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Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2283/20.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/07/2021
Relator:JORGE PELICANO
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
CAPACIDADE DE GOZO
EXCLUSÃO DE PROPOSTA
Sumário:I. A capacidade das sociedades comerciais “compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim (…)” – art.º 6.º, n.º 1 do CSC.

II. O fim imediato de cada sociedade é o que resulta da actividade económica que se propõe exercer e que consta do seu objecto social.

III. A prestação de serviços de programação informática não está incluída no objecto social da Recorrente, nem se prova que se trate de serviços necessários ou convenientes à prossecução do seu fim.

IV. A Recorrente, por não ter a necessária capacidade de gozo, não pode apresentar proposta no âmbito de um procedimento concursal em que se pretendem adquirir serviços que envolvem a elaboração e fornecimento de programação informática.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul.

A sociedade D... Ldª vem interpor recurso da sentença que, no âmbito da presente acção de contencioso pré-contratual que intentou contra o Instituto de Informática, I.P., declarou a improcedência dos seguintes pedidos:
- anulação do acto de exclusão da proposta por si apresentada e do acto final de adjudicação;
- condenação da Entidade Demandada a reclassificar as propostas, admitindo a proposta da A.;
- abstenção de celebração do contrato de prestação de serviços com a A... S.A., ou anulação do mesmo para o caso este já ter sido celebrado.
Apresentou as seguintes conclusões com as suas alegações de recurso:
“1- Nos termos do artº 11º nº1 do CSC, a determinação do objeto social não invalida a configuração de objetos sociais abrangentes ou plurifacetados, bem como de objetos acessórios ou outros implicitamente extraídos do objeto expressamente fixado;
2- Já como decorre do artº 6º nº4 do CSC: “As cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objeto ou proíbam a prática de certos atos não limitam a capacidade da sociedade”;
3- Por outro lado, só pode ser considerada estranha ao objeto social de uma sociedade comercial a prática de atos que não sejam necessários ou convenientes à prossecução dos fins sociais, pertencendo o juízo dessa adequação ao seu órgão de representação e cabendo a fiscalização respetiva aos sócios;
4- A decorrente amplitude de análise sai intensificada, em sede concursal, pelo primado do princípio da concorrência;
5- Pelo qual se procura obter o mais amplo universo de participantes possível;
6- O procedimento lançado tem a classificação de Serviços de Consultoria e de programação de software (Ponto 5 do probatório).
7- Por sua vez, o objeto social da Recorrente, na atividade de consultoria de gestão e CAE associado, engloba a Consultoria Informática 620, grupo que abrange a consultoria e programação informática e atividades relacionadas.
8- Pelo que a prestação de serviços de desenvolvimento de software alvo do Concurso, não só não extravasa de modo manifesto o desígnio apontado, como com ele se compatibiliza, nem que seja a título instrumental, por conveniente à prossecução dos fins sociais;
9- Os atos da gerência da Recorrente foram ratificados por deliberação da Assembleia de Sócios;
10- De tudo resulta que o essencial é que a Recorrente preencha os requisitos do Concurso, designadamente no que respeita à dotação dos meios
técnicos com os perfis solicitados, o que foi cumprido, pois a sua proposta foi ordenada em primeiro lugar no relatório preliminar;”.
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O Recorrido contra-alegou, tendo pugnado pela improcedência do recurso, alegando que o objecto social da Recorrente não consente a apresentação de propostas que envolvam a elaboração de programas de computador e que o princípio da concorrência impõe que não se admita a mesma no procedimento. Defende ainda que, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, a actividade de consultoria informática não se integra no CAE “70220 - Outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão” que cabe ao objecto social da Recorrente.

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O Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.° 146.° do CPTA.

O processo vem à Conferência para julgamento, sem vistos dos Exmºs. Juízes-Adjuntos, por se tratar de um processo urgente.

