Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, Subsecção Social, no âmbito de Reclamação para a Conferência:
I – RELATÓRIO
A F.............., vem recorrer para esta instância do Acórdão n.° .../2024 do Tribunal Arbitral do Desporto de 6 de maio de 2024, que julgou improcedente o pedido de revogação do Acórdão do CD FPF de 9 de janeiro de 2024, proferido no âmbito de Recurso para o Pleno do Conselho de Disciplina da FPF - Secção Profissional, relativo ao Processo Disciplinar n.° ... - 2023/2024, no âmbito do qual foi confirmada a decisão de condenação da SAD na pena de multa, no valor de €5.100, pela prática de uma infração disciplinar pp. pelo artigo 182.°, n.° 2 do RDLPFP, reportadamente ao jogo oficial n.° ......., disputado entre a F.............. SAD e a G.............. LDA., a contar para a 6ª jornada da Liga ......., realizado no Estádio .... a 23 de setembro de 2023.
Efetivamente, por Acórdão Arbitral de 6 de maio de 2024 foi decidido, por maioria, julgar improcedente o pedido de revogação do Acórdão FPF, proferido pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, confirmando a decisão disciplinar condenatória recorrida.
Correspondentemente, veio a F.............. Recorrer para esta Instância, em cujo Recurso, concluiu:
“A. O presente recurso tem por objeto o acórdão de 06-05-2024 do TAD, que confirmou a decisão tomada a 09/01/2024 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, que condenou a recorrente, pela prática de uma infração disciplinar, designadamente a p. e p. pelo art. 182°, n.° 2 do RDLPFP por, alegadamente, não ter prevenido ou impedido a verificação de determinados comportamentos por parte dos seus sócios ou simpatizantes no decorrer do evento desportivo.
B. A factualidade imputada à Recorrente prende-se com o ocorrido no jogo n.° ......., realizado em 23/09/2023, entre a F.............., e a G.............. Ida, a contar para a ......a jornada da Liga ......., mais concretamente, com a circunstância de um alegado adepto da F.............., de nome J......., que assistia ao jogo no Sector 23 da bancada Norte, arremessou um sapato na direção de um assistente de recinto desportivo, de nome L............, que se encontrava no terreno de jogo, atingindo-o.
C. Entendeu-se na decisão recorrida a Recorrente deve ser disciplinarmente responsabilizada porquanto a sua conduta, nos termos e circunstâncias em que se verificou, é objetiva e subjetivamente ilícita porque omissiva e violadora dos deveres que sobre si impendiam, num incumprimento do dever de colaborar na prevenção de manifestações antidesportivas, traduzido na violação de deveres a que estava obrigada, pois não acautelou, precaveu, preveniu, formou, zelou e incentivou o espírito ético e desportivo dos seus adeptos.
D. Não estão reunidos factos e provas suficientes que permitam concluir que a arguida deva responder disciplinarmente pelas infrações disciplinares de que vem acusada, isto por diversas razões:
- A primeira das quais, é que resultou da prova produzida, designadamente da inquirição do ARD que foi atingido pelo sapato, que não é possível concluir que o adepto que praticou a conduta era adepto da demandante.
- A demandante cumpriu com os deveres de organização, segurança, prevenção e sancionamento que sobre si impendiam:
- Inexistem nos autos, elementos demonstrativos do contrário:
E. A decisão recorrida incorre ainda em erro de julgamento sobre a matéria de facto dada como provada, não se verificando preenchidos os elementos típicos do ilícito disciplinar p. e p. pelo art. 182.°. n.° 2 do RDLPFP.
F. Para que o tipo-de-ilícito em causa esteja objetivamente preenchido é necessário a verificação de duas premissas essenciais para a sua consumação:
1) uma situação de incumprimento de deveres impostos por Lei ou Regulamentos ao clube e que desse incumprimento resulte a criação de uma situação de perigo para a segurança dos agentes desportivos ou dos espectadores ou de risco para a tranquilidade e a segurança públicas;
2) ou uma situação de lesão dos princípios da ética desportiva, da verdade desportiva ou grave prejuízo para a imagem e o bom nome das competições de futebol.
G. Para que se possa aplicar o tipo disciplinar aqui em apreço, é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos:
- Voluntariamente e ainda que de forma meramente culposa;
- Um sócio ou simpatizante do clube;
- Agrida fisicamente;
-Um espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente;
- Dentro dos limites do recinto desportivo;
-Antes, durante ou depois da realização do jogo;
- Sem que aquela agressão cause lesão de especial gravidade;
H. Sucede que, não se verificam nenhum dos dois primeiros requisitos, designadamente que os factos ocorreram por intenção voluntária da demandante, ou que esta agiu de forma culposa, nem que o facto foi praticado por um sócio ou simpatizante da demandante.
I. Quanto à qualidade do adepto, ou seja, que o agente era adepto ou simpatizante da demandante, inexistem nos autos qualquer prova nesse sentido, existe, isso sim, prova em sentido inverso.
J. A decisão recorrida sustenta-se, unicamente, no relatório policial, porém, não resultam dos relatórios de policiamento com a força probatória especial, elementos suficientes, presenciados e descritos, que possam concluir que os factos foram praticados por adepto da demandante.
K. É indubitável que tais relatórios fazem prova dos factos que referem, caso não sejam devidamente postos em causa, i.e. em dúvida por prova contrária, todavia os mesmos têm. obrigatoriamente, de ser interpretados e analisados.
L. Não se pode. como faz o acórdão recorrido, aderir acriticamente aos relatórios oficiais, numa obediência cega. sem conjugar os mesmos com a globalidade da prova produzida, que poderá contrariar e ilidir tal presunção, como poderá indicar que determinados elementos não gozam dessa presunção por não terem sido presenciados por quem elaborou tais relatórios.
M. Apurando designadamente o que foi. efetivamente, presenciado pelas autoridades e o que lhe foi relatado e fez constar no relatório, bem como os factos concretos que foram presenciados - e que tem força probatória especial - e as simples conclusões que ali são colocadas, sem essa força ou presunção de veracidade.
N. Mas a decisão recorrida nada diz, nada fundamenta, discorre sobre a força probatória dos relatórios oficiais, e conclui, erradamente e sem prova, que o agente era adepto da demandante, apenas e só porque tal consta do relatório!
O. Concluindo, sem qualquer prova concreta, que os factos descritos no Relatório de policiamento desportivo, foram praticados por adeptos da F...............
P. Ignorando toda a prova produzida nos autos que contraria essa conclusão, nomeadamente o depoimento do ARD, que foi atingido pelo arremesso do objeto, que foi quem, pasme-se:
- presenciou os factos;
- descreveu os mesmos;
- apanhou e apreendeu o objeto;
- identificou o adepto;
- chamou as autoridades policiais;
- descreveu os factos que permitiu às autoridades policiais elaborar o relatório.
