Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 252/13.6BELRA |
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Secção: | CT |
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Data do Acordão: | 12/19/2024 |
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Relator: | MARGARIDA REIS |
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Descritores: | IMPUGNAÇÃO JUDICIAL IRS MAIS VALIAS ART. 10.º CIRS DIVÓRCIO PARTILHA DE BENS ALIENAÇÃO ONEROSA DA PROPRIEDADE |
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Sumário: | I - A partilha de bens comuns do casal, na sequência do divórcio, não configura uma operação de alienação onerosa da propriedade ainda que, por efeito da adjudicação de bens que excedam o valor da meação de um dos ex-cônjuges, o outro fique com direito a tornas. II - Não se encontrando preenchida a previsão legal do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, não pode haver lugar a tributação em sede de mais-valias. |
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Votação: | UNANIMIDADE |
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Indicações Eventuais: | Subsecção Tributária Comum |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | I. Relatório M..., inconformada com a sentença proferida em 2019-02-20 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou improcedente a impugnação judicial que interpôs tendo por objeto liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2008, no valor de € 4.560,24 e juros compensatórios no montante de € 604,83, vem dela interpor o presente recurso. O Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões: Em conclusão pretende-se: a) A não sujeição a mais valias relativamente aos bens partilhadas por divorcio ou se assim não for entendido b) Que o valor a considerar para a liquidação das de mais valias seja de € 1 500,00 (mil e quinhentos euros) valor que a recorrente recebeu. c) Que seja considerado o empréstimo concedido para a aquisição do imóvel em causa. Termina pedindo: TERMOS EM QUE nos melhores de direito e com o suprimento de Vossas Excelências deve o presente Recurso ser julgado procedente e consequentemente ser revogada a sentença a quo, e substituída por outra que defira a pretensão da recorrente, Ou se assim não for entendido que a tributação em mais valias devera ser somente pelo valor recebido pela recorrente € 1 500,00, devendo a liquidação ser corrigida em conformidade fazendo V.Ex.ª, Venerandos Desembargadores inteira, sã e objectiva justiça. *** A Recorrida não apresentou contra-alegações. *** A Digna Magistrada do M.º Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. *** Questões a decidir no recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º nºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT. Assim sendo, no caso em apreço, atentos os termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso, há que apurar se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito, por errada interpretação e aplicação ao caso do disposto no artigo 10.º do CIRS, ao concluir pela legalidade da liquidação impugnada, por força da qual a Recorrente foi tributada em sede de IRS, na categoria G (Mais Valias), por rendimentos referentes a partilha de bens por dissolução do casamento (divórcio).
II. Fundamentação II.1. Fundamentação de facto Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz: II. FUNDAMENTAÇÃO II.1 – De facto Com relevância para a decisão a proferir considero ainda provados os seguintes factos: 5. A liquidação a que se refere o ponto 1 dos factos assentes supra, foi emitida na sequência da apresentação de declaração de substituição modelo 3, para efeitos de IRS, em nome da Impugnante, em 23.08.2012, integrando um anexo G onde se inscreveu a declaração do facto tributário “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (…) art. 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS”, com base na inscrição do mês e ano de aquisição de 08/2000, valor € 27.635,63 e de realização de 10/2008, € 69.061,25 e na identificação do imóvel pelo artigo urbano 1… [cfr. cópia da declaração a que corresponde o código de validação CDAS69CBEKTY a fls. 66-72 do processo físico]. 6. A apresentação da declaração referida no ponto 5 antecedente foi efectuada na sequência da partilha do único bem comum do casal, em 20.10.2008, subsequente a sentença transitada em julgado em 09.05.2008, que decretou a dissolução do casamento por divórcio, no âmbito de processo de divórcio litigioso convertido em divórcio por mútuo consentimento que correu termos sob o n.