Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:07354/11
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:01/12/2012
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:TEORIA DO FACTO PASSADO – ILICITUDE - DL 40/93
Sumário:1.A lei nova é de aplicação imediata (art. 12º-1 CC).

2. Quando a lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (art. 12º-2 CC). Resulta assim claro da “teoria do facto passado” na versão de NIPPERDEY que, v.g., o DL 40/93 (na sua versão original e na versão de 1994) se aplicava a todos os veículos existentes; portanto, a lei aplicada pelo R aplicava-se aos carros novos e aos carros preexistentes, como o do A (é a “retrospectividade”).

3. Não havendo facto ilícito, é irrelevante para o tribunal haver ou não dano de privação de uso ou outro tipo de dano.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I.RELATÓRIO
JOAQUIM …………., casado, titular do b.i. n.° ……….., emitido em 13/04/93, pelos serviços de identificação de Lisboa, contribuinte fiscal n. ° ………….., residente na Rua ………………, 32-2° Esq., .-112 ….., intentou no T.A.C de LISBOA uma a.a. comum contra ESTADO PORTUGUÊS, pedindo a sua condenação ao pagamento da indemnização pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais causados, no valor global de € 21.173,97, na sequência da apreensão ocorrida ao seu veículo em 07/04/1998.
Por decisão de 29-9-2010, o referido tribunal acordou julgar improcedente o pedido.
Inconformado, vem o autor recorrer para este T.C.A. Sul, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
A) A douta sentença ora recorrida decide com base numa incorrecta aplicação da lei que versa sobre o assunto sub judice.
B) Em primeiro lugar, e desde logo, porque o veículo propriedade do A. com os sinais de fls. dos autos foi matriculado no ano de 1990, o que implica que teve de obedecer a todos os requisitos legais em vigor na data em que a matrícula lhe foi conferida.
C) Em 1990 não estava ainda em vigor o DL 40/93, de 18 de Fevereiro (adopta a estrutura do imposto automóvel aos procedimentos aduaneiros decorrentes da realização do mercado interno), mas antes o DL 152/89, de 10 de Maio.
D) Os critérios definidos no DL 40/93 só têm aplicação para os veículos matriculados após a sua entrada em vigor – Cfr. art.º 24.º do DL 40/93.
E) O A. não poderia ter sido sancionado com base no DL citado, o que implica a nulidade da decisão condenatória contra si proferida no âmbito do processo contra-ordenacional e conclusão de que conduta do R. foi ilícita tal como o A. alegou em sede de petição inicial, dando-se por verificado este requisito da responsabilidade civil extracontratual do Estado.
F) A construção jurídica subjacente à aplicação ao A. da coima e sanção de apreensão do veículo sempre antes mencionado padece de manifesta incorrecção.
G) A douta sentença proferida considerou válido o entendimento de que o A. violou o disposto no art.º 11.º do DL 40/93, daí tendo retirado o imediato preenchimento do tipo contra-ordenacional de descaminho nos termos do art.º 35.º, n.º 2, alínea d) do DL 376-A/89, de 25 de Outubro, o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras.
H) Analisado o preceito acima transcrito torna-se imperioso concluir que o A. não incorreu na contra-ordenação fiscal e aduaneira de descaminho conforme entende a douta sentença.
I) A mera verificação da alínea d), do n.º 2 do art.º 35.º do diploma citado não implica de per si o preenchimento do tipo de descaminho.
J) Ao invés, a lei impõe, para que se verifique o preenchimento do tipo contra-ordenacional, que a conduta do A. tenha ocorrido nas mesmas condições previstas no n.º 1 do art.º 35.º.
K) Isto é, o elemento essencial para considere preenchimento este tipo contra-ordenacional é a finalidade inerente à conduta do agente como se prevê no n.º 1 do art.º 35.º.
L) Não se mostra provado ou sequer alegado nos autos que o A. haja alterado as características do veículo (que não alterou!) com a finalidade de “evitar, no todo ou em parte, o pagamento da prestação tributária aduaneira, tal como definida no artigo 2.º deste Regime Jurídico, ou fazer passar através das alfândegas ou delas retirar quaisquer mercadorias sem serem submetidas às competentes formalidades de desembaraço fiscal, ou mediante falsas indicações, será aplicável coima de 10 000$00 a 10 000 000$00.”
M) Andou mal a douta sentença ao concluir que a conduta do A. era integradora do tipo de contra-ordenação de descaminho, daí extrapolando a não verificação de qualquer ilicitude na conduta do R.
N) A conduta do A. não preencheu os elementos do tipo sancionatório, pelo que a coima e sanção de apreensão do veículo que lhe foram arbitradas foram manifestamente ilícitas por não terem fundamento legal.
