Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1034/23.2BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:04/24/2024
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:PROCESSO CAUTELAR
PROVISORIEDADE
INSTRUMENTALIDADE
REJEIÇÃO LIMINAR
Sumário:I – Ao processo cautelar são inerentes as características da provisoriedade e da instrumentalidade, nos termos do previsto, respectivamente, nos artigos 112.º, n.º 1, e 113.º, n.º 1, do CPTA.
II – Na falta de tais atributos, por análise concreta ao petitório formulado no requerimento inicial, mormente, se detectadas pretensões cautelares destituídas de provisoriedade e de instrumentalidade, mas antes caracterizadas pela sua definitividade, que esgotam o pedido a formular no respectivo processo principal, deve o juiz, em despacho liminar, rejeitar o articulado inicial.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - Relatório.

S..., doravante Recorrente, no âmbito do processo cautelar que deduziu contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA), doravante Recorrida, que por falta de decisão no procedimento administrativo de autorização de residência para investimento, requereu no TAF de Sintra o decretamento da providência cautelar de intimação para adopção de condutas por parte da Administração, designadamente, para o agendamento da diligência de entrega de documentos e recolha dos seus dados biométricos e, sobretudo, para a prática de todos os actos necessários à emissão do pretendido título de residência, mostra-se agora inconformada com a sentença do Tribunal a quo, que, em síntese, entendeu não se verificar na situação concreta em apreço nem a provisoriedade nem a instrumentalidade, que caracterizam os processos cautelares, e que, com efeito, decidiu a rejeição liminar do requerimento inicial.

A Recorrente vem interpor recurso ordinário de apelação contra a sentença do Tribunal a quo, no qual formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):

1. A ilustre sentença recorrida entendeu que os pedidos formulados pela Recorrente não seriam provisórios e seriam, portanto, incompatíveis com o processo cautelar, de modo que a sentença recorrida aplicou o direito de forma equivocada o direito ao caso concreto e violou o disposto 10 no artigo 112º, nº 1 e 2, do CPTA, ao confundir a provisoriedade do pedido com a provisoriedade da tutela a ser concedida.

2. A douta sentença recorrida inferiu que a decisão do requerimento cautelar constituiria uma decisão definitiva sobre a causa em litígio, o que não é correto considerando os elementos deste processo, de modo que, ao assim decidir, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 113, nº 1, do CPTA, de modo que deverá ser modificada para que seja admitido o requerimento inicial, seguindo-se seus ulteriores termos.

3. A ilustre sentença recorrida aplicou o direito de forma incorreta ao afirmar que só poderia haver identidade de pedidos da cautelar com a principal no caso de a ação principal ter sido intentada, entendendo, desta forma, que a antecipação da tutela somente seria cabível depois de intentada a cautelar, de modo que se violou a literalidade dos artigos e 113º, nº 1º, e 121º, nº 1, ambos do CPTA.

4. Ao impedir que a Recorrente se valha de um meio processual idôneo para a defesa de seus direitos e interesses em contrariedade ao que vem sendo entendido pelo Tribunal que admitem a emissão de títulos de residência em tutelas cautelares, viola o princípio da tutela efetiva consubstanciado no artigo 20.º, nº 5, da CRP e no artigo 2º, nº 1º, do CPTA.

5. Ao rejeitar liminarmente o requerimento inicial, a douta sentença recorrida infringiu o disposto no artigo 83.º da Lei n.º 23/2007, pois afastou a possibilidade de a Recorrente gozar dos direitos aplicáveis aos estrangeiros titulares de autorização de residência antes de proferida uma sentença em processo com pedido de tutela principal.

6. Ainda, neste mesmo sentido, a sentença recorrida violou o artigo 15º, nº 1º, da CRP, ao rejeitar liminarmente o requerimento inicial, pois não permite a Recorrente gozar de direitos em equiparação.