Q. Depoimento que foi prestado em audiência disciplinar, e que se encontra gravado e junto aos autos, para o qual se remete, e que demonstra em suma que:
- As autoridades policiais não presenciaram o ato;
- na bancada onde o adepto se encontrava, era composta por adeptos de ambos os clubes;
- o adepto identificado não era possuidor de qualquer indumentária ou acessório demonstrativo da equipa que apoiava;
- o adepto falava inglês;
- Tem séria dúvidas que tenha sido ele a arremessar o objeto, porque o mesmo estava calçado e o sapato não lhe pertencia;
- Apenas o identificou, porque ele reclamou e exigiu a devolução do sapato;
- Tendo o adepto sido detido pela polícia, desconhecendo se foi objeto de julgamento sumário ou se foi apenas aberto inquérito.
R. Depoimento essencial que contraria in totum a parte do relatório que identifica o autor como adepto da demandante, e por conseguinte, o facto dado como provado na decisão recorrida.
S. Sendo, por conseguinte, falsa a conclusão constante do acórdão que não foi feita prova suficiente capaz de contrariar a força probatória especial do relatório, porquanto a única pessoa que presenciou os factos, prestou depoimento em sentido inverso.
T. Referindo expressamente, que não era possível concluir se o adepto era adepto do F............... mas na sua convicção o mesmo não o era.
U. Consta ainda dos autos, os esclarecimentos prestados pelas autoridades que alegadamente complementam o relatório, os quais remetem para os Spotters (ARDS). confirmando que não presenciaram os factos e que inseriram no relatório os factos relatados pelo ARD.
V. Existem pois elementos probatórios nos autos, designadamente os esclarecimentos prestados pelas autoridades, que os factos constantes dos relatórios não foram presenciados pelos seus autores, mas relatados pelos spotters.
W. O que confirma a versão e depoimento da testemunha ouvida - ARD.
X. Ou seja. inexistem nos autos quaisquer indícios, já para não falar em certeza para além da dúvida razoável, que possam sustentar ou indiciar que a pessoa identificada é adepta da arguida.
Y. O Acórdão recorrido fundamenta a sua decisão nas presunções naturais, pelo facto de que o sector em causa se encontrar destinado a adeptos, associados ou simpatizantes da Demandante, referindo-se que: "Não consta dos autos qualquer evidência que aponte para a presença de adeptos afetos à G.............. naquele sector."
Z. Ignorando completamente o depoimento do ARD, que contraria tal conclusão.
AA. Veja-se que o sector 23 apesar da ficha técnica do Estádio, não está reservado aos GG da equipa da casa, sendo aliás, um dos sectores que mais frequentemente é ocupado por adeptos visitantes que não sejam GG adversários.
BB. Tanto mais que, com o recente protocolo da Liga com o H........, é um dos sectores em que qualquer adepto pode adquirir bilhetes para o jogo, naquele H........, o que foi igualmente confirmando pelo ARD no seu depoimento.
CC. Tudo isto, complementado com o depoimento do ARD que foi atingido pelo Sapato, só pode levar à dúvida sobre qual a filiação ou simpatia do adepto relativamente às equipas.
DD. Ademais, não basta que a entidade promotora destine uma bancada a adeptos de um determinado clube, para se concluir que todos os adeptos que ali assistem ao jogo são daquele determinado clube.
EE. Porquanto todos sabemos a facilidade com que se podem adquirir ingressos para o jogo para qualquer bancada, sendo que, não raras vezes, o que define a bancada onde cada adepto se situa é normalmente o local onde o bilhete foi comprado.
FF. Atente-se ainda que aquela é a bancada adstrita aos bilhetes do H........, onde qualquer adepto pode comprar um bilhete para ver um jogo, independemente da sua filiação clubística.
GG. Basta para o efeito, ver as imagens televisivas onde. frequentemente, vemos adeptos amigos, casais e filhos, sentados em bancadas afetas à equipa da casa com camisolas da equipa visitante.
HH. Atente-se ainda às polêmicas recentes e constantes, de ARD's pedirem a adeptos para tirarem as indumentárias dos seus clubes, porque se situam em bancada afeta ao outro clube.
II. A conclusão que um adepto é de um determinado clube, simplesmente porque está numa determinada bancada é algo que não se compagina com a certeza que se pretende do direito sancionatório.
JJ. Assim, igualmente aqui não se poderá presumir, num silogismo aristotélico credível, que o agente da conduta é adepto da F...............
K.K. Pelo que dar como provado e assente que o agente é adepto da arguida, é um exercício advinhatório não compatível com as exigências probatórias do direito sancionatório. e que contraria toda a prova existente nos autos.
LL.O acervo probatório existente nos presentes autos não permite a constatação de qualquer situação de incumprimento de deveres a que está adstrita a Recorrente - especialmente dos deveres consagrados nas ais. b), c) e o) do art. 35.° do RC
MM. Não tendo a Demandada logrado demonstrar a existência de qualquer nexo causal entre as alegadas condutas omissivas da Demandante e os comportamentos censurados perpetrados pelos seus adeptos/ simpatizantes.
NN. Cumpre não esquecer, que está em causa uma responsabilização da Recorrente centrada unicamente na alegada violação dos deveres in vigilandum e formando dos seus adeptos, tendo a Recorrente alegado e demonstrado, cabalmente, que tomou todas as diligências que lhe eram exigidas e cumpridos os deveres de vigilância, formação e sensibilização dos seus adeptos, com o intuito de evitar e prevenir comportamentos incorretos e ilícitos por parte destas, designadamente implementando uma política de sensibilização dos adeptos, que passa pela identificação preventiva de comportamentos social e desportivamente intoleráveis e sua repressão.
00. Não obstante o resultado produzido, é falso que tenha existido uma qualquer omissão ou insuficiência no cumprimento dos deveres jurídicos de vigilância e garante (in formando) a que a arguida está adstrita por força dos normativos regulamentares.
PP. A Recorrente não só não contribuiu para a prática dos comportamentos de terceiros aqui em discussão, como tudo faz para evitá-los e reprimi- los!
QQ. Tudo isto, foi demonstrado cabalmente por prova testemunhal e documental, que foi simplesmente ignorada, não é uma questão de livre apreciação ou decisão em sentido contrário, é uma questão de ignorar tudo o quanto demonstrou, não ponderando tais factos e não os considerando como factos provados ou não provados.
RR. Não basta que se reconheça e identifique um comportamento menos próprio de determinados adeptos para que se possa, automática e legitimamente, responsabilizar o respetivo Clube.
