Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 77/23.0BCLSB |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 01/11/2024 |
Relator: | PEDRO NUNO FIGUEIREDO |
Descritores: | LEI DA AMNISTIA SANÇÃO SUPERIOR A SUSPENSÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS NULIDADE DO ATO PUNITIVO |
Sumário: | I. Conforme constitui jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, a amnistia, bem como o perdão, devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliações nem restrições; e na determinação do sentido dos mesmos diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa. II. Seguindo tal entendimento e aplicando a amnistia nos precisos limites do diploma que a concede, no caso, a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sem ampliações nem restrições, afigura-se não ser de amnistiar a pena de impossibilidade de registo, prevista no artigo 20.º do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (RDFPF), uma vez que apenas se encontram abrangidas as infrações disciplinares cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão. III. A omissão de pronúncia verifica-se perante ausência de decisão expressa do tribunal sobre as matérias que os sujeitos processuais interessados submeteram à apreciação do tribunal em sede de pedido, causa de pedir e exceções, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, bem como sobre as que sejam de conhecimento oficioso, mas não perante a ausência de resposta concreta aos argumentos convocados pelas partes em defesa dos seus pontos de vista. IV. A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, apenas se verifica perante a falta absoluta ou total ininteligibilidade dos fundamentos de facto e de direito ali vertidos e não perante a fundamentação meramente deficiente. V. O recorrente foi acusado pela prática de uma infração disciplinar e posteriormente, antes de ser proferido o ato punitivo, a entidade com poder disciplinar considerou que os factos apurados antes seriam suscetíveis de integrar uma outra infração, pela qual veio a ser condenado. VI. Analisando os limites máximos das sanções aplicáveis a ambos os tipos de infração, afigura-se inequívoco que ocorre alteração ao limite máximo das sanções, sendo a segunda mais gravosa que a primeira. VII. Trata-se, pois, de uma clara alteração substancial dos factos, posto que foi imputada ao arguido uma infração diversa, com a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, cf. artigo 1.º, al. f), do Código de Processo Penal (CPP), e artigo 4º, al. e), do RDFPF. VIII. Sem que se mostre observado o procedimento previsto no artigo 359.º do CPP, foram violadas as garantias de defesa do recorrente. IX. E a consequência é a nulidade do ato punitivo, pois conforme estatui o artigo 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º. |
Votação: | Unanimidade |
Indicações Eventuais: | Subsecção SOCIAL |
Aditamento: |
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I. RELATÓRIO C... P... impugnou no Tribunal Arbitral do Desporto a decisão de aplicação das sanções disciplinares de impossibilidade de registo durante 2 (duas) épocas desportivas e cumulativamente na sanção de 18 (dezoito) UC de multa, por, na ausência de prévio registo na FPF, ter aceite, em contrato reduzido a escrito, representar sociedade anónima desportiva, que disputa competições organizadas pela LPFP e pela FPF, em negociações tendentes à transferência internacional de um jogador, com vista à inscrição e utilização do mesmo nas referidas competições nacionais. Por decisão de 29/03/2023, o TAD decidiu julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida. Inconformado, o demandante interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: “1. O presente processo iniciou-se em 18 de setembro de 2020 com a imputação ao Demandante da prática do ilícito previsto no artigo 127-B do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (doravante RDFPF) o qual, sob a epígrafe “Exercício indevido de atividade”, prevê que “O dirigente de clube que exerça atividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, é sancionado com suspensão entre 6 meses a 2 anos e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC.” 2. Posteriormente, em 15 de Junho de 2022, foi deduzida acusação contra o Demandante, tendo-lhe sido imputada a prática de “Exercício indevido de atividade”, sancionado pelo artigo 127-B do RDFPF (fls. 512 a 546 dos autos). 3. Essa previsão normativa que visa sancionar o dirigente de um Clube que exerça, ocasional ou permanentemente, a atividade de representação ou intermediação, foi introduzida no RDFPF publicado em 13/07/2020, pelo CO 460, para vigorar a partir da época 2020/2021. 4 Ou seja, à data da alegada prática dos factos imputados ao Demandante (1 de julho de 2019) tal normativo não existia no ordenamento disciplinar. 5. Assim, verifica-se que no presente processo foi deduzida acusação contra o arguido em manifesta violação do princípio da legalidade, na dimensão da proibição de aplicação retroactiva de disposições sancionatórias. 6. Por esse motivo, a acusação deduzida contra o Demandante é ilegal, tendo sido violadas as disposições dos artigos 7o, n° 1 e 10°, n°s 1 e 2 e 11o do RDFPF 2019/2020, e ainda dos artigos 1o, n° 1,2o, n° 1 e 3o do Código Penal. 7. A referida acusação está ainda ferida de inconstitucionalidade por violação do artigo 29°, n°s 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que expressamente se invoca e deve ser julgada verificada e declarada. 8. Os vícios da acusação projectam-se em todo o processado por força daquele vício original, como tem sido entendimento unânime da jurisprudência e doutrina, por aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada ou do contágio, por efeito à distância. 9. O acórdão recorrido está viciado de nulidade, por verificação do vício de omissão de pronúncia, previsto no artigo 379°, n° 1, c) do CPP, aplicável por remissão do artigo 11o do RDFPF, a qual deve ser declarada. 10. No recurso interposto para o Tribunal Arbitral do Desporto, concretamente sob as epígrafes “A) DA CADUCIDADE DO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR” e B) DA CARTA ANÓNIMA”, constante de páginas 2 a 7 da respectiva motivação, o Recorrente alegou diversa matéria relativa a uma “carta anónima", constante de folhas 213 a 219 dos autos., tendo suscitado diversas questões de facto e de direito relacionadas com essa “carta anónima”, não tendo o tribunal recorrido emitido pronúncia sobre tais questões, designadamente que: - a mesma não cumpre minimamente os ónus previstos nos termos exigidos pelo artigo 1o, n° 1 do CPA que impendem sobre a Recorrida quanto à completude do processo administrativo consubstanciado no processo disciplinar em causa em virtude de não estar correctamente organizado, não conter todos os documentos que o deviam integrar nem conter registos de ordem e de entrada, sendo impossível determinar a forma como o mesmo terá integrado tal processo administrativo, o que tudo faz inverter o ónus da prova nos termos legais; - o Recorrente teve oportunidade de invocar que, uma vez que a Recorrida não cumpriu, por culpa exclusivamente sua, o seu dever de organizar o processo administrativo respeitando as formalidades que lhe são impostas por lei (artigo 1o, n° 1 do CPA), e impossibilitando o Recorrente de sindicar todas as questões que considerasse pertinentes e, concretamente, a verificação da caducidade, se invertia o ónus da prova, que ficava assim a cargo da Recorrida, tendo esta de demonstrar a tempestividade da instauração do procedimento disciplinar; - o Recorrente invocou a caducidade do procedimento disciplinar, tendo por base não só a caducidade invocada ab initio, isto é, assacada ao próprio momento da instauração do procedimento disciplinar (18 de Setembro de 2020), mas também a caducidade decorrente da apreciação da factualidade que resultou da deliberação de 12 de Março de 20021, na sequência da junção da dita "carta anónima”, tendo-se verificado que o tribunal recorrido não emitiu qualquer pronúncia sobre a invocada caducidade decorrente do conhecimento da matéria que surgiu para apreciação pela deliberação de 12 de Março de 20021; e - que quer a dita carta anónima, quer os demais documentos que alegadamente a acompanharam (que igualmente não têm apostos números de entrada nem data de entrada na FPF), nunca poderiam ter sido junto aos autos ou valorados fosse para que efeito fossem, tratando-se de prova absolutamente proibida nos termos conjugados dos artigos 126°, 2, a) e 164°, n° 2 do CPP, o que tudo gera a respectiva nulidade insanável, devidamente invocada, pedindo que fossem declaradas violadas as disposições conjugadas dos artigos 126°, 2, a) e 164°, n° 2 do CPP, do 246° do CPP e dos artigo 233°, n° 5 , 249.°, n.° 5 e 239.°, n.° 4, alínea a), todos do RDFPF. 11. O acórdão recorrido padece ainda do vício de falta absoluta de fundamentação, cominado pelos artigos 379°, 1, a) e artigo 374°, n° 2 do CPP com nulidade que deve ser declarada. 12. A fundamentação utilizada no acórdão recorrido é absolutamente inexistente e não permite, sequer minimamente, entender por que razão é que o tribunal recorrido deu como provados os pontos 14, 16, 20 e 21 do elenco dos factos provados. 13. Desconhece-se, em absoluto, na medida em que não é feito apelo a qualquer elemento probatório, isto é, não é feita a análise crítica da prova produzida no processo, donde se possa extrair o juízo que, alegadamente, esteve por detrás da conclusão de que os pontos 14, 16, 20 e 21 devem constar do elenco dos factos provados. 14. E tais motivos de facto não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas antes os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substracto racional que conduz a que a convicção se forme em determinado sentido ou que conduz a que se valore de determinada forma os diversos meios de prova apresentados. 15. O presente processo iniciou-se com a imputação ao Recorrente da prática do ilícito previsto no artigo 127-B do RDFPF o qual, sob a epígrafe “Exercício indevido de atividade’’, prevê que “O dirigente de clube que exerça atividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, é sancionado com suspensão entre 6 meses a 2 anos e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC.”, tendo sido instaurado e integralmente tramitado pela Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da FPF. 16. Na tese da acusação, o Recorrente era dirigente de facto da Portimonense, SAD e, igualmente nessa qualidade, exerceu a actividade de representação ou intermediação desportiva, concretamente no que tange ao negócio de intermediação do jogador S.. N.... 17. Aquela previsão normativa visa sancionar o dirigente de um Clube que exerça, ocasional ou permanentemente, a actividade de representação ou intermediação, sendo certo que a Portimonense, SAD é uma sociedade anónima desportiva que compete nas competições profissionais, as quais são organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional. 18. Ora, e se assim é, uma vez que na perspectiva do acusador estaria em causa a imputação dirigida a um dirigente de facto de uma sociedade anónima desportiva (que concomitantemente exerceria a actividade de representação ou intermediação), a competência para tramitar o processo disciplinar respectivo competia à Secção Profissional da FPF e não à sua Secção Não Profissional. 19. Tal dirigente de facto (o Recorrente), nas palavras do acusador, participaria em competições organizadas pela LPFP na medida em que seria dirigente da Portimonense, SAD. 20. E se assim é, então verifica-se que a Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, que tramitou integralmente o processo, era absolutamente incompetente para esse efeito. 21. A competência para apreciar o processo, ab initio, pertencia à Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF. 22. Na medida em que se verifica ter o processo sido tramitado, desde o seu início, pela Secção Não Profissional, quando deveria ter sido tramitado pela Secção Profissional, deve declarar-se que o mesmo foi conduzido por entidade incompetente, o que gera a nulidade de todo o processado por absoluta incompetência nos termos das disposições conjugadas dos artigos 43°, n° 1 do RDF2008, artigos 57°, 58° e 60° dos Estatutos da FPF, artigo 15° do Regimento do Conselho de Disciplinar, artigo 5o, n° 3 do RDFPF e nos números 2 e 6 da cláusula 9a do Contrato celebrado entre a FPF e a LPFP, incompetência essa de conhecimento oficioso nos termos do artigo 16° do Regimento do Conselho de Disciplina, o que tudo se invoca expressamente e deve ser declarado. 23. O despacho proferido nos autos em 2/08/2022, constante de fls. 659 a 678 dos autos, trata-se evidentemente de um despacho de alteração substancial dos factos. 24. Trata-se, pois, de despacho inadmissível e que comporta a nulidade do referido despacho e do acórdão recorrido, que decidiu em sentido semelhante. 