Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3181/24.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/03/2024
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:REJEIÇÃO LIMINAR DE REQUERIMENTO CAUTELAR
MANIFESTA FALTA DE FUNDAMENTO DA PRETENSÃO
Sumário:O âmbito de aplicação do despacho liminar de rejeição do requerimento inicial deve circunscrever-se às causas preconizadas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 116.º do CPTA, com especial atenção para a exigência do carácter manifesto dessas causas, pois que a sindicância às mesmas e a consequente decisão de rejeição, numa fase tão precoce ou embrionária do processo, deve ser feita com especial cuidado, rigor e contenção, porquanto, desse juízo inaugural e perfunctório, desprovido ainda da completude e firmeza que é dada pelas fases processuais seguintes (pós-citação, com apresentação de oposição e eventual produção de prova), não é conveniente que se extravase de tal forma os limites do despacho liminar e que se acabe a invadir a esfera própria daquilo que já constitui o âmago da decisão cautelar propriamente dita, que, aí sim, demanda uma ponderação mais aprofundada, esclarecida e fundamentada dos critérios de decisão plasmados no artigo 120.º, n.º 1, do CPTA, nomeadamente, com o contributo que pode ser dado com o aporte da posição da contra-parte e da eventual junção ou produção de prova.
Votação:C/ VOTO DE VENCIDO
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - Relatório.
L......, residente em Lisboa, doravante Recorrente, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) deduziu processo cautelar para abstenção de uma conduta contra o Município de Lisboa e contra a Gebalis-Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa, E.M., doravante Recorridos, nomeadamente, para os Recorridos se absterem de qualquer actuação que ao Recorrente impeça o uso do locado que ora ocupa, por forma a que, atenta a sua idade e aos problemas graves de saúde psiquiátrica que padece, no mesmo permaneça até que lhe seja atribuída uma nova habitação ou fixada uma renda para a actual morada de família, inconformado que se mostra com a decisão do TACL, de 21/04/2024, que rejeitou liminarmente o requerimento inicial, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):
O Recorrente, habita na sua atual habitação desde 12 de Abril de 2024 por ter sido forçado a habitar na rua há cerca de 14 anos, tendo como alternativa habitacional voltar a morar ao relento! Aqui entrou em puro desespero e em severo estado de necessidade para salvaguardar a vida pois não podia continuar a habitar ao relento! A casa estava devoluta há anos. Continuam a aguardar que lhe seja satisfeito o pedido de fixação do valor da renda de acordo com a lei em vigor e após apuramento do rendimento líquido há mais de 10 anos!
O Recorrente foi ameaçado de que iria ser despejado a qualquer altura nos dias 13 e 14 de Abril sem qualquer notificação ou ato impugnável tendo intentado a presente ação, na qual o Tribunal de 1ª instância nem sequer citou as Recorridas para entregarem o ato em causa que, em momento algum foi entregue ao Recorrente! Resultado disso foi, no dia 20 de Abril de 2024, o Recorrente, um idoso com um severo historial de esquizofrenia ter sido despejado verbalmente pelas Recorridas sem notificação, encaminhamento prévio ou a mínima averiguação da situação social que carece de uma urgente tutela!
Tem assistido a entregas de chaves a pessoas que não concorreram tal como sucedeu recentemente que um seu conhecido que tendo aceite a casa atribuída por concurso viu a mesma ser-lhe retirada e ocupada (foi entregue sem concurso pelo Presidente da CM) ao que consta por uma distinta senhora que não concorreu e que lhe ficou com a casa por alegadamente ser mulher de um policia municipal.
Por terem ter estado a “morar” ao relento durante 14 anos e ter estado há 10 anos à espera dos concursos de atribuição promovidos pelas recorridas, e não tendo outra alternativa foi obrigado a encontrar um abrigo na sua atual habitação se ter capacidade financeira para o arrendamento do mercado livre e a habitação social tem vindo a serlhe negada e prejudicarem mais ninguém pois a casa estava devoluta há um ano, ali permanecem até que os serviços da Recorrida encontrem alguma alternativa. Neste contexto, a Recorrida, sem proceder aos tramites legais despejou este agregado familiar!
O Recorrente já tentou que a Recorrida a recebesse para assinar um contrato de arrendamento com uma renda apoiada e de acordo com os rendimentos do agregado familiar mas sempre sem sucesso.
Desde há mais de 10 anos que o Recorrente tem feito tudo para que junto das Recorridas lhe fosse regularizada a situação visto que pretendia pagar a renda e naturalmente ter recibos na sua posse.
Temendo pela dignidade e integridade da vida do Recorrente e temem pelo agravamento da doença do Recorrente, bem como da retirada eminente de sua casa. O que veio a suceder no dia 20 de Abril de 2024, novamente sem qualquer notificação ou cumprimentos dos trâmites que estão legalmente obrigados!
Recorde-se que a casa corresponde à residência do Recorrente, idoso e com esquizofrenia, não dispondo de qualquer outra habitação, tal como Doc. 1 já junto.