SS. A sua responsabilização por factos de terceiros supõe. pois. a violação dos deveres gerais de cuidado, lealdade e boa conduta que diretamente impendem sobre o(s) próprio(s) Clube(s). como e enquanto agentes desportivos.
TT. Como também supõe e exige que tais comportamentos sejam previsíveis, antecipáveis e de algum modo controláveis!
UU. Estando embora legalmente prevista a responsabilidade do Clube por factos de terceiros, ela não deixa de ser excecional no direito sancionatório e não pode desligar-se do princípio jurídico- constitucional da culpa.
W. O que implica que a responsabilização do Clube por um facto de um terceiro deva depender de algum comportamento que ao próprio Clube possa ser pessoalmente assacado - crê-se, aliás, que tem sido essa a linha de rumo jurisprudencial do próprio Conselho de Disciplina, do Tribunal Arbitral do Desporto e do próprio Tribunal Administrativo Central.
WW. Motivo pelo qual. nessa medida, não se pode tolerar, sem mais. imputações de condutas de terceiros sem qualquer nexo de dependência ou causalidade, mais ou menos direto, com o comportamento do próprio Clube!!
XX. O Acórdão recorrido decidiu pela condenação da sociedade arguida sem que, em momento algum, se tenha verdadeiramente avaliado a sua concreta conduta enquanto agente desportivo,
YY. ou mesmo sem que sequer se tenha posto em evidência qualquer ato ou omissão que possa ter contribuído para aquela pretensa atuação, objeto de censura disciplinar.
ZZ. Baseando-se unicamente na responsabilidade objetiva, ou seja na ocorrência dos factos, para se imputar a sua responsabilidade à recorrente.
AAA. Ignorando-se que foi a demandante - através do seu ARD -, quem identificou o adepto e pugnou para que as autoridades o identificassem e procedessem à sua detenção e expulsão do Estádio.
BBB. Ainda que a arguida tivesse que "assumir' a responsabilidade por uma conduta infratora de um seu adepto, era imperativo - como se adiantou - que dos autos resultasse um lastro probatório suficiente que permitisse imputar a conduta incorreta à própria arguida,
CCC. Nomeadamente, que se demonstrasse que esta nada fez para assegurar a ordem e a disciplina dentro do Estádio onde decorria o jogo em apreço, o que manifestamente não se verificou!
DDD. O que se vê acontecer no presente pleito é a evidencia de que prove o Clube o que provar, faça o Clube o que fizer, tudo será sempre insuficiente em face da ocorrência do resultado que se quer evitar (o comportamento censurável dos espectadores)!!! Ou seja, sempre que se verifique um comportamento censurável dos espectadores, essa será a prova irrefutável de que o clube incumpriu os deveres a que estava obrigado. Isto sem que se exija a concretização do que é que falhou e ignorando-se, além do mais. tudo o que o Clube arguido fez no sentido da prevenção e dissuasão desse tipo de comportamentos, bem como a intervenção de forças policiais responsáveis pela segurança!!
EEE. O que se advoga, na decisão recorrida, é. pois. a imposição aos Clubes de uma tarefa impossível: a de evitar um concreto resultado! Não se vislumbrando o que se poderá considerar uma suficiente demonstração de que o Clube praticou os atos adequados para evitar o resultado previsto no ilícito disciplinar (o comportamento incorreto do público), sempre que esse resultado acontecer...contrariamente ao previsto na tipo legal de ilícito disciplinar.
FFF. A arguida em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, porquanto o "o ónus da prova dos factos constitutivos da infração cabe ao titular do poder disciplinar", como bem defende o Tribunal Central Administrativo Sul. no acórdão por si proferido a 02/06/2010 no âmbito do Processo n.° 5260/01 - jurisprudência uniforme e pacífica, e reiteradamente afirmada também nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19/01/95. rec. n.° 031486. de 14/03/96, rec. n.° 028264, de 16/10/97, rec. n.° 031496 e de 27/11/97. rec. n.° 039040.
GGG. Como já se pronunciou a este respeito o Supremo Tribunal Administrativo, "Não impende sobre o arguido o ónus de reunir as provas indispensáveis para a decisão a proferir, em especial, em sede de comprovação dos factos que lhe são imputados" (cf. Acórdão do STA de 28 de Abril de 2005, processo n.° 333/05).
HHH. Neste mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 24.01.2019, no âmbito do proc. n.° 58/18.6BCLSB, com relação ao direito sancionatório desportivo:
”[...] deveria ser salvaguardado o cumprimento dos princípios da presunção de inocência dos arguidos, da culpa e proibição da inversão do ónus da prova em processos disciplinares, não podendo em circunstância alguma o silêncio dos arguidos ser valorado contra os próprios. A presunção de veracidade da factualidade apurada aos relatórios dos jogos mostra-se por si só insuficiente para fundamentar as multas aplicadas pelo Conselho de Disciplina, não competindo ao visado a obrigação de proceder a qualquer contraprova para escapar à aplicação de tais multas.
III. Na tese acolhida pelo Tribunal a quo - em plena contradição com o quadro normativo português - passa o arguido em processo disciplinar a suportar sobre si, além do peso de uma qualquer acusação (até mesmo acusação sem prova), o peso de provar a sua inocência, carreando aos autos prova que não praticou determinado comportamento, cabendo- lhe demonstrar que a acusação é improcedente.
JJJ. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir o entendimento vertido na decisão recorrida equivaleria a uma aberta e clamorosa violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência - o que é, só por si, bastante para conduzir ao repúdio de tal tese.
KKK. Com efeito, não se pode pretender impor ao processo disciplinar — postergando os elementares princípios jurídico-constitucionais - qualquer distribuição ou inversão do ónus da prova, uma vez que. Com tal exercício, violam-se frontalmente os direitos fundamentais do Recorrente.
LLL. É à FPF a quem incumbia o ónus de carrear aos autos prova suficiente da prática das infrações pela Recorrente, inclusive daqueles que consubstanciam a violação de deveres. Até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da ação disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência.
MMM. Note-se que qualquer dúvida em matéria de prova resolve-se a favor do arguido por aplicação dos princípios da presunção de inocência e do 'in dubio pro reo‘. devendo a prova coligida assentar em factos que permitam um juízo de certeza, isto é. numa convicção segura, para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).
NNN. E. nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°. f). do RD. pode contrariar esta quadro normativo, dado que. mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador. Não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.
OOO. Nesta senda, cumpre ainda notar que. sendo certo que o Acórdão proferido em 18-10-2018 pelo Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do processo n.° 297/2018. veio consignar que a presunção de veracidade consagrada no art. 13.°-1, al. f) do RD "confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado".
PPP. e ainda que “o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só '‘prima facie” ou de "interim”, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma 'Incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio “in dubio pro reo”, a sua absolvição.”,
QQQ. não menos seguro se revela que, compulsados os relatórios do jogo em causa nestes autos, nenhum facto neles é descrito em favor de uma atuação culposa da Recorrente.