º 386/08.9TBABT no Tribunal Judicial de Abrantes, entre a Impugnante e L….. [cfr. cópia da escritura pública da partilha por divórcio a fls. 8-14 do processo físico]. 7. A escritura de partilha a que se refere o ponto 6 que antecede integra o seguinte teor [cfr. cópia da escritura pública da partilha por divórcio a fls. 8-14 do processo físico]: “(…) (IMAGEM, ORIGINAL NOS AUTOS) Com interesse para a decisão, não existem outros factos, provados ou não provados. O tribunal julgou provada a matéria de facto, com base análise das peças processuais e da prova documental junta aos autos com a petição inicial e integrada no processo administrativo, referenciada após cada um dos factos assentes. * II.2. Fundamentação de Direito A Recorrente imputa à sentença recorrida erro de julgamento de direito, argumentando para tanto que a partilha do imóvel que constituiu o único bem comum do casal, pelo qual recebeu a título de tornas a importância de mil e quinhentos euros, não podia ser objeto de tributação, porque tal não encontra sustento no artigo 10.º do CIRS, tanto mais que do disposto no n.º 6 do artigo 2.º do CIMT se exclui de tributação o excesso da quota-parte que resulte de ato de partilha por efeito da dissolução do casamento. Mais alega que a sentença erra ao não levar em consideração o empréstimo bancário que foi contraído por ambos os cônjuges para a aquisição do prédio urbano em causa no montante de EUR 132.122,49. Vejamos então. A Recorrente impugnou a liquidação de IRS referente ao ano de 2008, no valor de € 4.560,24 e juros compensatórios no montante de € 604,83, não se conformando com a qualificação da situação em causa - a partilha, na decorrência do seu divórcio, do imóvel que constituiu o único bem comum do casal - em sede de mais valias, por considerar, e em suma, que não se verifica o facto tributário constante na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do CIRS, ou seja, por entender que não ocorreu uma qualquer “alienação onerosa de direitos reais sobre bens”. E desde já se adiante, que com razão. Ainda que em termos abstratos a mais-valia corresponda à diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição de um bem ou direito, e que a tributação de mais valias em sede de IRS revele “a adoção, por este imposto, da conceção de rendimento-acréscimo, embora atenuada pelo princípio da realização”, a verdade é que o n.º 1 do art. 10.º do CIRS contém um elenco taxativo dos ganhos que constituem mais-valias tributáveis em sede de IRS - e desde que não sejam considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais – ali se construindo “uma incidência selectiva, bastante restrita” (cf. Pereira, Paula Rosado - Manual de IRS. 5.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2023, pags. 227-228). Esta opção legislativa encontra a sua razão de ser em razões práticas, de “funcionamento e fiscalização do imposto”, que tornam “desadequada a atribuição de relevância fiscal a um conjunto muito alargado de situações suscetíveis de gerarem mais-valias tributáveis” (idem, pág. 230). Ora, e neste contexto, tem razão a Recorrente quando alega que o resultado da partilha do imóvel na sequência da dissolução do seu casamento não constitui mais-valia em sede de IRS, não se enquadrando no disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do CIRS, disposição da qual resultava, então como agora, que constituíam mais valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultassem da “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”. Com efeito, partilha-se aqui o entendimento, já defendido na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no sentido de que a partilha do património conjugal em caso de divórcio de que derive a adjudicação a um dos cônjuges do imóvel que faz parte do património do casal não constitui uma “alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis” nos termos e para os efeitos do disposto na supracitada alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do CIRS, por um lado, porque a partilha tem um caráter meramente declarativo, e por outro, porque, como referimos, sendo o elenco de mais valias constante do art. 10.