7. Por todo o exposto, a douta sentença recorrida merece ser modificada para ser admitido o requerimento cautelar, prosseguindo-se os seus ulteriores termos.

A Recorrida não contra-alegou.

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

O parecer do MP foi notificado às partes.

Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.


***
II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir no caso vertente, resumidamente, se a sentença recorrida fez um julgamento acertado quanto à falta de verificação da provisoriedade e da instrumentalidade, enquanto características que se devem observar nos processos cautelares, conforme o exigido pelos artigos 112.º, n.º 1, e 113.º, n.º 1, do CPTA.
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III - Matéria de facto.
Tendo presente que a decisão recorrida não fixou matéria de facto e que a ora Recorrente nada impugna sobre tal temática no recurso que interpôs, concluímos que, face à delimitação supra do objecto do recurso, não se mostra necessário nesta instância recursiva proceder à fixação de qualquer probatório.
***
IV - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui nos importa perscrutar, vejamos a fundamentação de direito e o dispositivo da sentença recorrida, transcrevendo-se os seguintes excertos:
Decorrem, pois, das referidas disposições, duas das caraterísticas essenciais das providências cautelares: a instrumentalidade e a provisoriedade.
A instrumentalidade é o principal traço característico da tutela cautelar: “ela existe em função dos processos em que se discute o fundo das causas, em ordem a assegurar a utilidade das sentenças a proferir no âmbito desses processos, que, por isso, são qualificados como processos principais, por contraponto aos processos cautelares”; (Cf. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 914)
A provisoriedade, por seu turno, “consiste no facto de a regulação que elas estabelecem se destinar a vigorar apenas durante a pendência do processo, até ao momento em que a sentença a proferir nesse processo virá dizer em que termos fica definida a matéria controvertida.
A provisoriedade da tutela cautelar impede que o tribunal adote, como providência cautelar, uma regulação que dê resposta à questão de fundo sobre a qual versa o litígio, desse modo inutilizando o processo em que ele é objeto de discussão” (Ibidem, nosso destaque).
Consequentemente, na tutela cautelar, a provisoriedade implica a tomada de uma decisão necessariamente temporária, precária, e, em conjunção com a instrumentalidade, veda a tomada de uma decisão definitiva sobre a causa, a proferir em sede do processo principal, nos termos do n.º 1 do artigo 113.º do CPTA, cuja utilidade se visa precisamente assegurar por via do processo cautelar.
(…)
No caso vertente, a Requerente, em sede cautelar, formula um pedido próprio da ação administrativa – a condenação à prática de ato devido –, nomeadamente que seja a Entidade Requerida condenada a “facultar ao menos três datas de agendamento para a submissão do pedido de ARI da Requerente, em prazo não superior a 10 dias úteis”, e a “emitir o ato de decisão de pedido de concessão de autorização de residência da Requerente, em prazo não superior a 20 dias úteis, e, se nada obstar, praticar todos os atos necessários à emissão do título de residência da Requerente ou adotar-se outra providência que o Tribunal considere mais adequada, tudo com as devidas e legais consequência.”
Ora, nada do que é requerido é provisório; é assim pristinamente claro que a procedência do pedido cautelar teria como resultado a imediata satisfação da pretensão principal da Requerente, levando ao esgotamento de utilidade da ação principal a ser intentada, violando, assim, a provisoriedade própria das providências cautelares, nos termos do n.º 1 do artigo 113.º do CPTA.
Destarte, e como decorre do exposto supra, o pedido formulado não é adequado ao processo cautelar, porquanto é contrário à provisoriedade e instrumentalidade da tutela cautelar, pelo que se configura um erro na forma de processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 193.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.