RRR. Em tais relatórios não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa atuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado.
SSS. Sendo a atuação culposa um dos “demais elementos das infrações” que se impunha à FPF provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelo art. 118.° do RD.
TTT. A este respeito, veja-se ainda o entendimento vertido pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, no acórdão de 27/02/2020 tirado no âmbito do proc. n.° 148/19.8BCLSB, no sentido de que “do facto de os supostos adeptos - não identificados - praticarem as ações descritas nos artigos 204.º ,208.° e 209.° do RD/FPF é impossível, natural ou juridicamente, retirar o facto da violação voluntária dos cits. deveres a cargo da ora recorrente’7, assim concluindo que aquelas disposições são, assim, por preverem punição sem culpa, disposições regulamentares administrativas jurídico-constitucionalmente imprestáveis devendo ser desaplicadas pelo tribunais administrativos ao abrigo do artigo 204.° da Constituição”.
UUU. no que a esta matéria concerne, vistos e revistos os elementos probatórios juntos aos autos, não resulta de nenhum deles que a Recorrente tenha sido pouco diligente ou sequer omissiva. Bem pelo contrário!
VW. No caso dos autos, prosseguiu-se com a condenação da sociedade arguida sem que, em momento algum, se tenha verdadeiramente avaliado a sua concreta conduta enquanto agente desportivo,
WWW.ou mesmo sem que sequer se tenha posto em evidência qualquer ato ou omissão que possa ter contribuído para aquela pretensa atuação, objeto de censura disciplinar.
XXX. A verdade é que, a Demandante está reconhecidamente preocupada com comportamentos inapropriados levados a cabo pelos adeptos e até interessada em combatê-los e erradicá-los (fazendo uso de meios para os sensibilizar em prol da adoção de comportamentos desportivamente adequados),
YYY. não havendo pois como concluir que há uma insuficiência de atuação preventiva que leva à ocorrência dos comportamentos em sindicância.
ZZZ. Para além de ser completamente impossível impedir manifestações inopinadas como as que estão aqui em causa nos presentes autos, infelizmente está igualmente por demonstrar a efetividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido.
AAAA. Tendo a arguida, por sua iniciativa e no cumprimento do dever que sobre si impendia, identificado e promovido a detenção e expulsão do adepto do Estádio, nada mais lhe sendo exigível.
BBBB. Sendo-lhe impossível prever e evitar comportamentos do tipo dos ocorridos nos autos, estando em falta um elemento imprescindível para a imputação da infração: a capacidade de agir para dar cumprimento ao dever que impende sobre o agente.
CCCC. Impondo-se portanto a revogação da decisão recorrida e, consequente, absolvição da Demandante, o que se requer.
Termos em que se requer a V. Exas. Se dignem julgar procedente o presente recurso, e, consequentemente, revogar o acórdão arbitral recorrido, substituindo- se o mesmo por outro que importe a absolvição da recorrente atenta a ausência da prática de qualquer infração disciplinar.”
A Federação Portuguesa de Futebol veio apresentar as suas Contra-alegações de Recurso, nas quais concluiu:
“1. O presente recurso, interposto pela Recorrente, tem por objeto o Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, que confirmou a decisão proferida em 9 de Janeiro de 2024, pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, através do qual foi confirmada a decisão de aplicação à ora Recorrida da sanção de multa fixada em €5.100 pela prática de uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 182.º, n.º 2 do RD da LPFP.
2. A Recorrente foi sancionada, pelo Conselho de Disciplina, porquanto por ocasião do jogo oficialmente identificado sob o n.9 ......., disputado entre a Recorrente (F..............) e a G.............. Lda., a contar para a 6 J jornada da Liga ......., realizado em 23.09.2023, cerca das 21h20, um adepto da F.............., de nome J......., que assistia ao jogo no Sector 23 da Bancada Norte, exclusivamente ocupado por adeptos da F.............., fora da respetiva Zona com Condições Especiais de Acesso e Permanência de Adeptos (ZCEAP), arremessou um sapato na direção de um assistente de recinto desportivo, de nome L............, que se encontrava no terreno de jogo atingindo-o e não lhe provocando ferimentos, verificando-se que a Recorrente não adotou as medidas preventivas e repressivas adequadas e necessárias a impedir os comportamentos supra referido, incumprindo deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto clube participante no dito jogo de futebol - cfr. ponto 2 dos factos dados como provados.
3. Tudo conforme Relatório de Árbitro e Relatório de Delegado referentes ao jogo oficialmente identificado sob o n.º ....... [cf. fls. 4 a 8; 9 e 10 (respetivamente)], no Relatório de Policiamento Desportivo elaborado pela PSP (junto de fls. 18 a 20) e nos esclarecimentos prestados pela PSP (a fls. 32 e 33) e demais elementos juntos ao processo disciplinar cuja cópia se junta aos autos.
4. Entendeu o Tribunal Arbitral do Desporto, e bem, manter a sanção aplicada à Recorrente, decisão que deve ser mantida.
5. A decisão foi fundamentada, entre outros documentos, com o relatório elaborado pelos delegados da Liga e com o Relatório de Segurança, elaborado pelas forças de segurança, como foi bem decidido pelo TAD.
6. De acordo com o artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP, um dos princípios fundamentais do procedimento disciplinar é o da "f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa".
7. Ora, o valor probatório qualificado a que o RD da LPFP alude constitui um mecanismo regulamentar compreendido e justificado pelo cometimento de funções particularmente importantes aos árbitros e delegados da LPFP, a quem compete representar a instituição no âmbito dos jogos oficiais, cumprindo e zelando pelo cumprimento dos regulamentos, nomeadamente em matéria disciplinar (ainda que isso possa não corresponder aos interesses egoísticos dos clubes).
8. De acordo com o artigo 10.º, n.º 1, al. f) do Regulamento de Arbitragem das competições organizadas pela LPFP compete à equipa de arbitragem "Elaborar o boletim de jogo, mencionando todos os incidentes ocorridos, antes, durante ou após o jogo, bem como os comportamentos imputados aos jogadores, treinadores, médicos, massagistas, dirigentes e demais agentes desportivos que constituam fundamento de sanções disciplinares, bem como eventuais alterações ao plano de viagem e sua justificação".
9. Por sua vez, de acordo com o artigo 65.º do Regulamento de Competições da IPFP, concretamente o seu n.º 2, al. i) compete aos Delegados indicados pela LPFP para cada jogo "elaborar e remeter à Liga um relatório circunstanciado de todas as ocorrências relativas ao normal decurso do jogo, incluindo quaisquer comportamentos dos agentes desportivos findo o jogo, na flash interview".