º taxativo, caso o legislador tivesse entendido ali fazer constar a partilha tê-lo-ia feito, expressamente, tal como de resto o fez relativamente aos valores mobiliários, na (então) alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo (cf. Acórdão do STA proferido em 2020-02-12 no proc. 0360/12.0BECBR 449/18, disponível para consulta em www.dgsi.pt). De facto, e como é referido na supracitada jurisprudência do STA, na qual nos revemos sem qualquer reserva, fazendo nossos os fundamentos ali expressos (cf. Acórdão do STA proferido em 2020-02-12 no proc. 0360/12.0BECBR 449/18, disponível para consulta em www.dgsi.pt): (…) (…) ao aludir, na alínea a) do n.º 1 deste artigo 10.º, à «alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis» sem qualquer outra especificação, o legislador está servir-se de um termo próprio do direito civil. E deriva do artigo 11.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária que, sempre que no CIRS sejam empregues termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados com o sentido que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da própria lei que o emprega. E deve sublinhar-se que, se o legislador pretendesse mesmo incluir no conceito de «alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis» da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º a partilha desses bens não poderia prescindir-se de o fazer, logo ali. Porque a questão da natureza jurídica da partilha é muito controversa na doutrina, mas tem prevalecido o entendimento de que, ao menos a partilha hereditária, «tem um caráter marcadamente declarativo, limitando-se a determinar ou a materializar os bens que compõem o quinhão hereditário» e não «um caráter constitutivo ou translativo, pois a aquisição hereditária não decorre de recíprocas alienações e aquisições entre os co-partilhantes» [Cit. Rabindranath Capelo de Sousa, in «Lições de Direito das Sucessões», Volume II, 2.ª edição 1990, págs. 358 a 359; sobre a natureza declarativa da partilha hereditária na jurisdição comum ver, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de fevereiro de 2014, no processo n.º 9088/05.7TBMTS.P1.S1; na jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, pode ver-se o acórdão de 7 de março de 2018, no processo n.º 917/17]. E não deve olvidar-se que, nos termos da lei civil, o divórcio tem os mesmos efeitos jurídicos da dissolução por morte, salvas as exceções consagradas na lei – artigo 1788.º do Código Civil. Mas se quisermos assegurar-nos de que no conceito de «alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis» da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º não vai incluído, por princípio, o fenómeno de natureza económica que vulgarmente se designa por «partilha», bastará atentar na alínea seguinte, onde precisamente o legislador sentiu necessidade de estender o conceito de alienação onerosa de valores mobiliários de forma a incluir aí – expressamente – o valor atribuído em resultado da partilha correspondente. (…) As mais-valias não são uma categoria residual de incrementos patrimoniais onde caem todos os acréscimos patrimoniais, nem sequer todos os acréscimos patrimoniais que tenham caráter fortuito. Pode até dizer-se que no conceito tributário de mais-valias só cabem as mais-valias típicas, isto é, as que são como tal definidas no artigo 10.º do CIRS. É o que resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 9.º. O caráter residual é atribuído à categoria G de rendimentos, no qual se inserem as mais-valias. Dele deriva apenas que as mais-valias típicas (as que são tipificadas no artigo 10.º) só integram rendimentos dessa categoria se não couberem nos rendimentos de outras categorias. Assim, também não se consideram mais-valias imobiliárias todos os ganhos decorrentes de operações que envolvam bens imóveis. Apenas os das operações sobre bens imóveis que caibam na definição do artigo 10.º e que não caibam noutras categorias. Por isso referia o saudoso Prof. Saldanha Sanches que, «[a]o contrário do que se passa com os rendimentos de trabalho ou com os rendimentos de capital, em que o princípio é o da tributação de qualquer ganho proveniente de um certo facto, nas mais-valias temos um regime casuístico e sem um princípio ordenador» (in «Manual de Direito Fiscal», Coimbra Editora, 3.