Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:821/20.8BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:07/15/2025
Relator:MARIA DA LUZ CARDOSO
Descritores:IVA
NULIDADE DA DECISÃO POR FALTA DE FUNDAMENTO DE FACTO
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário:I - A nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto, abarca não apenas a falta de discriminação dos factos provados e não provados, a que se refere o artigo 123º, nº 2 do CPPT, mas também a falta de exame crítico das provas, prevista no artigo 659º, nº 3 do CPC.
II - A referida nulidade da decisão por falta de fundamentação de facto só ocorre quando haja total omissão dos fundamentos de facto em que assenta a decisão.
III - Nos termos do artigo 615º, nº.1, al. e), do CPC, ex vi do artigo 281º, do CPPT, é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior, assim infringindo o brocardo latino ne eat iudex ultra petita partium.
IV - Em respeito pelo princípio do inquisitório, o Juiz deve realizar todas as diligências ao seu alcance, por forma a atingir a verdade material e, assim, o interesse público, no entanto o mesmo tem de ser interpretado, sopesando as concretas exigências em termos de distribuição do ónus da prova, sob pena de violação inclusive do princípio da igualdade de armas.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO



Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul


I - RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA (doravante Recorrente), veio recorrer da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada no dia 11.08.2024, na impugnação judicial intentada por V......., LDA, (doravante Recorrida), contra as liquidações de IRC e IVA referentes aos anos de 2015, 2016 e 2017, que a julgou parcialmente procedente, anulando os atos tributários impugnados em sede de IVA, no valor peticionado de € 185.565,35, e os atos tributários impugnados em sede de IRC e de IVA, na parte em que refletem as correções efetuadas em sede de IRC no valor de € 269.868,85, mantendo-se os atos tributários impugnados quanto ao demais, tudo com as demais consequências legais.

*

Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou alegações,
formulando, a final, as seguintes conclusões:

3. CONCLUSÕES

1. O presente recurso vem interposto na sequência da Douta Sentença proferida nos presentes autos, que decidiu julgar a «[p]ressente impugnação judicial parcialmente procedente, anulando-se os atos tributários impugnados em sede de IVA, no valor peticionado de € 185.565,35, e os atos tributários impugnados em sede de IRC e de IVA, na parte em que refletem as correções efetuadas em sede de IRC no valor de € 269.868,85, mantendo-se os atos tributários impugnados quanto ao demais, tudo com as demais consequências legais.»;

2. Sem quebra do devido respeito, que é muito, não pode a Fazenda Pública conformar-se, nem concordar, com o decidido na douta sentença, na parte respeitante ao quantitativo do valor a anular nas liquidações de IVA controvertidas, pelos motivos que se passam a expor.

3. Para decidir como decidiu, depois de um percurso cognitivo sobre as normas aplicáveis aos factos dados como provados ao IVA e IRC (artigos 16.º, n.º 1 e 5, alínea a), 27.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 e 49.º, todos do Código do IVA, decisão sobre a matéria do TJUE e jurisprudência do próprio tribunal), entendeu, como fundamento para o decidido, aplicando o direito, que assiste razão à Impugnante, pelo que as liquidações adicionais de IVA padecem de erro.

4. Logo, considerando que a Impugnante contesta a liquidação do IVA na parte em que não foi efetuado o cálculo “por dentro”, verificando-se que, a final, na sua petição inicial, formula um pedido no valor de € 185.565,35, (…) é, pois, de determinar a anulação das liquidações adicionais de IVA, no valor de € 185.565,35, como peticionado, com as demais consequências legais.

5. Com todo o respeito, que é muito, como se demonstrará infra, não podemos de forma alguma concordar, de todo, com a decisão proferida pelo tribunal recorrido, no que concerne ao valor global de IVA (€ 185.565,35), que o tribunal decidiu anular nas liquidações adicionais controvertidas;

6. Entendermos que a fixação daquela quantia padece de uma clara falta de fundamentação de facto, pelo facto de aquele valor não ter sido dado como provado, ou não provado, não ter sido efetuada uma análise critica ao mesmo, e consequentemente, não se encontrar em momento algum demonstrado o porquê daquele valor, e não de ouro, ou se o mesmo corresponde efetivamente ao que resulta da decisão proferida e da correta aplicação do direito.

7. Por esse facto, só se pode considerar não fundamentada a decisão proferida, nesta parte, dado que a mesma, para além de não especificar os fundamentos de facto que levaram a concluir pelo valor de € 185.565,35, ser igualmente totalmente omissa quando à indicação dos meios probatórios que suportam a sentença, pelo que não pode deixar de se determinar a sua nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, que a suportaram;

8. Tendo presente os “Princípios do inquisitório” e da “Descoberta da verdade material”, consagrados nos artigos 99.º e 13º do CPPT, o tribunal não poderia deixar de encetar diligência no âmbito da instrução do processo, tendo em vista a descoberta da verdade material, no sentido de constatar se o valor de anulação pretendido pela Impugnante era o que efetivamente resultava da correta aplicação do direito, o que neste caso não fez, limitando-se a validar a quantia indicado pela Impugnante, sem mais, verificando-se consequentemente, uma deficiente instrução do processo.

9. A acrescer o facto de estarmos perante liquidações tributárias autónomas entre si, o que implicaria uma pronúncia de anulação individualizada relativamente a cada período da tributação, o que também não se verifica, de forma alguma.

