
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. RELATÓRIO

O Exmo. Senhor Juiz do juízo de administrativo comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e o Senhor Juiz do juízo administrativo social do mesmo Tribunal. Ambos os Senhores Magistrados dos referidos juízos se atribuem, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa de responsabilidade civil que A……………………., intentou no TAF de Sintra contra a ADSE, IP- Instituto Público de Gestão Participada, I.P e o Instituto da Segurança Social, I.P.

Neste TCAS foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do CPC, nada tendo sido dito.


Os autos foram com vista ao Digno Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência ser atribuída ao juízo administrativo social.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o juízo de administrativo comum do TAF de Sintra, como defende o Senhor Juiz do juízo administrativo social do mesmo Tribunal, ou se este último, como sustenta o Magistrado que requereu a resolução deste conflito negativo de competência.



II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais:

1. Em 22.06.2018, A ………………… intentou no TAF de Sintra (área administrativa) uma acção administrativa de responsabilidade civil contra a ADSE, I.P/ Instituto Público de Gestão Participada, I.P. e o Instituto Público de Segurança Social, I.P., pedindo a condenação solidária dos RR. a pagarem-lhe a quantia de EUR 48.720,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora até integral pagamento, mais pedindo que se condene o Instituto Público de Segurança Social, I.P. “a emitir declaração de falhas, pelo facto de a aqui autora não ter bens penhoráveis – nos termos do artigo 272º CPPT, arquivando-se o processo executivo contra a autora” (cfr. petição inicial e 30 documentos juntos, a fls. 1 e 74).

2. Por sentença datada de 29.01.2021, o Senhor Juiz do juízo administrativo social do TAF de Sintra (área administrativa), a quem os autos tinham, entretanto, sido atribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria daquele tribunal e determinou a remessa dos autos ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por entender ser esse o juízo competente (cfr. fls. 223 a 227).

3. Nessa sequência, o Senhor Juiz do juízo administrativo comum a quem os autos foram distribuídos, em sentença datada de 8.09.2021, declarou aquele juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo a competência para apreciar a acção ao juízo administrativo social do mesmo Tribunal (cfr. fls. 239 a 241).

4. Em 3.11.2021, o Senhor Juiz do juízo administrativo comum do TAF de Sintra requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si e o Senhor Juiz do juízo administrativo social do mesmo Tribunal (cfr. fls. 246 e 247).

5. As decisões em conflito transitaram em julgado (cfr. consulta ao sitaf).




II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

No contencioso administrativo, onde a competência é de ordem pública, em qualquer das suas espécies (vide artigo 13.º do CPTA), o poder de o tribunal, i.é, de o juiz suscitar oficiosamente o conflito está justificado.

Tal equivale a dizer que o presente conflito de competência, suscitado oficiosamente, foi levantado por quem tem legitimidade para tal.

Continuando, sob a epígrafe “Conflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

É sabido que o critério de atribuição de competência material ao juiz projecta a habilitação funcional do tribunal para a matéria que constitui o objecto do seu conhecimento (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, p. 107). Na verdade, a eficiência da organização judiciária com vista à melhor prestação da qualidade da Justiça reclama que se atribua a competência ao tribunal que mais vocacionado estiver para conhecer do objecto da causa respectiva. E quanto mais apurado for o critério atributivo de competência material, que é aquele aqui em causa, melhor surtirá a garantia da qualidade com que a Justiça é administrada ao cidadão a quem se destina.

A questão que nos é trazida a juízo – que já não é nova e teima em repetir-se - coloca-se por via da alteração ao artigo 9.º e dos aditados artigos 9.º-A e 44º-A, ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº13/2002, de 19/02, operada pela Lei nº114/2019, de 12 de Setembro (vide, artigos 2º e 3º).

No seguimento desta revisão, foi publicado em 13.12.2019, o Decreto-Lei n.º 174/2019 que procedeu – no que aqui e, agora, importa – à criação de juízos de competência especializada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, separando um juízo administrativo comum do juízo administrativo social, (cfr, artigo 9.º, alíneas a) e b), deste diploma).

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A (aditado pela Lei nº 114/2019, de 12/9) e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional.

De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual, i.é, caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum.