O Recorrente apenas aufere 100€ de pensão de invalidez, não tendo qualquer atividade remunerada, não tendo possibilidades económicas que lhes permitam arrendar uma casa.
10º
O Recorrente, ao concorrer durante estes anos consecutivos e por estar em situação de desespero por ter não ter outro sítio onde viver, adquiriu a legitima expectativa de ter acesso a uma habitação social pois que está demonstrado que carece da mesma.
11º
O Recorrente não tem qualquer rendimento e apenas tem condições para pagar uma renda de 4 ou 5 euros, o que só é possível numa habitação social.
12º
Com base em estado necessidade o garantir a segurança, a saúde, e até o direito à vida do Recorrente da companheira dos seus filhos menores, faz com que se verifiquem os requisitos objectivos e subjectivos do estado de necessidade não apenas desculpante, mas verdadeiramente dirimente da responsabilidade criminal.
13º
Acresce ainda que tal como resulta do Acórdão do TCAS nº 383/19.9BELSB, estando demonstrada a efectiva carência habitacional tal como o Recorrente alega, a entidade Requerida GEBALIS enquanto entidade de gestora de um parque de habitação social esta obrigada, quando confrontada com o requerimento da providência a averiguar a existência de efectiva carência habitacional e sendo a mesma evidente, deverá ser emitido juízo de prognose favorável por parte do Tribunal se a GEBALIS cumprir a obrigação legal imposta pela lei 32/2016 de 24 do 8, facilmente concluirá que o Recorrente afinal tem direito à atribuição de uma habitação social atenta a fragilidade da sua situação económica sob a forma de atribuição em emergência social.
14º
Em suma, a pretensão do Recorrente com base no estado de necessidade e na situação de emergência social tem direito a que seja previamente ouvida a Recorrida á qual tem a obrigação não apenas de informar mas sobretudo de acompanhar e comunicar ao tribunal se afinal a Recorrente tem ou não carência habitacional em situação de urgência e só depois, eventualmente apos a inquirição das testemunhas se pode concluir pela legalidade ou não do recurso à providencia cautelar de abstenção, a qual nos termos legais deveria merecer um despacho judicial no prazo de 48 horas de deferimento relegando-se para a fase posterior à oposição a apreciação do mérito da providência.
15º
Assim, por se afigurar que o Recorrente tem direito ao deferimento provisório da providência e que o momento oportuno para se conhecer da legalidade ou não da pretensão só tem lugar após a apresentação da oposição por parte da entidade requerida, se Requer a Vexa. se digne deferir provisoriamente a mesma.
16ª
Se a Recorrida não se dignar fixar o valor da renda ao Recorrente, dentro dos parâmetros legais a sobrevivência do agregado familiar estará grave e irremediavelmente afetada, nomeadamente a vida e o bem-estar dos filhos do Recorrente e do estado de saúde da sua companheira, tal como Doc. 1e 2 já junto.
17ª
Para mais o argumento plasmado pelo Tribunal de 1ª instância no que consta à obrigatoriedade de ter de ser o Requerente ora Recorrente ter de esperar por uma notificação/ordem de despejo da Requerida ora Recorrida para depois sim reagir a esta notificação, tendo em conta a prática comum deste tipo de procedimento, constata-se que estas despejam verbalmente como já fizeram a semana passada vários fogos sem para isso notificar ninguém apenas aparecendo de surpresa com carga policial e colocando os agregados a dormir na rua! Contudo esta ameaça, contrariamente ao defendido pelo tribunal de 1ª instância que simplesmente ignorou o que vem explanado na PI, onde é explicado que este agregado familiar já foi alvo de uma ameaça verbal de despejo, temendo estes que a qualquer altura venham a ser despejados. O que veio a suceder no dia 20 de Abril de 2024, novamente sem notificação ou cumprimentos dos trâmites impostos por lei às Recorridas, pelo que a restante legislação invocada defende a posição deste agregado familiar debilitado que as Recorrentes têm vindo a ignorar ao longo dos anos! Procura assim evitar que este agregado venha passar a residir ao relento com todos os perigos já indicados!
18ª
Nos termos do disposto no artº 65ºnº 1 da CRP todos têm direito para si e para sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
19ª
Tal disposição tem como sujeito passivo o Estado e naturalmente que incumbindo-lhe competências quer para gerir um parque habitacional perfeitamente delimitado. Logo, a notificação da Recorrida no que respeita à omissão culposa da regularização da situação não só era oportuna como perfeitamente ilegal ao abrigo da CRP.
20ª
Foi indevidamente julgado no Tribunal de 1ª instância que que não se encontra verificado o requisito do fumus boni iuris, conforme estabelecido no artigo 120.º, n.º 1 do CPTA.