Ademais, e também como descrito supra, não pode haver convolação, sendo, no caso sub judice, inadmissível a antecipação da decisão da causa principal, atenta a falta de proposição da ação principal.
(…)
III – Decisão
Face ao exposto e atentas as supracitadas disposições legais, decide-se:
a) Rejeitar liminarmente o presente Requerimento Inicial (…)
*
Desde já adiantamos que a decisão recorrida será confirmada. Vejamos as razões.
Façamos, antes de mais, a resenha dos comandos legais essenciais à apreciação do presente recurso.
O artigo 112.º, n.º 1, do CPTA, preceitua o seguinte: 1 - Quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adoção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.
Por seu turno, o artigo 113.º, n.º 1, do CPTA, estipula o seguinte: 1 - O processo cautelar depende da causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito, podendo ser intentado como preliminar ou como incidente do processo respetivo.– (destaques nossos).
Dos comandos legais supra citados resultam, respectivamente, as características da provisoriedade e da instrumentalidade, inerentes às providências cautelares, nomeadamente, às que se encontram elencadas nas alíneas a) a i) do n.º 2 do artigo 112.º do CPTA.
No que concerne ao atributo da provisoriedade, o “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, Almedina, páginas 961 e 962, em anotação ao artigo 112.º do referido Código, doutrina o seguinte: “Em princípio, as providências cautelares caracterizam-se pela sua provisoriedade, que consiste no facto de a regulação que elas estabelecem se destinar a vigorar apenas durante a pendência do processo, até ao momento em que a sentença a proferir nesse processo virá a dizer em que termos fica definida a matéria controvertida.
A provisoriedade da tutela cautelar impede que o tribunal adote, como providência cautelar, uma regulação que dê resposta à questão de fundo sobre a qual versa o litígio, desse modo inutilizando o processo em que ele é objeto de discussão (…)”.
No que toca à característica da instrumentalidade, a citada obra, nas páginas 977 e 978, opina o seguinte: “o principal traço característico da tutela cautelar é a sua instrumentalidade: ela existe em função dos processos principais, em ordem a assegurar a utilidade das sentenças a proferir no âmbito desses processos (…);
“Por outro lado, a tutela cautelar só faz sentido em função do processo principal, de modo a assegurar a sua utilidade. Isto explica a previsão de um conjunto de situações em que o processo cautelar caduca – assim como as providências que nele tenham sido decretadas, quando tenha sido esse o caso – por razões que dizem exclusivamente respeito ao processo principal (…)”
Retornando ao caso “sub judice”, a Recorrente afirma no introito do seu requerimento inicial que deduz a providência cautelar “como preliminar da ação administrativa de condenação à prática de ato devido com vista ao pedido de concessão de autorização de residência temporária para atividade de investimento”.
Em sede dos presentes autos, vimos já que a Recorrente requer a adopção da medida cautelar de intimação da Recorrida ao agendamento da diligência para entrega de documentos e recolha dos seus dados biométricos e ainda à prática de todos os actos necessários à emissão do pretendido título de residência.
No essencial, comparando os pedidos supra elencados, bem se vê que a pretensão cautelar e a pretensão material que a ora Recorrente formulará no respectivo processo principal são coincidentes entre si, mormente, no que diz respeito à pretendida emissão da autorização de residência, objectivo esse que, quer no processo cautelar quer na acção principal, acaba por ser, na verdade, o único e fundamental fito da Recorrente: obter da Recorrida, o mais rapidamente possível, o almejado título de residência.
Pois bem, ao colocarmos a hipótese de conceder a medida cautelar requerida, permitir-se-ia que, no limite, logo nestes autos a Recorrente pudesse alcançar da Recorrida a pretendida autorização de residência, se verificados os pressupostos de facto e de direito exigidos pela Lei n.º 23/2007, de 04/07, o que consubstanciaria, no fundo, na prática definitiva do acto administrativo devido e na obtenção da pretensão material final, que a Recorrente só lograria obter, em termos de normalidade processual, no desfecho da competente acção administrativa de condenação à prática de acto administrativo devido.
Tendo presente as já aludidas características da provisoriedade e da instrumentalidade, não pode dar-se a hipótese acima colocada, porquanto, se assim fosse, a medida cautelar não só nada teria de provisório, mas sim de definitivo, pois que, no limite, uma vez emitida a autorização de residência pela Recorrida, esgotar-se-ia de imediato o objecto condenatório do futuro processo principal, desprovido que ficaria de utilidade por conta de uma pretensão material já concedida precocemente em sede cautelar, tal como nada teria de instrumental, já que, a providência cautelar a adoptar nos moldes requeridos pela ora Recorrente não se destinaria a vigorar de modo limitado no tempo, isto é, apenas em função do processo principal, mas sim de modo definitivo, o que lhe retiraria o atributo de mero instrumento ao serviço da utilidade da sentença a proferir no âmbito do processo principal.
Dito de outro modo, dando-se o caso do Tribunal decretar a providência cautelar tal como requerida pela Recorrente, sobretudo, na dimensão do seu expoente máximo, que é, verificados os requisitos de facto e de direito, a emissão da autorização de residência para investimento, nada mais restaria, em termos de pretensão material de condenação à prática de acto administrativo devido, para ser pedido em sede da respectiva acção administrativa principal, a intentar nos termos do artigo 37.º, n.º 1, alínea b), do CPTA. E, se tal acção acabasse mesmo por ser proposta pela ora Recorrente, outro pedido condenatório não se vislumbraria como possível que não fosse, precisamente, um petitório de igual teor ao deduzido no processo cautelar.
Em suma, não pode dar-se tal coincidência de pedidos, sob pena do processo cautelar, em vez de ser provisório e instrumental, esgotar ele próprio o pedido e a pretensão material que só deveria ser assegurada de modo definitivo no competente processo principal. Não existe, portanto, qualquer equívoco da sentença recorrida ao assim ter interpretado os artigos 112.º, n.º 1, e 113.º, n.º 1, do CPTA.
Neste conspecto, chama-se à colação o acórdão deste TCAS, de 17/12/2020, tirado no processo sob o n.º 1203/20.7BELSB, consultável em www.dgsi.pt, destacando-se o entendimento derramado no ponto I do seu sumário, como segue: O pressuposto relativo à provisoriedade da providência cautelar impõe que esta, para além de ter uma duração limitada, não esvazie, ou, pelo menos, não prejudique a eficácia da decisão que vier a ser tomada na acção principal, pois é nesta que se vai conhecer do bem fundado da pretensão do autor, ao passo que no âmbito do processo cautelar apenas se procede a um conhecimento sumário da mesma.
No mesmo sentido, convocamos ainda o acórdão deste mesmo TCAS, de 21/11/2019, prolatado no processo sob o n.º 464/19.9BELLE, disponível para consulta em www.dgsi.pt, transcrevendo-se a seguinte passagem:
As providências cautelares existem para assegurar a utilidade das sentenças a proferir nos processos judiciais, de que são preliminares ou incidente (arts 112º, nº 1 e 113º, nº 1 do CPTA).
A razão de ser do processo cautelar é a de permitir, em concretização do direito a uma tutela judicial efetiva, constitucionalmente consagrado no artigo 268º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, a adoção de medidas cautelares adequadas a precaver os direitos ou interesses legalmente protegidos dos interessados, enquanto não é definitivamente decidida a causa principal. A tutela cautelar visa apenas assegurar o efeito útil de uma sentença a proferir em sede de ação principal, regulando provisoriamente a situação sob litígio até que seja definitivamente decidida, naquela ação, a contenda que opõe as partes. Razão pela qual se exige que as medidas cautelares cumpram as características de instrumentalidade e provisoriedade. E também motivo pelo qual se faz depender a sorte do processo cautelar do provável êxito do processo principal (fumus bonnus iuris).