Do objecto do recurso.
Perante o alegado nas alegações de recurso, há que decidir se a sentença recorrida sofre do erro de julgamento de direito que lhe é imputado por, ao contrário do decidido, o objecto social da Recorrente não obstar a que esta apresente proposta no âmbito do procedimento concursal – artigos 6.º, n.º 4, 11.º, n.º1, 260.º, n.ºs 1 e 2, 142.º, n.º 1, al. d), todos do CSC e artigos 70.º, n.º 2, al. f) e 146.º, n.º 2, al. o), ambos do CCP.


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FUNDAMENTAÇÃO
De facto.

Por não ter sido impugnada, dá-se aqui por reproduzida a decisão da matéria de facto que foi fixada na sentença recorrida - n.º 6 do art.º 663.º do CPC, ex vi art.º 140.º, n.º 3 do CPTA.


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Direito
A Recorrida pretende adquirir, no âmbito do presente procedimento concursal, “serviços de desenvolvimento de software, na vertente de análise ao nível da experiência do utilizador, para agrupamento de iniciativas planeadas para 2020”.
De acordo com a nomenclatura de referência aplicável aos contratos públicos CPV (Vocabulário Comum para os Contratos Públicos) adoptado pelo Regulamento (CE) n.° 2195/2002, alterado pelo Regulamento (CE) n.° 213/2008, de 28 de Novembro de 2007, o procedimento tem a seguinte classificação: CPV n.° 72200000-7 Serviços de consultoria e de programação de software (cfr. n.º 2 do artigo 1.º do Programa do Concurso).
A prestação de tais serviços envolve a concepção de um programa informático.
A Recorrente tem por objecto social a prestação de serviços de consultoria de gestão, aquisição, construção, administração e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, exploração de estabelecimentos de alojamento local mobilado para turistas e outros locais de curta duração.
A proposta da Recorrente foi excluída do procedimento concursal, com fundamento no disposto nos artigos 70.º, n.º 2, al. f) e 146.º, n.º 2, al. o), ambos do CCP, por o seu objecto social não permitir “a actividade consubstanciada nos serviços de desenvolvimento de software que constam do caderno de encargos”, tendo-se entendido que a mesma é ilegal à luz do art.º 142.º, n.º 1, al. d) do CSC, por importar o exercício de uma actividade não compreendida no seu objecto.
A sentença recorrida declarou a improcedência dos pedidos deduzidos na P.I., tendo, para tanto e em síntese, considerado que os serviços a prestar importam a concepção de um programa informático e que da interpretação do objecto social da Recorrente não resulta que este inclua a prestação desse tipo de serviços.
Atendeu ainda à classificação portuguesa das actividades económicas, tendo concluído que o CAE da Recorrente não abarca a actividade de programação informática.
Referiu-se na sentença recorrida:
Está-lhe associado o CAE principal “70220 - Outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão” e os CAE secundários “78100 – Atividades das empresas de seleção e colocação de pessoal”, e “68100 – Compra e venda de bens imobiliários”, o que transparece da compaginação do ponto 1 do probatório com a Classificação portuguesa das atividades económicas (CAE), Revisão 3, plasmada no Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro, na versão dada pela Lei n.º 66/2018, de 3 de dezembro.
(…)
O CAE principal da A. corresponde, como vimos, à Subclasse 70220-R3 - Outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão, enunciada no Anexo ao Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro. Aliás, o objeto social descrito na certidão permanente do registo comercial da A. expressamente nomeia a prestação de serviços de consultoria de gestão.
(…)
Esclarece o INE, no sítio de internet www.smi.ine.pt, que o CAE de categoria “70220 - Outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão” compreende “as actividades de consultoria, orientação e assistência operacional às empresas ou a organismos (inclui públicos) em matérias muito diversas, tais como: planeamento, organização, controlo, informação e gestão; reorganização de empresas; gestão financeira; estratégias de compensação pela cessação de vínculo laboral; consultoria sobre segurança e higiene no trabalho; concepção de programas contabilísticos e de processos de controlo orçamental; objectivos e políticas de marketing; gestão de recursos humanos”.
Mais adianta que este CAE inclui ainda os seguintes:
“Relações públicas e de comunicação - 70210”
“Consultoria em gestão de florestas – 02400”
“Consultoria informática - 620” (sublinhado nosso)
“Consultoria e representação jurídica - 69101”
“Atividades de contabilidade e consultoria fiscal – 69200”
“Administração de empresas - 70100”.
Note-se que, no CAE de Grupo 620 – “Consultoria e programação informática e atividades relacionadas”, as atividades de consultoria em informática se encontram agrupadas na Subclasse 62020, distinta da que se liga às atividades de programação informática (Subclasse 62010), ainda em sintonia com o Anexo ao Decreto-Lei n.º 381/2007.
Sendo que a ampliação do CAE 70220-R3 ao Grupo 620 apenas se refere à consultoria informática, já não às demais atividades aqui compreendidas, quais sejam as de programação informática, gestão e exploração de equipamento informático ou as outras atividades relacionadas com as tecnologias da informação e informática.
O que, aliás, é congruente com a modelação legal do CAE 70220 como pertinente à consultoria para os negócios e a gestão, sem qualquer réstia de indício no sentido de lhe estar subjacente a programação informática.
Esta diferenciação espelha as diversas natureza e intencionalidade das atividades de consultoria informática e de programação informática.”.