21ª
Pois tal como em jurisprudência semelhante é mister passar invocar o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul Processo: 1012/22.9BELSB de 20-10-2022, por ser uma situação idêntica à da Requerente e do seu agregado familiar com efetiva carência económica. Transcrevendo apenas uma excerto:
22º
“Falta certeza à conclusão tirada na decisão recorrida de que a requerente, de forma manifesta, pode ser despejada sem lhe ser atribuído um imóvel por se tratar de uma ocupação sem título de fogo municipal, tendo em conta, por um lado, que a requerente alega no requerimento inicial factualidade tendente a demonstrar que se encontra numa situação de efectiva carência habitacional e, por outro lado, o disposto no art. 13º, da Lei 83/2019, de 3/9 (Lei de bases da habitação), e nos arts. 1º, 3º e 4º, do DL 89/2021, de 3/11 (o qual regulamenta a Lei 83/2019), diplomas legais que concretizam o direito à habitação consagrado no art. 65º, da CRP”
23ª
Efectivamente, ao abrigo da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2016 resulta do artº 28ºnº 6 que os agregados alvos de despejo com efectiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais. Trata-se uma disposição naturalmente imperativa.
24º
O Recorrente sustenta que, ao não indicar qualquer alternativa habitacional, o Recorrido se encontra a violar o disposto no artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, de 19.12, bem como o artigo 13.º, n.º 4 da Lei de Bases de Habitação.
25º
De acordo com a primeira daquelas disposições, aplicável ex vi artigo supracitado artigo 35.º, n.º 4, da mesma Lei n.º 81/2014, “Os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”.
26º
Já o segundo comando legal elencado, por sua vez, preceitua que “O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento, nos termos definidos na lei, sem prejuízo do número seguinte”, sendo que “Em caso de ocupação ilegal de habitações públicas, o despejo obedece a regras procedimentais estabelecidas por lei”.
27º
Ora, constata-se que o Recorrido nada disto faz, apenas enviou, verbalmente um agregado familiar a dormir ao relento, sendo a decisão proferida absolutamente omissa quanto ao encaminhamento do Recorrente e para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais – omissão essa que não pode deixar de gerar a sua anulabilidade, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPA, como deverá ser julgado a final.
28º
O Recorrente mais alega que o agregado familiar de que faz parte (e habita o imóvel em causa) se enquadra no âmbito de agregado com efetiva carência habitacional e, de acordo com o disposto no artigo 28.°, n.° 6, da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, na redação atual, "[o]s agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais". Mais referindo que, da norma mencionada, “não resulta que deva ser atribuída, sem mais, uma habitação na sequência da determinação da desocupação, mas sim que os ocupantes sejam encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”, o que a Requerida não fez.
29º
Resumindo, o Recorrente estriba o fumus boni iuris no facto do ato, neste caso verbal, que ordena a desocupação do imóvel não encaminhar o Recorrente (e o agregado familiar de que faz parte integrante) para soluções de apoios sociais (ainda que transitoriamente), ao arrepio do disposto na Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro.
30º
Importa aqui referir que a ilegalidade imputada ao ato verbal da Recorrida que ordenou a desocupação não se prende com eventual direito que o Recorrente se arrogue a habitar o imóvel em causa que, mas outrossim, com o facto do Recorrido ter a obrigação legal de encaminhar o Recorrente (e a sua família) para solução habitacional (ainda que transitoriamente), de molde a obstar a que fique despojada do direito a habitação.
31º
Isto visto, quanto a esta matéria, o acórdão do TCA Sul de 20-10-2022, proc. 1012/22.9BELSB, disponível para consulta em www.dgsi.pt, procedeu à análise do bloco normativo aplicável (em situação com identidade factual à dos presentes autos), com grande profundidade e amplitude, pelo que se segue de perto o aresto aludido (no tocante à análise normativa).
32º
Ora, o Recorrente enquadra-se nesta concreta classificação, na medida em que mesma não detém qualquer outra habitação a que título for (proprietário, arrendatário, comodatário ou outro), ou seja, não tem alternativa habitacional e, além disso, está em claro risco de agravamento de doença do Recorrente por habitar ao relento, por força de decisão administrativa, não notificada nos dias 13, 14 e 20 de Abril de 2024 que determinou a desocupação do imóvel sito na Avenida João Paulo II, Lote 530, 3º Andar, 1950-158 Lisboa.
33º
Assim, a Recorrida não poderia ordenar a desocupação sem mais, pois teria de encaminhar, previamente, o Recorrente (rectius, o seu agregado familiar) para uma solução habitacional, ainda que transitória, não sendo admissível a ordem de desocupação tout court.
34º
O Recorrente tem o direito a ser encaminhado para (outra) solução habitacional, sendo incumbência do Recorrido salvaguardar que o Recorrente e o seu agregado são acomodados em habitação condigna (ainda que temporariamente, reiterasse), e isso não foi feito pela Recorrida, uma vez que o ato que ordena a desocupação não alude, em qualquer segmento, a eventual encaminhamento do Recorrente para uma solução habitacional.
35ª
Nos termos do artigo 28.º da Lei n.º 6 da Lei 81/2014, “os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”. Igualmente, nos termos do disposto no artigo 13.º da Lei 83/2019 (Lei de Bases da Habitação), se constata que as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento.
36º
Até porque, relativamente ao despejo de agregados com carência habitacional, dispõe o n.º 4 do artigo 4.º do DL n.º 89/2021, de 3/11, que o município deve encaminhar ou assegurar a implementação de uma solução de alojamento temporário destas famílias, em articulação com o Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P.), e o IHRU, I. P., no âmbito das respetivas competências, o que, como vimos, não foi feito no caso dos autos.