A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

Na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social, o conhecimento dos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc.11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Recorde-se que na presente acção administrativa de responsabilidade civil a Autora veio pedir ao tribunal a condenação solidária dos RR. a pagarem-lhes a quantia de EUR 48.720,00€ a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora até integral pagamento, pedindo ainda que o 2º R., o Instituto Público de Segurança Social, I.P. seja condenado “a emitir declaração de falhas, pelo facto de a aqui autora não ter bens penhoráveis – nos termos do artigo 272º CPPT, arquivando-se o processo executivo contra a autora”

A causa de pedir – i.é, o acto ou o facto jurídico em que o autor se baseia para fundamentar o seu pedido- radica no facto de lhe ter sido exigido, pelo 1º R., a sua inscrição nos serviços de finanças, como trabalhadora independente, de forma a poder ser-lhe pago o apoio domiciliário que recebe por cuidar de sua mãe, esta beneficiária da ADSE, I.P, e de em consequência desse procedimento imposto - obrigada a abrir actividade por conta própria – ter-lhe sido exigido pelo 2º R. o pagamento de contribuições, que não pagou, encontrando-se em fase de cobrança coerciva a dívida ao 2º R.. Actuações dos RR, que a Autora qualifica de ilegais, por violadoras dos princípios da legalidade, da protecção e interesses dos cidadãos, da boa administração da justiça e da eficiência. E pede que se reconheça o seu direito a receber a indemnização que peticiona.

Desde já se diga, sem qualquer dissonância com as decisões tomadas neste Tribunal Superior (citadas, aliás, pelo Senhor Juiz do juízo administrativo comum) que os factos invocados para sustentar o alegado direito indemnizatório não impõem uma interpretação e aplicação das normas respeitantes à relação do trabalho em funções públicas e do estatuto de aposentação (à data aplicáveis).

A norma vertida na alínea b) do nº 1 do artigo 44.º-A, do ETAF, segundo a qual ao juízo administrativo social compete dirimir, para além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, os processos relativos a litígios (i) emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou (ii) relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, deve ser interpretada no sentido mais restrito de atribuir competência para dirimir apenas os litígios relacionados apenas com formas públicas ou privadas de protecção social associada ao trabalho. A norma da al. b) do aludido artigo 44.º do ETAF, deve ser interpretada de modo restritivo e no apontado sentido.

O preenchimento normativo do conceito indeterminado “formas públicas ou privadas de proteção social”, diremos nós, deverá encontrar suporte nos elementos disponíveis para delimitar os pressupostos integrativos do conceito e que se refiram não só ao elemento teleológico, mas à própria mens legislatoris. Nem tudo o que é “social”, integra o conceito de “protecção social” e muito em particular cabe no conceito assumido pelo legislador que procedeu à criação dos juízos de competência especializada, nos termos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Assim, como se afirma na decisão de 8.04.2021 da Senhora Presidente do TCAN, proferida no âmbito do processo n.º 2799/18.9BEPRT, cujo discurso fundamentador aqui se reitera:

Dos trabalhos que antecederam a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, designadamente a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, bem como o Preâmbulo do Decreto-Lei nº 174/2019, de 13 de Dezembro, que procedeu à criação dos juízos especializados na jurisdição administrativa e fiscal, resulta que a especialização foi preconizada pelo legislador como meio de gestão e de agilização dos tribunais, visando obter ganhos de eficiência no funcionamento da jurisdição.

Por isso é que a distribuição das competências de acordo com as especificidades das matérias só se justifica quando constituir um factor de racionalização e de agilização no funcionamento da jurisdição; assim como é por isso que, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 174/2019 se diz que “a concretização da especialização surge principalmente da análise dos dados estatísticos e empíricos disponíveis, i.e., da constatação do elevado volume de processos nas áreas identificadas nos artigos 9.º e 9.º- A do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, na sua redação atual. A expressão total dos dados absolutos não deixa margem para quívocos, tendo-se baseado as opções tomadas na apreciação crítica e ponderada daqueles dados estatísticos e num estudo de extrapolação do Observatório da Justiça (…)” e que, além do mais, se decidiu pela agregação de diversas especialidades e pela atribuição de jurisdição alargada aos juízos dos contratos públicos.

Com efeito, a especialização dos tribunais administrativos plasmada na mais recente revisão do ETAF, e concretizada no DL 174/2019, está integrada num processo legislativo com vista à reforma da jurisdição administrativa e fiscal, suportado no referido estudo científico levado a cabo pelo Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, cujo relatório foi amplamente divulgado e é do conhecimento público.

E a propósito da especialização na área administrativa, nas conclusões do referido Relatório consta o seguinte: “(…) Como resulta dos indicadores apresentados, com exceção do contencioso de nacionalidade em Lisboa e, em bastante menor grau, das questões relacionadas com o trabalho em funções públicas, o objeto de litígio nas ações em matéria administrativa é muito disperso, o que, em si, é fator de complexidade. Como se detalha na parte II do relatório e se evidencia no quadro que representa o peso relativo dos objetos de ação por tribunal, apenas as questões relacionadas com o trabalho em funções públicas têm um peso mais relevante.