10. Ou seja, a equipa de arbitragem e os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube.
11. Assim, quando a equipa de arbitragem ou os Delegados da LPFP colocam nos respetivos relatórios que os comportamentos perpetrados por adeptos de determinada equipa levaram ao retardamento do reinicio do jogo, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos mesmos no local.
12. No caso concreto, também as forças policiais corroboram os factos em crise. Com efeito, não se deve ignorar que os relatórios das forças policiais, por serem exarados por "autoridade pública" ou "oficial público", no exercício público das "respetivas funções" (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (cf. artigo 363º, n.º 2, do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.2 e seguinte do mesmo Código.
13. Nesse particular, tal relatório faz "prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora" (cf. Artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil).
14. Tal valor probatório apenas pode ser afastado com base na sua falsidade (cf. Artigo 372.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que, no contexto processual penal e nos termos do artigo 169.º do Código de Processo Penal, se consideram "provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa".
15. Também o julgador disciplinar desportivo se encontra, na apreciação da prova, vinculado à especial força probatória que, nos termos já apresentados, legalmente é reconhecido ao documento autêntico - em cujo conceito se integra o Relatório de Policiamento Desportivo, elaborado, no caso concreto, pela PSP e respetivos esclarecimentos.
16. Tudo o acima exposto, não significa que os Relatórios do Árbitro e dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
17. Quer isto dizer que, não se está perante uma verdade incontestável dos factos descritos nos relatórios da equipa de arbitragem, dos delegados da LPFP e das forças policiais, podendo aquela veracidade ser colocada em causa sendo, para tal, necessário carrear meios de prova que fundadamente, é dizer, fundamentadamente, com motivo sério, com razão, coloquem em crise aquela factualidade.
18. Demonstrado que esteja que o arremesso do objeto (sapato) contra um ARD, e atendendo à restante factualidade considerada provada, encontra-se igualmente preenchido o tipo disciplinar "Agressões graves a espectadores e outros intervenientes", p. e p. pelo artigo 182.º do RD da LPFP.
19. Conforme é desde logo estipulado no artigo 172.º, n.º 1 do RD da LPFP: "1. Os clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial.".
20. Mas tais deveres - de assegurar a ordem e disciplina - não estão apenas previstos em normas regulamentares criadas pela Federação ou pela LPFP; estão desde logo previstos na Constituição e na Lei.
21. A prevenção e combate à violência associada ao desporto, a denominada violência exógena - para além da inerente à prática desportiva presente em algumas modalidades é algo que, em particular, a partir da década oitenta do século passado, tem convocado a atenção dos Estados e das organizações desportivas.
22. No plano internacional: a Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente em Jogos de Futebol (Tratado n.º 120, do Conselho da Europa, de 19 de agosto de 1985); a Carta Europeia do Desporto; o Código da Ética Desportiva (Comité de Ministros do Conselho da Europa, 1992 com revisões em 2001); e a Convenção Europeia sobre uma Abordagem Integrada de Safety, Security, e Service em Jogos de Futebol e Outros Desportos (Tratado n.º 218, do Conselho da Europa, Saint-Denis, 3 de julho de 2016);
23. No plano da legislação desportiva nacional, valem hoje em dia as normas constantes da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho (na sua atual redação), que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança.
24. A responsabilidade dos clubes pelas ações dos seus adeptos ou simpatizantes está prevista desde logo no artigo 46.º de tal regime jurídico, pelo que nem sequer é uma inovação ou uma invenção dos regulamentos disciplinares federativos ou da liga.
25. Como já há muito foi realçado, nesta dupla função - prevenção e combate - encontram-se presentes diversos operadores. A ação desses diversos operadores revela-se essencial para a prossecução das finalidades da lei e, ademais, assenta num previsto e determinante princípio da colaboração, com raízes constitucionais.
26. É um dever fundamental do Estado mas também desses outros operadores, previsto desde logo no artigo 79.º, n.º 2 da Constituição.
27. Assim, o Conselho de Disciplina agiu no estrito cumprimento das normas regulamentares e legais aplicáveis, não lhe sendo sequer exigível que tomasse outra decisão, nem quanto ao seu conteúdo nem quanto à forma de processo, face ao que se encontra estabelecido no RD da LPFP, aprovado, relembre-se, uma vez mais, pelos próprios clubes que integram as ligas profissionais de futebol, onde alinha também a Recorrente.
28. No caso concreto, a Recorrente foi sancionada por violação dos deveres previstos no artigo 35.º do RCLPFP.
29. Ademais, para que se possa aplicar o tipo disciplinar previsto pelo n.º 2 do artigo 182.º do RDLPFP, é necessário que, voluntariamente e ainda que de forma meramente culposa, um (i) sócio ou simpatizante de clube; (ii) agrida fisicamente; (iii) espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente; (iii) dentro dos limites do recinto desportivo; (iv) antes, durante ou depois da realização do jogo; (v) sem que aquela agressão cause lesão de especial gravidade.
30. Todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido do relatório elaborado pelos delegados da LPFP e pelas Forças de Segurança, pelo que, dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente.
31. Assim, de modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo do Relatório, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral ou, ainda, quanto muito, criar na mente do julgador uma dúvida tal que levasse a, por obediência ao princípio in dubio pro reu, a decidir pelo arquivamento dos autos.
32. E não se diga que tal prova era difícil ou impossível: bastava a prova, título de exemplo, de que aplicou qualquer medida sancionatória aos seus associados ou de que tomou providências, in loco, através dos delegados indicados por si para cada jogo, seja em "casa" seja "fora" - como consta do Regulamento de Competições da LPFP - para identificar e expulsar os responsáveis pelos comportamentos incorretos; etc., etc., etc.
33. Mas a Recorrente não logrou demonstrar, cabal e factualmente, nada, limitando-se a afirmar que faz publicações nas redes sociais e reuniões com os líderes dos GG. Como é evidente, alegações vagas de que fez tudo para evitar os comportamentos descritos não são suficientes para contrariar a evidência de que se tudo tivesse feito os comportamentos não teriam ocorrido!
34. Ora, as medidas in formando e in vigilando dos adeptos aptas para prevenir o mau comportamento dos mesmos são aquela que, in casu, são aptas a produzir o resultado. Por exemplo, ficou por demonstrar a punição pela Recorrente dos seus associados infratores, ou o incentivo do espírito ético e desportivo junto dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados.
35. Tendo em consideração a jurisprudência citada no autos recorridos, bem como o facto de que os Relatórios de jogo e de Segurança e demais elementos de prova juntos aos autos serem perentórios a referir que os comportamentos descritos foram perpetrados por adeptos da equipa visitada (aqui Recorrente), e que aqueles relatórios têm uma força probatória fortíssima em sede de procedimento disciplinar, cabia à Recorrente fazer prova que contrariasse aquela que consta dos autos e que leva à conclusão de que as condutas ilícitas foram feitas por espetadores seus adeptos ou simpatizantes e que foram violados os deveres que sobre si impendiam, o que não fez, e por isso o TAD andou bem.