10.Assim, como se disse supra, verificando-se uma total ausência da indicação dos meios probatórios que suportam a sentença proferida pelo tribunal “a quo”, não pode deixar de se determinar a sua nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, o que se requere, com as inerentes consequências legais.

11.Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, sem conceder, da mesma forma, não se pode manter a decisão proferida pelo tribunal recorrido de anular parcialmente as liquidações de IVA referentes aos anos de 2015, 2016, 2017, controvertidas, no valor de € 185.565,35, por não ser esse o valor que corresponde à correta aplicação do julgado.

12.O valor que efetivamente deverá ser anulado com a imputação a cada uma das liquidações controvertidas, tendo por base os elementos extraídos da contabilidade da Impugnante, devidamente destacados em sede de RIT e não contestados, será de 132.403,62 € [20.671,91 € (2015), 62.927,02 € (2016) e 48.804,96 € (2017)), e não o valor de € 185.565,35, infundadamente indicado pelo tribunal recorrido, como se demonstra:

Ano 2015 (Vide Anexo 1)
QUADRO 1 – APURAMENTO DO IVA EM FALTA/ANULAR SOBRE O VALOR DA FACTURA “POR DENTRO” NO ANO DE 2015

Ano 2016 (Vide Anexo 2)
QUADRO 2 – APURAMENTO DO IVA EM FALTA/ANULAR SOBRE O VALOR DA FACTURAPOR DENTRO” NO ANO DE 2016

Ano 2017 (Vide Anexo 3)
QUADRO 3 – APURAMENTO DO IVA EM FALTA/ANULAR SOBRE O VALOR DA FACTURAPOR DENTRO” NO ANO DE 2017


13. Consequentemente, deve a sentença recorrida ser substituída por douto acórdão que faça uma correta aplicação do direito aos referidos factos, e em face do decidido naquela, determinar a anulação das liquidações controvertidas no valor de € 132.409,63, devidamente imputado a cada período de tributação de acordo com o quadro supra, com as inerentes consequências legais.

14. DO PEDIDO

Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V.as Ex.as se dignem julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e, em consequência,
- ser a douta Sentença ora recorrida anulada por falta de fundamentação de facto (artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, aplicável ex. vi. Artigo 2.º alínea f) do CPPT), relativamente o valor global de € 185.565,35 que entendeu ser de anular nas liquidações controvertidas, com as inerentes consequências legais; ou,
caso assim não se entenda, o que mera hipótese académica se admite, sem conceder,
- ser a sentença recorrida substituída por douto acórdão que faça uma correta aplicação do direito (artigos 16.º, n.º 1 e 5, alínea a), 27.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 e 49.º, todos do Código do IVA) aos referidos factos, e em face do decidido naquela, determinar a anulação das liquidações controvertidas no valor de € 132.409,63, devidamente imputado a cada período de tributação de acordo com o quadro supra, em detrimento da quantia de € 185.565,35, erradamente estipulada pelo tribunal “a quo”, igualmente, com as inerentes consequências legais.”
*

A Recorrida devidamente notificada da admissão do recurso, não apresentou contra-alegações.
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O MINISTÉRIO PÚBLICO neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais (artigo 657º, n. º2 do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 281º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)), cumpre apreciar e decidir.

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Delimitação do objeto do recurso

Em ordem ao consignado no artigo 639º do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282º do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir:
i) Se a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação de facto, relativamente o valor global de € 185.565,35, que entendeu ser de anular nas liquidações controvertidas.

ii) Se a decisão recorrida incorreu na violação do princípio do Inquisitório, porquanto limitou-se a validar, sem mais, a quantia indicada pela Impugnante e com deficiente instrução do processo.

iii) Se a sentença recorrida deve ser substituída por outra que faça uma diferente aplicação do direito (artigos 16.º, n.º 1 e 5, alínea a), 27.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 e 49.º, todos do Código do IVA) aos factos e determine a anulação das liquidações controvertidas no valor de € 132.409,63, devidamente imputado a cada período de tributação em detrimento da quantia de € 185.565,35, erradamente estipulada pelo tribunal.


***

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1- De facto

III.A. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Consideram-se provados os seguintes factos, constantes dos autos e no processo administrativo instrutor, e resultantes do depoimento das testemunhas inquiridas, com relevância para a decisão da causa, de acordo com as várias soluções plausíveis das questões de direito, tudo se dando por integralmente reproduzido:

a) A Impugnante é uma sociedade que tem como objeto o comércio e reparação automóvel, importação e exportação automóvel, e desenvolvimento de atividades auxiliares de intermediação financeira, exercendo atividade principal de comércio de veículos automóveis ligeiros sob o CAE 45110 (cf. fls. 387 a 724 (66 a 68) do SITAF);

b) Ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI201800468, OI201800469 e OI201800470, foi efetuada pela Divisão de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Setúbal uma ação inspetiva com referência ao IRC e ao IVA dos anos de 2015, 2016 e 2017 da ora Impugnante (cf. fls. 387 a 724 (8 a 55) do SITAF);

c) Em 01.10.2019, foi elaborado o relatório de inspeção tributária referente à ação inspetiva referida em b) supra (cf. fls. 32 a 62 (16 a 31), 63 a 83, 84 a 105 (1 a 15) e fls. 387 a 724 (8 a 55) do SITAF);

d) Do relatório de inspeção tributária referido na alínea c) supra, extrai-se do capítulo “III – Descrição dos factos e fundamento das correções meramente técnicas à matéria coletável”, no que ora releva, o seguinte:


“(texto integral no original; imagem)”

(…)


“(texto integral no original; imagem)”

(cf. fls. 387 a 724 (8 a 55) do SITAF);

e) Em resposta ao direito de audição prévia apresentado pela Impugnante, do relatório de inspeção tributária referido na alínea c) supra, extrai-se do capítulo “IX – Direito de Audição”, no que ora releva, o seguinte:


“(texto integral no original; imagem)”

(cf. fls. 387 a 724 (8 a 55) do SITAF);

f) Nos anos de 2015 a 2017, a Impugnante adquiriu veículos em território de outros Estados membros da União Europeia, que posteriormente alienou a clientes em território nacional (cf. facto que se extrai do relatório de inspeção tributária a fls. 387 a 724 (8 a 55) do SITAF);

g) Com referência aos anos de 2015 a 2017, no âmbito da ação inspetiva a que se refere a alínea b) que antecede, com base nas informações fornecidas aos serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Setúbal pelas entidades K –…, S.A. – C….., B…., S.A. e S….., foram elaborados pelos serviços de inspeção tributária os seguintes quadros:


“(texto integral no original; imagem)”

(cf. fls. 387 a 724 (262 a 278) do SITAF)

h) Nos anos de 2015 a 2017, as faturas de venda dos veículos em território nacional emitidas pela Impugnante contêm as menções “Regime da margem de lucro – Bens em segunda mão” e mencionam IVA “0,00%” (cf. fls. 387 a 724 (296 a 338), fls. 727 a 1133, 1136 a 1532 (1 a 352) do SITAF);

i) As faturas de venda de veículos emitidas pelos fornecedores da Impugnante não contêm a menção à aplicação do “Regime da Margem” (cf. fls. 387 a 724 (296 a 338), fls. 727 a 1133, 1136 a 1532 (1 a 352) do SITAF);

j) Em 07.10.2019, foram emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em nome da Impugnante, as seguintes liquidações adicionais de IRC e de IVA e correspondentes liquidações de juros compensatórios e demonstrações de acerto de contas:

(cf. fls. 84 a 105 (16 a 22), fls. 106 a 126 e 127 a 156 (1 a 29) do SITAF);

k) Em 07.02.2020, deu entrada na Direção de Finanças de Setúbal reclamação graciosa apresentada pela Impugnante contra os atos tributários a que se refere a alínea j) que antecede (cf. fls. 127 a 156 (30), fls. 157 a 186, fls. 187 a 216, fls. 217 a 246, fls. 247 a 276 (1 a 20), fls. 1535 a 1754 (157 a 220) e fls. 1757 a 1855 (1 a 47 e 50) do SITAF);

l) A Impugnante instruiu a reclamação graciosa a que se refere a alínea k) que antecede com um conjunto de documentos emitidos pelo Banco C….., S.A., dos quais consta a referência a um “Valor solicitado” e a um “Valor a creditar”, capeados por um quadro que se transcreve:


“(texto integral no original; imagem)”

(cf. fls. 157 a 186 (23 a 30), fls. 187 a 216, fls. 217 a 246, fls. 247 a 276 (1 a 16), fls. 1535 a 1754 (180 a 220) e fls. 1757 a 1855 (1 a 43) do SITAF);

m) A Impugnante instruiu ainda a reclamação graciosa a que se refere a alínea k) que antecede com um quadro identificativo das situações em que considerou que os valores estavam “errados”, que se transcreve:


“(texto integral no original; imagem)”

(cf. fls. 247 a 276 (17 a 18) e fls. 1757 a 1855 (44 a 45) do SITAF);

n) Em 15.07.2020, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º 224020200400579, foi elaborada Informação pela Direção de Finanças de Setúbal, no que ora releva, com o seguinte teor:

(cf. fls. 247 a 276 (24 a 30), fls. 277 a 303 (1 a 3) e fls. 1757 a 1855 (62 a 71) do SITAF);

o) Sobre a Informação referida na alínea n) que antecede recaiu o despacho do Chefe de Divisão de 06.08.2020 com o seguinte teor: “Confirmo. Considero a informação anterior como projeto de decisão” (cf. fls. 247 a 276 (23) e fls. 1757 a 1855 (62) do SITAF);

p) Em 06.08.2020, foi dirigida à mandatária da Impugnante, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º 224020200400579, comunicação proveniente da Direção de Finanças de Setúbal sob o assunto “Notificação de Audição Prévia” (cf. fls. 247 a 276 (22) e fls. 1757 a 1855 (72) do SITAF);

q) Em 25.08.2020, a Impugnante apresentou requerimento de audição prévia (cf. fls. 277 a 303 (3 a 17) e fls. 1757 a 1855 (74 a 91) do SITAF);

r) Em 17.09.2020, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º 224020200400579, foi elaborada Informação pela Direção de Finanças de Setúbal, no que ora releva, com o seguinte teor:


“(texto integral no original; imagem)”

(cf. fls. 277 a 303 (21 a 25) e fls. 1757 a 1855 (92 a 97) do SITAF);

s) Sobre a Informação referida na alínea r) que antecede recaiu o despacho do Chefe de Divisão de 23.09.2020 com o seguinte teor: “Confirmo. Pelo que indefiro o pedido tal como vem proposto nesta informação” (cf. fls. 277 a 303 (20) e fls. 1757 a 1855 (92) do SITAF);

t) Em 23.09.2020, foi dirigida à mandatária da Impugnante, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º 224020200400579, comunicação proveniente da Direção de Finanças de Setúbal sob o assunto “Notificação de Decisão Final” (cf. fls. 277 a 303 (19) e fls. 1757 a 1855 (98) do SITAF);

u) Em 29.12.2020, a presente impugnação judicial foi remetida a este Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada por carta registada com aviso de receção com a referência RH 573390610PT (cf. fls. 277 a 303 (27) do SITAF);

v) Nos anos de 2015 e 2016, alguns dos clientes da Impugnante, que lhe adquiriram viaturas, solicitaram um financiamento num montante que incluísse, para além do valor necessário para adquirir a viatura, uma quantia que lhes permitisse abater uma dívida anterior (cf. depoimento das testemunhas B....... e R....... e fls. 1535 a 1754 (186) e fls. 1757 a 1855 (3) do SITAF).”