ª edição 2007, pág. 316). (…) [fim de citação]. No mesmo sentido, aliás, decidiu já este Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão prolatado em 2024-05-29, no proc. 21/16.1BEALM (disponível para consulta em www.dgsi.pt), e cujos fundamentos, nos quais igualmente nos revemos, aqui se passam a citar no extrato pertinente: (…) No âmbito da escritura de “PARTILHA POR DIVÓRCIO, ASSUNÇÃO DE DIVIDA, ALTERAÇÃO DE CLAUSULAS CONTRATUAIS E DAÇÃO EM CUMPRIMENTO», celebrada entre a Recorrida e o seu ex-cônjuge, foi atribuído a este último, por acordo entre as partes, a totalidade do bem imóvel que constituía o único bem comum do casal, ficando ele “pelo que leva a mais, em seu pagamento, o valor líquido de cento e trinta e quatro mil e dez euros, importância que a titulo de tornas, repõe à primeira outorgante”, a Impugnante, aqui Recorrida. Nestas circunstâncias, considera a Recorrente, ao contrário do entendimento versado pelo tribunal “a quo”, estarmos em presença de uma verdadeira transmissão onerosa (pelo recebimento das tornas) de um direito real sobre um bem imóvel, enquadrada nas regras de incidência em sede de IRS – Categoria G, previstas nos artigos 9.º, n.º 1, alínea a); 10.º, n.ºs 1, alínea a) e 4, alínea a), todos do Código do IRS, e dele não isentas. Em abono da sua tese, salienta a Fazenda Pública que a Impugnante/Recorrida não recebeu em resultado da partilha um bem ou valor inferior àquele a que tinha por direito, que poderia ter gerado o pagamento de tornas como compensação daquele, antes abdicou da sua quota parte no bem comum do casal que detinha por direito, a favor do outro contraente na partilha, tendo, por essa liberalidade, sido recebido deste a respetiva compensação, ou seja, no fundo, aquela vendeu onerosamente a este a sua quota parte do direito real sobre um bem imóvel de forma onerosa, o que enquadra a operação no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS. Manifesta, ainda, a sua discordância absoluta com o firmado pelo Tribunal recorrido, de que não ocorreu na esfera da Impugnante “um acréscimo da sua capacidade contributiva”, porquanto se assim tivesse efetivamente ocorrido, a operação não teria gerado mais-valias, e de facto o que se verifica e foi declarado pela Impugnante no anexo G, da sua declaração modelo 3, do ano de 2011, é que a mesma alienou a sua quota parte do bem imóvel, tendo recebido em compensação bens valorizados na quantia de € 198.177,03, cujo valor de aquisição foi de € 160.495,00, logo, a diferença, porque positiva, não pode deixar de ser considerada com “um acréscimo patrimonial”, na esfera daquela. Pelo que, conclui a Recorrente, “da correta aplicação do direito (10.º, n.º 1 aliena a) do Código do IRS, categoria G) aos factos dados como provados, não pode deixar de se considerar como sujeita a tributação em sede de IRS, Categoria G, a quantia recebida pela Impugnante como compensação pela alienação da quota parte que possuía no bem imóvel que possuía em compropriedade com o seu ex-cônjuge, por a mesma configurar uma alienação de um direito real sobre um bem imóvel, um ganho, um incremento patrimonial e um verdadeiro acréscimo de valor na esfera dos Impugnantes, que não podem deixar de ser tributados.” Vejamos se assiste razão à Recorrente. Para o efeito importa, desde já, ter presente a fundamentação jurídica invocada na sentença recorrida para concluir pela ilegalidade da liquidação impugnada, decorrente da inexistência de facto tributário: «Dispunha o artigo 9º, nº 1, al. a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante CIRS), o seguinte: “Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias: a) as mais-valias, tal como definidas no artigo seguinte. (…)” Por seu turno, dispunha o artigo 10º, n.º 1, al. a) do CIRS, que: “Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (…)”. De acordo com o disposto no n.º 4, al. a) deste último artigo, no caso das mais-valias previstas na citada al. a) do n.º 1, o ganho sujeito a IRS é constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso. Da leitura conjugada dos citados preceitos resulta que as realidades que consubstanciam mais-valias para efeitos de aplicação do CIRS são as que se encontram taxativamente tipificadas no artigo 10.