25. Ora, o Recorrente vinha acusado da prática do ilícito previsto no artigo 127-B do RDFPF, o qual prevê que “O dirigente de clube que exerça atividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, é sancionado com suspensão entre 6 meses a 2 anos e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC.” 26. Por sua vez, e por força do despacho que o Relator denominou de alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica, o Recorrente veio a ser condenado pelo ilícito previsto no artigo 186, n° 1 do RDFPF. 27. Este artigo 186°, n° 1, prevê, por sua vez, que “1. Quem exerça de facto a atividade de intermediário, estando impedido nos termos do Regulamento de Intermediários da FPF, é sancionado com impossibilidade de registo entre 1 e 3 épocas desportivas e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC.” 28. O artigo 4o, e) do RDFPF define alteração substancial dos factos como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de uma infração diversa ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”, a qual é expressamente vedada pelo artigo 243°, n° 4, proibição essa que se encontra igualmente prevista nos artigo 359° e artigo 379.°, n.° 1, al. b)], do CPP. 29. Na medida em que, sob a veste de uma alteração não substancial dos factos, foi imputado ao recorrente uma infracção diversa e uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, há, evidentemente, uma alteração substancial dos factos. 30. Alteração essa relativamente à qual o Recorrente nunca deu o seu consentimento e que é expressamente prevista pelo RDFPF e pelo CPP. Foram assim violadas as disposições dos artigos 243°, n° 5 do RDFPF e artigos 359° e artigo 379.°, n.° 1, al. b)], do CPP, que tornam o despacho de 2/8/2022 e o acórdão recorrido nulos, o que se invoca expressamente. 32. A condenação do Recorrente tendo por base os novos factos, sem observação do disposto no artigo 359.°, n.° 1, do CPP, do mesmo diploma, conduz à nulidade da dita peça processual [cfr. artigo 379.°, n.° 1, al. b)] e todas subsequentes, designadamente, do acórdão condenatório. 33. O presente procedimento disciplinar foi instaurado muito depois dos 30 dias previstos no RDFPF, concretamente, mais de um ano depois dos factos imputados ao recorrente. 34. Ainda que fossem verdadeiras as imputações feitas na acusação e acórdão ao recorrente - que não são a verdade é que a Federação Portuguesa de Futebol logo delas teve conhecimento nas respectivas datas, a saber 25 de Junho de 2019 quanto ao contrato de intermediação e 1 de Julho de 2019 quanto ao contrato de transferência celebrado entre o Al-Duhail Sports Club, a Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD e o jogador S.. N... ou, no limite, de todas essas circunstâncias terá tido conhecimento em 1 de Julho de 2019. 35. Ora, como resulta do próprio processo disciplinar, tais contratos encontram-se arquivados na Federação Portuguesa de Futebol pelo menos desde 1 de Julho de 2019 e, por isso, eram nessa data do seu perfeito conhecimento. 36. Acresce que, também em todos os meios de comunicação nacionais, nessas datas, foram divulgadas notícias que versavam sobre os factos em apreciação nos presentes autos. Daí que essas notícias foram difundidas por um número indeterminado de pessoas e logo chegaram ao conhecimento da Federação Portuguesa de Futebol e seus membros. Tudo pelo menos desde a publicação dessa notícia pelo jornal “A Bola” em 03/07/2019, do perfeito conhecimento da FPF e seus órgãos. 37. Na verdade, nenhuma circunstância impedia ou impediu que a Federação Portuguesa de Futebol pudesse instaurar procedimento disciplinar contra o recorrente nos 30 dias seguintes ao conhecimento desses alegados ilícitos. 38. Quando a Federação Portuguesa de Futebol determinou a instauração do presente procedimento disciplinar já havia perdido o direito de exercer o seu poder disciplinar, que se encontrava caduco. 39. Assim, e em face do exposto, verifica-se a caducidade da instauração do presente procedimento disciplinar, que não cumpriu o prazo peremptório previsto para a sua instauração. 40. Caducidade essa que se invoca expressamente para todos os efeitos e deve ser julgada verificada e declarada, nos termos dos n°s 1 e 2 do artigo 49° do RDFPF. 41. Por outro fado, relativamente à factualidade em apreciação nos autos que resultou da deliberação de 12 de Março de 2021, e que tem por base a “junção aos presentes autos de carta anónima recebida” pela FPF, salvo melhor entendimento, a mesma não poderia ser apreciada nem o documento ser junto aos autos. 42. Desconhece-se em absoluto como é que a “carta" entrou nos Serviços da Recorrida, se por via postal, via electrónica, telefax, se foi entregue em mão. Fosse qual fosse o meio, em todos eles haveria forma de descortinar qual a forma de envio, o receptor, etc. 43. Na verdade, a referida carta não está datada nem se encontra assinada; por outro lado, não se encontra junto aos autos envelope com indicação da data de remessa ou ADVOGADOS entrega e, ainda, qualquer registo com aposição de data de entrada dessa carta nas instalações da Federação Portuguesa de Futebol. 44. A aposição de registo de entrada com número de ordem e respectiva data de entrada na dita carta anónima eram e são essenciais para que se possa sindicar a tempestividade da apreciação dos factos nela comunicados. 45. Ora, a falta de aposição de número de ordem e data de entrada na referida carta é omissão exclusivamente imputável à Federação Portuguesa de Futebol, que dessa forma impediu e impede o recorrente de sindicar todas as questões que considere pertinentes. 46. O procedimento disciplinar em que se integra a “carta anónima”, consubstanciando um processo administrativo, deve cumprir o formalismo e organização inerente ao mesmo, nos termos exigidos pelo artigo 1o, n° 1 do CPA. 47. Assim, porque a Recorrida não cumpriu, por culpa exclusivamente sua, o seu dever de organizar o processo administrativo respeitando as formalidades que lhe são impostas por lei (artigo 1o, n° 1 do CPA), e impossibilitando o Recorrente de sindicar todas as questões que considerasse pertinentes e, concretamente, a verificação da caducidade, inverte-se o ónus da prova, que fica assim a cargo da Recorrida, tendo esta de demonstrar a tempestividade da instauração do procedimento disciplinar, tudo nos termos dos artigos 8o, n° 3 e 84°, n°s 1 e 6 do CPTA. 48. Ao incumprir todas as formalidades de organização do processo administrativo a Recorrida tornou a prova do Recorrente impossível ou de considerável dificuldade. 49. Assim, concretamente quanto à data de entrada na Federação Portuguesa de Futebol, competia à FPF demonstrar que a apreciação dessa factualidade era tempestiva. 50. E, dada a omissão por culpa exclusiva da Federação, deve ser declarada a caducidade do procedimento disciplinar. 51. A carta de fls. 214 e ss. dos autos (a considerar-se uma carta, o que se desconhece) é anónima e, por isso, desprovida de qualquer efeito nos termos do disposto no art.° 164 do Código de Processo Penal, que refere no seu n.° 2 que no que toca à prova documental não pode ‘juntar-se documento que contiver declaração anónima, salvo se for, ele mesmo, objecto ou elemento do crime’. 52. Ta! disposição legal, inserida no Código de Processo Penal sob a epígrafe “Admissibilidade”, dita sem margem para dúvidas nos termos antes expostos, que não pode juntar-se documento aos autos que contiver declaração anónima. 53. E, como é evidente, tal carta anónima não é, em si mesma, objecto ou elemento do crime. 54. Nem, por outro lado, a carta anónima poderia determinar a abertura de procedimento disciplinar, porquanto da mesma não se retiram indícios da prática de infracção nem a mesma constitui infracção disciplinar. Só se assim fosse poderia determinar a abertura de procedimento , nos termos do artigo 233°, n° 5 do RDFPF. 55. Ademais, a carta anónima pretende - ainda que de uma forma atabalhoada - indiciar que o aqui Recorrente - detentor de 50% do capital da For GOOL CO LTD, acionista da Portimonense SAD - é também ele acionista de uma empresa de agenciamento com sede no Brasil e, por isso, estará em choque com a legislação nacional vigente. 56. Prima facie, a Lei Portuguesa - Lei n° 54/2017 - não se imiscui nem versa sobre a capacidade ou incapacidade de um acionista de uma empresa detentora de capital social de uma Sociedade Desportiva poder ou não ser intermediário. 57. Seguidamente, a Lei Portuguesa versa - e versará sempre - sobre direitos e factos material e territorialmente da sua competência. Assim, a incompatibilidade para o exercício da profissão de intermediário em Portugal não pode - porque ainda não é magnânima - dispor sobre a capacidade ou incapacidade de exercer a função de intermediário no Brasil. 58. Assim, se do ponto de vista procedimental a Carta Anónima é um nascituro, do ponto de vista substancial - ao contrário do que o Douto Acórdão ambiciona transmitir - a verdade é que a mesma versa sobre alegadas incompatibilidades resultantes da Lei Portuguesa para o exercício da atividade de intermediário de uma empresa sediada em solo Brasileiro e sob a égide, lei e regulamento Brasileira. 59. Por conseguinte, o Conselho de Disciplina não era competente materialmente para aferir da legalidade ou não do exercício da profissão do intermediário no Brasil - nos pontos apresentados na carta anónima - e como tal a mesma deveria ter sido arquivada/eliminada imediatamente, e não, conforme resultou, servir para atividades de investigação baseadas meramente na perseguição ad hominen em claro abuso de direito e poder administrativo. 60. O que tudo deve determinar o arquivamento do processo nos termos dos artigos 249.°, n.° 5 e 239 °, n.° 4, alínea a), todos do RDFPF. 61. De modo que quer a dita carta anónima, quer os demais documentos que alegadamente a acompanharam (que igualmente não têm apostos números de entrada nem data de entrada na FPF), nunca poderiam ter sido junto aos autos ou valorados fosse para que efeito fossem. 62. Tratam-se de prova absolutamente proibida nos termos conjugados dos artigos 126°, 2, a) e 164°, n° 2 do CPP. 63. O que tudo gera a respectiva nulidade insanável, que se invoca expressamente para todos os efeitos e assim deve ser julgada verificada e declarada. 64. Assim, foram violadas as disposições conjugadas dos artigos 126°, 2, a) e 164°, n° 2 do CPP, do 246° do CPP e dos artigo 233°, n° 5 , 249.°, n ° 5 e 239.°, n.° 4, alínea a), todos do RDFPF, o que urge corrigir. 65. A circunstância de o processo disciplinar aqui em causa ter sido distribuído a Instrutor nos termos indicados na motivação e constantes do processo, além de uma violação gritante do Regulamento de Disciplina da FPF, é uma violação da própria essência da distribuição, que se destina a sortear o instrutor que vai ter jurisdição sobre ele, de forma aleatória, para assim se não poder suspeitar da sua imparcialidade. 66. Conforme dita o RDFPF, a designação do Instrutor devia ser feita de forma rotativa e de entre listagem previamente definida, a qual haveria de respeitar escala ordenada alfabeticamente, nos termos previstos no Regimento do Conselho de Disciplina. 67. Ora, compulsados os autos, verifica-se que nele não vem incluída qualquer listagem ou escala que permita sindicar a aleatoriedade da distribuição do processo. 68. E, segundo lição antiga, se não existe nos autos, não existe no mundo!!! 69. O que tudo faz evidenciar que, quem procedeu à distribuição do presente processo disciplinar a Instrutor, o fez segundo vontade própria e não segundo listagem ou escala que permitam garantir aleatoriedade, tudo em clara violação das regras que regulam esta matéria. 70.0 RDFPF prevê no artigo 11° como direito subsidiário na tramitação do respectivo procedimento o Código de Processo Penal. 7T: Por sua vez, o Código de Processo Penal no seu artigo 4o manda aplicar as regras do Código de Processo Civil em tudo quanto nele não esteja previsto. 72. A distribuição faz-se de harmonia com as regras estabelecidas nos artigos 203 e seguintes do Código de Processo Civil. Tais normas não foram aplicadas. 73. Ou seja, o processo não foi ainda distribuído. Não tendo o processo sido distribuído porventura não pode ainda falar-se em violação do principio do juiz natural estabelecido constitucionalmente. O que sucede é que esse juiz ainda não foi encontrado, impondo- se que o seja de imediato. 74. Apesar de o artigo 210, n° 1, do CPCivil, estabelecer que a falta ou irregularidade da distribuição não produz nulidade de nenhum acto do processo, o CPPenal, dada até a matéria em jogo, é muito mais exigente. 75. Na verdade, dispõe o art 119, a) deste último diploma, que constitui nulidade insanável a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal. 76. Ou seja, o processo enferma, ab initio, de nulidade insanável por ainda não ter sido encontrado o juiz com jurisdição sobre ele com observância das normas legais aplicáveis e que são as que regulam a distribuição. 77. Mutatis mutandis, como é evidente aplica-se o mesmo enquadramento legal e consequências para a violação verificada no presente procedimento disciplinar. 78. O que tudo implica seja declarada a nulidade insanável vinda de invocar. 