36. Não há aqui, portanto, presunções, nem provas indiretas, nem factos desconhecidos que ficaram conhecidos por aplicação de regras de experiência. São factos que constam de documentos probatórios com valor reforçado. Factos e não presunções. Prova direta, não prova indireta.
37. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova diretos para punir a Demandante, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Demandante e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, conforme foi já por diversas vezes afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo.
38. É ainda importante frisar que a tese sufragada pela Recorrente, a vingar, é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência.
39. É de lamentar, aliás, que este tipo de episódios, como os que deram origem ao processo disciplinar em causa nos autos, sejam cada vez mais frequentes nos nossos estádios de futebol o que apenas demonstra que os clubes falham, sistematicamente, com os seus deveres em sede de prevenção da violência, em particular a Recorrente.
40. Em conclusão, andou bem o Tribunal a quo ao decidir manter as sanções ao Recorrente, não merecendo o Acórdão recorrido, nenhuma censura.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deverá o Tribunal Central Administrativo decidir pela improcedência do recurso, mantendo o Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, com as devidas consequências legais, assim se fazendo o que é de lei e de justiça.”
O Ministério Público, já neste Tribunal, notificado em 25 de junho de 2024, nada veio dizer, requerer ou Promover.
II – Objeto do recurso:
Em face do Recurso interposto, cumpre decidir se o Tribunal Arbitral do Deporto incorreu em erro ao julgar improcedente o pedido de revogação do Acórdão FPF, proferido pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, confirmando a decisão disciplinar condenatória recorrida.
III - Fundamentação De Facto:
No acórdão recorrido foi julgada provada a seguinte factualidade:
“1) Realizou-se no dia 23.09.2023, no Estádio ...., o jogo oficialmente identificado sob o n.° ......., entre a F.............. - Futebol, SAD e a G.............. LDA., a contar para a 6ª jornada da Liga .......;
2) Cerca das 21h20, um adepto da F.............., de nome J......., que assistia ao jogo no Sector 23 da Bancada Norte, exclusivamente ocupado por adeptos da F.............., fora da respetiva Zona com Condições Especiais de Acesso e Permanência de Adeptos (ZCEAP), arremessou um sapato na direção de um assistente de recinto desportivo, de nome L............, que se encontrava no terreno de jogo atingindo-o e não lhe provocando ferimentos;
3) A Demandante não cumpriu eficazmente com o seu dever de acautelar, prevenir, formar, vigiar e incentivar o espírito ético e desportivo dos seus associados e adeptos;
4) A Demandante, à data dos factos, tinha antecedentes disciplinares.
IV – Fundamentação De Direito:
No que aqui releva, sumariou-se no Acórdão Arbitral Recorrido:
“(…) 1. Conforme propugna o artigo 3° (sob a epígrafe "Âmbito da jurisdição") da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto ("Lei do TAD"), goza este de "jurisdição plena, em matéria de facto e de direito”, significando que no julgamento dos recursos e impugnações que lhe competem é reconhecida ao TAD a possibilidade de um reexame global das questões já decididas com emissão de novo juízo.
2. A Demandante pugna pela revogação do Acórdão de 9 de janeiro de 2024, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol ("CD FPF”) - Secção Profissional, através do qual foi sancionada com uma pena de multa fixada em €5.100, pela prática da infração disciplinar pp. pelo artigo 182.°, n.° 2 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional ("RDLPFP").
3. No âmbito do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente colocada em causa, cf. artigo 13.°, al. f), do RDLPFP.
4. Os clubes são responsáveis pelas infrações praticadas pelos seus associados e adeptos, por força da violação de deveres relativos à prevenção e combate à violência no desporto e incentivo ao fair-play, designadamente, por insuficiência de vigilância ou controlo ou em virtude de carências relativas à promoção ativa dos valores que integram a ética desportiva.
5. A responsabilidade disciplinar imputada à Demandante reveste natureza subjetiva, por omissão, incumprimento ou cumprimento defeituoso da sua obrigação genérica de segurança, por se estribar na violação de deveres in vigilando e in formando dos seus associados e adeptos.
6. Compete ao clube/sociedades desportivas a demonstração da realização junto dos seus associados e adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e suprimirem a violência no desporto e, por conseguinte, afastar a sua responsabilidade disciplinar.
7. Não tendo o clube/sociedade desportiva logrado provar o eficaz cumprimento destes deveres legais e regulamentares de formação, é responsável pelo comportamento social ou desportivamente incorreto dos seus adeptos, em harmonia com o estatuído no artigo 187.°, n.° 1, do RDLPFP.
Correspondentemente, no que aqui releva, decidiu-se no Acórdão Recorrido:
“Nos termos e com os fundamentos supra expostos, decide-se não dar provimento ao recurso interposto pela Demandante, e em consequência,
I. Julgar improcedente, por não provado, o pedido de revogação do Acórdão FPF, proferido pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, confirmando a decisão disciplinar condenatória recorrida; (…)”
Vejamos:
O recurso em análise interposto pela F.............. SAD, tem por objeto o Acórdão proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto - TAD, que julgou improcedente o recurso.
Em bom rigor a aqui Recorrente foi sancionada, pelo Conselho de Disciplina, em decorrência do jogo disputado entre a Recorrente – F.............. – SAD e a G.............., ...., Lda., a contar para a 6ª jornada da Liga ......., realizado em 23.09.2023, cerca das 21h20, em resultado do facto de adepto identificado da F..............-SAD, ter arremessado um sapato na direção de um assistente de recinto desportivo.
O descrito consta do Relatório de Árbitro e do Relatório do Delegado da Liga, e do Relatório de Policiamento Desportivo elaborado pela PSP e dos ulteriores esclarecimentos prestados por esta.
Entendeu o Tribunal Arbitral do Desporto manter a sanção aplicada à Recorrente.
Objetivamente, consta do relatório elaborado pelo Delegado da Liga, o seguinte:
"Ocorrência:
Foi reportado pelo comandante das forças de segurança que ao minuto 45+1'- 1p, um adepto situado na bancada norte setor 23, fora da zceap, arremessou um sapato para o terreno de jogo, tendo atingido um ARD. de acordo com o comandante das forças de segurança o adepto foi identificado".
Refere-se no Relatório de Segurança que:
"21H20 Foi comunicado que um ARD na zona Norte/Nascente foi atingido por um sapato arremessado por um adepto. O adepto foi identificado e retirado do recinto pelas 21h29 (...) A registar também a identificação, autuação e colocação no exterior do recinto de um adepto que, a partir do setor 23, por volta das 21h20, arremessou um dos sapatos que calçava em direção ao relvado, vindo a atingir um ARD."