37º
Assim sendo, o vício de violação de lei imputado ao ato que levou ao despejo do Recorrente, a ser junto pelas Recorridas, num juízo perfunctório, afigura-se que procede em sede de ação principal por vício de violação de lei (violação do disposto nos artigos 28º, n.º 6 da Lei 81/2014, na redação da Lei 32/2016, 13.º da Lei 83/2019, de 3/9 (Lei de bases da habitação), e artigos 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 89/2021, de 3/11).
38º
Assim, numa análise perfunctória, própria do processo cautelar, pode concluir-se que esta causa de invalidade imputada ao ato será, muito provavelmente, julgada procedente, o que só por si determinará a anulação do ato impugnado podendo, pois, afirmar-se, sem necessidade de mais indagações e de análise das outras causas de invalidade suscitadas contra o ato, que é muito provável que a ação principal venha a ser julgada procedente.
39º
Mostra-se, assim, preenchido o requisito do fumus boni iuris necessário ao decretamento de uma providência cautelar – é provável que a pretensão formulada no processo principal venha a ser julgada procedente.
40º
Ora, interpretando a causa de pedir que sustenta o pedido, verifica-se que o pedido em causa se reporta ao decretamento provisório da providência cautelar de suspensão de eficácia da decisão de desocupação do imóvel retro aludido.
41ª
Para tanto, o Recorrente foi despejado sem mais, não tendo o Recorrente alternativa habitacional, visto que não aufere rendimentos provenientes do exercício de alguma profissão e a consequência para a desocupação ordenada seria voltar a dormir ao relento!
42ª
A tutela provisória prevista no art. 131º do CPTA destina-se a assegurar o efeito útil do processo cautelar e a evitar que, perante a verificação de uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado durante a pendência do processo cautelar, este se mostre infrutífero e incapaz de assegurar a tutela que lhe é própria, qual seja a de evitar a infrutuosidade do processo principal do qual depende.
43ª
O decretamento provisório da providência, nos termos do art. 131º do CPTA, pressupõe que se mostre verificado, através da alegação feita no requerimento inicial, um periculum in mora qualificado, que deve revestir características de irreparabilidade absoluta, de forma a justificar esta tutela provisória. Como é do agravamento, todos os dias do estado de saúde do Recorrente!
44ª
Neste caso, estando em causa a alegada desocupação do imóvel onde o Recorrente reside e a inexistência de alternativa habitacional, por falta de meios económicos, ao que acresce a alegada debilidade do recorrente visado quer pela idade avançada quer pela esquizofrenia que padece, é manifesto que se mostra preenchida a previsão do art. 131º/1 do CPTA, pois que a execução da ordem de ocupação, ao determinar que o Recorrente fique desalojado, é passível de gerar prejuízos irreparáveis para os mesmos, ainda que venha a proceder o pedido cautelar, ainda mais, sendo concedido prazo exíguo para o efeito que inviabiliza qualquer solução de procura de alternativa habitacional.
45ª
É quanto basta para que se determine o decretamento provisório da providência cautelar requerida.
Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos deve o presente recurso ser admitido, com efeito suspensivo automático, julgado procedente por provado, revogando-se a sentença recorrida e decretando-se a serem notificados/intimados a CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA e a GEBALIS - GESTÃO DO ARRENDAMENTO DA HABITAÇÃO MUNICIPAL DE LISBOA, E.M., S.A para se absterem, sob pena de incorrerem no crime de desobediência e de por qualquer forma criarem obstáculos, impedir o normal uso do locado pelo Recorrente, que padece de esquizofrenia, para o fim a que se destina (habitação própria e exclusiva) da casa sita na Avenida João Paulo II, Lote 530, 3º andar, 1950-158 Lisbia, até que lhe seja atribuída uma nova habitação ou fixada uma renda para a atual morada de família; Condenando-se as Recorridas em custas e condigna Procuradoria se fará Justiça!
O Recorrido Município de Lisboa apresentou contra-alegações, nas quais exprime as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça inclusa no SITAF):
I. Em conformidade, o Recorrido acompanha integralmente o entendimento vertido na douta decisão recorrida.
II. O decretamento da providência requerida importa o preenchimento, além do mais, do requisito do “fumus boni iuris”.
III. De acordo com o disposto no art. 120.°, n.° 1, segunda parte, do CPTA, uma providência cautelar só poderá ser decretada se, para além de se verificar uma situação de fundado receio, for possível concluir, da prova indiciária produzida pela requerente, ser provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente.
IV. E resulta das disposições conjugadas dos artigos n.ºs 116º n.º 2 al. d) e 120º, n.º 1, ambos do CPTA, que o requerimento inicial deve ser rejeitado liminarmente nas situações em que a causa de pedir evidencia a manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada, o que sucede, designadamente, nas situações em que os factos alegados não permitem concluir pela mínima probabilidade de êxito da pretensão que constitui objeto da ação principal, revelando a manifesta ausência do requisito fumus boni iuris.