A distribuição desses processos, em tribunais de maior volume processual, como o Tribunal do Porto, juntamente com as questões relacionadas com previdência e aposentação, à semelhança do que ocorre em outros países, poderão ser concentradas em 2 juízes dos aí colocados (…).” [p.362/363 - (sublinhado nosso)].

Daqui resulta evidente que a área relacionada com o trabalho em funções públicas foi eleita como a área principal de especialização administrativa (social), associando-se-lhe as questões de segurança social que estão intrinsecamente ligadas à relação laboral, como é a previdência e aposentação. Ou seja, apesar da vastidão de questões relacionadas com a protecção social, cujo contencioso cabe no âmbito da competência dos tribunais administrativos, designadamente as previstas na Lei n.º 4/2007, que aprovou a Lei de Bases da Segurança Social, a opção, para efeitos de especialização, foi associar apenas as questões relacionadas com o sistema previdencial. [sublinhado e carregado nossos]

E foi, segundo o preâmbulo do diploma que procedeu à criação dos juízos especializados, com base neste estudo científico e nos dados estatísticos assim recolhidos e ponderados (i. e, relativos ao volume processual do contencioso associado ao trabalho em funções públicas, previdência e aposentação) que foram tomadas as opções pelo legislador e projectados os juízos especializados, vindo a culminar na existência de juízos administrativos especializados (sociais) nuns tribunais (naqueles em que esse volume processual o justificava) e não noutros.

Portanto, acolhendo as indicações do referido Relatório, o legislador pretendeu associar a competência do juízo administrativo social ao direito especial da função pública e ao denominado direito da segurança social/sistema previdencial. Intenção normativa que plasmou na alínea b) do n.º1 do artigo 44.º-A do ETAF.

Aliás, essa intenção do legislador resulta também evidenciada, a nosso ver, pela evolução da redacção da própria norma. [sublinhado nosso]

Na redacção inicial da referida alínea b) constante do anteprojecto do ETAF competia ao juízo administrativo social conhecer de todos os processos relativos a litígios de emprego público ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, excepto os créditos relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial.

Situação que foi corrigida na versão final da norma, que passou a incluir expressamente os litígios relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial. O que bem se compreende, porque estando em causa nestes litígios uma prestação da Segurança Social substitutiva de um rendimento de trabalho e, como tal, ainda dentro do critério material que presidiu à criação do juízo administrativo social, não se justificava a sua exclusão da competência do juízo especializado.

Esta referência aos créditos laborais do Fundo de Garantia Salarial reforça, na nossa perspectiva, a conclusão de que o legislador não pretendeu que o juízo administrativo social fosse o juízo comum de todos os litígios relacionados com questões de protecção social que cabem no âmbito da jurisdição administrativa, mas apenas dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas em que estejam em causa formas públicas ou privadas de protecção social/sistema previdencial.

E esta conclusão interpretativa restritiva, para além de ser a que faz mais sentido do ponto de vista racional e lógico, é também aquela que nos parece melhor se coadunar com os objectivos de agilização e eficiência preconizados pelo legislador com a especialização dos juízos administrativos, os quais seriam certamente mais difíceis de alcançar se à área de trabalho em funções públicas fosse associada a vastidão e diversidade de todas as questões relacionadas com a protecção social (em sentido amplo) existentes num Estado de direito social como é o nosso, e que cabem no âmbito dos tribunais administrativos.

Em suma, a nosso ver, a letra da lei conjugada com os elementos histórico e teleológico evidenciam que o legislador pretendeu criar um verdadeiro juízo especializado em litígios da função pública e da segurança social/protecção social dos trabalhadores, com uma delimitação de competências correspondente, em grande parte, à competência dos tribunais do trabalho da jurisdição cível, e não um juízo residual de todos os litígios relacionados com protecção social que cabem no âmbito dos tribunais administrativos.»

O entendimento de que o legislador não pretendeu que o juízo administrativo social fosse o juízo comum de todos os litígios relacionados com questões de protecção social que cabem no âmbito da jurisdição administrativa, mas apenas dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas em que estejam em causa formas públicas ou privadas de protecção social/sistema previdencial, é também o nosso entendimento. E no caso não há relação de dependência com uma relação profissional; não existe dependência de um qualquer regime contributivo.

Assim sendo, tendo presente o teor da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e o objecto do litígio, o qual consiste em apreciar o pedido de condenação dos RR no pagamento de uma indemnização que não contende com uma relação de trabalho em funções públicas, nem com prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido (vide artigo 50.º da Lei de Bases Gerais do Sistema de Segurança Social), a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito, não cabe ao juízo de administrativo social do TAF de Sintra, mas sim ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, n.ºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 9.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º alínea h) da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (área administrativa).

Sem custas.
Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques