Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:630/08.2BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:01/09/2025
Relator:CRISTINA COELHO DA SILVA
Descritores:IRS
ADIANTAMENTO POR CONTA DE LUCROS
PROVA
Sumário:I– O artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do CIRS, sujeita a rendimentos de capitais os lucros, incluindo adiantamentos por conta de lucros, colocados à disposição dos respetivos sócios e/ou associados.
II– Para que se possa considerar que se encontra preenchida a estatuição legal do conceito de adiantamento por conta dos lucros previsto no artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do CIRS é necessário que fique demonstrado que a sociedade teve lucros no exercício e que as entregas feitas aos sócios ocorreram por conexão com os mesmos.
III- De acordo com o artigo 74º, nº 1 da LGT, é sobre a AT que impende o ónus da prova dos pressupostos legais da sua atuação o que, no caso, obrigava a que esta provasse não apenas a existência de lucros a distribuir pelos sócios antecipadamente, mas também que as quantias em questão haviam sido lançadas na contabilidade na sociedade ou, pelo menos, que as mesmas eram provenientes da sociedade.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Contencioso Tributário Comum do Tribunal Central Administrativo Sul



I – RELATÓRIO

J......., com os demais sinais dos autos, impugnou judicialmente a liquidação oficiosa de IRS do exercício de 2003 e respetiva liquidação de juros compensatórios, no valor total de € 21.129,53.

O Tribunal Tributário de Lisboa, por sentença de 17/06/2021 julgou a impugnação improcedente.
O Impugnante, não se conformando com a decisão, veio da mesma interpor recurso jurisdicional.


***

O Recorrente, nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:

“CONCLUSÃO

1.ª- A tributação em sede do IRS, imputada oficiosamente ao Impugnante/Recorrente, louva-se no acréscimo patrimonial efectuado pela ATA aos rendimentos declarados voluntariamente pelo Recorrente, no montante de 48.464,00€, quantia esta que aquela ATA caracterizou como sendo devida a distribuição de lucros ou adiantamentos por conta de lucros, com assento no Art.º 5.º, n.º 1 e n.º 2, al. h) do CIRS (na redacção à data).

2ª- Só que, na verdade, e ao contrário do pretendido ou o afirmado pela ATA, a sociedade de que o Recorrente era sócio, nunca entregou ou colocou à disposição do Recorrente qualquer importância, no exercício de 2003, a título de lucros ou adiantamentos por conta dos lucros, a sair dos lucros gerados pela própria sociedade e resultantes de uma actividade comercial.

3.ª- Na verdade a presente tributação assenta numa ficção jurídica ou numa realidade virtual inventadas pela ATA quando sem nunca ter contactado pessoalmente o Recorrente; sem nunca o ter visto; sem nunca ter pedido o levantamento do sigilo fiscal; sem nunca ter feito prova de que o Recorrente era titular da conta em causa; sem nunca do nada e mais nada, impõe ao Recorrente uma tributação de um rendimento que não usufruiu.

4.ª- Além disso o próprio Recorrente e atendendo ao seu estado de saúde (locomoção reduzida por doença degenerativa incapacitante), não esteve presente no acto da escritura de compra e venda que está na origem da emissão daquele cheque; não conhecer o seu emitente; não o ter recebido; não o ter depositado em qualquer sua conta; não o ter endossado a favor de quem quer que fosse, etc., razão pela qual a tributação em causa sofre do vício de violação da lei (erro nos pressupostos de facto e de direito) por violação das normas de incidência objectiva prevista no Art.º 5.º, n.º 1 e n.º 2, al. h), do CIRS.

5.ª- Aliás o que tudo foi corroborado pelo depoimento isento, credível e transparente da testemunha C....... que descreveu o itinerário ocorrido antes e depois da emissão daquele cheque, inclusive, de quem o recebeu, qual o seu destina, quem o movimentou, etc..

6.ª- Para além de também ter ficado mais que provado e estar amplamente documentado no documento junto os autos (extracto bancário de 29.10.2003 a 20.11.2003) que todo o montante titulado pelo cheque em causa, não foi apropriado pelo Recorrente para seu proveito próprio, mas retornou ao seio da sociedade para ocorrer a gastos/custos resultantes da sua actividade comercial.

7.ª- E não se diga como o fez a suspeita “pro fisco” Sentença Recorrida, violando regras do senso comum, do bom senso e da experiência da vida comum, quando afirma com referência à letra “G” do probatório, “que as transferências em causa podem ter como causa jurídica/económica a emissão desse cheque” , o que é um autêntico disparate e uma completa heresia, sem qualquer justificação ou plausibilidade, pois qual seria a lógica do Recorrente receber a quantia X e transferir de imediato tal quantia para a sociedade Y e após isso a sociedade voltar a devolver-lhe esse valor? Pois se era para locupletar à conta da sociedade então porque razão transferiu tal quantia, em várias tranches para aquela sociedade?,

8.ª- É óbvio, por isso, que a douta Sentença violou e julgou mal e incorrectamente; como se prova pela transcrição da prova testemunhal parcialmente reproduzida no presente Recurso e pela consulta ao documento junto aos autos e já referido supra em 6), os factos vertidos e constantes da alínea B) e da alínea F) e da alínea G), do probatório, dando também uma visão voluntarista não consentânea com a norma da incidência objectiva prevista no Art.º 5.º, n.º 1 e n.º 2, al. h), do CIRS quanto aos factos provados nas als. A) e C), e que não é compatível com as regras da aplicação e interpretação de tal normativo legal.

9.ª- Daí que a decisão constante da Sentença Recorrida deve ser uma decisão bem diferente e totalmente favorável ao Recorrente pois tendo em conta os meios probatórios referidos supra(prova testemunhal e prova documental), os quais não tivessem sido incorrectamente avaliados e julgados, levariam certamente a uma decisão bem diversa da ora sobre censura.

10.ª- Ou seja, de acordo com a prova testemunhal antes reproduzida, a qual é totalmente corroborada pela prova documental junta aos autos a Sentença e caso esta não fosse desconsiderada e mal avaliada com um indelével desinteresse pela sua força probatória, mas também pelas regras da experiência comum, a Sentença a proferir nestes autos deveria ser totalmente favorável ao Recorrente.

11.ª- Aliás e sobre a plenitude da prova documental é uma autêntica heresia dizer como o fez a Sentença Recorrida que a escritura de compra e venda que está na origem da tributação apenas poderia ser comprovada através do competente documento notarial, o que é verdade e consta dos autos, embora não junta pelo Recorrente (exvi Art.º 130.º do CPC) mas sim pelo fisco, como se alcança do PA, o qual se revelou tão importante para a decisão plasmada na sentença recorrida, excepto quanto à cópia da escritura em causa, que não viu ou não quis ver. É na verdade o esplendor da arbitrariedade e da discricionariedade e da recusa pela busca da verdade material, com clara violação do princípio da colaboração e da cooperação e da gestão processual e também do principio doinquisitório, uma vez que tal documento nunca foi solicitado ao Recorrente.

12.ª- Portanto tal quantia não pode ser efectivamente considerada um rendimento auferido pelo Recorrente e como tal sujeito a tributação em sede de IRS, não só por manifesto erro nos seus pressupostos, por não ter ocorrido qualquer transferência financeira da sociedade para o sócio com a origem em lucros/resultados da sociedade, mas também por a liquidação em causa padecer de manifesto erro de facto e de direito nos seus pressupostos.

13.ª- Razão pela qual a liquidação sindicada deve ser anulada por violação das normas de incidência objectiva prevista no Art.º 1.º e no Art.º 5.º, n.º1 e n.º 2, al. h), ambos do CIRS.

Assim, nestes termos, e nos demais de direito que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser considerado procedente e provado e por via dele, deve ser revogada “in totu” a douta Sentença Recorrida. Como é de Justiça.



***

A Recorrida, devidamente notificada, não apresentou contra-alegações.

***

A Exma. Procuradora-Geral Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido da improcedência do presente recurso.

***




Foram colhidos os vistos legais.

***




Delimitação do objeto do recurso

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, em consonância com o disposto no art. 639º do CPC e art. 282º do CPPT, são as conclusões apresentadas pelo recorrente, nas suas alegações de recurso, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer, ficando, deste modo, delimitado o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem.

No caso que aqui nos ocupa, as questões a decidir consistem em saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de facto e de Direito.


***

II – FUNDAMENTAÇÃO
- De facto
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
“Com interesse para a decisão a proferir, consideram-se provados os factos referidos no ponto I supra e, bem assim, os seguintes factos:
A. Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º 01200704175, de 22 de Junho de 2007, foi realizada uma inspecção ao Impugnante, tendo sido elaborado, em 6 de Novembro de 2007, Relatório final com o seguinte teor essencial (cf. fls. 31 e segs. do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):
“(texto integral no original;imagem)”




B. Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos Anexos ao Relatório final referido na letra anterior, a fls. 41 e segs. do PAT apenso, designadamente do Anexo 1, que contém, para além de outro, o seguinte cheque:
“(texto integral no original;imagem)”

C. Sobre o mesmo Relatório final, foi emitido parecer e foi proferido despacho, com o seguinte teor essencial:
“(texto integral no original;imagem)”
“(texto integral no original;imagem)”
G. Em 3 e 10 de Novembro de 2003, foram efectuadas duas transferências, nas quantias de € 10.001,66 e de € 16.001,66, respectivamente, a partir da conta do Impugnante DO 0235 4714 0001, com a descrição “J........” (cf. docs. 1 e 2, juntos a fls. 79 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
H. A sociedade J......., Lda., com o NIPC ........22, tem como sócios gerentes, para além do Impugnante, J........, R........ e C......., esta residente com o Impugnante (cf. fls. 94 e segs. do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).”
*
A decisão da matéria de facto fundou-se no seguinte:
“Assenta a convicção do tribunal no exame dos documentos constantes dos autos e do PAT apenso, atenta a fé que merecem e o facto de não terem sido impugnados, tal como referido em cada letra do probatório.
Os depoimentos das testemunhas inquiridas não foram relevados, uma vez que a outorga, ou não, pelo Impugnante, da escritura de venda que está na origem da tributação, ainda que se admitisse a sua relevância, apenas poderia ser comprovada através do competente documento notarial, que não se vislumbra nos autos e, bem assim, a contitularidade e possibilidade de movimentação da conta do Impugnante por terceiro, igualmente ainda que se admitisse sua relevância, não se basta com a prova testemunhal produzida, atenta, desde logo, a relação da primeira testemunha inquirida com os factos (cf. acta referida no ponto I supra e letra H do probatório). O depoimento da segunda testemunha inquirida apenas teve em vista a interpretação da prova documental constante dos autos e do PAT apenso.
Não foi feita prova de que a importância em questão foi utilizada integralmente nos interesses comerciais da sociedade J......., Lda. (cf. conclusão 7.ª das alegações da Impugnante). Não foi possível estabelecer a relação directa entre o cheque que se encontra mencionado no Relatório final (cf. letras A a C do probatório) e as duas transferências da conta do Impugnante para, aparentemente, a conta da sociedade (cf. letra G do probatório), uma vez que estas transferências podem ter tido como causa jurídica/económica a emissão desse cheque ou qualquer outra causa jurídica/económica, não sendo a prova realizada através desses documentos, só por si, suficiente, em termos de segurança e certeza jurídica requeridas, para os pretendidos efeitos probatórios.”
***
- De Direito