79. Além da nulidade do processado derivada da nomeação de Instrutor, nos termos antecedentemente indicados, verifica-se ainda nulidade do processado derivada da nomeação de Relator, em violação do art 119, a) do Código de Processo Penal, que constitui nulidade insanável a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal, pelo que o processo enferma, ab initio, de nulidade insanável. 80. Com a acusação proferida nos autos contra o recorrente, nunca o acórdão recorrido poderia ter dado como provado o ponto 23 do elenco dos factos provados. 81. Como resulta do disposto no artigo 283°, n° 3, al. b) e c) do Código de Processo Penal, a acusação tem que narrar, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. 82. Tal exigência legal deriva da circunstância de ser a acusação que fixa o objeto do processo, delimitando o âmbito da ulterior atividade investigatória a desenvolver pelo juiz, nomeadamente na fase de julgamento, em obediência ao princípio da vinculação temática do objeto do processo. 83. A intenção do legislador ao elaborar o artigo 283°, n° 3 do CPP foi, aliás, de acordo com o princípio do acusatório que vigora no nosso sistema, o de tornar a acusação numa peça auto-suficiente, que contenha a totalidade dos elementos que revelam a existência de um crime e identificam os agentes e suas responsabilidades, na formulação utilizada pelo artigo 262°, 1 do CPP. 84. Só assim se fixará, de forma definitiva e inequívoca, o objecto do processo a que a actividade cognitória do tribunal estará vinculada em sede de julgamento e se protegerão, concomitantemente, os direitos de defesa dos arguidos (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal , vol. I, p. 144-145). 85. Ora, o ponto 23 do elenco dos factos provados, acima transcrito, não constava da acusação que foi proferida contra o arguido. ba Tráía-se de um facto novo, uma nova imputação, que jamais poderia ser tomada em consideração do acórdão recorrido. 87. Nunca ao arguido foi dirigida tal imputação, peio que o acórdão recorrido pronunciou- se sobre questão sobre a qual não podia conhecer. 88. A imputação que estava dirigida ao Recorrente e da qual, Segundo o ponto 30 da acusação, o Recorrente teria conhecimento e actuou livre e conscientemente, nada tem haver com a imputação que lhe foi dirigida após o despacho proferido em 2 de Agosto de 2022, constante de fls. 659 e ss. Do procedimento disciplinar). 89. Na primeira, estava em causa o facto de o mesmo, sabendo ser dirigente da Portimonense, SAD, estar impedido de intermediar negócios de jogadores, o que teria feito de forma livre e consciente. 90. Na segunda situação, decorrente do despacho proferido em 2 de Agosto de 2022, o que está em causa seria o Recorrente exercer a função de intermediário desportivo sem estar para essa função devidamente registado e habilitado, tendo disso consciência e ainda assim querer actuar. 91. A acusação é absolutamente omissa em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude, habitualmente traduzido na expressão que o ‘'arguido actuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”, e que “o arguido agiu livre, consciente e deliberadamente”, ou por quaisquer outras expressões que encerrassem esse conteúdo. 92. Por outro lado, de acordo com a jurisprudência mencionada na motivação fixada por esse aresto, a omissão na acusação da descrição de algum elemento do tipo subjectivo de ilícito, não pode ser integrada em julgamento com recurso ao mecanismo do artigo 358°, n° 1 do CPP. 93. Torna-se, assim, por demais evidente que a acusação dirigida ao Recorrente não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjectivos do tipo, necessária a verificação do ilícito imputado ao recorrente, e que, por outro lado, nunca os elementos poderiam ser aditados pelo acórdão recorrido, pelo que devia o Conselho de Disciplina da FPF considerar a acusação manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem ilícito e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos artigos 283°, n° 3, b) e 311o, n°s 2, a) e 3, d) do CPP. 94. Ademais, o aditamento da matéria de facto contida no ponto 23 dos factos provados, pressuposto essencial do tipo de ilícito imputado ao recorrente, representa uma alteração substancial dos factos, tal como descrita no artigo 1o, f) do CPP. 95. Desse modo, a acusação dirigida ao recorrente é nula e como tal, assim deve ser declarada. 96. Nulidade essa que é, aliás, de conhecimento oficioso. 97. Dito isto, é evidente que o acórdão recorrido conheceu factos de que não podia tomar conhecimento, consubstanciados na adição do ponto 23 dos factos provados. 98. Daí que seja iguaimente nulo o acórdão recorrido, que condenou por factos diversos dos descritos na acusação, conhecendo assim de questões de que não podia tomar conhecimento. 99. É o que resulta à saciedade dos artigos 379°, n° 1, b) e c) do CPP, disposições legais essas que foram violadas. 100. Nulidade essa que se invoca expressamente e deve ser declarada. 101. O Recorrente não é Agente Desportivo e, como tal, a Federação Portuguesa de Futebol não detém poder disciplinar sobre ele, de modo que não lhe é aplicável o RDFPF nem qualquer outra disposição regulamentar produzida pela FPF e ou os seus próprios Estatutos. 102. Dessa forma, falta um pressuposto procedimental, que deve gerar o arquivamento do processo disciplinar, tendo sido violados os artigos 4o, b), 2o e 3o do RDFPF e artigo 80°, n° 1 dos Estatutos da FPF. 103. Os pontos 11, 12, 13, 14, 16, 20 e 21 do elenco dos factos provados devem ser julgados não provados e transitar para o elenco dos factos não provados, tudo no âmbito dos poderes de cognição conferidos por lei ao TCA. 104. A fundamentação para esta pretendida alteração da decisão da matéria de facto radica, desde logo, nos documentos juntos aos autos, designadamente na informação defls. 117, defls. 411,418, 419 e 420 do processo disciplinar, na informação constante de fls. 107 e 108, do passaporte do Demandante, constante de fls. 100 e 101, do contrato de trabalho constante de fls. 111 e 112, da foto constante de fls. 26 do processo disciplinar, do conjunto da factualidade provada, da análise da prova no seu conjunto, das regras de distribuição do ónus da prova e das regras da experiência e da normalidade do acontecer, na ausência absoluta de prova e, por fim, no princípio in dúbio pro reu. 105. A decisão recorrida viola o princípio in dúbio pro reu, estando ferida de inconstitucionalidade por violação do art. 32.°, n.° 2, 1ª parte, da CRP, inconstitucionalidade que expressamente invoca.” A Federação Portuguesa de Futebol apresentou contra-alegações, terminando as alegações com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem: “1. O Recurso interposto pelo Recorrente tem por objeto a decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.9 63/2022 que confirmou acórdão proferido pela Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, no âmbito do processo disciplinar n.º 30-20/21. 2. Em concreto, o ora Recorrente foi condenado por exercer a atividade de intermediário sem estar registado enquanto tal, conforme está obrigado pela Lei e pelos Regulamentos. 3. O acórdão impugnado confirmou a condenação do Recorrente na infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, nº 1 do RDFPF, na sanção de impossibilidade de registo durante 2 (duas) épocas desportivas e cumulativamente na sanção de 18 (dezoito) UC de multa, ou seja, € 1.836,00 (mil, oitocentos e trinta e seis euros). 4. O Recorrente não coloca em causa a factualidade dada como provada, não requerendo a impugnação da mesma, porquanto deve ser dada como assente toda a factualidade que vem descrita no Acórdão Arbitral a fls. 31 a 35. 5. O Recorrente afirma que devia ter sido declarada a caducidade do procedimento disciplinar, porquanto foi desrespeitado o prazo de 30 dias previsto no artigo 49.º, n.º 1 do RD da FPF, mas sem razão, porquanto o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol recebeu a notícia dos factos constitutivos de infração disciplinar no dia 9 de setembro de 2020 e instaurou o processo de averiguações no dia 18 de setembro de 2020, respeitando integralmente o prazo de 30 dias estabelecido no artigo 49.5, n.s Ido RDFPF. 6. O Recorrente entende ainda que a carta anónima junta aos autos deve ser destruída porquanto a sua junção não é admissível. Porém, o Artigo 233.® do RD da FPF admite expressamente a junção de cartas anónimas quando das mesmas se retirem indícios da prática de infração - cfr. Respetivo conteúdo a fls. 214 e ss. do processo disciplinar. 7. O Recorrente alega que foram violados os critérios de indicação de instrutor e de relator nos presentes autos, referindo mesmo que tais indicações foram feitas segundo vontade própria e de acordo com a livre escolha do distribuir, porém, não sustenta minimamente as graves alegações que profere. Evidentemente, foi assegurada a rotatividade na indicação dos elementos, quer da CID quer do CD, que ficaram adstritos a este processo - de notar que o Regulamento obriga a rotatividade, mas não a sorteio. 8. O Recorrente alega que nunca poderia tersido dado como provado o ponto 33, que refere ""33) Ao atuar nos termos acima descritos, o arguido C... P... agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender a lei e os regulamentos, resultado que representou, e, bem sabendo ainda que o seu comportamento era proibido e sancionado pela lei e pelos regulamentos (e, nessa medida, conhecendo a ilicitude do seu comportamento), consubstanciando conduta prevista e sancionada pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo, não se absteve de o realizar". O facto provado n.® 33 consubstancia um "chavão" da praxis, que, em bom rigor, não necessitava de aí constar para que a imputação a título subjetivo se verificasse. 9. Como é evidente, mesmo sem a parte conclusiva, a matéria de facto dada como provada nos autos sustenta, igualmente, a punição do Recorrente no âmbito do processo disciplinar, pelo que a decisão não sai minimamente prejudicada. 10. O Recorrente afirma que existiu uma alteração substancial dos factos, que considera inadmissível. Porém, tendo em conta que, no número 3 do artigo 243.® do RDFPF, se estabelece, de forma expressa, a possibilidade de se proceder à alteração não substancial dos factos e à alteração da qualificação jurídica, contanto se conceda ao arguido possibilidade de pronúncia, no prazo de 5 (cinco) dias - procedimento que, no caso concreto, foi devidamente cumprido -, revela-se, a esta luz, cristalino que, no vertente caso, não existe fundamento algum que legitime posição do Recorrente quanto a esta alegada nulidade. 11. O Recorrente refere, ainda, que o RD da FPF não lhe pode ser aplicado.Neste particular, cumpre recordar que a Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (Lei n.9 5/2007, de 16 de janeiro) estabeleceu, no seu artigo 37.n.º 1 (incluído no Capítulo IV - Secção II, relativa aos “agentes desportivos"), que «[s]ão empresários desportivos, para efeitos do disposto na presente lei, as pessoas singulares ou colectivas que, estando devidamente credenciadas, exerçam a actividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, mediante remuneração, na celebração de contratos de formação desportiva, de trabalho desportivo ou relativos a direitos de imagem», acrescentando, no número 4 do mesmo artigo, que «[a] Lei define o regime jurídico dos empresários desportivos». 12. Em conformidade com tal injunção, a Lei n.º 54/2017, de 14 de julho ( ), dispõe, no seu artigo 36.º, n.9 1, que «[s]ó podem exercer atividade de empresário desportivo as pessoas singulares ou coletivas devidamente autorizadas pelas entidades desportivas, nacionais ou internacionais, competentes», acrescentando-se, no artigo 37.º, n.º 1, que «os empresários desportivos que pretendam exercer a respetiva atividade devem registar-se como tal junto da federação desportiva, que, para este efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado» (destaques nossos). 13. Mister é notar que, em sentido convergente, a FIFA, estabeleceu, em regulamento próprio ("Regulations on Working Intermediaries", aprovado pelo Congresso de 10 e 11 de junho de 2014) ( ), que «Íp]or uma questão de transparência, cada associação (in casu, Federação] deve implementar um sistema de registo de intermediários», onde devem ser registados «toda a vez que estiverem individualmente envolvidos numa transação específica» (cf. artigo 3.º, parágrafo l.9). 14. Em conformidade com tais disposições, a FPF, no seu Regulamento de Intermediários, estabeleceu que «[i]ntermediário é a pessoa singular ou coletiva que, com capacidade jurídica, contra remuneração ou gratuitamente, representa o jogador ou o clube em negociações, tendo em vista a assinatura de um contrato de trabalho desportivo ou de um contrato de transferência» (artigo l.9), determinando que «[s]ó podem exercer a atividade de Intermediário as pessoas singulares ou coletivas registadas na FPF», que deve ser previamente requerido «sempre que participe numa transação» (art.9 6.9, n.9s 1 e 2) - destaque nosso. Nesse contexto, determina-se no artigo 13.2, n.2 deste regulamento que «[a] FPF é responsável pela imposição de sanções a qualquer das partes que viole as disposições do presente Regulamento». 