*
Factos não provados

“Não se considerou como provado, com relevância para a decisão da causa:

i) Que o valor de venda das viaturas fixado pela Impugnante e faturado aos clientes tivesse o IVA incluído.”

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Motivação

“Motivação da decisão de facto:

A convicção do Tribunal quanto à decisão sobre a matéria de facto baseou-se na análise da prova produzida nos autos, nomeadamente nos documentos juntos com os articulados, que não foram impugnados, e no processo administrativo instrutor, e no depoimento das testemunhas inquiridas, conforme referido a propósito de cada ponto da factualidade acima dada como provada.

Nos presentes autos, foram inquiridas as testemunhas B....... e R......., que contribuíram para a fixação do facto dado como provado na alínea v) da factualidade dada como provada.

A testemunha B....... recordava-se de ter adquirido um veículo à Impugnante, tendo referido, de forma espontânea e sem hesitações, que o valor pelo qual adquiriu a viatura não correspondia ao valor do crédito peticionado, uma vez que necessitou de regularizar um crédito anterior, declarações que mereceram credibilidade ao Tribunal.

A testemunha R....... também se recordava de ter adquirido um veículo à Impugnante, embora já não estivesse certo dos valores.

Afirmou recordar-se de ter solicitado um crédito e de ter entregue uma viatura em retoma, tendo um crédito anterior para regularizar, não conseguindo, todavia, recordar-se dos montantes em causa.

Não obstante o exposto, a testemunha mereceu também credibilidade ao Tribunal, de acordo com as regras da experiência comum, atendendo ao tempo já decorrido desde a venda, realizada em 2016, e a circunstância de, como afirmou, já ter adquirido outros veículos à Impugnante, motivos pelos quais se afigurou plausível não conseguir precisar, com certeza, os montantes pelos quais efetuou este negócio em concreto.

Os depoimentos das testemunhas foram corroborados pelos documentos juntos aos autos, nomeadamente a fls. 1535 a 1754 (186) e fls. 1757 a 1855 (3) do SITAF, dos quais resulta ter sido comunicado pelo Banco C......., S.A. um valor a creditar inferior ao valor do financiamento solicitado.

Quanto ao facto dado como não provado, atendendo ao princípio do ónus da prova previsto no artigo 342.º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, não foi produzida prova que pudesse demonstrar o alegado.

Desde logo, não é apresentada qualquer prova pela Impugnante que evidencie o facto que alega.

Acresce que, da factualidade dada como provada nos autos, é possível concluir em sentido contrário ao que se alega.

Com efeito, foi dado como demonstrado nos autos que as faturas emitidas pela Impugnante (cf. alínea h) da factualidade dada como provada) continham a menção a IVA a “0,00%”.

Das mesmas só se pode extrair a conclusão, pois, de que não continham IVA incluído.

Em face do exposto, deu-se tal facto como não provado.


***

II.2 - De direito

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão que julgou a presente impugnação judicial parcialmente procedente, anulando, para o que aqui interessa, os atos tributários impugnados em sede de IVA, no valor peticionado de € 185.565,35.
Discorda a Recorrente do teor da sentença recorrida, tão só, nessa parte que determinou a anulação nas liquidações de IVA do valor € 185.565,35, por entender que a fixação daquela quantia padece de uma clara falta de fundamentação de facto, não se encontrando demonstrado o porquê daquele valor.

A Recorrente alega, que, verificando-se uma total ausência da indicação dos meios probatórios que suportam a sentença nesta parte, não pode deixar de se determinar a sua nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, com as inerentes consequências legais.

Entende a Recorrente, que, tendo presente os “Princípios do inquisitório” e da “Descoberta da verdade material”, consagrados nos artigos 99º e 13º do CPPT, o tribunal não poderia deixar de encetar diligências no âmbito da instrução do processo, tendo em vista a descoberta da verdade material, no sentido de constatar se o valor de anulação pretendido pela Impugnante era o que efetivamente resultava da correta aplicação do direito, o que neste caso não fez, limitando-se a validar a quantia indicado pela Impugnante, sem mais, verificando-se consequentemente, uma deficiente instrução do processo.

Mais advoga, que, pelo facto de se tratar de liquidações tributárias autónomas entre si, implicaria uma pronúncia de anulação individualizada relativamente a cada período da tributação, o que também não se verifica.

Conclui que não poderá manter-se a decisão proferida pelo tribunal recorrido, de anulação parcial das liquidações de IVA referentes aos anos de 2015, 2016 e 2017, controvertidas, no valor de € 185.565,35, por não ser esse o valor que corresponde à correta aplicação do julgado.

Vejamos então.

Ab initio, e em termos de delimitação da lide cumpre, desde logo, relevar que a Recorrente não põe em causa o entendimento que foi sufragado pelo Tribunal quanto ao modo de cálculo do IVA pela margem- aliás sustentado em Jurisprudência do TJUE, e do STA- apenas sindica o seu concreto quantum, primeiro numa dimensão de nulidade, por falta de fundamentação de facto, e depois numa óptica de corporização do erro de quantum.

Comecemos, então, por aquilatar da nulidade da decisão.

Quanto à alegada nulidade da sentença recorrida na parte em questão, pela falta de especificação dos fundamentos de facto e, bem assim da falta de motivação do julgamento de facto da decisão, diga-se, que, efetivamente, a falta de exame crítico da prova configura uma causa de nulidade da sentença porquanto a nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, al. b) do CPC e no n.º 1 do artigo 125º do CPPT abrange não só a falta de especificação dos factos provados e não provados, conforme exige o artigo 123º, n.º 2, do CPPT, mas também a falta de exame crítico da prova, requisito igualmente exigido no artigo 607º, n.º 4, do CPC (cf. Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág. 358; acórdão do STA, de 12.02.2003, proferido no rec.1850/02 e, acórdãos deste TCA Norte de 08.03.2012 in proc. n° 329/05.1BEMDL, de 09.06.2016, in proc. n° 288/09.1BEMDL e de 01.06.2017, in proc. n°00032/10.0BEPRT).

Na realidade, a fundamentação de facto da decisão judicial deve incluir, não só a indicação dos elementos de prova que foram utilizados para formar a convicção do juiz, como a sua apreciação crítica, sendo caso disso, de forma a ser possível conhecer as razões por que se decidiu no sentido em que o foi e não noutro.

Note-se que esta nulidade - falta de especificação dos fundamentos de facto da sentença – corresponde, a montante, à exigência de fundamentação da sentença, no que respeita à fixação da matéria de facto, tal como prevê o artigo 123º, nº2 do CPPT - “O juiz discriminará também a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões”.

Como ensina M. Teixeira de Sousa “… o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente …” Vide, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lx 1997, pág. 348.

Neste sentido, relativamente à fundamentação de facto, só a falta de concretização dos factos provados que servem de base à decisão, permite que seja deduzida a nulidade da sentença.

Adianta-se desde já, que, inversamente ao que é evidenciado pela Recorrente, a fixação da quantia emerge do probatório, inexistindo, de todo, qualquer falta de fundamentação de facto.

Ora, in casu, a Impugnante invocou que a Administração Tributária liquidou indevidamente o IVA sobre o valor da fatura, sem que tivesse excluído, primeiramente, o IVA que estava incluído, ainda que não discriminado, no valor daquela fatura.

No seu entender, apenas seria devido IVA no valor de € 360.908,96, estando em causa IVA indevidamente liquidado no valor de € 185.565,35.

O Tribunal a quo deu-lhe razão.

Por outro lado, importa sublinhar que a Recorrente, limita-se a evidenciar que não resulta do probatório essa quantificação, mas nada refere quanto à concreta complementação ou aditamento que deveria resultar no acervo dos autos.

Não basta evidenciar de forma absolutamente conclusiva que não resulta do probatório, sem depois avançar, de forma devidamente concretizada, o que, em rigor, dele deveria constar.
Acresce que, como é consabido quanto à falta de fundamentação de facto, a Doutrina tem entendido que o vício em análise apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito, o mesmo sucedendo com a Jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Com efeito, para que a sentença padeça do vício que consubstancia esta nulidade é necessário que a falta de fundamentação seja absoluta, não bastando que a justificação da decisão se mostre deficiente, incompleta ou não convincente.

É inequívoco que tem de existir uma falta absoluta de motivação, tanto de facto, como de direito, realidade que não sucede no caso vertente, conforme resulta da interpretação conjugada do item da fundamentação de facto e bem assim da motivação da matéria de facto para o qual, ora, se remete.

Aliás, mediante uma leitura rigorosa da decisão recorrida verifica-se, justamente, o inverso.

Senão vejamos:

Sobre esta matéria, é a seguinte a fundamentação constante na sentença recorrida, que se transcreve nos trechos pertinentes:

Como emerge do probatório, não foi dado como provado que as faturas tivessem
IVA incluído (cf. facto não provado).

Com efeito, para além das faturas incluírem a menção a IVA a “0,00%” (cf. alínea h) da factualidade dada como provada), não foi demonstrado pela Impugnante que o valor constante das faturas já tivesse sido apurado, neste contexto, com o IVA incluído.

Não obstante tal constatação, a verdade é que, como se demonstrará, o IVA a liquidar adicionalmente não poderá deixar de ser calculado “por dentro”, relevando o preço indicado como se ele incluísse IVA.

De facto, sobre esta temática tem sido proferida jurisprudência dos nossos tribunais superiores, em particular na sequência de decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a que importa atender para decidir esta questão.

Dessa jurisprudência resulta que, numa situação idêntica à dos presentes autos, não tendo o sujeito passivo a possibilidade de repercutir nos consumidores finais o IVA que lhe foi adicionalmente liquidado, não poderá deixar de se considerar que o preço constante da fatura inclui já o IVA.