º, excluindo-se quaisquer outras. Resulta igualmente destes preceitos que se encontram sujeitos a tributação, em sede de IRS, os ganhos obtidos com a alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, correspondendo estes ao valor realizado aquando da alienação deduzido do valor pelo qual o imóvel foi adquirido. Esta regra de sujeição consagra, como tal, um pressuposto de tributação em sede de IRS, a saber: a existência de um rendimento, de um ganho, enquanto manifestação da capacidade contributiva do sujeito passivo. A sujeição nestes termos decorre do Princípio da Capacidade Contributiva, enquanto corolário do Princípio da Igualdade fiscal, de acordo com o qual, para que exista tributação, é necessário que exista um ganho efectivo enquanto manifestação de capacidade contributiva, traduzida num aumento do valor do activo patrimonial do sujeito passivo. A este propósito, salienta-se o afirmado no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido a 8 de Maio de 2019, no processo n.º 1039/06.8BELSB, disponível em www.dgsi.pt, que: “O CIRS adota o conceito de rendimento acréscimo, constituindo, assim, a base de incidência deste tributo todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela as mais-valias”. No presente caso, a questão que se coloca é a de saber se o pagamento de tornas na sequência de uma partilha por divórcio - em que foi adjudicado a um dos ex-cônjuges o único bem imóvel do casal, cujo valor excedia a sua quota-parte na meação dos bens comuns do casal - consubstancia uma alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, enquadrável no âmbito de aplicação do artigo 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS. Importa, como tal, interpretar o sentido e alcance do preceito acima citado, considerando o disposto no artigo 11.º da LGT e o artigo 9.º do Código Civil, concatenando-o com o regime da partilha por divórcio. Nos termos conjugados dos artigos 1688.º e 1788.º do Código Civil (doravante CC), o divórcio dissolve o casamento, determinando a cessação das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges. A cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges determina, nos termos do disposto no artigo 1689.º do CC, que ocorra a partilha dos bens e o pagamento de dívidas, nos seguintes termos: “1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património. 2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes. 3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.” Decorre dos citados preceitos que, em caso de divórcio, os bens comuns e os passivos comuns – nos quais se incluem as dívidas que onerem os bens comuns (cf. 1694.º, n.º 1 do CC) - são partilhados pelo ex-casal. Caso o casamento tenha sido celebrado em regime de comunhão (geral ou de adquiridos) – como ocorreu no presente caso –, os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão (vide artigos 1730.º e 1734.º do CC), pelo que, em caso de divórcio, partilharão um e outro nesta proporção. Nas circunstâncias em que da partilha resulte a adjudicação de bens a um dos ex-cônjuges em valor superior àquele a que correspondia o valor da sua meação, este fica devedor ao outro pelo montante a que corresponder esta diferença, ficando este último com direito a tornas pelo montante correspondente ao excesso de quota-parte adjudicado. Tal decorre da necessidade de o ex-cônjuge cuja esfera patrimonial ficou, por efeito da partilha, deficitária em relação ao valor da meação ser compensado. A partilha por divórcio configura, assim, uma reorganização dos bens comuns do casal, de modo a que os ex-cônjuges deixem de ser proprietários de partes indivisas de bens para passarem a titular direitos de propriedade individuais e exclusivos sobre os mesmos. Nestes termos, de acordo com o entendimento doutrinário e jurisprudencial maioritário, a natureza jurídica da partilha por divórcio é meramente declarativa e modificativa e não constitutiva ou translativa (veja-se, neste sentido, a propósito da natureza jurídica da partilha hereditária, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, 5.ª ed., Coimbra Editora, 2000, págs. 543-547; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Editora, 2012, págs. 238-242). Neste mesmo sentido, refere-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido a 13 de Junho de 2018, no processo n.