Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:94/23.0 BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:12/12/2023
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:LEI DA AMNISTIA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
EFEITO “EX TUNC”
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário:I- O artigo 6º da Lei da Amnistia abarca os casos de amnistia própria e de aministria imprópria que respeitem a infracções disciplinares (e disciplinares militares), nos limites dos critérios objectivos ali vertidos, ou seja, aplica-se tanto à infracção que ocorre antes da condenação,, como àquela que ocorre depois da condenação.
II- Assim, tanto faz extinguir o procedimento disciplinar, como obsta ao cumprimento da sanção disciplinar, porquanto o acto punitivo também deixa de existir.
III- Deste modo, a infracção disciplinar é “apagada”, consubstanciando uma abolição retroactiva dessa mesma infracção. A amnistia opera “ex tunc”, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada como também sobre o facto típico disciplinar passado, o que, na prática, é como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, eliminado de qualquer registo.
Votação:COM VOTO DE VENCIDO
Indicações Eventuais: Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL – SUBSECÇÃO SOCIAL


I. RELATÓRIO
1. A F..........., ...SAD, C....... e R......., todos melhor identificado nos autos, apresentaram junto do Tribunal Arbitral do Desporto (doravante TAD), contra a Federação Portuguesa de Futebol (doravante FPF/demandada), um recurso visando a impugnação do acórdão proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, em 19 de Julho de 2022, que condenou:
a) A F..........., ...SAD, pela prática de uma (1) infracção disciplinar p. e p. no artigo 186º, nºs 1, 2 e 3 do RDLPFP21, em sanção de multa de 100 UC, pela prática de três (3) infracções disciplinares p. e p. no artigo 123º do RDLPFP21, em sanção de repreensão e em sanção de multa de 22,5 UC e pela prática de uma (1) infracção disciplinar p. e p. no artigo 118º, alínea a) do RDLPFP21, por incumprimento dos deveres inscritos nas alíneas a) e j) do nº 1 do artigo 35º do RCLPFP21, em sanção de interdição do recinto desportivo de dois (2) jogos e em sanção de multa no montante de 125 UC, do que resultou, em cúmulo material, sanção de repreensão, sanção de interdição de recinto desportivo por 2 (dois) jogos e sanção de multa de 247,5 UC, a que corresponde o montante de 25.245,00 € (vinte e cinco mil duzentos e quarenta e cinco euros;
b) O C......., Director de Segurança da F...... SAD, pela prática de uma (1) infracção disciplinar p. e p. no artigo 141º do RDLPFP21, por violação do disposto no artigo 55º, nº 5, alínea c) do RCLPFP21, em sanção de multa no montante de 918,00 € (novecentos e dezoito euros); e,
c) O R......., Director de Campo da F...... SAD, pela prática de uma (1) infracção disciplinar p. e p. no artigo 141º do RDLPFP21, por violação do disposto no artigo 54º, nº 6, alíneas h) e i) do RCLPFP21, em sanção de multa no montante de 918,00 € (novecentos e dezoito euros).
2. O TAD, por acórdão arbitral datado de 21-4-2023, negou provimento à impugnação e confirmou o acórdão proferido pelo Pleno Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional.
3. Inconformados, a F..........., ...SAD, C....... e R....... interpuseram recurso de apelação para este TCA Sul, no qual peticionaram a revogação do acórdão arbitral proferido pelo TAD.
4. A Federação Portuguesa de Futebol apresentou contra-alegação, pugnando pela manutenção do acórdão arbitral recorrido.
5. Remetidos os autos a este TCA Sul, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 146º do CPTA, tendo o Digno Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal emitido douto parecer, no qual defende que o presente recurso não merece provimento.
6. Por requerimento entrado em juízo em 27-10-2023, vieram os recorrentes requerer que o tribunal declare que as infracções disciplinares imputadas no presente processo se encontram legalmente amnistiadas, com as legais e devidas consequências. Ouvida para, querendo, se pronunciar, a Federação Portuguesa de Futebol nada disse ou requereu.
7. Sem vistos aos Exmºs Juízes Adjuntos, atenta a natureza urgente do processo, vêm os autos à conferência para julgamento.


II. OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A DECIDIR
8. Antes da apreciação e decisão das questões colocadas pela recorrente FPF, há que determinar, como requerido pelos recorrentes, se os efeitos jurídicos da Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (Lei da Amnistia), mais concretamente do seu artigo 6º, são susceptíveis de se projectar no presente processo e, na afirmativa, em que termos.
9. E, só após esta análise, é que se impõe apreciar no presente recurso se o acórdão arbitral recorrido incorreu nos erros de julgamento que os recorrentes FPF lhe imputam.


III. FUNDAMENTAÇÃO
A – DE FACTO
10. Considerando a matéria de facto dada como assente pelo acórdão arbitral do TAD, e não se vislumbrando necessária a respectiva alteração, ao abrigo do disposto no artigo 663º, nº 6 do CPCivil, dá-se por integralmente reproduzida a matéria de facto daquele constante.