Efetivamente, recentemente, em situação idêntica à que aqui se controverte, foi proferido em 29.05.2024 acórdão pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 0599/18.5BEALM, em que se sumariou o seguinte: “I- Da decisão do TJUE resulta que quando um sujeito passivo de IVA tenha erradamente feito constar das faturas que emitiu aos consumidores finais uma taxa de IVA de zero, embora fosse aplicável uma taxa superior, deve não obstante considerar-se que o preço ou o montante indicado nessas faturas é um preço que já inclui IVA, a menos que, nos termos do direito nacional, o sujeito passivo tenha a possibilidade de repercutir nos consumidores finais e de recuperar junto destes últimos o IVA correspondente à aplicação da taxa retificada. II - Ganha suporte sólido a posição do recorrente que defende que o imposto deve ser calculado “por dentro” (deve ser considerado que o preço mencionado na fatura inclui já o IVA), e não, “por fora” (IVA calculado fazendo acrescer ao valor da fatura a taxa de IVA), como sustenta a AT”.

Com efeito, como se decidiu no aludido acórdão, “(…) o Tribunal de Justiça já se pronunciou nos diversos arestos identificados pelo Recorrente sobre o modo de cálculo do IVA em diferentes situações. Assim, no acórdão de 22/11/2018, proferido no Processo C-295/17, o TJUE afirmou o seguinte:

55 Por outro lado, dado que o sistema do IVA tem como objetivo onerar unicamente o consumidor final, o valor tributável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais não pode ser superior à contraprestação efetivamente paga pelo consumidor final, sobre a qual foi calculado o IVA que recai em definitivo sobre esse consumidor (v., neste sentido, Acórdão de 24 de outubro de 1996, Elida Gibbs, C-317/94, EU:C:1996:400, n.º 19).
56 Por isso, há que acrescentar, para todos os efeitos úteis e como a advogada geral salientou no n.º 55 das suas conclusões, que, se for necessário, caberá às autoridades nacionais competentes proceder, nas condições fixadas pelo direito nacional, à correção do IVA em conformidade, tal como previsto no artigo 90.º da Diretiva IVA, para que o IVA seja deduzido do montante que o prestador de serviços efetivamente recebeu do seu cliente.
No acórdão de 15/04/2021, proferido no Processo n.º C-846/19, o TJUE afirmou: 93 No que respeita, por outro lado, à hipótese, evocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, de o prestador ter realizado prestações de serviços sem cobrança do IVA de que era devedor, e de não estar em condições de recuperar junto de quem pagou essas prestações o IVA posteriormente exigido pela administração tributária, há que considerar, se essa hipótese se concretizar, que as remunerações recebidas a esse título pelo prestador de serviços incluem já o IVA devido, pelo que a cobrança do IVA é compatível com o princípio de base da Diretiva IVA segundo o qual o sistema do IVA tem como objetivo onerar unicamente o consumidor final (v., neste sentido, Acórdão de 7 de novembro de 2013, Tulicã e Plavoºin, C 249/12 e C 250/12, EU:C:2013:722, n.ºs 34, 42 e 43)

No acórdão de 01/07/2021, proferido no Processo n.º C-521/19 (a Administração detetou operações ocultas sujeitas a IVA e não faturadas), o TJUE decidiu aplicar esse regime mesmo nos casos de fraude, tendo declarado: A Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, nomeadamente os seus artigos 73º e 78º, lidos à luz do princípio da neutralidade do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), deve ser interpretada no sentido de que, quando os sujeitos passivos do IVA, por meio de fraude, não indicaram a existência da operação à Administração Tributária, não emitiram fatura nem incluíram os rendimentos gerados por ocasião desta operação numa declaração a título de impostos diretos, deve considerar-se que a reconstituição, no âmbito da inspeção de tal declaração, dos montantes pagos e recebidos durante a operação em causa levada a cabo pela Administração Tributária em causa é um preço que já inclui o IVA, a menos que, nos termos do direito nacional, os sujeitos passivos tenham a possibilidade de fazer repercutir e deduzir ulteriormente o IVA em causa, não obstante a fraude.

Dos arestos citados facilmente se conclui que o TJUE entende, como refere o Recorrente, que o sistema do IVA tem como objetivo onerar unicamente o consumidor final e que o valor tributável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais, não pode ser superior à contraprestação efetivamente paga pelo consumidor final. O que aponta para o cálculo do IVA “por dentro”, tal como defende o Recorrente. Acontece que o caso sub judice apresenta a particularidade de o sujeito passivo ter mencionado nas faturas “Artigo 16.º, n.º 6 CIVA” ou “Regime da margem – Bens em segunda mão” e, quanto ao IVA “0%”, e de ter sido dado como não provado que “as faturas têm no preço de venda cobrado ao consumidor final IVA incluído”, situação que se diferencia daquelas em que na fatura nada foi dito sobre o IVA, ou nenhuma fatura foi emitida.

3.5. Ora, conjugando o que foi exposto com a decisão inequívoca e clara do Tribunal de Justiça da União Europeia em resposta à questão formulada: Tendo em conta os contornos particulares do caso, em face do disposto nos artigos 73.º e 78.º da Diretiva 2006/112/CE, e do princípio da neutralidade fiscal, é conforme ao direito da União, considerar-se que o preço/valor constante das faturas já inclui o IVA, ou deverá antes considerar-se que se trata de um valor ao qual deve acrescer o IVA? no sentido de que “O artigo 73.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, lido em conjugação com o artigo 78.º, alínea a), e o artigo 2.º, n.º 2, alínea b), desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que: quando um sujeito passivo de IVA tenha erradamente feito constar das faturas que emitiu aos consumidores finais uma taxa de IVA de zero, embora fosse aplicável uma taxa superior, deve não obstante considerar-se que o preço ou o montante indicado nessas faturas é um preço que já inclui IVA, a menos que, nos termos do direito nacional, o sujeito passivo tenha a possibilidade de repercutir nos consumidores finais e de recuperar junto destes últimos o IVA correspondente à aplicação da taxa retificada”; ganha suporte sólido a posição do recorrente que defende que o imposto deve ser calculado “por dentro” (deve ser considerado que o preço mencionado na fatura inclui já o IVA), e não, “por fora” ( IVA calculado fazendo acrescer ao valor da fatura a taxa de IVA), como sustenta a AT” (sublinhados nosso).