No presente salvatério vem o Recorrente advogar que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de facto e de Direito ao ter considerado que a quantia que foi depositada na conta por si titulada corresponde a adiantamento por conta de lucros como havia pugnado a AT no seu relatório inspectivo.
Para tanto argui que a sentença sob recurso errou quando considerou que as quantias em referência lhe foram colocadas à disposição pela sociedade da qual era sócio, bem como que a prova produzida, designadamente a testemunhal, não foi adequadamente valorada pelo Tribunal a quo.
Comecemos por apreciar o erro de julgamento de facto que o Recorrente imputa à decisão sob escrutínio.
Como sabemos, a impugnação da matéria de facto encontra-se sujeita aos ónus estabelecidos no artigo 640º do CPC, aplicável ex vi art. 281º do CPPT, o que significa deve o Recorrente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [vide, al. a) do nº 1 do art.º 640º do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].
Quando os factos a fixar tenham por base gravações realizadas nos autos, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte.
Na verdade, como ensina António dos Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 169, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto caracteriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão.
Por outro lado, cumpre ainda referir que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito.
No caso em apreciação, o Recorrente, no corpo das suas alegações vem indicar quais são os factos que pretende que sejam dados como provados, bem como qual o meio de prova que suporta tais factos, transcrevendo grande parte do depoimento das duas testemunhas inquiridas, pelo que cumpriu o ónus que sobre si impendia.
Vejamos então.
Pretende o Recorrente que sejam dados como assentes os seguintes factos:
1º - o Recorrente é uma pessoa singular que padece de uma doença degenerativa crónica permanente que lhe retira grande parte da mobilidade, impedindo-o de se deslocar sozinho e pelos seus meios próprios.
2º - Daí que o ora Recorrente esteja quase sempre confinado à sua habitação.
3º - Por isso não outorgou a escritura de compra e venda em nome da sociedade vendedora;
4º - Por isso também não recebeu o cheque em causa;
5º - Por isso não o depositou numa conta só sua e pessoal;
6º - Por isso o Recorrente não endossou tal cheque;
7º - Por isso o Recorrente não beneficiou da sociedade de que é sócio de qualquer tipo de distribuição de lucros ou mesmo de adiantamento por conta de lucros.
No que respeita ao primeiro facto pretendido aditar, o mesmo já resulta do ponto F. da matéria de facto assente pois do Atestado Multiusos no mesmo transcrito consta que o Recorrente possui uma incapacidade de 91%.
No que respeita ao facto pretendido aditar e aqui mencionado como 2º, nada no depoimento da testemunhal C....... o comprova. Na verdade, a testemunha apenas afirmou que o Recorrente durante dois após o conhecimento da doença não saiu de casa. Ora, tal teria ocorrido muitos anos antes dos factos aqui em discussão.
Quanto ao facto indicado como 3º o mesmo não possui qualquer relevância para a decisão pois, na verdade, o que está em causa não se prende com quem outorgou a escritura de compra e venda do imóvel, mas sim onde foi depositado o cheque que está na origem da correção por parte da AT.
Já no que respeita aos factos indicados nos pontos 4º a 6º pretendidos aditar não podemos afirmar que do depoimento da testemunha C....... seja suficiente para os dar como assentes. Na verdade, o depoimento da testemunha não constitui meio de prova bastante, como aliás foi mencionado pelo Tribunal a quo, para sustentar esses factos. Efetivamente, a circunstância de a conta onde o cheque foi depositado ser movimentada ou também titulada pela testemunha C....... carecia de ser comprovada por documentação bancária. Nunca a prova testemunhal bastaria para provar tais factos.
Finalmente, no que respeita à afirmação aqui indicada como 7º a mesma é uma mera conclusão pelo que não é passível de ser aditada à matéria de facto.
Em consequência, indefere-se na totalidade o peticionado.
Passemos agora à apreciação da questão de fundo, ou seja, saber se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de Direito, como defende o Recorrente, ao ter considerado que a liquidação em dissidio não enferma do vício de violação de lei que lhe é assacado.
Esteou a AT a correção aqui em dissidio afirmando que na sequência duma ação inspetiva efetuada à sociedade da qual o aqui Recorrente é sócio-gerente, se ter verificado que os imóveis por ela alienados o foram por montantes superiores àqueles que consta da contabilidade da mesma, tendo apurado que no exercício em questão foi alienado um imóvel, mas que apenas parte do seu real valor de venda foi por ela contabilizado como proveito. Menciona que um cheque no valor de € 96.929,00 foi depositado numa conta bancária titulada pelo Recorrente, sócio-gerente da sociedade e não na conta da sociedade. Em consequência, considerou que o mencionado valor constitui um adiantamento por conta de lucros da sociedade ao seu gerente, invocando como fundamento para tal o disposto no artigo 5º, nº 1 e na alínea h) do nº 2, tendo considerado 50% do seu valor, tendo por base o disposto no artigo 40º-A, do CIRS.