Nesta medida, o artigo 112º, nº 1 do CPTA de 2015 [o aplicável ao caso (entrado em juízo a 14.1.2019)] admite que quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adoção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.
A função preventiva das providências cautelares, como por exemplo da intimação para adoção de uma conduta por parte da Administração – cfr art 112º nº 2, al i) do CPTA – conduz a que estas assumam como características típicas, decorrentes da sua própria natureza, a instrumentalidade e a provisoriedade.
O procedimento cautelar caracteriza-se pela sua instrumentalidade – dependência da ação principal – provisoriedade – por não estar em causa a resolução definitiva de um litígio – sumariedade – porque implica uma cognição sumária da situação em litígio através de um procedimento simplificado e rápido.
O principal traço característico da tutela cautelar, escreve Mário Aroso de Almeida e Carlos F. Cadilha, em Comentário ao CPTA, 2017, 4ª edição, pág. 914, «é a sua instrumentalidade: ela existe em função dos processos em que se discute o fundo das causas, em ordem a assegurar a utilidade das sentenças a proferir no âmbito desses processos, que, por isso, são qualificados como processos principais».
A instrumentalidade constitui, portanto, «um limite interno ao exercício do poder cautelar do juiz administrativo» (cfr Fernanda Maçãs, em As Medidas Cautelares, in Reforma do Contencioso Administrativo, vol. I, O Debate Universitário, pág. 457 e 458) e, por isso, não consente que a providência cautelar antecipe a sentença do processo principal, conduzindo a efeitos definitivos e irreversíveis. Pois, neste último caso, se a sentença final fosse favorável ao requerido perderia utilidade ou eficácia (cfr Ac do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25.11.2004, processo nº 376/04, sob consulta em http://www.ggsi.pt/jtca.).
A provisoriedade constitui outra característica típica das providências cautelares, decorrente da sua própria natureza.
Como refere José Carlos Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, 7ª edição, pág. 342: «a tutela cautelar constitui, por definição, uma regulação provisória de interesses, de modo que um outro aspeto marcante das providências respetivas é o carácter de provisoriedade e de temporalidade, quer da duração da decisão, quer do seu conteúdo, que se manifesta em diversos planos. Desde logo, a decisão cautelar, mesmo que seja antecipatória, sempre será, pela sua função, provisória relativamente à decisão principal, na medida em que não a pode substituir e em que caduca necessariamente com a execução desta».
Ou seja, a provisoriedade da tutela cautelar impede que o tribunal adote uma regulação que dê resposta à questão de fundo sobre a qual versa o litígio, questão de fundo esta a resolver no processo principal. Tem de estar em causa uma composição provisória de um litígio, cabendo à ação principal a composição definitiva do mesmo.
A tutela cautelar visa apenas assegurar o efeito útil de uma sentença a proferir em sede de ação principal, regulando provisoriamente a situação sob litígio até que seja definitivamente decidida, naquela ação, a contenda que opõe as partes. Razão pela qual se exige que as medidas cautelares cumpram as características da instrumentalidade e da provisoriedade.
A partir do momento em que a cognição do pedido cautelar implique a resolução definitiva do litígio, a pretensão do requerente não se compadece com a provisoriedade que caracteriza a tutela cautelar e, inexistindo «simplicidade do caso ou urgência na sua resolução definitiva», não pode ser antecipada, para o processo cautelar, a decisão sobre o mérito da causa.