O) Este entendimento foi já acolhido pela Direcção Geral das Alfândegas e Impostos Especiais sobre o Consumo:
“(…) a mera ausência total ou parcial da antepara, um dos elementos que caracterizam os veículos automóveis ligeiros de mercadorias derivados de ligeiros de passageiros, ou a sua presença sem obedecer aos requisitos técnicos previstos no Despacho n.º 21196/2003 da DGV, não constitui contra-ordenação aduaneira, fundamentalmente, por duas ordens de razões:
a) quanto ao primeiro facto, porque a mera ausência de antepara não constitui uma alteração das características determinantes da classificação fiscal do veículo, no sentido de determinar a sua reclassificação fiscal como ligeiro de passageiros (é condição necessária mas não suficiente, Cfr. art.º 2.º, n.º 1 e 4 do Dec. Lei n.º 40/93), pelo que na formulação actual da alínea e) do n.º 4 do art.º 108.º do RGIT, tal facto não é por si só, punido;
b) quanto ao segundo facto porque, a ausência de qualquer especificação ou remissão para a lei aplicável, em sede do art.º 2.º, n.º 4, do Dec. Lei n.º 40/93, de 18 de Fevereiro, quanto às características técnicas das anteparas, o mesmo não é subsumível a qualquer contra-ordenação aduaneira, p.p. no RGIT.(…)”
P) Além de não preencher o tipo de descaminho, a conduta imputada ao A. não integra igualmente qualquer outro ilícito contra-ordenacional aduaneiro legalmente previsto.
Q) De tudo resulta que não era admissível ao R. aplicar ao A. a coima arbitrada, e pelo mesmo paga, ou proceder à apreensão do veículo pelo período já mencionado nos autos ao contrário do plasmado na douta sentença.
R) De referir ainda que dos factos provados nos presentes autos resulta que o veículo do A. tinha uma antepara inamovível a que faltava, apenas, a parte superior que era de cerca de 30 cm de altura, o equivalente a uma folha A4.
S) Espaço esse que ainda tinha uma barra de ferro que atravessava todo o veículo de um lado ao outro.
T) Daqui resulta que o espaço destinado às mercadorias está efectivamente separado do espaço para passageiros.
U) Uma separação TOTAL, como pretende a Lei, é sempre impossível, nem que seja pela existência dos apoios da antepara à carroçaria, que, necessariamente, implicam que os espaços para mercadorias e passageiros nunca poderão ser estanques em absoluto.
V) Pelo que, considerar-se que no caso em apreço a separação não é total, constitui uma interpretação francamente restritiva do preceito legal se enquadrado com a realidade.
W) Por último, de referir que a interpretação que a douta sentença faz do preceito legal constante do art.º 2.º, n .º 2, alínea a) do DL 40/93 é ainda mais restritiva do que aquela que se encontra actualmente em vigor – Cfr. a Lei 22-A/2007, de 29 de Junho, já que actualmente é permitido que entre o espaço destinado a mercadorias e o espaço destinado a passageiros passe um cubo com aresta de 5 cm.
X) No que diz respeito a não se mostrarem verificados quaisquer danos do A., como se refere na douta sentença, cabe recordar que o dano de privação de uso de veículo tem vindo a ser admitido como indemnizável por si só, vide por todos o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo 403/05.4TBTND.C1.
Y) Por outro lado, no caso em apreço o A. deixou de trabalhar durante o período em que se mostrou privado do uso do veículo, pelo que ainda que se não considere que o dano de privação de uso veículo é indemnizável por si só, está demonstrado que o A. deixou de poder exercer a sua actividade profissional por força da apreensão do veículo.
Z) A douta sentença, considerando não ter os elementos necessários ao cômputo imediato da indemnização, em lugar de entender não verificado o dano, deveria ter condenado o R. e relegar a contabilização da indemnização para liquidação de sentença como lhe permite o art.º 661.º, n.º 2 do CPC.
Foram apresentadas CONTRA- ALEGAÇÕES, concluindo-se:
1 O Tribunal a quo actuou correctamente ao absolver o Estado Português do pedido contra ele formulado pelo A. Joaquim ………………;
2.Tal decisão decorre directamente da observância pelo R., através dos respectivos agentes, da legislação aplicável ao tempo à viatura do A. que determinou a aplicação da coima e a respectiva apreensão;
3. Concretamente não estabelecendo o art.° 51° da Lei n.º 39-B/94, de 27/12, que introduz alterações ao D.L. nº 40/93, de 18/02, qualquer ressalva quanto às viaturas anteriormente matriculadas, é de entender que o regime legal aprovado se aplica a todas as viaturas a partir do momento da sua entrada em vigor na ordem jurídica e, consequentemente, também à viatura do Autor;
4. Ora sendo a actuação do R. legitimado pelo quadro legal vigente à data dos factos não pode ser-lhe assacada qualquer responsabilidade, designadamente responsabilidade civil extracontratual e, concomitantemente, qualquer obrigação de indemnizar; e,
5. A decisão encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito, com referências claras aos meios de prova em que o Tribunal fundou a sua convicção.