º 8031/14.7PRT-E.P1, disponível em www-dgsi.pt, que a partilha de bens do casal “É, sempre, o acto destinado a fazer cessar a indivisão de um património que pertence, na unidade, a duas pessoas. Cada um dos cônjuges já tinha o direito a uma parte ideal dos bens antes da partilha, sendo proprietário do património comum, pois que os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges que são, ambos, titulares de um único direito sobre ela. Pela partilha o direito preexistente em propriedade colectiva concretiza-se em bens certos, continuando os adjudicatários na respectiva titularidade agora individualizada pelo termo da indivisão. Deste modo, o direito a bens determinados existente depois da partilha é o mesmo direito a bens indeterminados que existia antes dela; é o mesmo direito, apenas modificado no seu objecto. Temos, consequentemente, que a partilha, não tendo carácter constitutivo de direitos, mas essencialmente declarativo, se apresente também com a natureza de acto modificativo, na medida em que altera, como referido, a situação jurídica anterior. Daí decorre que, não sendo, embora, a partilha, abstractamente, meio legítimo de aquisição - efectivamente, o cônjuge ou o herdeiro nada adquire do outro, apenas se modificando o direito de que era titular-, aqueles efeitos declarativos-modificativos permitem a efectivação do domínio e posse sobre os bens em concreto na pessoa de cada um dos interessados. A partilha representa, então, o título modificativo do direito preexistente através do qual ficam definidos os contornos e se “molda o direito na sua realidade concreta””. Atendendo à sua natureza declarativa ou modificativa, a partilha por divórcio não configura uma transmissão de direitos reais sobre imóveis em sentido próprio. Nestes termos, a sujeição a tributação, em sede de IRS, da partilha por divórcio ou do recebimento de tornas na sequência desta - e nomeadamente o seu enquadramento no âmbito de aplicação do artigo 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS - exigiria uma previsão expressa nesse sentido, em termos idênticos ao que ocorre em sede de IMT - artigo 2.º, n.ºs 1, 5 a) e 6 do Código do IMT (veja-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 12 de Fevereiro de 2020, no processo n.º 0360/12.0BECBR 449/18, disponível em www.dgsi.pt). Visto o direito aplicável no caso dos autos, importa subsumi-lo ao competente acervo fáctico. No presente caso, resulta da matéria de facto provada que o activo comum do casal era constituído por um único bem: um imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o número 8662, com o valor patrimonial de € 333.027,13, ao qual os ex-cônjuges atribuíram, aquando da partilha, o valor de € 396.354,05 (cfr. als. D) e E) do probatório). Resulta igualmente da factualidade provada que o imóvel em causa se encontrava onerado com uma hipoteca no valor de € 127.334,05 (vide al. D) do probatório). Atendendo ao activo e passivo comum, os ex-cônjuges concluíram que existia um total líquido a partilhar no valor de € 269.020,00 pelo que caberia a cada um o valor líquido de meação correspondente a € 134.510,00 (ex vi al. E) do probatório). Existindo apenas um bem comum, o ex-casal acordou que o património comum seria partilhado mediante a adjudicação do único imóvel que o integrava a P........, ficando a impugnante com direito a receber tornas de valor corresponde ao excesso de quota-parte atribuído àquele, a saber: € 134.510 (cfr. al. F) do probatório supra). Note-se que as referidas tornas consubstanciam tão-somente um direito da impugnante a ser compensada pela diminuição do valor patrimonial do seu activo por efeito da partilha e que, sem estas, P........ ficaria injustamente enriquecido à custa do património da impugnante, com a atribuição de um excesso de quota-parte no valor de € 134.510. Neste sentido, as tornas não correspondem a um rendimento acrescido da impugnante, nem revelam um acréscimo da sua capacidade contributiva. Nestes termos e atento o disposto no artigo 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS, a partilha, como referido acima, não configura uma operação de alienação onerosa da propriedade ainda que, por efeito da adjudicação de bens que excedam o valor da meação de um dos ex-cônjuges, o outro fique com direito a tornas. Refira-se que, contrariamente ao que parece ser alegado pela Fazenda Pública, o facto de as tornas não terem sido pagas em numerário, mas sim através da dação em cumprimento de um bem imóvel que pertencia ao património próprio de P........ não determina que a impugnante que as recebe tenha afinal realizado uma operação de alienação onerosa de imóveis aquando da partilha (com adjudicação