Posto isto, não se reconhece, ao contrário do defendido pela Recorrente nas suas alegações recursivas, qualquer confusão da decisão recorrida entre a “provisoriedade do pedido com a provisoriedade da tutela”. É inócua, no caso vertente, tal separação de conceitos, nem se reconhece em tal argumento qualquer força invalidante da sentença recorrida, porquanto, vistos os termos em que a Recorrente concretamente formulou o petitório cautelar final, não se vislumbra em parte alguma que tivesse requerido contra a Recorrida a adopção meramente provisória da conduta de recolha dos dados biométricos/entrega de documentos, nem provisoriamente foi elaborado o pedido cautelar tendente à prolação do acto administrativo de emissão da autorização de residência.
Prosseguindo, a Recorrente vem ainda propugnar nas suas conclusões de recurso que o Tribunal a quo errou ao não antecipar o juízo sobre a causa principal.
A Recorrente, porém, não tem razão na crítica que dirige à sentença recorrida. Indaguemos, pois, o fundamento em causa.
De acordo com o prescrito no artigo 121.º, n.º 1, do CPTA, a antecipação do julgamento sobre o processo principal depende da verificação de vários pressupostos, entre eles, o de existir “processo principal já intentado”.
No caso dos presentes autos, tendo em conta a factualidade que era então conhecida pelo Tribunal a quo no momento da prolação da sentença recorrida, o processo principal ainda não havia sido intentado pela ora Recorrente.
Perante tal ausência processual, inexiste, por conseguinte, o pressuposto de facto preconizado pela citada norma legal, o que dita, inelutavelmente, que ao Tribunal a quo não assistia sequer a faculdade de antecipar esse julgamento sobre a demanda principal, porque ainda inexistente, e que nem as partes podiam ter a pretensão a tal desiderato.
Neste sentido, esclarecem os autores na obra atrás citada o seguinte: “Uma nota adicional para assinalar que a revisão de 2015 acrescentou ao n.º 1 um inciso inicial que exige que, no momento da convolação, o processo principal já tenha sido intentado. Não é possível a antecipação do juízo sobre uma causa que ainda não foi submetida à apreciação do tribunal” (página 1039).
Improcede, portanto, a analisada conclusão de recurso.
Avançando, a Recorrente considera que a sentença recorrida, ao não admitir a emissão de títulos de residência em meio cautelar, viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto, segundo afirma, no artigo 20.º, n.º 5, da CRP, e no artigo 2.º, n.º 1, do CPTA.
Ora bem, o sentido que concretamente se extrai da sentença recorrida não é o de que a rejeição do requerimento inicial se ficou a dever à inadmissibilidade da emissão de títulos de residência em processo cautelar, mas antes que, ao pedido cautelar, tal como foi formulado pela Recorrente no petitório final, lhe faltavam os imprescindíveis atributos da provisoriedade e da instrumentalidade, porque, como constatámos, foram deduzidas concretas condutas a adoptar pela Recorrida com um cariz de definitividade e não de provisoriedade.
Por conseguinte, no caso dos autos, o problema não se prende com a falta de previsão legal de meios processuais cautelares ou com a falta de tutela cautelar, nem com uma restrição desmesurada ou desproporcional ao seu acesso, já que, como se verifica, ao nível infraconstitucional, o processo cautelar tem uma expressão claramente abrangente e bem disseminada no contencioso administrativo, de que é bom exemplo a panóplia de pedidos cautelares consagrada no artigo 112.º do CPTA.
Não é, portanto, uma questão de falta de meios processuais, nem de dificuldades colocadas de modo excessivo ao seu acesso, que ponham em crise a clamada “tutela jurisdicional efetiva”, mas sim, ante o caso concreto trazido pela Recorrente, do simples incumprimento de requisitos fixados legalmente para o processo cautelar, sem os quais, como em qualquer outro meio processual previsto no ordenamento jurídico português, não é possível admitir o seu accionamento.
Assim sendo, ante a fundamentação propugnada neste acórdão, temos que a presente questão não se reconduz a qualquer temática de recusa da tutela jurisdicional pretendida, mas apenas à não admissibilidade do uso deste meio processual por inobservância dos respectivos requisitos legais, com especial ênfase para as já mencionados características da provisoriedade e da instrumentalidade.
Improcede, com efeito, a sindicada conclusão recursiva.