15. Nos termos do disposto no artigo 2.9, n.9 1, o Regulamento de Intermediários da FPF visa o estabelecimento de «normas que regulam a contratação dos serviços de um Intermediário por parte de um jogador e de um clube com vista a: a) Celebrar ou renovar um contrato de trabalho entre um jogador e um clube, ou b) Celebrar um contrato de transferência, temporária ou definitiva, entre dois clubes» (destaque nosso), aplicando- se, por força do disposto no seu artigo 3.9, «aos intermediários» e, além disso, a «todos os jogadores e clubes filiados na Federação Portuguesa de Futebol (FPF), na Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) e nas associações distritais e regionais de futebol». Note-se, neste particular, que, por força do disposto no artigo 9.9, n.9 2 do aludido regulamento, as exigências estabelecidas no regulamento, designadamente a obrigação de envio do contrato de representação para depósito da FPF e na LPFP, se aplicam sempre e quando «os contratos digam respeito a jogadores ou clubes que participam nas suas competições». Disposição que, aliás, se conforma com o estabelecido no artigo 3.9 e 6.9 do Regulations on Working with Intermediaries da FIFA. 16. Cumpre acrescentar que, nos termos do disposto no artigo 5.9, n.9 1 do Regulamento de Intermediário da FPF, os elementos essenciais da relação jurídica de intermediação devem constar de contrato reduzido a escrito (por força do disposto no artigo 38.n.9 2 da Lei n.9 54/2017), necessariamente celebrado antes do início da atividade por parte do intermediário. 17. Esse contrato, que é celebrado em quadruplicado (sendo uma cópia para cada uma das partes, outra para a FPF e outra para a LPFP, quando os contratos digam respeito a jogadores ou clubes que participam nas suas competições), é sujeito, nos termos do disposto no número 3 do artigo 9.9 do aludido Regulamento, a depósito obrigatório na FPF, que tem de ocorrer em momento anterior ao do registo da transação. 18. É o incumprimento do regime que se acaba de sumariar que a infração pela quat o Recorrente foi condenado - prevista no RDFPF - visa, sem sombra de dúvidas, prevenir e, em sede disciplinar, sancionar. 19. Neste concreto ponto, note-se que, nos termos do disposto no artigo 3.5, n.9 1 do RDFPF (em conformidade com o disposto no artigo 52.9, n.9s 1 e 2 do RJFD), este regulamento «é aplicável a todas as entidades desportivas, incluindo aos clubes, e a todos os agentes desportivos que, a qualquer título ou por qualquer motivo, exerçam funções no âmbito das competições de futebol, por qualquer forma nelas intervenham ou desenvolvam atividade compreendida no objeto estatutário da Federação». 20. Em conformidade com tal disposição, a alínea b) do artigo 4.9 do mencionado regulamento atribui a qualidade de «agente desportivo», justamente, ao "intermediário desportivo", conceito que a alínea bb) do mesmo artigo define nos termos seguintes: «pessoa singular ou coletiva que, com capacidade jurídica, contra remuneração ou gratuitamente, representa o jogador ou o clube em negociações, tendo em vista a assinatura de um contrato de trabalho desportivo ou de um contrato de transferência». 21. Percebe-se, assim, sem especial dificuldade, que, para efeitos de aplicação do RDFPF e, nomeadamente, de subsunção na facti species do artigo 185.9, n.9 1 do RDFPF, este diploma visa o concreto exercício, de facto, da atividade de intermediário (consubstanciada na representação de «jogador ou o clube em negociações, tendo em vista a assinatura de um contrato de trabalho desportivo ou de um contrato de transferência»), independentemente da prévia existência do correspondente registo ou inscrição, cuja inexistência, na realidade, integra uma das modalidades típicas da mencionada infração. 22. Aliás, outra interpretação, para além de tornar absolutamente inútil a disposição pela qual se procede, sempre colidiria frontalmente com o acima sumariado regime legal e regulamentar, nomeadamente com a proibição resultante do artigo 36.9, n.9 1 da Lei n.9 54/2017, de 14 de julho, e do artigo 6.9, n.9s 1 e 2, do Regulamento de Intermediários da FPF. 23. Em sede de alegações finais - apenas -, veio o Recorrente invocar a exceção de incompetência da Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da Demandada para decidir do processo disciplinar, uma vez que considera que o Recorrente é um agente desportivo e que, por isso, lhe é aplicável o RDLPFP e a secção competente seria a Secção Profissional. 24. Discute-se nos presentes autos a legalidade do acórdão proferido pela Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da Demandada, no âmbito do Processo disciplinar n.5 30 - 2020/2021, porquanto ali se pune o exercício, de facto, da atividade de intermediário desportivo por parte do Recorrente sem que tivesse efetuado o prévio registo na FPF, infração prevista e sancionada pelo artigo 186.2, n.s 1, do RDFPF. 25. O Recorrente é intermediário desportivo de facto, uma vez que não se encontra inscrito como tal junto da Federação Portuguesa de Futebol. Na verdade, o Recorrente requereu a inscrição como intermediário em 2016 junto da Demandada, procedimento que não chegou a ser concluído. Ainda assim, o Recorrente não se coibiu de agir como se fosse intermediário, ou seja, existe uma situação de facto consumada. 26. O Recorrente não foi condenado enquanto dirigente desportivo, para que lhe seja aplicável o RDLPFP e não o RDFPF e, consequentemente, para que a Secção competente para tramitar o processo disciplinar fosse a Secção Profissional e não a Secção Não Profissional. 27. Na verdade, há que atentar aos concretos factos que lhe são imputados no âmbito do processo disciplinar em discussão nos autos, bem como a qualidade em que o agente se apresenta. No caso vertente, o Recorrente foi sancionado por ser intermediário de facto sem estar registado enquanto tal, infração que só tem cabimento no âmbito de um julgamento pela Secção Não Profissional do CD, porquanto é a FPF - e não a Liga - que tem competências em matéria de regulamentação e registo de intermediários de futebol. 28. Nesta conformidade, andou bem o TAD ao determinar a improcedência da exceção de incompetência da Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da FPF para decidir do processo disciplinar. 29. O Tribunal a quo fundamentou detalhada e aprofundadamente toda a pronúncia acerca de todos os vícios apontados pelo Recorrente a decisão condenatória. 30. Por outro lado, não merece qualquer censura a conclusão de que o Recorrente deve, de facto, ser sancionado por ter exercido a atividade de intermediário sem estar registado enquanto tal. 31. A condenação do Recorrente sustentou-se em variada e extensa prova, toda ela devidamente suportada e devidamente fundamentada no Acórdão do CD, que não merece, quanto a este ponto, nenhuma censura. 32. A norma sancionatória em causa (artigo 186.5 n.5 l do RDFPF) exige, para que se entenda consumada conduta disciplinarmente relevante, que, em concreto, se demonstre o exercício, de facto, da atividade de intermediário, quando, por força do Regulamento de Intermediários da FPF, tal exercício se veja impedido. 33. No caso concreto, em face do vertido em sede de fundamentação de facto, que não foi impugnada, recorde-se, demonstrou-se que o Recorrente, girando sob o nome comercial Y..., aceitou representar, ainda durante a época desportiva 2018/2019, a Futebol Clube do Porto - Futebol, 5AD, na negociação da transferência internacional, do jogador S.. N..., do Al Duhail Sports Club para a referida sociedade desportiva. 34. E, ao aceitar tal representação, assumiu, entre outros, os seguintes deveres: «a) Aconselhar o CLUBE na estratégia negociai com o AL DUHAIL SPORTS CLUB; b) Actuar como intermediário do CLUBE comunicando ao Al DUHAIL SPORTS CLUB os termos contratuais propostos pelo CLUBE ao AL DUHAIL SPORTS CLUB; c) Convencer o AL DUHAIL SPORTS CLUB a aceitar os termos propostos pelo CLUBE», tendo aceitado condicionar o pagamento da respetiva retribuição à efetiva inscrição de tal jogador pela SAD representada. 35. Mais se demonstrou, que, quer à data da outorga do respetivo contrato de representação, quer posteriormente (pelo menos até à data da prolação do despacho de acusação), inexistia, junto da FPF (como se exigia, nos termos das disposições legais e regulamentares acima sindicadas), registo de intermediário em nome do Recorrente, ou a favor de entidade que girasse sob a designação comercial Y.... 36. E, além disso, resultou demonstrado que o mencionado contrato de representação foi outorgado com vista à representação, em negociação de transferência de jogador para o clube representado, filiado tanto na LPFP, como na FPF - porquanto disputava, como disputa, competições organizadas por ambas entidades com vista à posterior inscrição e utilização do mesmo em tais competições nacionais. 37. Para além disso, a factualidade dada como provada demonstra que, após outorga do referido contrato de representação, o Recorrente exerceu efetivamente as funções de representação que havia assumido perante a Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD, de tal modo que, no dia 1 de julho de 2022, foi outorgado entre esta SAD, o Al Duhail Sports Club e o jogador S.. N..., contrato de transferência internacional, onde, além do mais, se confirma, de forma expressa, o envolvimento da referida Y..., o Recorrente representa, nas negociações anteriormente ocorridas. 38. E, assim, não podem subsistir dúvidas quanto ao exercício, por este, da atividade de intermediário. 39. Por conseguinte, o Recorrente, ao exercer a atividade de intermediário, na ausência de registo prévio na FPF, ainda atuando sob as vestes de uma entidade que gira sob a designação comercial YKTEO, incumpriu o disposto no artigo 37.5, n.s i da Lei n.9 54/2017 e, em consequência, desrespeitou, igualmente, o previsto nos artigos 5.9, n.9 2 e 6.9, n.9s 1 e 2 do Regulamento de Intermediários da FPF. 40. E, nessa medida, tendo exercido, sem prévio registo, atividade de intermediação, encontram-se preenchidos, no vertente caso, todos os elementos típicos que constituem a facti species da norma sancionatória em análise. 41. Em suma, deve ser negado provimento ao recurso, demonstrando-se o acerto da decisão arbitrai recorrida.” O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, por entender que a decisão de que se recorre procedeu a uma correta apreciação dos factos trazidos ao conhecimento do Tribunal e à sua subsunção ao Direito, evidenciando clara e suficiente fundamentação, sem merecer qualquer censura. * Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir:- da aplicação ao caso dos autos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto; - da nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, quanto à matéria relativa a uma carta anónima e à caducidade do procedimento disciplinar; - da violação do princípio da legalidade, dos artigos 29.º, n.º 1, e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, 7.º, n.º 1, e 10.º, n.os 1 e 2, e 11.º do RDFPF 2019/2020, 1.º, n.º 1, 2.º, n.º 1, e 3.º do Código Penal; - da nulidade por falta absoluta de fundamentação; - da nulidade do despacho de 02/08/2022, por ilegal alteração substancial dos factos; - da nulidade do processado pela ilegal distribuição do processo disciplinar; - da incompetência da Secção Não Profissional; - do erro de prova quanto aos pontos 11, 12, 13, 14, 16, 20, 21 e 23 do elenco dos factos provados; - da omissão dos elementos integrantes da consciência da ilicitude e de elementos do tipo subjetivo de ilícito; - da falta de um pressuposto procedimental por o recorrente não ser agente desportivo,; - da violação do princípio in dubio pro reo. Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir. * II. FUNDAMENTOS II.1 DECISÃO DE FACTO Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos: 1. O Demandante é acionista da empresa F... LTD ., NIPC: 7…, com sede na … P… Street R…., G… M…. , Reino Unido, na qual detém participações sociais correspondentes a 50 % do capital social. 2. Na sociedade aludida no ponto anterior também é acionista, em igual proporção (50%), J… W…. 3. A F... LTD detém participação social correspondente a 85,88% das ações da Portimonense Futebol SAD, sendo, portanto, sua acionista maioritária. 4. O Demandante não está inscrito na Federação Portuguesa de Futebol por clube ou sociedade desportiva, e nunca esteve registado como intermediário. 5. O Demandante não tem cadastro disciplinar na FPF. 6. Na época desportiva 2018/2019, o jogador S.. N... foi contratado como jogador profissional pelo Al Duhail Sports Club, clube do Catar - Oriente Médio, após rescindir, por mútuo acordo, o contrato de trabalho desportivo que tinha convencionado com a Portimonense Futebol, SAD. 7. Na época desportiva seguinte, 2019/2020, S.. N... retornou ao futebol português, ao ser contratado como jogador profissional pela Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD, clube que, nessa época desportiva, participava na I Liga (organizada pela Liga Portugal) e na Taça de Portugal (organizada pela FPF) - competições que ainda disputa atualmente. 