do excesso de quota-parte). Dito por outras palavras, a forma como é cumprida a obrigação de pagamento de tornas não transforma a natureza jurídica da partilha por divórcio, a qual mantém, como se referiu anteriormente, o seu caráter meramente declarativo e modificativo.» O Tribunal acolhe na íntegra a fundamentação supra transcrita, importando referir, na esteira da decisão recorrida, que não há que considerar o recebimento de tornas como acréscimo patrimonial, mas tão-só a reposição do direito à meação no património comum do casal, face à atribuição em “excesso” ao outro cônjuge – defendendo a mesma solução em caso de recebimento de tornas no âmbito da partilha da herança, vide Manuel Mendes Camarinha, Tornas e Mais-Valias – uma relação difícil?, ISCAL, Lisboa, Fevereiro de 2021, p. 45. Conforme entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, enquanto o património comum do casal se mantiver indiviso, cada um dos cônjuges é titular do direito à meação sobre os bens comuns, que constituem um património autónomo, e não um direito individual sobre cada um dos bens qua a integram. Assim, só com a partilha é que o cônjuge se torna pleno titular dos direitos (seja qual for a respetiva natureza) que por ela lhe couberem no património comum. E, ainda que o património comum do casal seja constituído por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade (singular ou em compropriedade) sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes. Assim, na partilha não ocorre uma alienação de imóveis concretamente identificados, até porque só após a realização desta é possível estabelecer a titularidade do direito de propriedade. Daqui se conclui que a partilha de bens comuns do casal não configura uma operação de alienação onerosa da propriedade ainda que, por efeito da adjudicação de bens que excedam o valor da meação de um dos ex-cônjuges, o outro fique com direito a tornas, o que significa que não se encontra preenchida a previsão legal do artigo 10º, nº 1, alínea a) do CIRS. Sendo a interpretação que defendemos a que face à letra da lei mais se acomoda ao cumprimento do princípio da legalidade, na sua vertente da determinabilidade. Ao julgar no sentido referido, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento, pelo que deve ser confirmada na ordem jurídica. (…) Ora, e não constituído o resultado da partilha do imóvel na sequência da dissolução do seu casamento uma mais-valia nos termos e para os efeitos do disposto no art. 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, tanto é quanto basta para que se conclua que o ato de liquidação impugnado pela aqui Recorrente é ilegal, e que, como alega, a sentença sob recurso erra no julgamento de direito, na interpretação que propugna da referida disposição. Assim sendo, e em face do exposto, o presente recurso deve ser julgado procedente, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela Recorrente no presente recurso [cf. n.º 2 do art. 608.º ex vi n.º 2 do art. 663.º, ambos do CPC, aplicáveis ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT]. *** Atento o decaimento da Recorrida, é sua a responsabilidade pelas custas, pelo presente recurso e na 1.ª instância, nos termos do disposto no art. 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT, não lhe sendo devida taxa de justiça pelo presente recurso, visto que nele não contra-alegou (cf. art. 7.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais – RCP). *** Conclusão: Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva: I. A partilha de bens comuns do casal, na sequência do divórcio, não configura uma operação de alienação onerosa da propriedade ainda que, por efeito da adjudicação de bens que excedam o valor da meação de um dos ex-cônjuges, o outro fique com direito a tornas. II. Não se encontrando preenchida a previsão legal do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, não pode haver lugar a tributação em sede de mais-valias. III. DECISÃO Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao presente recurso, e em consequência, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação judicial procedente, anulando o ato impugnado. Custas pela Recorrida, em ambas as instâncias, não lhe sendo devida taxa de justiça pelo presente recurso.. Lisboa, 19 de dezembro de 2024 - Margarida Reis (relatora) – Teresa Costa Alemão – Cristina Coelho da Silva. |