O Recorrido vem dizer que a sentença recorrida errou na parte em que entende que a actividade de consultoria informática (CAE 620) se encontra incluída na actividade de consultoria para os negócios e gestão, a que se refere o CAE 70220.
Assiste razão ao Recorrido uma vez que, como se infere do documento que juntou, bem assim como da pág. 231 do doc. publicado em https://www.ine.pt/ine_novidades/semin/cae/CAE_REV_3.pdf, a actividade de consultoria informática (CAE 620) encontra-se excluída da subclasse 70220, em que se insere a actividade desenvolvida pela Recorrente.
No entanto, tal erro em nada altera o sentido da decisão tomada na sentença.
Pelo contrário, apenas vem confirmar tal decisão, uma vez que evidencia que, perante a classificação portuguesa das actividades económicas, a actividade que figura no objecto social da Recorrente não abarca as atividades de programação informática (Subclasse 62010), nem as atividades de consultoria em informática, que se encontram agrupadas na Subclasse 62020.
As considerações ora efectuadas sobre o enquadramento da actividade da Recorrente para efeitos da classificação portuguesa das actividades económicas, apenas servem para confirmar a interpretação que já resultava da leitura do objecto social da Recorrente, que não faz referência, de forma directa ou indirecta, ou mais ou menos implícita, a qualquer actividade de programação de informática, apenas prevendo a prestação de serviços de consultoria de gestão, aquisição, construção, administração e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, exploração de estabelecimentos de alojamento local mobilado para turistas e outros locais de curta duração.
No entanto, a Recorrente alega que, nos termos do art.º 6.º, n.º 4 do CSC, o objecto social não limita a sua capacidade e que o artº 260º nº1 do CSC, determina que “os atos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios”, “sem prejuízo da possibilidade de ratificação expressa ou tácita dos sócios” (artº 260º nº 2 do CSC).
Diz que “os sócios por deliberação expressa e constante de ata junta em fase concursal, ratificaram todos os atos praticados pela gerência no âmbito do procedimento e concederam a esta os poderes necessários para o mesmo. O que valida a adequação pugnada, realiza o disposto no artº 260º nº2 do CSS e torna deslocada a alusão ao estatuído no artº 142º nº1 d) do CSC”.
É certo que em matéria de vinculação da sociedade para com terceiros, as regras estatutárias não limitam a capacidade de gozo da sociedade, devendo entender-se que os actos praticados pelos titulares dos órgãos que a representam são válidos e eficazes, quer caibam ou não no respectivo objecto social, desde que praticados dentro dos limites legalmente estabelecidos – artigos 6.º, n.º 4, 260.º, n.º 1, 409.º e 431.º, n.º 3 do CSC.