Comecemos por convocar o quadro legal aplicável, sabendo que estamos perante uma liquidação de IRS referente ao exercício de 2003, categoria E.
Determinava, à data dos factos, o artigo 5º do CIRS, na parte que aqui releva, o seguinte:
1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, directa ou indirectamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respectiva modificação, transmissão ou cessação, com excepção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
2 - Os frutos e vantagens económicas referidas no número anterior compreendem, designadamente:
(…)
h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20º; (…)”
O aludido preceito encontra-se inserido na Secção do CIRS relativa às normas de incidência real do IRS e consagra como rendimentos de capitais sujeitos a IRS os lucros e os adiantamentos por conta de lucros colocados à disposição dos respetivos associados.
São dois os pressupostos em que esta norma assente, a saber:
- a existência de lucros por parte dos sujeitos passivos de IRC e
- que os mesmos sejam colocados, pela sociedade, à disposição dos sócios ou associados.
Este preceito não consagra qualquer presunção de recebimento de lucros ou adiantamento por conta de lucros. Para que certa realidade possa ser considerada como tributável ao abrigo deste preceito é necessário que, por um lado, existam lucros e, por outro lado, que os mesmos sejam recebidos ou colocados à disposição dos sócios. Ou seja, para que tais lucros caiam no âmbito de incidência da norma é imprescindível que os mesmos tenham sido colocados à disposição dos seus sócios ou associados pela sociedade.
Tal envolve a necessidade de existirem, por um lado, movimentos contabilísticos que indiquem essa distribuição de lucros da sociedade aos seus sócios, bem como uma deliberação societária a sustentar a distribuição dos lucros e, ainda, prova de que os mesmos foram efetivamente distribuídos ou colocados à disposição dos sócios.
Com efeito, a única presunção legal que se conhece, neste âmbito, é a que decorre da norma do artigo 6.º, n.º 4 do CIRS, na redação então em vigor, segundo a qual os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
Na verdade, muito embora o direito dos sócios aos lucros seja, nas palavras de V. Ferrer Correia, Sociedades Comerciais, in Lições de Direito Comercial, vol. II, 1968, págs. 38 e segs., inderrogável e irrenunciável, em abstrato, a verdade é que, em concreto, os sócios podem renunciar aos mesmos, designadamente por pretenderem aplica-los na atividade da sociedade, pelo que, também em sede fiscal, e por força do aludido artigo 5º do CIRS, para além da necessidade de provar existirem lucros para distribuir só ocorre tributação quando os mesmos são efetivamente distribuídos e colocados à disposição dos sócios ou associados.
A primeira questão que se impõe resolver para que possamos interpretar corretamente o preceito acima, é a se saber o que se deve considerar como lucros duma sociedade.
Se para efeitos de tributação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, o conceito de lucro tributável vem definido no artigo 17º do CIRC com sendo a “(…) soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.”, já, para efeitos contabilísticos, e não nos detendo sobre as diferenças entre lucro líquido e lucro bruto, podemos afirmar que o lucro é o resultado final, aquele que resta após a contabilização de todas as despesas, nas quais se inclui não apenas o custo dos bens vendidos, mas também todas as despesas operacionais e impostos.
Para efeitos do Código das Sociedades Comerciais, devemos entender como lucro os incrementos de património decorrentes do desenvolvimento do objecto social e obtidos na sequência de contratos onerosos com terceiros, as chamadas operações externas, embora nem todos possam ser distribuídos pelos sócios (vide o art. 33º, nº 1 do CSC). Outros ganhos obtidos pelas sociedades ficam sujeitos ao regime da reserva legal e não podem ser distribuídos pelos sócios (art. 295º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais).
Para efeitos de tributação em sede de Categoria E do CIRS, independentemente do conceito que consideremos de lucro, apenas serão objeto de tributação os dividendos colocados à disposição dos sócios e, repete-se, não existe qualquer presunção no que a esta circunstância respeita.
No entanto, o CIRS, no preceito aludido, também sujeita a tributação, nesta sede, os adiantamentos por conta de lucros, pelo que outra das questões fundamentais a resolver é a de saber o que se deve entender por adiantamentos por conta de lucros e em que condições os mesmos podem ser concedidos, em face da lei comercial.
Nos termos da Lei Comercial, apenas encontramos referências aos adiantamentos por conta de lucros no que respeita às sociedades anónimas, mais concretamente no seu art. 297º do CSC. No entanto, a doutrina (ver a título de exemplo Paulo de Tarso Domingues, Variações sobre o capital, Almedina, 2009, pág. 310) defende que apesar do regime apenas estar previsto para a sociedades anónimas o mesmo será de aplicação, por analogia, às sociedades por quotas, por força do disposto no art. 2º do mesmo compêndio legal.
Ora, o preceito mencionado, determina que:
1 - O contrato de sociedade pode autorizar que, no decurso de um exercício, sejam feitos aos accionistas adiantamentos sobre lucros, desde que observadas as seguintes regras:
a) O conselho de administração ou o conselho de administração executivo, com o consentimento do conselho fiscal, da comissão de auditoria ou do conselho geral e de supervisão, resolva o adiantamento;
b) A resolução do conselho de administração ou do conselho de administração executivo seja precedida de um balanço intercalar, elaborado com a antecedência máxima de 30 dias e certificado pelo revisor oficial de contas, que demonstre a existência nessa ocasião de importâncias disponíveis para os aludidos adiantamentos, que devem observar, no que seja aplicável, as regras dos artigos 32.º e 33.º, tendo em conta os resultados verificados durante a parte já decorrida do exercício em que o adiantamento é efectuado;
c) Seja efectuado um só adiantamento no decurso de cada exercício e sempre na segunda metade deste;
d) As importâncias a atribuir como adiantamento não excedam metade das que seriam distribuíveis, referidas na alínea b).
Sem que nos detenhamos muito sobre este regime legal podemos afirmar, grosso modo, que o contrato social pode autorizar que existam adiantamentos por conta de lucros do exercício, sendo que a decisão cabe ao conselho de administração (ou à gerência, no caso das sociedades por quotas), com o consentimento do conselho fiscal, da comissão de auditoria ou do conselho geral e de supervisão (nas sociedades por quotas deverá ser substituído pelo órgão de fiscalização, se existir), precedida dum balanço que sustente a existência de importâncias para realizar os aludidos adiantamentos e que apenas podem ser efetuados na segunda metade do exercício não podendo exceder metade das que seriam distribuíveis.
Efetuado este pequeno enquadramento jurídico, cumpre baixar ao caso dos autos.
Como vimos acima, a AT considerou que o valor recebido pelo Recorrente correspondeu a um adiantamento por conta de lucros, sem que tenha procurado indagar a existência de lucros por forma a justificar uma qualquer antecipação no seu recebimento. Mais, no caso aqui em apreço a AT nem sequer lança mão do disposto no nº 4 do art. 6º do CIRS para presumir que a quantia aqui em questão se deve presumir como um adiantamento por conta de lucro, limita-se a afirmar que o cheque emitido por um cliente da sociedade a favor do aqui Recorrente constitui um adiantamento por conta de lucro.
Ora, não podemos olvidar que em sede do disposto no preceito que sustentou a correção – artigo 5º, nº 2, al. h) – não pode ter por base qualquer presunção. Para que se possa considerar que estamos perante rendimentos nele enquadráveis é necessário que se prove a existência de lucros e que estes foram colocados à disposição dos sócios ou titulares pela sociedade. (neste sentido ver, entre muitos, os acórdãos do TAC Norte de 2/02/2023, no proc. nº 00733/20.5BEPRT e do TCA Sul de 2/11/2023, no proc. nº 319/09.5BELSB).
No caso de adiantamentos por conta de lucros, e como decorre do regime já exposto, necessário se torna a prova da existência duma deliberação a sustentar a sua distribuição antecipada, bem como a prova de que os mesmos foram colocados à disposição dos sócios.
Ora, no caso concreto, não foi sequer alegado pela AT que tenham ocorrido lançamentos nas contas correntes dos sócios da sociedade que sustentem a correção. Também nenhuma prova foi produzida, desde logo porque nem sequer tal é alegado pela AT, de que ocorreram movimentos nas contas bancárias da sociedade a transmitirem tais lucros para os seus sócios.
Na verdade, e mesmo que se considere que não seria necessária a prova da existência duma deliberação da gerência a sustentar uma distribuição antecipada de lucros, ou da escrituração formal dessa realidade como pressuposto de incidência, sempre seria necessário que a AT tivesse amparado a sua correção em factos que provassem a existência, pelo menos, de lucros da sociedade no exercício em questão, bem como que esta sociedade os havia colocado à disposição dos seus sócios pois, como decorre de forma cristalina do disposto no artigo 74º da LGT, é sobre si que recai o ónus de provar o direito que se arroga.
Ora, no caso em apreço, a AT não só não provou a existência de lucros da sociedade, como também nenhuma prova efetuou de que as quantias em referência saíram da sociedade para os seus sócios. Muito pelo contrário. No caso em apreço a alegação e prova da AT refere-se apenas à entrada de fundos provenientes dum terceiro numa conta do Recorrente o que não constitui rendimento enquadrável na alínea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS.
Consequentemente, o ato impugnado está eivado do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de Direito pelo que, ao não ter assim decidido, não se pode manter na ordem jurídica a sentença recorrida.

*
CUSTAS
No que diz respeito à responsabilidade pelas custas do presente Recurso, atendendo ao total provimento do recurso, as custas são da responsabilidade da Recorrida, em ambas as instâncias. [cfr. art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT].

***
III- Decisão
Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção Comum do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, julgar a Impugnação procedente anulando-se o ato de liquidação impugnado.
Custas pelo Recorrida, em ambas as instâncias.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2025
Cristina Coelho da Silva - Relatora
Tânia Meireles da Cunha
Margarida Reis