Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:405/24.1BESNT-A
Secção:JUÍZA PRESIDENTE
Data do Acordão:06/07/2024
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:INCIDENTE DE ESCUSA DO JUIZ
FUNDAMENTOS
Sumário:
Decisão:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I- RELATÓRIO

A Senhora Juíza de Direito, Dra. T ……………………, em exercício de funções no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (área administrativa – juízo social), veio requerer, à luz do artigo 119º, nºs 1 e 3 e 120º, nº1, alínea b), do Código de Processo Civil, ex vi artigos 1º e 35º, nº1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que lhe seja concedida dispensa de intervir na ação administrativa que, com o nº 405/24.1BESNT, lhe foi distribuída, em que é Ré a Faculdade ……………………………….

A justificar a sua pretensão alegou a escusante que: (i) manteve uma relação laboral com a Ré até ao ano de 2020 - data em que ingressou na formação inicial no CEJ- e que (ii) em 27/07/2023, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, contra a Faculdade …………………, uma ação administrativa, que se encontra pendente nesse Tribunal sob o nº785/23.6BESNT.

Apesar de a Sra. Juíza requerente não ter instruído o incidente com quaisquer documentos que atestem o fundamento alegado no seu pedido de impedimento, a consulta ao SITAF (Sistema de Informação dos Tribunais Administrativos e Fiscais) permitiu-nos apurar que a Senhora juíza escusante é a Autora da ação administrativa que corre termos no TAF de Sintra sob o nº785/23.6BESBT, que esta foi intentada contra a Faculdade ………………. e que a mesma está pendente, uma vez que foi remetida ao juízo administrativo social em 05/05/2024, após a prolação da decisão que julgou o Juízo administrativo comum- onde inicialmente tinha sido distribuída- materialmente incompetente para dela conhecer.


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Como se deixou dito na decisão do Presidente do TCA Sul, de 14/02/2023, no processo nº425/21.8 BESNT-A, consultável em https://www.dgsi.pt., “Nos termos do artigo 119.º, n.º 1 do CPC o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de” intervir na causa quando se verifiquem alguma dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso quando, por circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade”.

A lei não apresenta expressamente a definição de circunstâncias ponderosas, pelo que será a partir do senso e das regras da experiência comum que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas, tendo sempre presente que o regime dos impedimentos/suspeições não se contenta com um qualquer motivo; ao invés exige que o motivo seja “sério, e grave” e “adequado a geral a sua desconfiança sobre a sua imparcialidade” (cfr. art. 120.º, n.º 1, do CPC).

Aos juízes na sua missão de julgar é exigido estatutariamente, como garantia do seu exercício, que o façam com o dever de independência e imparcialidade, nos artigos 4.º e 7.º do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30-7, sucessivamente alterado e republicado pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto.

Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o juízo-valorativo com sujeição apenas à lei, à consciência e às decisões dos tribunais superiores. E ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida.

Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão (cfr. Alberto do Reis, Comentário, vol. I, p. 439 e ss.).

Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz.

Como já repetidamente afirmámos, a imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante (…)” (Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pela ASJP).

Como se afirma no acórdão do STJ de 14.06.2006, proc. n.º 1286/06-5: “No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9-, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.”

A escusa do juiz tem, portanto, como um único objectivo ou finalidade, a de garantir a imparcialidade do juiz, a qual se presume. E só em situações limite, por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve levar o mesmo a ser escusado de intervir num processo.

Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem vindo a entender que a imparcialidade e a objectividade exigidas no exercício da função jurisdicional, deve ser apreciada num duplo sentido: “numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.» que é tanto a subjectiva como a objectiva.” (cfr. notas para um processo equitativo, análise do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado, nºs. 49/50, pp. 114 e 115).”

Na mesma linha diremos ainda que o incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), previsto no artigo 119º e ss do CPC, assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige independência e garantia de imparcialidade dos juízes (ver, entre outros, artigos 2.º, 8.º, 20.º, 202.º e 203.º da CRP; 6.º § 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos; 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 14.º n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

Aqui chegados, impõe-se apurar se há algo nos factos alegados pela Senhora Juíza, constitutivos do fundamento do seu pedido de escusa, que irrefutavelmente denunciem - aos olhos da comunidade em geral- que deixou de oferecer garantias de imparcialidade e de isenção.

Recorde-se que a Senhora Juíza escusante indica, como motivos do pedido de escusa, a circunstância de ter mantido com a Ré da ação principal, a Faculdade de …………………., uma relação laboral /profissional até ao ano de 2020, bem como o facto de ter intentado contra aquela Entidade uma ação administrativa, que corre termos no mesmo Tribunal e Juízo onde exerce funções, sob o nº785/23.6BESNT.

É evidente que, do ponto de vista subjetivo, não está em causa a imparcialidade subjetiva da Senhora Juíza requerente, a qual, aliás, se presume, como também não se põe em dúvida que, se porventura viesse a julgar a ação (de que o presente incidente é apenso), o faria de modo independente e imparcial.

Mas o circunstancialismo descrito pela Senhora Juíza escusante, concretamente o de figurar como Ré na ação que lhe foi distribuída a mesma Entidade contra a qual a Senhora Magistrada havia interposto uma ação administrativa (relevando que ambas as ações correm termos no juízo onde exerce funções), é o bastante para se poder concluir que existe motivo sério e grave apropriado a gerar, na comunidade em geral e na Ré em particular, a desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade da Senhora Magistrada.

É que na perspetiva do cidadão comum e dos destinatários da administração da justiça no caso concreto, a intervenção da Senhora Juíza escusante no julgamento da causa poderia ser alvo de suspeições, face à situação de litigar também- embora noutros autos-, contra a Ré da ação que lhe foi distribuída.

É, pois, a imparcialidade objetiva que aqui se impõe salvaguardar, afastando a Senhora Juíza do processo, porque importa garantir a imparcialidade mas, também, a sua aparência, libertando o julgamento de motivos que possam perturbar a imagem de equidistância.

Podemos dizer, que a Senhora Juíza escusante está colocada no mesmo plano que a mulher de César: não lhe basta ser e saber que é séria e imparcial tem também de parecer neutra, isenta e justa aos olhos da comunidade em nome da qual tem o poder de julgar.

Há, pois, razão para afastar o “juiz natural”.

Assim sendo, e ante o que se deixa exposto defere-se o pedido de dispensa apresentado pela Senhora Juíza de Direito, Dra. T ………………………, relativamente à sua intervenção na ação administrativa que, sob o nº405/24.1BESNT, corre seus termos no Juízo administrativo social do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

Sem tributação.

Notifique.

Lisboa, 07/06/24


A Juíza Presidente

Catarina Almeida e Sousa