Em sede de esclarecimentos complementares, vieram as forças de segurança esclarecer o seguinte:
"De que clube era o adepto que arremessou o sapato? -
Estava num setor destinado a adeptos do F............... Os spotters poderão melhor responder Estava a assistir ao jogo, como simpatizante do F..............
O que levou a identificá-lo como tal?
i. Manifestou apoio a esse clube durante o jogo?
De acordo com o elemento policial, o adepto em causa encontrava-se a assistir ao jogo, apoiando o clube da casa, o F...............
ii. O Sector 23, da Bancada Norte (em que se encontrava), foi reservado a adeptos de tal clube?
O setor 23 era destinado a adeptos da casa."
Correspondentemente, o Conselho de Disciplina instaurou processo disciplinar à F.............. SAD, que veio a determinar a aplicação da controvertida sanção, que veio a ser confirmada pelo TAD.
Incontornavelmente, nos termos do artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP, constitui “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa"
Por outro lado, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, al. f) do Regulamento de Arbitragem das competições organizadas pela LPFP compete à equipa de arbitragem “Elaborar o boletim de jogo, mencionando todos os incidentes ocorridos, antes, durante ou após o jogo, bem como os comportamentos imputados aos jogadores, treinadores, médicos, massagistas, dirigentes e demais agentes desportivos que constituam fundamento de sanções disciplinares, bem como eventuais alterações ao plano de viagem e suo justificação".
Já o artigo 65.º do Regulamento de Competições da LPFP, no seu n.º 2, al. i) estatui que compete aos Delegados indicados pela LPFP para cada jogo "elaborar e remeter à Liga um relatório circunstanciado de todas as ocorrências relativas ao normal decurso do jogo, incluindo quaisquer comportamentos dos agentes desportivos findo o jogo, no flash interview".
Acresce que as forças policiais corroboraram os factos constantes dos referidos relatórios.
Refira-se, em qualquer caso, que os referidos relatórios não constituem um dogma insuscetível de ser contrariado e contraditado, através da apresentação de meios prova credíveis.
Em concreto, e como se afirmou lapidarmente no Acórdão do CD da FPF:
"Sucede, porém, que, a negação de que as condutas em apreço nos autos tenham sido perpetradas por adeptos da SAD Arguida, saí, inelutavelmente, contraditada pela prova direta colhida nestes autos, nomeadamente a prova qualificada presente no relato das autoridades policiais e esclarecimentos prestados quanto ao mesmo.
Note-se que o Relatório de Policiamento Desportivo refere, expressamente, que um ARD foi atingido por um sapato arremessado por um adepto e que esse adepto foi identificado e retirado do recinto pelas forças policiais. Sendo que, em sede de esclarecimentos, àquele Relatório, resulta que (i) o adepto em causa estava num setor destinado a adeptos da SAD Arguida; (ii) os spotters (que pela natureza das suas funções dispõem de uma visão privilegiada quanto à presença e identificação de adeptos) reportaram que o adepto em causa estava a "assistir ao jogo, apoiando o clube da casa".
Aqui chegados, mostra-se que a argumentação recursiva não colhe, perante a consistência da prova que sustenta a decisão recorrida, estando, assim, demonstrada a verificação de Agressões a espectadores e outros intervenientes, punidas nos termos do Artº 182.º do RD da LPFP, sendo que resulta ainda do Artº 172.º n.º 1 do RD da LPFP que "Os clubes são responsáveis pelos alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial''.
Valem ainda, em sede da legislação desportiva nacional, os normativos constantes da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, onde se estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, sendo que a responsabilidade dos clubes pelas ações dos seus adeptos ou simpatizantes está prevista no artigo 46.º do referido diploma.
Na situação em análise, a SAD Recorrente foi sancionada por violação dos deveres previstos no artigo 35.º do RCLPFP, no qual, no que aqui releva, se pode ler:
"1. Em matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes:
a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança, sem prejuízo da competência atribuída às forças de segurança, assegurando a presença de assistentes de recinto desportivo e do coordenador de segurança, nos termos previstos no regime jurídico da segurança privada;
b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados;
c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto;
(…)
f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo;
(...)
o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (...);”
De assinalar ainda o estatuído no Artº 9.º Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico do combate a violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, onde se refere:
"Ações de prevenção socioeducativa
1 - Os organizadores e promotores de espetáculos desportivos, em articulação com o Estado, devem desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nas áreas da ética no desporto, da violência, do racismo, da xenofobia e da intolerância nos espetáculos desportivos, designadamente através de:
a) Aprovação e execução de pianos e medidas, em particular junto da população em idade escolar;
b) Desenvolvimento de campanhas publicitárias que promovam o desportivismo, o
ideal de jogo limpo e a integração, especialmente entre a população em idade escolar;
c) Implementação de medidas que visem assegurar condições para o pleno enquadramento familiar, designadamente pela adoção de um sistema de ingressos mais favorável;
d) Desenvolvimento de ações que possibilitem o enquadramento e o convívio entre adeptos;
e) Apoio à criação de «embaixadas de adeptos», tendo em vista dar cumprimento ao disposto na presente lei».
De sublinhar que a SAD aqui Recorrente se limitou a fazer afirmações de natureza conclusiva, e a referenciar a realização de reuniões com os líderes dos GG, o que, ainda assim, e como é patente, se mostrou insuficiente.
Aliás o STA já afirmou a este respeito, em Acórdão de 4 de abril de 2019, proferido no Proc. 040/18.3BCLSB que:
"(…) é indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da "presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa" [art.º 13.º, al. f), do RD].
Esta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.
E não se vê que o estabelecimento desta presunção seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n° 391/2015, de 12/8 (publicado no DR, II Série, de 16/11/2015), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.
Aliás, tal como o Tribunal Constitucional entendeu para a situação idêntica da do juízo dos autos de notícia (cf, entre muitos, o Ac. de 6/5/87 in BMJ 367.2-224; o Ac. de 9/3/88 in DR, II Série, de 16/8/88; o Ac. de 30/11/88 in DR, II Série, de 23/2/89; o Ac. de 25/1/89 in DR, II Série, de 6/5/89; o ,Ac. de 9/2/89 in DR, II Série, de 16/5/89; e o Ac. de 23/2/89 in DR, II Série, de 8/6/89), cremos que a presunção de veracidade em causa - que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza - não acarreta qualquer presunção de culpabilidade suscetível de violar o principio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.º 32.º, nºs. 2 e 10, da CRP).