V. Dúvidas não subsistem ao Recorrido que bem andou a Mma Juiz ao concluir que é manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada pelo Requerente, pela total ausência do requisito do fumus boni iuris.
VI. E, consequentemente, bem andou a Mma Juiz ao rejeitar liminarmente a providência cautelar, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 116º, n.º2, alínea d) do CPTA.
VII. Pois emerge de a factualidade enunciada no requerimento inicial ter o Recorrente procedido à ocupação de fogo habitacional, sem título que o habilite para o efeito, não tendo sido despoletado qualquer procedimento administrativo tendo em vista a emissão do mesmo.
VIII. Com efeito, o direito à habitação consagrado constitucionalmente no artigo 65º da CRP está dependente de concretização legal, só podendo exigir-se o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei. IX. Pelo que não assiste ao Requerente o direito a permanecer no mesmo, podendo e devendo a Entidade Requerida desencadear o procedimento administrativo com vista à sua desocupação, em conformidade com o artigo 35º, n.ºs 1 e 2 da Lei 81/2014, de 19 de dezembro.
X. Ou seja, o encaminhamento prévio previsto no artigo 28º, n.º 6 da Lei 81/2014, não confere, ao contrário do que pretende o Requerente, o direito a permanecer no imóvel ocupado ilicitamente, constituindo apenas uma garantia no procedimento administrativo que venha a ser instaurado para a prática do ato administrativo.
XI. Por outro lado, não existe qualquer ato administrativo, nem qualquer notificação no sentido do despejo.
XII. Razão pela qual é totalmente inócuo e desprovido de sentido jurídico a invocação do disposto no artigo 28.º, n.º 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de dezembro, dado que não existiu decisão de despejo quanto ao imóvel ocupado pelo Recorrente, logo, não se impõe às entidades requeridas a observância de tal preceito legal.
XIII. Na verdade, o Recorrente limita-se a alegar a ordem verbal dada pela PSP a 13 e 14 de abril de 2024.
XIV. Ora, nos termos conjugados dos artigos 51º, n.º 1 do CPTA, 160° do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e 28° e 35º da Lei n.º 81/2014, a mera indicação verbal por parte da PSP não configura um ato administrativo, na medida em que não se trata da uma decisão, mas de uma mera declaração/manifestação/aviso.
XV. Pelo que, não tendo sido o Requerente notificado para desocupar e entregar a habitação ocupada sem título, conclui-se pela inexistência de um ato administrativo impugnável na ação principal a que este processo cautelar é instrumental.
XVI. Relativamente ao pedido a ser declarada a existência do direito do Requerente a celebrar um contrato de arrendamento de habitação social, o Tribunal não a poderá declarar, uma vez que o direito a ocupar uma habitação social implica um procedimento prévio tendo em vista a obtenção de um título, a atribuir no âmbito de poderes de valoração próprios da administração.
XVII. E quanto ao pedido de condenação das Entidades Requeridas a absterem-se de perturbar o gozo do locado até que tenha lugar a efetiva celebração do contrato, tal não se afigura viável, pois, nos termos do artigo 39º, n. º2 do CPTA, uma ação administrativa de condenação à não emissão de atos administrativos só poderá ser utilizada em casos de ultima ratio. XVIII. Pois, considerando que ainda não foi praticado qualquer ato administrativo que determine a desocupação, por parte do Requerente, do imóvel, se/quando tal ato for praticado, o Requerente poderá optar pela ação de impugnação, conjugada com um pedido de adoção de providência cautelar tendo em vista a suspensão da eficácia desse ato.
XIX. Em suma, a decisão proferida pelo tribunal a quo não merece qualquer censura.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
***
II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento por ter rejeitado liminarmente o requerimento inicial, nos termos do artigo 116.º do CPTA.
***
III - Matéria de facto.
Considerando que a fixação da matéria de facto na decisão recorrida não foi impugnada, mormente, segundo o ónus prescrito ao Recorrente pelas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, nem há lugar a qualquer alteração dessa mesma factualidade, remetemos para os termos da decisão da 1.ª instância que a decidiu, por ser suficiente a sua consideração para a apreciação do presente recurso, conforme o disposto no n.º 6 do artigo 663.º do CPC, aplicáveis tais comandos legais “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA.
***
IV - Fundamentação de Direito.
A problemática trazida pelo presente recurso tem sido tratada amiudadamente neste TCAS, razão pela qual o seu desfecho não irá dissentir da linha jurisprudencial que, mais recentemente, tem sido tomada.
A questão fundamental reside no âmbito do despacho liminar previsto no artigo 116.º do CPTA, aqui importando perscrutar a abrangência e os limites da rejeição liminar do requerimento cautelar, que tem por referência as causas elencadas nas alíneas a) a f) do seu n.º 2.
Tendo presente as conclusões de recurso, o enfoque dá-se, mormente, na alínea d) do citado dispositivo legal, pois que, o despacho recorrido considerou, em primeiro plano, que a pretensão formulada pelo ora Recorrente padecia de “manifesta falta de fundamento”.