B – DE DIREITO
11. Como decorre dos autos, os aqui recorrentes apresentaram junto do Tribunal Arbitral do Desporto contra a Federação Portuguesa de Futebol um recurso visando a impugnação do acórdão proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, em 19 de Julho de 2022, que condenou a F..........., ...SAD, pela prática de uma (1) infracção disciplinar p. e p. no artigo 186º, nºs 1, 2 e 3 do RDLPFP21, em sanção de multa de 100 UC, pela prática de três (3) infracções disciplinares p. e p. no artigo 123º do RDLPFP21, em sanção de repreensão e em sanção de multa de 22,5 UC e pela prática de uma (1) infracção disciplinar p. e p. no artigo 118º, alínea a) do RDLPFP21, por incumprimento dos deveres inscritos nas alíneas a) e j) do nº 1 do artigo 35º do RCLPFP21, em sanção de interdição do recinto desportivo de dois (2) jogos e em sanção de multa no montante de 125 UC, do que resultou, em cúmulo material, sanção de repreensão, sanção de interdição de recinto desportivo por 2 (dois) jogos e sanção de multa de 247,5 UC, a que corresponde o montante de 25.245,00 € (vinte e cinco mil duzentos e quarenta e cinco euros, o C......., pela prática de uma (1) infracção disciplinar p. e p. no artigo 141º do RDLPFP21, por violação do disposto no artigo 55º, nº 5, alínea c) do RCLPFP21, em sanção de multa no montante de 918,00 € (novecentos e dezoito euros), e o R......., pela prática de uma (1) infracção disciplinar p. e p. no artigo 141º do RDLPFP21, por violação do disposto no artigo 54º, nº 6, alíneas h) e i) do RCLPFP21, em sanção de multa no montante de 918,00 € (novecentos e dezoito euros).
12. Como é do conhecimento geral, no dia 1 de Setembro de 2023 entrou em vigor a Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (Lei da Amnistia), cujo artigo 6º tem o seguinte teor:
São amnistiadas as infracções disciplinares e as infracções disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar mais concretamente do seu artigo 6º”.
13. No caso dos autos, no processo disciplinar em que foram arguidos os aqui recorrentes, foram-lhes aplicadas sanções disciplinares não superiores a suspensão, pelo que as ditas infracções disciplinares se encontram amnistiadas, uma vez que quer a pena principal, quer as penas acessórias, estão contidas na previsão do artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (Lei da Amnistia).
14. Com efeito, a amnistia da infracção disciplinar em sentido próprio, é aquela que ocorre antes da condenação do arguido, refere-se à própria infracção e faz extinguir o procedimento disciplinar. Por sua vez, a amnistia em sentido impróprio, ou seja, a que ocorre depois da condenação, apenas impede ou limita o cumprimento da sanção disciplinar aplicada, fazendo cessar ou restringir a execução dessa sanção, bem como das sanções acessórias.
15. No caso presente, como o artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, não distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, o efeito útil da norma é o de que a amnistia aí prevista constitui uma providência que “apaga” a infracção disciplinar, sendo por isso apropriado falar-se aqui numa abolição retroactiva da infracção disciplinar, porquanto esta (a amnistia), opera “ex tunc”, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada, como também sobre o facto típico disciplinar passado, que cai em “esquecimento”, tudo se passando como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, eliminado do registo disciplinar do visado.
16. Ora, constituindo o objecto do presente recurso o acórdão arbitral do TAD que negou provimento à impugnação deduzida pelos ora recorrentes e confirmou o acórdão proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, o mesmo pronunciou-se sobre infracções disciplinares cometidas em Fevereiro de 2022, e que foram punidas com pena não superior à de suspensão e, acessoriamente, com a sanção de multa e interdição de recinto desportivo, pelo que, com o “desaparecimento” das aludidas infracções disciplinares, “ex vi” artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, caíram também os actos punitivos que sancionaram os recorrentes, tornando impossível o prosseguimento da presente lide, por aqueles actos punitivos terem deixado de ter existência jurídica.
17. E, sendo assim, resta declarar amnistiadas as infracções pelas quais os arguidos e aqui recorrentes foram sancionados, e julgar extinta a presente instância de recurso, por impossibilidade superveniente da lide.


IV. DECISÃO
18. Nestes termos, e pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo – Subsecção Social deste Tribunal Central Administrativo Sul, em declarar amnistiadas as infracções disciplinares sancionadas pelo acórdão proferida pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, aqui em análise e, em consequência, julgar extinta a presente instância de recurso, por impossibilidade superveniente da lide.
19. Custas por recorrentes e recorrida, em partes iguais (artigo 536º, nºs 1 e 2, alínea c) do CPCivil).

Lisboa, 12 de Dezembro de 2023
(Rui Fernando Belfo Pereira – relator)
(Frederico Macedo Branco – 1º adjunto)
(Pedro Figueiredo – 2º adjunto – Vencido, nos termos da declaração de voto que anexo)
* * * * * *
VOTO DE VENCIDO
Voto vencido, porquanto:
Nos termos definidos no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, “[s]ão amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”.
Consta do artigo 20.º do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que as sanções disciplinares aplicáveis aos agentes desportivos, pela prática de infração disciplinar, são as seguintes:
- Repreensão;
- Multa;
- Reparação;
- Suspensão por período de tempo ou por número de jogos;
- Impossibilidade de registo.
Conforme constitui jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, a amnistia bem como o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliações nem restrições; e na determinação do sentido dos mesmos diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa (cf., vg, o acórdão de 25/10/2001, proc. n.º 00P3209, disponível em www.dgsi.pt).
Seguindo tal entendimento e aplicando a amnistia nos precisos limites do diploma que a concede, sem ampliações nem restrições, afigura-se não ser de amnistiar a pena de impossibilidade de registo, uma vez que apenas se encontram abrangidas as infrações disciplinares cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão, ou seja, qualquer uma de entre as quatro primeiras penas elencadas no supra citado normativo.
Atento o exposto, afigura-se não ter aplicação ao caso dos autos a amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Lisboa, 12/12/2023
(Pedro Nuno Figueiredo)