Transpondo tal entendimento para o caso em presença, afigura-se-nos, pois, que numa situação como a presente, se impunha à Administração Tributária que efetuasse o cálculo do IVA devido “por dentro”, considerando que o preço mencionado na fatura inclui já o IVA.

Com efeito, não podendo a Impugnante repercutir o IVA adicionalmente liquidado nos seus clientes, e estando assente que “(…) o sistema do IVA tem como objetivo onerar unicamente o consumidor final e que o valor tributável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais, não pode ser superior à contraprestação efetivamente paga pelo consumidor final”, haverá que concluir que o IVA adicionalmente liquidado deverá ser calculado “por dentro”.
Por conseguinte, assiste razão à Impugnante, pelo que as liquidações adicionais de IVA padecem de erro.”

Com tal fundamentação, conclui o Tribunal a quo, que: “Considerando que a Impugnante contesta a liquidação do IVA na parte em que não foi efetuado o cálculo “por dentro”, verificando-se que, a final, na sua petição inicial, formula um pedido no valor de € 185.565,35, e que, nos termos do artigo 609.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT, a sentença não pode condenar em quantidade superior do que se pedir, é, pois, de determinar a anulação das liquidações adicionais de IVA, no valor de € 185.565,35, como peticionado, com as demais consequências legais.”

No caso concreto, como se extrai da fundamentação da decisão de facto constante da sentença recorrida, o Tribunal a quo discriminou os factos provados e identificou, relativamente a cada um dos mesmos, o concreto meio probatório com base no qual formou a sua convicção, especificando-o por via da remissão para o respetivo documento.

Basta uma leitura atenta do probatório para se retirar que o valor que foi considerado pelo Tribunal a quo reflete as quantias constantes nas faturas, refletidas no probatório, e mediante concreta concatenação com o princípio do pedido.

Mais importa ter presente, que, nos termos do artigo 615º, nº.1, al. e), do CPC, ex vi do artigo 281º, do CPPT, é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior, assim infringindo o brocardo latino ne eat iudex ultra petita partium.

Realidade que o Tribunal a quo fez questão de sublinhar, justificar e invocar, e sem que a Recorrente a tenha ponderado e apartado.

A questão, nesta perspetiva, tem cariz essencialmente adjetivo e implica com um dos princípios que enformam o direito processual civil: o princípio do dispositivo ou da disponibilidade objetiva e, mais concretamente, com uma das suas principais manifestações – o princípio do pedido.

Ensinava Manuel de Andrade que “o processo só se inicia sob o impulso da parte, mediante o respectivo pedido”; “as partes é que circunscrevem o thema decidendum. O juiz não tem de saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi. Alguns (Calamandrei) falam aqui de correspondência entre o requerido e o pronunciado”. (Noções Elementares de Processo Civil (1976), 372. No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol., 2ª ed., 52 e segs.; cfr. também, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 121 e segs.).

Assim, quanto ao conteúdo, a sentença deve ater-se aos limites definidos pela pretensão formulada na ação, o que é considerado “núcleo irredutível” do princípio do dispositivo (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Ob. Cit., 657).

A violação da referida regra – se o juiz condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido – determina a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º/1, e) do CPC.

Aliás, se o tribunal o fizer incorre também em excesso de pronúncia, por apreciar questão não suscitada pelas partes, o que é igualmente causa de nulidade, nos termos do artigo 615º, n.º1, d) do CPC.

Será de acrescentar que esta vinculação do tribunal aos termos em que o pedido foi formulado, que caracteriza o princípio do pedido, sendo ditada por razões de certeza e segurança jurídicas, tem subjacentes também a disponibilidade da relação material e os princípios da liberdade e da autonomia da vontade das partes e da auto-responsabilidade destas. Mas não só.

Como flui do que se disse, também tem por escopo essencial a tutela da posição do demandado, permitindo-lhe que se defenda em relação ao conteúdo concreto daquele pedido.

Só assim se assegura e cumpre o princípio do contraditório (cfr. artigo 3º do CPC) que aquele princípio igualmente visa preservar.

De tudo o que se disse, resulta que, existe assim uma errónea e deficiente interpretação por parte da Recorrente ao que foi plasmado no probatório, e que em rigor não sindica, como já evidenciado e ora se reitera, limitando-se a invocar, erradamente, como visto, que “pelo facto de aquele valor não ter sido dado como provado, ou não provado, não ter sido efetuada uma análise critica ao mesmo, e consequentemente, não se encontrar em momento algum demonstrado o porquê daquele valor, e não de ouro, ou se o mesmo corresponde efetivamente ao que resulta da decisão proferida e da correta aplicação do direito.”