8. Na época desportiva 2020/2021, o jogador S.. N... estava inscrito como jogador profissional pela Futebol Clube do Porto, SAD, e foi cedido ao Al Ain Football Club, clube dos Emirados Árabes, pelo período compreendido entre 19/01/2021 a 30/06/2021. 9. O jogador S.. N..., de nacionalidade japonesa, na época desportiva 2021/2022, esteve inscrito na FPF, como jogador profissional, pela Futebol do Porto-Futebol, SAD. 10. Em 27 de agosto de 2021, o jogador foi cedido a termo certo à Portimonense Futebol SAD. 11. A Y..., representada pelo Arguido C... P..., iniciou, em abril de 2016, processo de registo na FPF para atuar como intermediária na época desportiva 2015/2016, no âmbito do qual foi apresentada, entre outros documentos, uma “Declaração de Intermediário para pessoas colectivas" (fls. 494) onde se menciona, além do mais, «Y..., aqui representada pelo Sr. C... P..., abaixo signatário com poderes para o acto» e «[n]a qualidade de representante da empresa, subscrevo a presente declaração de boa-fé e confirmo a autenticidade da mesma», juntamente com a qual foi apresentada cópia do passaporte do arguido C... P.... 12. O processo de registo aludido no ponto anterior não foi finalizado, pelo que a Y... nunca teve, junto da FPF, registo como intermediária. 13. O Demandante, além da Y..., é sócio, no Brasil, da Teo Sports Assessoria e Consultoria Esportiva LTDA, inscrita no CNPJ (Cadastro Nacional da PessoaJurídica) sob o n.Q 04.236.308/001-91, cadastrada na CBF (Confederação Brasileira de Futebol) desde 08/05/2018, com sede na Cidade de São Paulo/SP — Brasil, e que tem como ramo de atividade o agenciamento de profissionais para atividades esportivas, culturais e artísticas. 14. Em 25 de junho de 2019, a Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD (de ora em diante também identificada como FC Porto, SAD) celebrou, por documento escrito outorgado na cidade do Porto, em Portugal, com a VK Teo, entidade com sede em 1…-00.., Tokio-…, Japão, representada pelo Demandante, contrato de intermediação desportiva, com vista à prestação, pela segunda, de serviços de intermediação na negociação da transferência internacional do Jogador S.. N... do Al Duhail Sports Club, clube para a FC Porto, SAD. 15. Nos termos do contrato aludido no ponto anterior, a contrapartida acordada, no valor de € 600.000,00, a pagar antes ou até 10 de outubro de 2020, seria devida «caso o CLUBE, 0 AL DUHAIL SPORTS CLUB e 0 JOGADOR venham a celebrar um Contrato e Transferência, bem como celebrar/assinar todos os documentos adicionais por forma a que o JOGADOR se possa ver inscrito por parte do CLUBE» (a cláusula 2.1.), competindo à Y...: «a) Aconselhar o CLUBE na estratégia negocial com 0 AL DUHAIL SPORTS CLUB; b) Actuar como intermediário do CLUBE comunicando ao Al DUHAIL SPORTS CLUB os termos contratuais propostos pelo CLUBE ao AL DUHAIL SPORTS CLUB; c) Convencer o AL DUHAIL SPORTS CLUB a aceitar os termos propostos pelo CLUBE». 16. A assinatura aposta, pelo representante da entidade Y..., no contrato aludido no ponto 14) é semelhante à apresentada no Passaporte YC9 18692, de que é detentor o Demandante. 17. Em 1 de julho de 2019, o jogador S.. N... firmou com a Futebol Clube do Porto, SAD, contrato de trabalho desportivo com termo inicial no próprio dia 01 de julho, e termo final em 30 de junho de 2024. 18. A outorga do contrato de trabalho desportivo referido no ponto anterior ocorreu no âmbito da transferência internacional do referido jogador do Al Duhail Sports Club para a Futebol do Porto, SAD, que foi objeto de acordo reduzido a escrito, outorgado no dia 1 de julho de 2019, entre o Aí-Duhail Sports Club, a Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD e o jogador S.. N..., em cuja cláusula 8) é referido que «a FC Porto declara que o Intermediário Y... participou em representação da FC Porto nas negociações do presente acordo», ou seja, no original, em inglês, «FC Porto declares that the Intermediary IKTEO has participated in the interest of FC Porto in the negotiations of this Agreement» . 19. Consta na cláusula JJ do Contrato de Trabalho Desportivo referido no ponto 17), convencionado entre o Jogador S.. N... e a Futebol Clube do Porto, SAD, que ‘o presente contrato 29) No registo do contrato de trabalho desportivo firmado entre o jogador S.. N... e a Futebol Clube do Porto, SAD, junto da FIFA, no campo que se destina a prestação de informação se houve a atuação de intermediário, a FC Porto, SAD fez contar ter sido representada, no contrato referido no ponto 16) dos factos provados deste libelo, pela Y.... 20. O Demandante interveio como intermediário, enquanto representante da Y..., na negociação da transferência acima mencionada e do subsequente contrato de trabalho desportivo celebrado entre o jogador S.. N... e a FC Porto, SAD. 21. O Demandante tornou pública, na rede social ‘Instagram’, a sua intervenção na intermediação da transferência internacional do jogador S.. N..., vindo do Al Duhail Sports Club, clube do Catar, para a FC Porto, SAD. 22. O Demandante sabia, não podendo ignorar, que não podia exercer a atividade de intermediário desportivo sem registo na FPF, ato obrigatório para que pudesse exercer regulamente a referida profissão. 23. Ao atuar nos termos acima descritos, o Demandante agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender a lei e os regulamentos, resultado que representou, e, bem sabendo ainda que o seu comportamento era proibido e sancionado pela lei e pelos regulamentos (e, nessa medida, conhecendo a ilicitude do seu comportamento), consubstanciando conduta prevista e sancionada pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo, não se absteve de o realizar. * II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO Conforme supra enunciado, as questões a decidir cingem-se a saber se: - é de aplicar ao caso dos autos a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto; - é nula a decisão recorrida por omissão de pronúncia, quanto à matéria relativa a uma carta anónima e à caducidade do procedimento disciplinar, e por falta absoluta de fundamentação; - é nulo o despacho de 02/08/2022, por ilegal alteração substancial dos factos; - é nulo o processado pela ilegal distribuição do processo disciplinar; - se ocorre incompetência da Secção Não Profissional; - se ocorre violação do princípio da legalidade, dos artigos 29.º, n.º 1, e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, 7.º, n.º 1, e 10.º, n.os 1 e 2, e 11.º do RDFPF 2019/2020, 1.º, n.º 1, 2.º, n.º 1, e 3.º do Código Penal; - se ocorre erro de prova quanto aos pontos 11, 12, 13, 14, 16, 20, 21 e 23 do elenco dos factos provados; - se ocorre omissão dos elementos integrantes da consciência da ilicitude e de elementos do tipo subjetivo de ilícito; - se ocorre falta de um pressuposto procedimental por o recorrente não ser agente desportivo; - se ocorre violação do princípio in dubio pro reo. a) da aplicação ao caso dos autos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, cf. o respetivo artigo 1.º. De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 2, al. b), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, consideram-se abrangidas pelo previsto neste diploma as “sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”. E nos termos do artigo 6.º deste diploma legal, “[s]ão amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”. Consta do artigo 20.º do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que as sanções disciplinares aplicáveis aos agentes desportivos, pela prática de infração disciplinar, são as seguintes: - Repreensão; - Multa; - Reparação; - Suspensão por período de tempo ou por número de jogos; - Impossibilidade de registo. Conforme constitui jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, a amnistia, bem como o perdão, devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliações nem restrições; e na determinação do sentido dos mesmos diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa (cf., vg, o acórdão de 25/10/2001, proc. n.º 00P3209, disponível em www.dgsi.pt). Seguindo tal entendimento e aplicando a amnistia nos precisos limites do diploma que a concede, sem ampliações nem restrições, afigura-se não ser de amnistiar a pena de impossibilidade de registo, uma vez que apenas se encontram abrangidas as infrações disciplinares cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão, ou seja, qualquer uma de entre as quatro primeiras penas elencadas no supra citado normativo. Atento o exposto, não tem aplicação ao caso dos autos a amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto. b) da nulidade da decisão por omissão de pronúncia Sustenta a recorrente que o Tribunal a quo não apreciou questões por si suscitadas, incorrendo assim na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC. De acordo com este preceito, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Posto que, conforme decorre do artigo 95.º, n.º 1, do CPTA, a sentença deve decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. A invocada omissão de pronúncia verifica-se perante ausência de posição expressa ou de decisão expressa do tribunal sobre as matérias que os sujeitos processuais interessados submeteram à apreciação do tribunal em sede de pedido, causa de pedir e exceções, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, bem como sobre as que sejam de conhecimento oficioso, mas não perante a ausência de resposta concreta aos argumentos convocados pelas partes em defesa dos seus pontos de vista (cf. acórdãos do STA de 06/02/2019, proc. n.º 0249/09.0BEVIS 01161/16, e de 19/05/2016, proc. n.º 01657/12, e do TCAS de 10/01/2019, proc. n.º 113/18.2BCLSB, de 22/11/2018, proc. n.º 942/14.6BELLE, e de 16/12/2015, proc. n.º 04899/09, todos disponíveis em www.dgsi.pt). Tal nulidade não procede. A decisão recorrida analisou e tomou posição expressa sobre a questão da caducidade do procedimento disciplinar, fls. 40/43, assim como sobre a questão da violação da lei por junção de carta anónima aos autos, fls. 44/46. Como tal, improcede o invocado. c) da nulidade da decisão por falta de fundamentação Defende a recorrente que a decisão recorrida é nula, por falta de especificação dos fundamentos que justificam a decisão, conforme decorre do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC. O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154.º do CPC, no qual se estatui que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, n.º 1, e que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade. Os casos de ocorrência da apontada nulidade são necessariamente raros, pois é consensual entre a doutrina e a jurisprudência que a nulidade da sentença por falta de fundamentação apenas se verifica perante a falta absoluta ou total ininteligibilidade dos fundamentos de facto e de direito ali vertidos e não perante a fundamentação meramente deficiente. Nas palavras de Alberto dos Reis, “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto” (Código de Processo Civil Anotado, V Volume, 2012, p. 140). Ou seja, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito” (Antunes Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, 1985, p. 672). Ora, como se pode de ver na motivação da decisão arbitral, não há falta absoluta de fundamentação, assentando a decisão na ponderação dos elementos de prova ali profusamente enunciados e na sua subsunção ao regime jurídico aplicável. Como tal, apenas poderá estar em causa um eventual erro de julgamento e não a nulidade da decisão. Não se verifica, pois, a nulidade da decisão prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC. d) da nulidade do despacho de 02/08/2022, por ilegal alteração substancial dos factos Consta do referido despacho o seguinte: “Após produção da prova requerida pelo arguido C... P..., em sede de defesa escrita, foram os autos conclusos nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 243.º do RDFPF. Nesse contexto, analisada toda a prova produzida nos autos, em particular a documental, constata-se que a mesma indicia materialidade que não se encontra concretizada na acusação, a saber: 1) No contrato a que se refere o artigo 18.º da acusação, que foi outorgado no dia 25 de junho de 2019, na cidade do Porto, estabeleceu-se, na cláusula 2.1., que a contrapartida acordada, no valor de € 600.000,00, a pagar antes ou até 10 de outubro de 2020, seria devida «caso o CLUBE, o AL DUHAIL SPORTS CLUB e o JOGADOR venham a celebrar um Contrato e Transferência, bem como celebrar/assinar todos os documentos adicionais por forma a que o JOGADOR se possa ver inscrito por parte do CLUBE» (cf. documento de fls. 418 a 420). 2) A transferência internacional aludida no artigo 21.Q da acusação foi objeto de acordo reduzido a escrito, outorgado no dial de julho de 2019, entre o AI-Duhail SportsClub, a Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD e o jogador S.. N..., em cuja cláusula 8) é referido que «a FC Porto declara que o Intermediário Y... participou em representação da FC Porto nas negociações do presente acordo», ou seja, no original, em inglês, «FC Porto declares that the Intermediary IK TEO has participated in the interest of FC Porto in the negotiations of this Agreement» (cf. documento de fls. 423 a 426). 