Desde já se adianta que o âmbito de aplicação do despacho liminar de rejeição do requerimento inicial deve circunscrever-se às causas preconizadas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 116.º do CPTA, com especial atenção quando esteja em cima da mesa a aplicação da alínea d), pois que a sindicância à “manifesta falta de fundamento da pretensão formulada” e a consequente decisão de rejeição, numa fase tão precoce ou embrionária do processo, deve ser feita com especial cuidado, rigor e contenção.
Desse juízo inaugural, em que se traduz a primeira intervenção do Juiz no processo, não é conveniente que se extravase de tal forma os limites do despacho liminar e que se acabe a invadir a esfera própria daquilo que constitui o âmago da decisão cautelar propriamente dita, que já demanda, aí sim, uma ponderação mais aprofundada, esclarecida e fundamentada de todos os critérios de decisão plasmados no artigo 120.º, n.º 1, do CPTA.
Relembramos que a fase processual de elaboração da sentença está reservada, como é consabido, para o pós-citação dos requeridos, conhecidas que já sejam as eventuais oposições e junta ou produzida que seja a necessária prova, de cujas etapas processuais brotará um conhecimento eivado de maior clareza, certeza e completude sobre todas as questões de facto e de direito aduzidas pelos contendores (susceptíveis de maior ou menor controvérsia adjectiva ou/e substantiva).
Portanto, a decisão de rejeição liminar do requerimento inicial, ao abrigo da alínea d) do n.º 2 do artigo 116.º do CPTA, deve ser usada com comedimento, reservada que deve estar para as situações em que, no caso concreto, ainda que recorrendo aos critérios do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, seja líquida, ostensiva ou evidente a “falta de fundamento da pretensão formulada”, de que a total ausência de controvérsia interpretativa sobre todas as questões colocadas será um bom exemplo.
Em sentido similar, embora com origem em causa algo diversa de rejeição liminar, mas cujo entendimento não pode deixar de ser tido aqui em conta, atente-se no que aduziu o acórdão deste TCAS, de 13/09/2023, proferido no processo sob o n.º 350/23.8BEALM, “in” www.dgsi.pt, do qual se destaca o seguinte excerto:
15. Também a jurisprudência, nomeadamente a deste TCA Sul, vem sustentando que a rejeição liminar duma providência cautelar deve ser reservada para situações excepcionais, uma vez que a mesma “(…) deve ser utilizada com cautela e reservada para aquelas situações em que seja manifesta a existência de fundamento para tal, pois que a regra é a do prosseguimento dos autos, com a citação da entidade requerida, a apresentação por esta da sua defesa, a instrução do processo e a prolação de decisão, tanto mais que o despacho de rejeição é proferido sem audição da parte” (cfr., neste sentido, os acórdãos deste TCA Sul, de 20-11-2014, proferido no âmbito do processo nº 11555/14, de 16-1-2020, proferido no âmbito do processo nº 1575/19.6BELSB, e de 7-7-2021, proferido no âmbito do processo nº 1893/20.0 BELSB-A-A),
16. Significa isto que a rejeição liminar do requerimento inicial deve ser usada com parcimónia, só devendo ocorrer quando não existe qualquer probabilidade de a pretensão poder vir a proceder (por a mesma ser infundada ou pela existência de excepções dilatórias insupríveis), isto é, só quando é evidente, patente, palmar e segura a desnecessidade de tutela cautelar é que pode ser rejeitado o requerimento inicial, pelo que na dúvida não se pode proceder a tal rejeição.
De igual modo, acolhe-se aqui o entendimento expendido no recente acórdão deste TCAS, de 20/09/2024, de que o ora Relator ali interveio como 1.º Adjunto, tirado no processo sob o n.º 1418/23.6BELSB, ainda não publicado, mas consultável no SITAF, do qual se enfatiza a seguinte passagem: O requerimento inicial apenas pode ser liminarmente rejeitado, nos termos daquele preceito legal, nos casos em que seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada e não quando se conclua pela não existência de uma probabilidade forte de a ação principal vir a proceder.(sublinhado nosso).
Deste modo, em fase tão precoce do processo, o Tribunal a quo só poderia concluir com total certeza e segurança pela “manifesta falta de fundamento da pretensão formulada” se, ante todo o alegado pelo ora Recorrente em sede do requerimento inicial, nomeadamente, no que ao critério do “fumus boni iuris” diz respeito, logo resultasse incontroversa a aplicação e a interpretação dos comandos legais convocados pelo Recorrente e o insucesso de todos os vectores do direito habitacional por este clamado ou de alternativa habitacional, nomeadamente, pela emersão de uma certeza jurídica de que o Recorrente nenhum direito ou protecção de natureza habitacional poderia alcançar em sede do processo principal.
Mas tal certeza não dimana do caso concreto, pelo menos, numa fase tão inicial como a do despacho liminar. Explicitando.
No que diz respeito ao caso dos autos, o Recorrente alega (quer no requerimento inicial quer em conclusões recursivas) que, antes de ocupar a casa municipal (sem título), habitava na rua, pois aufere uma reforma de cerca de €100,00, tem 64 anos, sofre de doença psiquiátrica (esquizofrenia), para a qual é medicado e acompanhado, e que teme ser desocupado/despejado da habitação pela PSP.