Inversamente ao que foi sustentado, a decisão recorrida sustenta devidamente os factos que permitem alicerçar a sua posição, e faz a devida transposição para a concreta causa de pedir e ao pedido, adensando, e sublinhando, como visto, em ordem à limitação de condenação em quantia superior à peticionada.

Pelo que a sentença recorrida não carece da apontada falta de fundamentação de facto.

Prosseguindo.

Erro de julgamento atinente ao princípio do inquisitório.

Alega a Recorrente que a decisão recorrida incorreu na violação do princípio do Inquisitório, porquanto limitou-se a validar, sem mais, a quantia indicada pela Impugnante e com deficiente instrução do processo.

Ao abrigo do disposto no artigo 13º do CPPT e 99º da LGT, faz-se recair sobre os juízes dos tribunais tributários o dever de «realizar ou ordenar todas as diligências que considerarem úteis ao apuramento da verdade».

Mais se diga, que, em respeito pelo princípio do inquisitório, o Juiz deve realizar todas as diligências ao seu alcance, por forma a atingir a verdade material, (se efetivamente se colocar essa necessidade, perante a questão em concreto que foi chamado a apreciar e dirimir, o que manifestamente não é o caso) e, assim, o interesse público, no entanto o mesmo tem de ser interpretado, sopesando as concretas exigências em termos de distribuição do ónus da prova, sob pena de violação inclusive do princípio da igualdade de armas.

O mesmo é dizer que o princípio do inquisitório confere ao juiz a incumbência de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, não se destinando a suprir eventuais falhas de instrução pelas partes.

Tendo presente todo o supra expendido, é manifesto que inexiste qualquer violação do princípio do inquisitório.

Inexiste qualquer falta de densificação, concretização ou dúvida quanto ao valor que foi computado pelo Tribunal a quo, na linha do peticionado pela ora Recorrida.

Como já aduzido e, ora se reitera, contrariamente ao que é arguido pela Recorrente, foi devidamente explicitado o valor de anulação das liquidações de IVA objeto de impugnação, à luz do quadro normativo e de acordo o peticionado.

Pelo que, não se verifica, qualquer deficiente instrução do processo.

Quanto ao concreto erro de quantum.

A questão atinente ao erro de cálculo na dimensão, ora, arguida nas alegações de recurso, nunca foi sindicada e analisada nesses moldes na decisão recorrida.

Com efeito, é evidenciado enquanto questão decidenda o seguinte:
Saber se se verifica erro no IVA adicionalmente liquidado, no valor de €185.565,35, com fundamento no facto de os serviços de inspeção tributária terem determinado a aplicação do IVA sobre o valor de venda das viaturas ilíquido de IVA


Logo o cerne da questão coadunava-se com a apreciação da liquidação indevida do IVA sobre o valor da fatura, sem que tivesse excluído, primeiramente, o IVA que estava incluído, ainda que não discriminado, no valor daquela fatura.

Por outro lado, há que evidenciar que para além dessa questão, como visto e ora se reitera, nunca ter sido colocada, analisada e abordada com essa dimensão e alcance na decisão recorrida, a verdade é que também nunca foi arguida a omissão de pronúncia, razão pela qual não há que apreciar se existiu erro de julgamento ao computar o valor de €185.565,35, porquanto o concreto cômputo nunca foi objeto de qualquer sindicância.

Logo, resulta inequívoco que nos encontramos perante uma questão nova, insuscetível, portanto, de apreciação nesta sede jurisdicional.
De todo o modo sempre se dirá que não corresponde à realidade dos autos, bastando uma leitura atenta da petição inicial e da decisão recorrida, a alegação de que os elementos extraídos da contabilidade da Impugnante, devidamente destacados em sede de RIT não foram contestados.

Bem pelo contrário.

E por assim ser, que carece de qualquer relevo e materialidade o aduzido pela Recorrente em 9), quanto “ao estarmos perante liquidações tributárias autónomas entre si, o que implicaria uma pronúncia de anulação individualizada relativamente a cada período da tributação, o que também não se verifica, de forma alguma”.

Conclui-se, assim, que a questão do concreto cômputo e erro da quantia apurada, corporizada, designadamente, em 11) e 12) representa questão nova, a qual não reveste caráter oficioso, não podendo, por isso, ser aqui apreciada, votando ao insucesso o alegado pela Recorrente neste particular.

Em suma, o supra expendido nunca foi objeto de análise na decisão recorrida, nem, de resto, alegada no articulado inicial, logo, como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, não servindo para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do Tribunal de que se recorre, visto implicar a sua apreciação a preterição de um grau de jurisdição (cfr. Ac. do STA, proferido no processo nº 13331, de 22 de janeiro de 1992; Ac.do TCA Sul,2ª. Secção, proferido no processo nº proc.2442/08, de 1 de março de 2011 e Ac. do TCA Sul-2ª. Secção, processo nº 6817/13, de 9 de julho de 2013).

E por assim ser, comportando um inadmissível ius novarum e não sendo de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal emitir qualquer juízo de reavaliação ou reexame, pois, e como já se disse, tal questão não foi, de todo, analisada na decisão recorrida, por não ter sido o Tribunal a quo chamado a pronunciar-se sobre ela.

Improcedem, por isso, as conclusões de recurso.

Pelo que, a sentença que assim decidiu não padece de qualquer erro de julgamento, devendo, por isso, ser confirmada.

*

III. DECISÃO


Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, SUBSECÇÃO COMUM, deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 15 de julho de 2025.
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[Maria da Luz Cardoso]

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[Patrícia Manuel Pires]
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[Teresa Costa Alemão]