Com efeito, o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só "prima facie" ou de "ínterim", podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma "incerteza razoável" quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio "in dubio pro reo", a sua absolvição.
Assim, o acórdão recorrido, ao considerar que não se poderia atender à presunção que resultava do citado art. 213.º, al. f), para os relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP, incorreu no erro de direito que lhe é imputado (cf, neste sentido, os Acs. deste STA de 18/10/2018 - Proc. n.º 0144/17.OBCLSB, de 20/12/2018 - Proc. n.2 08/18.0BCLSB, de 21/2/2019 - Proc. n.º 033/18.0BCLSB e de 21/3/2019 - Proc. n.º 75/18.6BCLSB).(…)”.
Incontornavelmente, e tal como consta dos relatórios que suportam a decisão punitiva controvertida, os árbitros e os delegados da Liga afirmam inequivocamente que ao arremesso do sapato que veio a atingir um ARD teve origem em adepto identificado, e que integrava os adeptos e simpatizantes da F..............-SAD, o que se mostra adequadamente suficiente para sustentar a verificação da prática da infração que lhe foi imputada.
Reitera-se que, de acordo com o artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP, um dos princípios fundamentais do procedimento disciplinar é o da “f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, e por eles percecionados no exercício das suas funções”, sendo que é o próprio Artº 79º nº 2 da CRP que refere que “Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto."
Já a um nível infraconstitucional e regulamentar, refere o artigo 10.º do Regulamento de Prevenção da Violência - Anexo VI do RCLPFP, que “1. São condições de permanência dos espetadores no recinto desportivo: a) cumprir o presente regulamento, o regulamento interno de segurança e de utilização dos espaços públicos do recinto desportivo; b) manter o cumprimento das condições de acesso e segurança, previstas no artigo anterior; (...) i) não arremessar quaisquer objetos ou líquidos para o interior do recinto desportivo. (...)".
Assim, não poderia, a F..............-SAD refugiar-se em meras afirmações conclusivas, cabendo-lhe o ónus, sendo caso disso, de contrariar a presunção.
Aqui chegados, atento o direito invocado e a Jurisprudência dominante, entende-se que importa adotar uma postura que evite que se gere e consolide um ambiente no desporto, suscetível de cristalizar alguma impunidade permissiva, impeditiva de que se gere uma franca e desejável ambiência de convivência entre todos os agentes desportivos, em face do que se considera que não merece censura o entendimento adotado pelo Tribunal a quo.
Efetivamente e em concreto, entende-se que caberia à F..............-SAD fazer prova que contrariasse aquela que consta dos autos e que leva à conclusão de que a conduta ilícita aqui em questão não foi perpetrada por adepto seu, e por quem, até prova em contrário, terá de responder.
Como decorre do sumariado no Acórdão do STA n.º 297/18 e nº 08/18.0BCLSB, de 20.12.2018, “A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13º, alínea f) do Regulamento Disciplinar da LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não é inconstitucional.”
Mais se discorreu no discurso fundamentador deste último Acórdão do STA referenciado:
“Esta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.
E não se vê que o estabelecimento desta presunção seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (publicado no DR, II Série, de 16/11/2015), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.
Aliás, tal como o Tribunal Constitucional entendeu para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (cf., entre muitos, o Ac. de 6/5/87 in BMJ 367.º-224; o Ac. de 9/3/88 in DR, II Série, de 16/8/88; o Ac. de 30/11/88 in DR, II Série, de 23/2/89; o Ac. de 25/1/89 in DR, II Série, de 6/5/89; o Ac. de 9/2/89 in DR, II Série, de 16/5/89; e o Ac. de 23/2/89 in DR, II Série, de 8/6/89), cremos que a presunção de veracidade em causa – que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza – não acarreta qualquer presunção de culpabilidade suscetível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.º 32.º, nºs. 2 e 10, da CRP).
Com efeito, o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só “prima facie” ou de “ínterim”, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio “in dúbio pro reo”, a sua absolvição.”
Já o mesmo STA em Acórdão de 21 de fevereiro de 2019, no processo n.º 033/18.OBCLSB, afirmou que "A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFPJ, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. (...) Cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização".
A prova por meio de presunção judicial não implica a imposição de uma verdade processual, independentemente e, se necessário, em detrimento da verdade material, mas antes constitui um meio de chegar à verdade material, diferente da prova direta, não constituindo uma derrogação ou sequer um afrouxamento da regra «in dubio pro reo».
Como igualmente sumariado no Acórdão do STA nº 0607/10, de 21-10-2010, “A condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta, férrea ou apodítica da sua responsabilidade, bastando que os elementos probatórios coligidos a demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável. Nos juízos de facto a emitir num processo disciplinar, é lícito à Administração, e até obrigatório, usar das presunções naturais que se mostrem adequadas.”
Efetivamente, em função da prova produzida e disponível e em função da referida presunção, entendeu legitimamente o Conselho de Disciplina da FPF que o facto punível perpetrado havia sido praticado por adepto da F..............-SAD, identificado como tal, mormente por se encontrar em área reservada a adeptos daquele clube/SAD, determina que se entenda que o acórdão recorrido não merece censura.
Não se diga que os clubes não podem ser responsabilizados por factos praticados pelos seus adeptos, pois tal responsabilização deriva de uma evolução salutar no fenómeno desportivo e que visa a diminuição da violência no desporto e intima os clubes a tomarem medidas para assegurar que tais factos não se verifiquem.
Pelo exposto, foi entendido singularmente que andou bem o Tribunal Arbitral a quo ao decidir manter a sanção à Recorrente, não merecendo o Acórdão recorrido, nenhuma censura.
Efetivamente, refere-se no Artº 656º do CPC que “Quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia.”
Dessa decisão veio a F..............-SAD em 22 de julho de 2024 Reclamar para a Conferência, tendo a FPF exercido o contraditório em 1 de agosto de 2024.
Refira-se que a Reclamação para a Conferência não se trata de um Recurso, nem determina um novo julgamento, com base em argumentos e pedidos diversos, antes se impondo verificar singelamente se o Coletivo acompanha o sentido da decisão singular preteritamente adotada.
Assim, sem necessidade de acrescida argumentação, entende-se ser de manter a decisão singular que negou provimento ao Recurso da F..............-SAD, mantendo a decisão Arbitral, por se não reconhecer que a deliberação proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF mereça a censura que lhe foi imputada, sendo que teve por objetivo impedir a consolidação e sedimentação de um pernicioso ambiente de impunidade permissiva.
V - Decisão
Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em indeferir a reclamação para a conferência, mantendo a decisão sumária do relator, negando provimento ao Recurso.
Custas pela F..............-SAD.
Lisboa, 28 de agosto de 2024
Frederico de Frias Macedo Branco
Pedro Figueiredo
Isabel Fernandes |