3) No âmbito do pedido de inscrição referido no artigo 25.2 da acusação, foi apresentada, entre outros documentos, uma "Declaração de Intermediário para pessoas colectivas" (fls. 494) onde se menciona, além do mais, «Y..., aqui representada peio Sr. C... P..., abaixo signatário com poderes para o acto» e «[n]a qualidade de representante da empresa, subscrevo a presente declaração de boa-fé e confirmo a autenticidade da mesma», juntamente com a qual foi apresentada cópia do passaporte do arguido C... P... (fls. 485). Tal materialidade, resultante do acervo probatório junto aos autos, consubstancia alteração não substancial dos factos, que, à luz do que dispõe o art.- 243.º n.º 4 do RDFPF, se impõe comunicar aos arguidos. Nessa medida, determino, ao abrigo da disposição citada, a notificação aos arguidos C... P... e Theodoros Ryuki Kamekura Panagopoulos, e ao seu Ilustre Mandatário, da referida alteração não substancial dos factos, para, querendo, se pronunciarem sobre a referida alteração no prazo de 5 dias e, além disso, requererem, se assim o pretenderem, prova complementar. Ademais, analisada a materialidade constante do libelo acusatório, constata-se que, independentemente da solução jurídica que ao caso venha a caber, os factos descritos no despacho de acusação são, em abstrato, suscetíveis de integrar a infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n.º 1, do RDFPF (Usurpação e burla), que sanciona com «impossibilidade de registo entre 1 e 3 épocas desportivas e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC», «[qjuem exerça de facto a atividade de intermediário, estando impedido nos termos do Regulamento de Intermediários da FPF», por referência ao disposto nos artigos 36.º, n.º 1 e 37.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2017, de 14 de julho e, também, no artigo 6.º do Regulamento de Intermediários da FPF(1). Nestes termos, para melhor disciplina processual, considerando o disposto no art.º 243.º, n.º 4 do RDFPF, decide-se proceder, desde já, à correspondente alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação em conformidade com aludido supra, de que os arguidos C... P... e Theodoros Ryuki Kamekura Panagopoulos, e o seu Ilustre Mandatário devem, por economia processual, ser igualmente notificados para, querendo, nos mesmos 5 dias, se pronunciarem.” Assentando no que consta do artigo 1.º, al. f), do Código de Processo Penal, o artigo 4º, al. e), do RDFPF, define alteração substancial dos factos como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de uma infração diversa ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.” No caso vertente, o ora recorrente foi acusado da prática de uma infração disciplinar muito grave prevista e punida pelo artigo 127.º-B, exercício indevido de atividade, no qual se prevê que o dirigente de clube que exerça atividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, é sancionado com suspensão entre 6 meses a 2 anos e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC. No aludido despacho considerou-se que os factos apurados antes seriam suscetíveis de integrar a infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n.º 1, do RDFPF, usurpação e burla, aí se prevendo que quem exerça de facto a atividade de intermediário, estando impedido nos termos do Regulamento de Intermediários da FPF, é sancionado com impossibilidade de registo entre 1 e 3 épocas desportivas e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC. Invoca o recorrente estar em causa uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, ao passo que na decisão recorrida, se entendeu que ocorreu uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação. Tais ocorrências têm evidentemente diferente tratamento no Código de Processo Penal, que prevê o seguinte: “Artigo 358.º Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. Artigo 359.º Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância. 2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo. 3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal. 4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.” Quanto à aplicação deste princípio da vinculação temática no âmbito do direito disciplinar, passamos a citar, pela sua exaustividade, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/2021, proc. n.º 15/20.2YFLSB, que seguimos na íntegra: “[A]s garantias constitucionais previstas para o processo criminal (nomeadamente as previstas nos restantes números do artigo 32.º) não deverão ser aplicadas tout court e qua tale a qualquer processo sancionatório. Até porque o diferente impacto produzido por uma sanção penal não justificaria essa equiparação legal absoluta, como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, de 28-11-2006, proferido no processo n.º 637/06. Todavia, nem a doutrina nem a jurisprudência constitucional põem em causa que a generalidade dos princípios que norteiam o Direito Penal nunca fica totalmente alheia à abertura de procedimentos punitivos e à aplicação das respetivas sanções. Em todo o caso, “[…] tendo em mente a identidade da redação adotada para o n.º 10 do artigo 32.º e para o n.º 3 do artigo 269.º, tal implica que o amplíssimo repositório de jurisprudência constitucional emitida a propósito da generalidade dos processos sancionatórios pode ser aplicado em benefício do regime da função pública. Dito de outro modo, […] o intérprete pode lançar mão do rico manancial de coordenadas formuladas no âmbito da aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição sempre que a jurisprudência se revelar lacunosa no tratamento específico dos trabalhadores em funções públicas” (Fernández Sánchez, op. cit., pp. 9 e 10). Veja-se o que a este respeito se consignou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 62/2016, de 03-02-2016 (processo n.º 457/2015): “A garantia de audiência e defesa do arguido decorre, para os trabalhadores da Administração Pública, como um elemento central do estatuto da função pública, do disposto no artigo 269.º, n.º 3, da Constituição, mas que a revisão constitucional de 1989 tornou extensiva aos processos de contraordenação e aos demais processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). No entanto, da garantia de audiência e defesa não é possível retirar uma extensão ao processo disciplinar da generalidade do regime substantivo em matéria penal. O preceito constitucional apenas releva no plano adjectivo e significa que é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 180/14). Tem-se admitido, em todo o caso, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os previstos nos artigos 29.º e 32.º da CRP, apesar de se restringirem no seu teor literal ao direito criminal, devam valer, no essencial, e por analogia, para todos os domínios sancionatórios: o princípio da legalidade das penas, o princípio da não retroactividade e o princípio da lei mais favorável ao arguido e o princípio da culpa (acórdãos do TC n.ºs 161/95, 227/92, 574/95 e 160/2004). A jurisprudência constitucional tem igualmente admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção de inocência do arguido, como decorrência do direito a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio “in dubio pro reo”, pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infracção, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzam numa antecipação da condenação (assim, o acórdão do TC n.º 123/92, que julgou inconstitucional a norma que determina, na sequência da prolação do despacho de pronúncia, e durante a suspensão do exercício de funções da mesma decorrente, a perda da totalidade do vencimento”). Daí que sejam princípios de direito disciplinar exercido na relação jurídica de emprego público, entre outros, os princípios da legalidade sancionatória, da culpa, do respeito pelos direitos de audiência, defesa e contraditório, do respeito pelos direitos fundamentais, da proporcionalidade das sanções, o princípio ne bis in idem e o princípio da presunção de inocência do trabalhador. Encontramo-nos, nos casos apontados, perante manifestações ou concretizações do direito de defesa, consagrado nos n.os 1, 2 e 3 do artigo 32.º da Constituição para o processo criminal, mas extensível ao processo disciplinar, não só por determinação constitucional expressa (artigo 269.º, n.º 3, do mesmo diploma), mas também porque o direito de audiência e defesa integra o cerne do princípio do Estado de direito democrático, sendo, por isso, inerente a todos os processos sancionatórios. Simultaneamente, a alusão à garantia de audiência e defesa em processo disciplinar não significa que a isso se reduzam os direitos dos arguidos nesse tipo de processos. Pelo contrário: o processo disciplinar deve configurar-se como um processo justo, aplicando-se-lhe, na medida do possível, as regras ou princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, nomeadamente, as garantias de legalidade, o direito à assistência de defensor, o princípio do contraditório e o direito de consulta do processo (João Castro Neves, op. cit., pp. 7 e passim). Neste conspecto, a própria doutrina penalista vem de há muito ensinando que, “[…] na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem […] em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo […]” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Coimbra, Almedina, 1971, p. 37). Ou, noutra formulação, “as sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas crimes; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou, […] aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua actuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho atual ou futuro […] no que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respetivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum […]» (José Beleza Dos Santos, Ensaio sobre a Introdução ao Direito Criminal, Lisboa, Atlântida Editora, 1968, pp.113 e 116). Tendo por pano de fundo a Doutrina supra exposta e na medida em que o poder disciplinar tem a sua razão de ser nos próprios fins públicos do direito sancionatório, que pode atingir uma extrema severidade de moldura sancionatória abstrata, facilmente se percebe que tenham de ser observados os mesmos princípios garantísticos de defesa do arguido que presidem ao direito penal. Desde logo, é nesta sede aplicável o princípio da vinculação temática, consagrado no artigo 359.º, n.º 1, do vigente Código de Processo Penal (doravante CPP), segundo o qual a “alteração substancial dos factos descritos na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso”. Ou seja, proíbe-se a alteração substancial dos factos da acusação, conceito que o artigo 1.°, n.° 1, alínea f), do CPP define como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. Esclareça-se ainda, a este propósito, que a solução do artigo 359.º do vigente CPP se afasta do estatuído no artigo 447.° do CPP/1929, pois que hoje, à luz do direito processual penal, “também a diversa qualificação pode significar a alteração substancial dos factos, ainda que naturalisticamente considerados sejam os mesmos” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, Noções Gerais, Elementos do Processo Penal, Lisboa, Verbo, 2010, p. 359). Assim, por imperativo do artigo 32.º, nºs 1 e 2, da CRP cumpre observar, não só as garantias de defesa do arguido e a estrutura acusatória do processo, como também o princípio do contraditório do arguido, de modo a evitar que, pese embora no contexto dos mesmos factos naturalísticos da acusação, venha a ser surpreendido por juízos jurídicos de desvalor de acção e resultado distintos, que originem uma condenação por crime diferente ou por sanção concreta distinta por reporte à sanção abstrata cominada na lei. A própria doutrina administrativa, ponderando a ratio punitiva subjacente à perseguição disciplinar e cotejando-a com a natureza, que lhe reconhece próxima, da perseguição criminal, não deixou, desde cedo, de fazer notar que “[a] redação dos artigos da acusação corresponde ao acto mais delicado do processo disciplinar, visto que neles se fixa a matéria de facto sobre a qual, daí por diante, versará a discussão processual e que pode servir de base à decisão final. Factos não articulados não poderão ser mais ser invocados contra o arguido ou fundamentar a sua condenação. E têm-se por não articulados os factos apenas insinuados ou obscura, vaga ou confusamente apresentados” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, 10.ª edição, 2013, Almedina, pp. 845 e 846). É a acusação, pois, que determina, com efeitos preclusivos, os limites da perseguição disciplinar que se há-de determinar ao arguido – sejam esses limites em termos de moldura sancionatória, seja mesmo em termos de «factologia» imputada ao arguido. Trata-se aqui do denominado princípio da vinculação temática, que passou a estar consagrado normativamente nos diplomas que se seguiram ao Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, sendo hodiernamente estabelecido de forma expressa que “na decisão não podem ser invocados factos não constantes da acusação nem referidos na resposta do arguido, excepto quando excluam, dirimam ou atenuem a sua responsabilidade disciplinar” (vide artigo 220.