O Recorrente, ao nível do direito, aduz (quer no requerimento inicial quer em conclusões recursivas), entre outros argumentos, que por conta do temido despejo e persistindo a carência habitacional, tem o direito a ser encaminhado para soluções legais de acesso à habitação ou para a prestação de apoios habitacionais.
O Recorrente, em abono do alegado, invoca o estatuído no n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, que prescreve o seguinte: Os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”.
Tal dispositivo legal vem ao encontro do que estatui o n.º 4 do artigo 13.º da Lei de Bases da Habitação, aprovada pela Lei n.º 83/2019, de 03/09, que dita o seguinte: “4 - O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento, nos termos definidos na lei, sem prejuízo do número seguinte”.
Isto significa que, caso o Recorrente venha a ser despejado, não está isento de controvérsia o entendimento de que os Recorridos tenham, ou não, de obrigatoriamente ponderar o disposto no supra citado artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, cuja aplicação é clamada pelo Recorrente no caso vertente, pois que, de tal comando legal, indiciariamente resulta uma protecção aos despejados, através de soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, provindo ainda do n.º 4 do artigo 13.º da Lei de Bases da Habitação uma obrigação para os Recorridos em efectivar uma solução de realojamento a favor do Recorrente, se e quando vier a ser despejado.
Dito de outro modo, plausivelmente, é de admitir que, em resultado da interpretação e aplicação dos supra referidos preceitos legais, possa emergir controvérsia, sobretudo, se a perspectiva for a de encarar tais remédios como uma real alternativa habitacional (ou não) de que o ora Recorrente ainda poderá, derradeiramente, vir a beneficiar.
Como se vê, não é assim tão evidente a falta de fundamento da pretensão formulada, que pudesse justificar, logo em despacho liminar, a rejeição do requerimento inicial.
Por conseguinte, é de secundar aqui o entendimento formulado no já citado acórdão deste TCAS, de 13/09/2023, proferido no processo sob o n.º 350/23.8BEALM, que concluiu o seguinte: “18. Deste modo, é manifestamente prematuro o juízo contido na decisão recorrida, nomeadamente no tocante à falta de “fumus boni iuris”, pois a rejeição liminar do requerimento inicial, ao abrigo do nº 2 do artigo 116º do CPTA, exige o carácter evidente e óbvio da falta de fundamento da pretensão.
19. Este erro de julgamento não se traduz em qualquer condicionamento quanto ao juízo que, ponderadamente, venha a fazer-se, no momento próprio, quanto aos pressupostos processuais que têm de estar reunidos e aos requisitos necessários para a decretação da providência cautelar, previstos no artigo 120º do CPTA, ou seja, o erro de que enferma a decisão recorrida não impede que, a final, possa vir a ser julgado improcedente o presente processo cautelar.” (sublinhados nossos).
Deste modo, também neste caso, por prematuridade da conclusão do Tribunal a quo no que toca ao suposto não preenchimento do critério do “fumus boni iuris”, é de considerar que não ocorre a “manifesta falta de fundamento da pretensão formulada”, enquanto causa de rejeição liminar do requerimento inicial inscrita no artigo 116.º, n.º 2, alínea d), do CPTA.
Deve, pois, concluir-se que o aqui apreciado implica que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao rejeitar liminarmente o requerimento inicial com fundamento no preceito legal acima mencionado.
O Tribunal a quo, para continuar a justificar a rejeição liminar do requerimento inicial, ainda considerou, adicionalmente, conforme expressão utilizada na decisão recorrida, o teor dos pedidos a formular na respectiva acção principal, dado que o ora Recorrente, em parágrafo final e logo após o pedido cautelar, ainda os pré-anunciou no final do requerimento inicial, nos seguintes termos:A presente Providência Cautelar irá ser apensada à ação a ser intentada, e de que o presente processo irá depender, será uma ação de reconhecimento de situações jurídicas ao abrigo do disposto do (artº 37º nº 1, F) do CPTA com um pedido, se nada se alterar, equivalente a este:
Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos deve a presente ação ser admitida julgada procedente por provada e por via dela:
a) Determinar a anulação do ato impugnado ( do que deu origem à ordem de despejo informada verbalmente por PSP em 13 e 14 de Abril de 2024, a ser junto pelas Rés) por vício de violação de lei (violação do disposto nos artigos 28º, n.º 6 da Lei 81/2014, na redação da Lei 32/2016, 13.º da Lei 83/2019, de 3/9 (Lei de bases da habitação), e artigos 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 89/2021, de 3/11).
b) Supletivamente, ser declarada a existência do direito do A. a celebrar um contacto de arrendamento de habitação social com as Rés, com recurso aos valores da renda que resultam da Lei, condenando-se consequentemente as Rés a absterem-se de por qualquer forma perturbarem o gozo do locado até que tenha lugar a efetiva celebração do contrato de arrendamento bem como em custas e condigna procuradoria. (sublinhado nosso).