Por último, alega a Recorrente que a decisão recorrida a impede de aceder aos direitos de que são portadores os titulares da autorização de residência, previstos no artigo 83.º da Lei n.º 23/2007, de 04/07, tal como, não a permite gozar os direitos em equiparação ao cidadão português, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 15.º da CRP.
A sentença recorrida traduz o resultado de uma apreciação feita pelo Tribunal a quo ainda em sede da fase de admissão liminar do processo, que, naturalmente, não chegou a sindicar o mérito do próprio processo cautelar, nem, como é evidente, a valia dos fundamentos de facto e de direito inerentes à pretensão cautelar que a Recorrente formulou no requerimento inicial.
Isto é, da sentença recorrida não se infere em parte alguma qualquer pronúncia sobre o bem ou mal fundado do pedido cautelar, bem se vendo que o Tribunal a quo não emitiu qualquer decisão que concretamente se tivesse debruçado sobre o mérito ou demérito do que foi requerido sobre o agendamento da diligência de recolha de dados biométricos/entrega de documentos ou sequer sobre o direito de autorização de residência para investimento (ou falta desse direito).
Em rigor, a decisão recorrida deteve-se num aspecto prévio, que se encontra inculcado a montante da fase de sindicância do mérito da pretensão cautelar. Isto é, tendo o Tribunal a quo que emitir um despacho liminar, nos termos do artigo 116.º, n.º 1, do CPTA, é nesse preciso momento inicial que se impõe ao juiz aquilatar sobre a verificação dos pressupostos prévios do processo cautelar, nomeadamente, os que se encontram plasmados nos já citados artigos 112.º, n.º 1, e 113.º, n.º 1, do CPTA, com especial destaque para as já propaladas características da provisoriedade e da instrumentalidade.
Em resultado dessa primeira análise, o juiz da causa tanto pode admitir o requerimento inicial, seguindo-se a citação da entidade requerida e de eventuais contrainteressados, como pode rejeitá-lo, prerrogativa que se encontra disciplinada nas alíneas do n.º 2 do artigo 116.º do CPTA.
No caso dos autos, foi precisamente o que ocorreu. O Meritíssimo Juiz a quo, tendo que proferir o despacho inicial no processo cautelar que lhe calhou em distribuição, emitiu, ante as circunstâncias da situação concreta, a decisão liminar de rejeição do requerimento inicial com base no fundamento já atrás veiculado: a falta das características da provisoriedade e da instrumentalidade.
Deste modo, não procede a conclusão de recurso da Recorrente quanto a terem sido violados os citados direitos, não só porque não foi recusada a tutela dos direitos de que a Recorrente se arroga titular, como também não foi apreciada, em concreto, a existência ou a violação desses mesmos direitos, mas, como vimos, apenas foi considerado inadmissível o modo pelo qual a Recorrente pretendia efectivar essa tutela cautelar, porque desprovida dos necessários atributos da provisoriedade e da instrumentalidade.
Tudo visto, acordamos em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, e, consequentemente, é de confirmar a sentença recorrida.
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Custas a cargo da Recorrente – cf. artigos 527.º, n.º 1, 539.º, n.º 1, do CPC, 1.º do CPTA, 7.º, n.º 4, do RCP, e tabela II anexa.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
1 – Ao processo cautelar são inerentes as características da provisoriedade e da instrumentalidade, nos termos do previsto, respectivamente, nos artigos 112.º, n.º 1, e 113.º, n.º 1, do CPTA.
2 – Na falta de tais atributos, por análise concreta ao petitório formulado no requerimento inicial, mormente, se detectadas pretensões cautelares destituídas de provisoriedade e de instrumentalidade, mas antes caracterizadas pela sua definitividade, que esgotam o pedido a formular no respectivo processo principal, deve o juiz, em despacho liminar, rejeitar o articulado inicial.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas nos termos supra explicitados.
Registe e notifique.
Lisboa, 24 de Abril de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Lina Costa – (1.ª Adjunta)
Joana Costa e Nora – (2.ª Adjunta)