º, n.º 5, da LGTFP). Veiga e Moura e Cátia Arrimar, op. cit, p. 624, esclarecem, a propósito desta solução normativa, que “o n.º 5 reforça a importância da maneira como se formula a acusação, pois qualquer facto que não conste da acusação não pode nunca ser tido em consideração, exceto se resultar da matéria de facto alegada na defesa do arguido ou for um facto que afaste ou diminua a sua responsabilidade. // Trata-se de uma concretização dos princípios do dispositivo e da aquisição da prova, excecionando-se apenas os factos que comprovem a ausência de responsabilidade, os quais poderão ser tidos em consideração desde que constem do processo, independentemente da sua alegação em sede de acusação ou defesa”. Mais assertivamente: “não podem dar-se como provados factos que não constem da acusação, sob pena de nulidade. A excepção reconduz-se aos factos que beneficiam a posição jurídica do arguido, designadamente circunstâncias dirimentes ou atenuantes» (Raquel Carvalho, op. cit., pág. 156). É na acusação, portanto, que se delimita o thema decidendum ou o objecto da(s) imputação/ões feita(s) ao trabalhador arguido. E, se “nada obsta a que na pendência de um procedimento disciplinar, o objecto da investigação se alargue a outras infrações entretanto também participadas” ou conhecidas (Carlos Alberto Fernandes Cadilha, «Direito Disciplinar da Função Pública. Alguns tópicos», texto policopiado para apoio à preleção ocorrida a 09-05-2003 aos auditores de justiça do curso de formação de juízes dos tribunais administrativos e fiscais), sempre se exigirá, em contrapartida, que o ajustamento de novas infrações posteriores ao despacho acusatório, bem como a introdução de alterações significativas ao mesmo, implique a reelaboração da acusação e a concessão de novo período de defesa ao trabalhador. Na verdade, se a acusação é a “pedra de toque da defesa do trabalhador, o pilar do contraditório [ou] o momento do confronto do trabalhador com a juridicidade da infracção e com as consequências que legalmente estão previstas […]”, então o arguido “[…] não pode ser sancionado senão pelos factos constantes da acusação […]” (Ana Fernanda Neves, O Direito…, vol. II, cit., pág. 391). “a defesa à acusação é a defesa contra “o todo juridicamente possível”, no concreto. A fixação dos factos e a apreciação de direito no relatório/decisão final, ao dever conter-se necessariamente nos limites daquela, nada “furta” à pronúncia do arguido” (idem, ibidem, pág. 392). Daí que a acusação tenha de elencar com previsão tanto os factos como a qualificação jurídica pertinente, não podendo ser ocultado ao trabalhador o valor jurídico dos factos e da decisão projectada com base neles. Daí também que o recorte punitivo, factual e de qualificação jurídica da decisão projectada deva constar da acusação. Ainda a este propósito, mais ensina a doutrina da especialidade que “a alteração dos factos que não os coloque fora do recorte infracional levado à acusação (infracção e sanção aplicável, incluindo, portanto, os elementos de determinação da sanção concretamente a aplicar, como, por exemplo, uma circunstância agravante) — “inalterabilidade ou identidade dos factos imputados” — e a alteração de qualificação jurídica para um patamar inferior de gravidade, de modo a que se possa dizer com segurança que não propicia acrescento defensivo não passível de ser aduzido em face da anterior acusação, não justifica a apresentação de nova acusação (sem prejuízo da eventual pertinência de nova audição). Uma alteração substancial da acusação (v.g., consideração de factos novos, redefinição mais gravosa dos factos, consideração de circunstâncias agravantes, modificação que agrave a qualificação jurídica) subsequente à respetiva notificação importa notificação de nova acusação e a reabertura ou reajustamento do período de defesa» (idem, ibidem, pág. 393). Concluindo: em homenagem ao princípio da vinculação temática, a decisão sancionatória não pode conter, por adicionamento, matéria de facto que não se mostre descrita na acusação, uma vez que, nesta fase do procedimento disciplinar, ou seja, após dedução da acusação, o facto juridicamente relevante é o facto materialmente ilícito e culposo e não o facto naturalístico. Por esse motivo, constitui elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, sendo estes que constituem o objeto do processo disciplinar e por sua vez, serão objeto de apreciação e decisão pela entidade competente para o exercício da função disciplinar. De tal sorte que a decisão sancionatória há de incidir apenas sobre a matéria da acusação, sendo sancionado com nulidade insuprível o despacho disciplinar que aplique uma pena por factos substancialmente diversos ou com qualificação jurídica diversa dos descritos na peça acusatória, por falta de audiência do arguido no exercício do contraditório, correlativo do princípio constitucional estatuído no artigo 269.°, n.° 3, da CRP, pelo que o procedimento disciplinar em tramitação da acusação, para o relatório final e para o despacho decisório tem, naturalmente, de seguir o estipulado no regime remissivo do CPP. O aludido princípio da vinculação temática, oriundo do direito processual penal, tem sido, de resto, abordado e aplicado em sede de apreciação jurisdicional do exercício da perseguição disciplinar por autoridades administrativas. Sem preocupações de exaustividade, aqui se deixam enunciadas algumas decisões que, ao longo dos anos, foram sendo proferidas pelos tribunais superiores da jurisdição administrativa a este respeito: — Acórdão do STA de 07-12-1989, in Apêndice ao Diário da República, 2.ª série, de 30-12-1994, pág. 7114: “Verifica-se a nulidade do processo disciplinar, por falta de audiência do arguido, quando no relatório final do instrutor, que antecedeu a decisão punitiva, foi introduzido, como agravante, um facto que não constava da acusação”; — Acórdão do STA de 08-03-1990, in Apêndice ao Diário da República, 2.ª série, de 12-01-1995, pág. 1895: “Constitui nulidade insuprível prevista no artigo 42.º do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, e viola o artigo 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que garante ao arguido o direito à audiência e defesa, o acto punitivo que se fundamenta em factos, integrantes de infracção disciplinar, que não se contêm na nota de culpa nem foram objeto de acusação complementar”; — Acórdão do STA de 13-10-1992, processo n.º 029875, cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta: “I - A qualificação jurídica da falta constante da nota de culpa não vincula a entidade que detém o poder de punir. II - Deve, porém, ser ouvido o arguido sobre a nova qualificação da falta que lhe é imputada, sem o que são violados os seus direitos de audiência e defesa. III - Tal violação gera a nulidade insuprível do processo disciplinar”; — Acórdão do STA de 12-04-1994, processo n.º 032236, cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta: “Encontra-se assegurado o direito de audiência e defesa se o arguido teve o ensejo de exercitar a sua defesa, de modo eficaz e organizado, e a coberto de qualquer surpresa; e isto mormente se não foram tomados em consideração no acto punitivo factos novos não incluídos na nota de culpa, nem deveres jurídicos supostamente infringidos não expressamente contemplados na acusação nem um enquadramento jurídico disciplinar dos factos indiciados em moldura sancionatória mais gravosa do que a que constava na peça acusatória”; — Acórdão do STA de 19-01-1995, processo n.º 031496, , cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta: “Embora a qualificação da falta constante da nota de culpa não vincule a entidade que detém o poder de punir, deve, também, ser ouvido o arguido sobre a nova qualificação da falta, sem o que são violados os seus direitos da audiência e defesa”; — Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) de 12-05-2005, processo n.º 011503/02, integralmente disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtca, cujo sumário é o seguinte: “1. Na medida em que o poder disciplinar tem a sua razão de ser nos próprios fins públicos do direito sancionatório, é evidente que têm de ser observados os mesmos princípios garantísticos de defesa do Arguido que presidem ao direito penal. 2. Desde logo o princípio da vinculação temática, art.º 359.º n.º 1 do Código de Processo Penal vigente, isto é, a “alteração substancial dos factos descritos na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal [no pr. disciplinar pela Administração Pública] para o efeito de condenação no processo em curso”. 3. Ou seja, proíbe-se a alteração substancial dos factos da acusação, conceito que o art.º 1.º n.º 1 alínea f) do CPP define como “aquela que tiver por efeito a imputação ao Arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” sendo que também a diversa qualificação pode significar a alteração substancial dos factos, ainda que naturalísticamente considerados sejam os mesmos. 4. Constitui elemento essencial da Acusação e, por arrastamento, do Relatório Final, a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, sendo estes que constituem o objeto do processo disciplinar daí em diante, no tocante ao desenvolvimento da instância procedimental e que, por sua vez, serão objeto de apreciação e decisão pela entidade competente para o exercício da função disciplinar. 5. O despacho sancionatório há de incidir apenas sobre a matéria da Acusação, sendo sancionada por nulidade insuprível a decisão disciplinar que aplique uma pena por factos substancialmente diversos dos descritos na peça acusatória, por falta de audiência do Arguido no exercício do contraditório, correlativo do princípio constitucional estatuído no art.º 269.º n.º 3 CRP - vd. Art.º 42.º n.º 1 ED”; — Acórdão do mesmo TCAS de 02-10-2008, processo n.º 03645/08, integralmente acessível em http://www.dgsi.pt/jtca, de cujo sumário consta, além do mais, o seguinte: “3. Em homenagem ao princípio da vinculação temática e face ao disposto nos art.°s. 59.° n.° 4 (acusação), 65.° n.° l (relatório final) e 66.° n.° 4 (decisão) todos do DL 24/84, 16.01, ED, a decisão sancionatória não pode conter por adicionamento matéria de facto que não se mostre descrita nos despachos de acusação e relatório final, uma vez que, nesta fase do procedimento disciplinar, ou seja, pós dedução da acusação, o facto juridicamente relevante é o facto materialmente ilícito e culposo e não o facto naturalístico”; — Acórdão do STA de 30-10-2014, processo n.º 01169/13, integralmente disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jsta, no qual se deixou consignado em sede de fundamentação fáctico-jurídica, além do mais, o seguinte: (ii) Necessidade de nova acusação por ter havido alteração da qualificação jurídica. A questão não fica totalmente resolvida, uma vez que o autor considera ter havido uma alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação. Esta questão, embora conexionada com a anterior é diferente, na medida em que agora o que vamos averiguar é se os factos da acusação (que podem ser atendidos após expurgado o vício gerador de nulidade do acto anterior) subsistem com a qualificação jurídica original, ou se houve (como alega o autor) alteração dessa qualificação jurídica. Vejamos este ponto. Na acusação do processo disciplinar 2/2010 relativamente aos factos 1 a 19 (relativos à avocação de um processo) o art. 19.º tinha a seguinte imputação: “19. Com estes factos, documentados no anexo B, infringiu o magistrado arguido, de forma muito grave, o dever geral de imparcialidade que se encontra previsto na alínea c), do n.º 2, do artigo 3.º da Lei n.º 58/2008, de 29 de setembro.”. No Acórdão da Secção Disciplinar que deu execução ao acórdão anulatório, os mesmos factos sofreram alguma modificação, tendo o art. 15.º a seguinte redação: “15. Ao actuar deste modo, consciente, voluntário e persistente, infringiu o dever geral de lealdade, previsto na al. g) do n.º 2, do art. 3.º do Estatuto disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas (ED), aprovado pela Lei 58/2008, de 9 de Setembro, aplicável “ex vi” artigo 216.º do Estatuto do Ministério Público, na redacção introduzida pela lei n.º 60/98, de 27 de Agosto.” Decorre do exposto que foi alterada a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido. Na acusação fora-lhe imputado a violação do dever geral de imparcialidade e foi punido nesse enquadramento jurídico. Após a declaração de nulidade da respetiva punição, por violação do princípio “ne bis in idem”, a entidade detentora do poder disciplinar poderia reformular a decisão é certo, suprimindo o vício reconhecido na decisão do STA, mantendo válido todo o procedimento disciplinar. Mas teria que respeitar as regras deste procedimento que impõem que o arguido seja notificado dos factos da acusação e da qualificação jurídica de tais factos. O art. 204.º do EMP considera “nulidade insuprível a falta de audiência do arguido com possibilidade de defesa…” O art. 197.