Rege um princípio de ilimitação dos poderes representativos dos titulares dos órgãos da sociedade, o que se impõe como forma de tutelar a confiança, certeza e segurança jurídica dos terceiros que contratam com a sociedade e de facilitar a negociação em geral. Só assim não acontecerá se os terceiros conheciam ou deviam conhecer as limitações decorrentes das regras estatutárias, ou se entretanto a sociedade não assumiu os actos praticados [devendo, no entanto, ter-se presente que as deliberações que violem o contrato de sociedade são anuláveis– art.º 58.º, n.º 1, al. a) do CSC], ou se a lei proibir a prática do acto – cfr. Raúl Ventura, “Comentário ao Código das Sociedades Comerciais – Sociedades por Quotas”, vol. III, pág. 158 e segs., Pedro Albuquerque, “A vinculação das sociedades comerciais por garantia de dívidas de terceiros”, ROA, 1995, pág. 689 e segs.
Os artigos 6.º, n.º 4 e 260.º, n.ºs 1 e 2 do CSC, tratam do objecto social na perspectiva da limitação dos poderes dos titulares dos órgãos de administração em face de terceiros. Incorporam normas que visam proteger os terceiros quanto à incerteza a que ficariam sujeitos caso as limitações resultantes do objecto social lhes fossem oponíveis.
Porém, no presente caso, não estamos perante uma questão de vinculação da sociedade perante terceiros necessitados de tutela em face de actos praticados pelos titulares dos órgãos de administração da Recorrente, pelo que não têm aplicação aquelas normas.
A questão que se coloca é a de saber qual é a medida da capacidade de gozo da Recorrente.
A lei não consente que uma sociedade se destine a toda e qualquer actividade económica. Terá de especificar qual o domínio em que actua, o que deve fazer no contrato de sociedade através da indicação do seu objecto social, conforme impõem os artigos 11.º, n.º 2 e 9.º, n.º 1, al. d) do CSC – cfr. Oliveira Ascensão, “Direito Comercial – parte geral”, vol. I, 1986/87, pág. 437 e 438.
A indicação do objecto social é de tal forma relevante que a sua falta importa a nulidade do contrato social - cfr. o art. 42.º, n.º 1 al. b) do CSC.
Os sócios podem deliberar sobre quais são as actividades que a sociedade pode vir a exercer efectivamente, mas tais actividades têm de estar incluídas no seu objecto social – n.º 3 do art.º 11.º do CSC.
A capacidade das sociedades comerciais “compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim” – art.º 6.º, n.º 1 do CSC.
O fim imediato de cada sociedade é o que resulta da actividade económica que se propõe exercer e que consta do objecto social - cfr. Oliveira Ascensão, “Direito Comercial – parte geral”, vol. I, 1986/87, pág. 437.
A prestação de serviços de programação informática não está incluída no objecto social da Recorrente, nem se prova que se trate de serviços necessários ou convenientes à prossecução do seu fim.
Pelo exposto há que concluir que a Recorrente, por não ter a necessária capacidade de gozo, não pode apresentar proposta no âmbito de um procedimento concursal em que se pretendem adquirir serviços que envolvem a elaboração e fornecimento de programação informática.
Improcede, assim, o alegado pela Recorrente no presente recurso.

Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter o decidido na sentença recorrida.
Custas pela Recorrente – art.º 527.º do CPC.
Lisboa, 07 de Julho de 2021.
O relator consigna, nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, que têm voto de conformidade com o presente acórdão os Juízes Desembargadores que integram a formação de julgamento.

Jorge Pelicano
Celestina Castanheira
Carlos Araújo
(em substituição)