Sem prejuízo da instrumentalidade que caracteriza os processos cautelares, no sentido da providência requerida ter como finalidade a preservação da utilidade da sentença a proferir na acção principal, temos por certo que, ainda que imperfeitamente expressos tais pedidos, nomeadamente, o que visa a impugnação de um suposto acto de despejo, não é de desconsiderar, ainda assim, que o Recorrente também aduziu que a acção principal visaria o “reconhecimento de situações jurídicas ao abrigo do disposto do (art.º 37.º n.º 1, F) do CPTA” - reconhecimento de situações jurídicas subjectivas directamente decorrentes de normas jurídico-administrativas -, o que, em certa medida, pelo menos, em termos ainda meramente perfunctórios, até pode vir ao encontro da medida cautelar especificamente requerida pelo Recorrente, que é a de intimação dos Recorridos para a abstenção de uma conduta (o despejo) que possa colocar em crise, precisamente, uma situação jurídica subjectiva favorável ao mesmo – o direito habitacional ou de alternativa habitacional.
Ora bem, a imperfeição ou a parcial falta de coincidência entre os pedidos a formular pelo Recorrente na acção principal, quando comparados com o tipo de providência cautelar requerida, detectada numa fase tão prematura do processo, não é de molde a determinar, desde já, a rejeição do processo cautelar como fez a decisão recorrida, porquanto, sem olvidar o, por ora, indiciário sincronismo entre a medida cautelar requerida e a acção preconizada na alínea f) do n.º 1 do artigo 37.º do CPTA, não é de menosprezar, de igual modo, que o ora Recorrente, em sede do processo principal, sempre teria a possibilidade de suprir eventuais excepções dilatórias, de aperfeiçoar a petição inicial (cf. artigo 87.º do CPTA), ou até mesmo de alterar o pedido e/ou a causa de pedir, se verificados os requisitos enunciados nos artigos 264.º e 265.º do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 1.º do CPTA.
Por conseguinte, numa fase tão inicial do processo cautelar como é a da emissão do despacho liminar, não é assim tão evidente ou manifesto que o Recorrente, face à tipologia da providência cautelar concretamente requerida, não pudesse intentar a correspectiva acção de reconhecimento preconizada no artigo 37.º, n.º 1, alínea f), do CPTA, o que nos leva a entender que, em fase tão precoce do processo, não é assim tão ostensiva a “falta dos pressupostos processuais” relativos à acção principal, pelo menos, no segmento aqui ventilado (de acção de reconhecimento), conforme exige a alínea f) do n.º 2 do artigo 116.º do CPTA.
Tudo sindicado, não subsiste na decisão recorrida qualquer fundamento que validamente mantenha de pé a decidida rejeição liminar do requerimento inicial. Em consequência, a decisão recorrida deve ser revogada e, com efeito, ser determinada a baixa dos autos ao TAC de Lisboa, tendo em vista o prosseguimento do processo nessa instância, incluindo a apreciação do pedido de decretamento provisório da providência, se a tal nada mais obstar.
***
Custas a cargo do Município Recorrido – cf. artigos 527.º, n.º 1, do CPC, 1.º e 189.º do CPTA, e 7.º, n.º 2, do RCP.
***
Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
O âmbito de aplicação do despacho liminar de rejeição do requerimento inicial deve circunscrever-se às causas preconizadas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 116.º do CPTA, com especial atenção para a exigência do carácter manifesto dessas causas, pois que a sindicância às mesmas e a consequente decisão de rejeição, numa fase tão precoce ou embrionária do processo, deve ser feita com especial cuidado, rigor e contenção, porquanto, desse juízo inaugural e perfunctório, desprovido ainda da completude e firmeza que é dada pelas fases processuais seguintes (pós-citação, com apresentação de oposição e eventual produção de prova), não é conveniente que se extravase de tal forma os limites do despacho liminar e que se acabe a invadir a esfera própria daquilo que já constitui o âmago da decisão cautelar propriamente dita, que, aí sim, demanda uma ponderação mais aprofundada, esclarecida e fundamentada dos critérios de decisão plasmados no artigo 120.º, n.º 1, do CPTA, nomeadamente, com o contributo que pode ser dado com o aporte da posição da contra-parte e da eventual junção ou produção de prova.
***
V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar a baixa dos autos ao TAC de Lisboa, para o seu prosseguimento nessa instância, se a tal nada mais obstar, incluindo o conhecimento do pedido de decretamento provisório da providência.
Custas a cargo do Município Recorrido.
Registe e notifique.
Lisboa, 03 de Outubro de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Lina Costa – (1.ª Adjunta)
Marta Cavaleira – (2.ª Adjunta)
Voto de vencida:
Negaria provimento ao recurso por concordar com o criteriosamente decidido na sentença recorrida, porquanto e em suma, é manifesto que o Recorrente não tem qualquer título que lhe permita estar na habitação social em causa, não foi praticado pelos Recorridos qualquer acto que ameace essa ocupação ilegal e não pode o tribunal substituir-se à Administração no reconhecimento do pretendido direito à habitação.
Lina Costa