º, 2 do EMP diz-nos que “Concluída a instrução e junto o registo disciplinar do arguido, o instrutor deduz acusação no prazo de dez dias, articulando discriminadamente os factos constitutivos da infração disciplinar e os que integram circunstâncias agravantes ou atenuantes que repute indicados, indicando os preceitos legais no caso aplicáveis”. Existirá, portanto, falta de audiência do arguido, sempre que este venha a ser punido por factos ou preceitos legais não indicados na acusação. Falta essa que, nos termos do art. 204.º do EMP é geradora de nulidade insuprível. Nulidade insuprível do procedimento, que, por seu turno e nos termos do art. 134.º do CPA fere o ato punitivo de anulabilidade. No presente caso verifica-se que o arguido veio a ser punido com fundamento em normas legais não indicadas na acusação como qualificando a sua conduta descrita nos artigos 1 a 15 dos factos dados como provados, mais concretamente as normas que se reportam ao dever de lealdade previsto na al. g) do n.º 2 do art. 3.º da Lei 58/2008, de 9 de setembro. Relativamente aos mesmos factos o arguido fora notificado, sim, no âmbito do processo disciplinar 2/2010, com a indicação de que os mesmos infringiam o dever geral de imparcialidade previsto na al. c), do n.º 2, do art. 3.º da Lei 58/2008 de 9 de setembro. Portanto, ocorreu efectivamente a violação do art. 204.º do EMP, devidamente articulado com o art. 134.º do EMP, na justa medida em que o arguido não foi notificado de uma acusação de onde constassem as normas legais que foram aplicadas no acto punitivo. Daí que, neste ponto, o arguido tenha toda a razão, devendo em consequência proceder o alegado vício. Também a Secção de Contencioso do STJ se tem debruçado sobre esta matéria. De seguida enuncia-se o resultado de um périplo por algumas das decisões mais recentes, com sumários acessíveis em http://www.stj.pt: - Acórdão de 23-03-2016 (processo n.º 31/15.6YFLSB): “II - Fundando-se a deliberação recorrida nos factos que constavam da acusação e do relatório final, do seu conhecimento, não pode proceder a arguição de nulidade (art. 124.º, n.º 1, do EMJ) com base no argumento de que foi preterida a audição da recorrente. III - Ao CSM é lícito alterar a qualificação jurídica dos factos narrados na acusação conquanto tal não implique um gravame para a posição do arguido, devendo, se tal suceder, ser salvaguardado o seu direito de defesa”; — Acórdão de 31-03-2016 (processo n.º 8/16.4YFLSB): “O princípio da vinculação temática da decisão punitiva aos factos vertidos na acusação (art. 55.°, n.º 5, do EDTFP) constitui uma concretização, no mesmo passo, dos princípios do dispositivo e da aquisição processual e veda apenas a consideração de factos que não constem da acusação, sendo que a sua inobservância conduz a uma nulidade insuprível do procedimento disciplinar (n.º 1 do art. 37.° do EDTFP), a qual, porém, apenas acarreta a anulabilidade do ato administrativo punitivo”; — Acórdão de 27-04-2016 (processo n.º 79/15.0YFLSB): “IV - Sendo o procedimento disciplinar um procedimento administrativo especial, de natureza sancionatória, o processo de integração de hipotéticas lacunas, após recurso à analogia dentro do próprio direito processual disciplinar, fará apelo às normas e princípios do procedimento administrativo em geral - cfr o art. 2.º do CPA. Só, em seguida, se recorrerá às normas e princípios do direito processual penal que é de todos os regimes jurídico processuais, aquele que revela maior apuramento nas garantias de defesa. O CPP não será, assim, aplicável de forma automática. V - A decisão, em procedimento disciplinar, não é uma sentença (cfr art. 55.º do EDTEFP) — o que se exige é que aquela decisão seja fundamentada quando não concordante com a proposta formulada no relatório final do instrutor, não podendo ser invocados factos não constantes da acusação nem referidos na resposta do arguido, excepto quando excluam, dirimam ou atenuem a sua responsabilidade disciplinar”; — Acórdão de 26-11-2016 (processo n.º 11/16.4YFLSB): “A inobservância do princípio da vinculação temática da decisão punitiva aos factos vertidos na acusação (constante do n.º 5 do art. 55.º do EDTFP e do n.º 5 do art. 220.º da LGTFP) tem como consequência a nulidade insuprível do procedimento disciplinar, a qual, porém, apenas acarreta a anulabilidade do ato administrativo punitivo por incursão em vício de violação de lei”; — Acórdão de 04-05-2017 (processo n.º 72/16.6YFLSB): “III - A inobservância do princípio da vinculação temática da decisão punitiva aos factos da acusação (n.º 5 do art. 220.º da LGTFP) tem como consequência a nulidade insuprível do procedimento disciplinar, o que conduz à anulabilidade da primeira. IV - Posto que os factos delimitadores e fundadores da responsabilidade disciplinar constavam já do elenco vertido na acusação (ainda que enquadrados na infração a outros deveres funcionais) de que o recorrente foi oportunamente notificado e sobre os quais teve oportunidade de se pronunciar, não se divisa que haja sido infringido o mencionado princípio ou preterido o direito de audiência prévia, sancionado nos termos n.º 1 do art. 124.º do EMJ. V -Desde que se mantenha inalterada a base factual, ao recorrido é lícito alterar a qualificação jurídica dos factos narrados na acusação, conquanto tal alteração não represente um agravamento da posição do arguido relativamente ao proposto pelo instrutor. O dever de comunicar a alteração da qualificação jurídica (cuja omissão constitui mera irregularidade) só deve ser cumprido quando se perspetive uma moldura sancionatória mais gravosa do que aquela relativamente à qual o arguido teve a possibilidade de exercer o seu direito de defesa. VI - Revelando-se a alteração da qualificação jurídica inócua do ponto de vista das garantias de defesa do arguido, a falta da prévia comunicação ao recorrente não constitui motivo para invalidar a deliberação recorrida”; — Acórdão de 28-02-2018 (processo n.º 30/17.3YFLSB): “Contendo o relatório final factos novos e considerações com os quais a recorrente não foi confrontada e tendo aí sido sustentado que a valoração da factualidade integrava o conceito a que a alude a al. c) do n.º 1 do art. 95.º do EMJ e não aquele a que se reporta a al. a) do mesmo preceito, é de concluir pela violação grave dos princípios da audiência e do contraditório, o que, nos termos do n.º 1 do art. 124.º do EMJ, acarreta a nulidade da deliberação impugnada”; — Acórdão de 28-02-2018 (processo n.º 75/17.3YFLSB): “III - A acusação (art. 117.º do EMJ) deve conter todos os factos imputados ao arguido, não devendo o relatório a que se refere o art. 122.º do EMJ conter factos novos sobre os quais não foi possível ao arguido defender-se. IV - No relatório final e sempre que tal redunde num prejuízo para a defesa do arguido, não se pode, igualmente, alterar a qualificação jurídica dos factos, já que quem prepara e orienta a defesa face a uma determinada acusação não deve ser inopinadamente confrontada com uma outra”; — Acórdão de 30-06-2020 (processo n.º 49/19.0YFLSB), este acessível online in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:49.19.0YFLSB: “XV - São princípios de direito disciplinar no domínio da relação jurídica de emprego público, entre outros, os princípios da legalidade sancionatória, da culpa, do respeito pelos direitos de audiência, defesa e contraditório, do respeito pelos direitos fundamentais, da proporcionalidade das sanções, o princípio ne bis in idem e o princípio da presunção de inocência do trabalhador. Encontramo-nos, nos casos apontados, perante manifestações ou concretizações do direito de defesa, consagrado nos n.os 1 a 3 do art. 32.º da CRP para o processo criminal, mas extensível ao processo disciplinar, não só por determinação constitucional expressa (art. 269.º, n.º 3, do mesmo diploma), mas também porque o direito de audiência e defesa integra o cerne do princípio do Estado de direito democrático, sendo, por isso, inerente a todos os processos sancionatórios. // XVI - Desde logo, é nesta sede aplicável o princípio da vinculação temática, consagrado no art. 359.º, n.º 1, do CPP e, no que ora importa, no art. 220.º, n.º 5, da LGTFP, de acordo com o qual a acusação tenha de elencar com previsão tanto os factos como a qualificação jurídica pertinente, não podendo ser ocultado ao trabalhador o valor jurídico dos factos e da decisão projetada com base neles. Daí também que o recorte punitivo, factual e de qualificação jurídica da decisão projetada deva constar da acusação. // XVII - Por esse motivo, constitui elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, sendo estes que constituem o objeto do processo disciplinar e que, por sua vez, serão objeto de apreciação e decisão pela entidade competente para o exercício da função disciplinar. De tal forma que a decisão sancionatória há de incidir apenas sobre a matéria da acusação, sendo sancionado com nulidade insuprível o despacho disciplinar que aplique uma pena por factos substancialmente diversos ou com qualificação jurídica diversa dos descritos na peça acusatória, por falta de audiência do arguido no exercício do contraditório, correlativo do princípio constitucional estatuído no art. 269.°, n.º 3, da CRP, pelo que o procedimento disciplinar em tramitação da acusação, para o relatório final e para o despacho decisório tem, naturalmente, de seguir o estipulado no regime aplicável pela remissão para o CPP. // […] XXV - Traduzindo esta imputação uma alteração “factológica” (ao nível do tipo objetivo e subjetivo de infração disciplinar), bem como uma alteração de qualificação jurídica relevante - na exata medida em que foi essa alteração que possibilitou a aplicação de pena disciplinar (posto que, sem tal alteração, o demandante não teria sido punido) -, prefigura-se a verificação da nulidade insuprível consagrada no art. 203.º, n.º 1, ex vi art. 220.º, n.º 5, ambos da LGTFP, o que determina a anulação do ato impugnado”. Revertendo ao caso em análise. Conforme já assinalado, o ora recorrente foi acusado da prática de uma infração disciplinar muito grave prevista e sancionável no artigo 127.º-B, exercício indevido de atividade, no qual se prevê que o dirigente de clube que exerça atividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, é sancionado com suspensão entre 6 meses a 2 anos e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC. Antes de ser proferido o ato punitivo, a entidade com poder disciplinar considerou que os factos apurados antes seriam suscetíveis de integrar a infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n.º 1, do RDFPF, usurpação e burla, aí se prevendo que quem exerça de facto a atividade de intermediário, estando impedido nos termos do Regulamento de Intermediários da FPF, é sancionado com impossibilidade de registo entre 1 e 3 épocas desportivas e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC. Consta do já citado artigo 20.º do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que as sanções disciplinares aplicáveis aos agentes desportivos, pela prática de infração disciplinar, são as seguintes: - Repreensão; - Multa; - Reparação; - Suspensão por período de tempo ou por número de jogos; - Impossibilidade de registo. A técnica legislativa no âmbito do elenco das sanções disciplinares é clara e objetiva, enunciando uma gradação crescente da gravidade das penas a aplicar. Vale isto por dizer que a sanção disciplinar de impossibilidade de registo se afigura mais gravosa que a sanção disciplinar de suspensão. Ou seja, ao contrário do que sustenta a recorrida, analisando os limites máximos das sanções aplicáveis a ambos os tipos de infração, verificamos que, entre a sanção prevista no artigo 127.º-B e a prevista no artigo 186.º, afigura-se inequívoco que ocorre alteração ao limite máximo das sanções, sendo a segunda mais gravosa que a primeira. Trata-se, pois, de uma clara alteração substancial dos factos, posto que foi imputada ao arguido uma infração diversa, com a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, cf. artigo 1.º, al. f), do CPP, e artigo 4º, al. e), do RDFPF. Sem que se mostre observado o procedimento previsto no artigo 359.º do CPP, sem que se alcance a indicação em sentido contrário da recorrida, foram violadas as garantias de defesa do recorrente. E a consequência é a nulidade do ato punitivo, pois conforme estatui o artigo 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º. Cumprindo declarar a nulidade do ato punitivo e a procedência da presente questão, queda prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas. Em suma, será de conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do ato punitivo através do qual se condenou o recorrente pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 186.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol. * III. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do ato punitivo através do qual se condenou o recorrente pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 186.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol. Custas a cargo da recorrida. Lisboa, 11 de janeiro de 2024 (Pedro Nuno Figueiredo) (Carlos Araújo) (Rui Pereira) |