*
Cumpridos os devidos trâmites processuais, importa agora decidir em conferência.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. FACTOS PROVADOS NO TRIBUNAL RECORRIDO
A)
O Autor é proprietário do veículo ligeiro de mercadorias, marca ………, matrícula MQ……… - Acordo;
B)
A matrícula antecedente foi atribuída em 01/08/1990 - Acordo;
C)
Por carta datada de 05/04/1991 o ora Autor foi notificado pela sociedade "A….. - Comércio de …………………, S.A.", com o seguinte teor:
"Tem surgido ultimamente apreensões neste tipo de veículo, pelo motivo de:
- Vidros laterais c/ área totalmente envidraçada
- Falta de grade ou recuo da mesma
Porque a apreensão do veículo acarreta problemas de imobilização além de pesadas multas, vimos pedir-lhe o favor de verificar o v/ ………. e se for o caso apresentado, trazê-lo às n/Oficinas para a revisão necessária. Declinamos a partir desta data qualquer responsabilidade pelos motivos expressos. (...)" - cfr. docs. de fls. 34 e 35 dos autos;
D)
Em 07/04/1998, a GNR apreendeu o veículo antecedente, por o mesmo circular na via pública sem a parte superior da antepara inamovível - Acordo;
E)
Em sequência, foi elaborado o Auto de Notícia pela Brigada Fiscal da GNR, do mesmo constando quanto à "Legislação infringida":
"Infracção prevista no Art° 11° do Dec. Lei n° 40/93 (1), por inobservância do n°3 do art° 2° do mesmo diploma, com a nova redacção dada pelo art° 51° da Lei n° 39- B/94, de 27Dez (2), e punível pela alínea d) do n° 2 do art° 35° do RJIFA (3) " e quanto ao ''Facto Verificado", o seguinte a qual possuía alteração das suas características, não possuindo a antepara superior que separa a mercadoria dos passageiros, mas somente a estrutura em tudo que suporta a mesma estrutura (...)" - cfr. doc. de fls. 28-29 dos autos;
F)
O veículo manteve-se apreendido durante dois meses e meio - Acordo;
G)
Em 24/04/1998, o Autor requereu à DGV que lhe certificasse as características do veículo aquando da sua homologação e matrícula - cfr, doc. de fls. 14 dos autos;
H)
A DGV informou o Autor do seguinte:
"As características das anteparas entre o habitáculo e o compartimento de carga de veículos ligeiros de mercadorias estão definidas no Despacho DGV n° 37/96 alterado pelo Despacho DGV n° 49/96 e, posteriormente pelo Despacho n° 11201/97 (2a série), este último, publicado no Diário da República de 17 de Novembro. Com vista a uniformizar procedimentos esclarece-se:
1) O disposto nos referidos despachos é aplicável a veículos que tenham sido matriculados pela primeira vez a partir de 3 de Março de 1997.
2) As anteparas devem manter as características originais de acordo com o modelo aprovado no respectivo de homologação como qualquer outro equipamento original do veículo; qualquer alteração deve ter a respectiva aprovação identificada em anotações especiais do livrete.'''1 — cfr. doc. de fls. 15 dos autos;
I)
No âmbito do processo de contra-ordenação sob n° 282/98 foi ouvido em declarações, João Magalhães Pinto, o qual declarou ter vendido o veículo de matrícula ………….. ao ora Autor e que "Como a viatura foi vendida nova em 1990, o declarante apenas sabe que a antepara ou qualquer outro acessório estavam devidamente aprovados e homologados aquela data, não sabendo descrever como seria a antepara original da viatura. Que passado cerca de um ano, devido ao importador ter comunicado à sua firma algumas alterações entretanto verificadas, esta enviou cartas registadas aos clientes, para efectuar uma revisão nas viaturas, no sentido de colmatar qualquer anomalia, o que também aconteceu a Joaquim ………….., conforme fotocópia da carta e aviso de recepção que se anexam. (.,.)" - cfr. doc. de fls. 33 dos autos, para que se remete e cujo teor se dá integralmente por reproduzido;
J)
Em 29/05/1998, nos autos de contra-ordenação sob n° 282/98, foi proferido "Despacho", onde se pode ler o seguinte:
"Os factos imputados a JOAQUIM ………………, devidamente identificado nos autos, integram o ilícito de contra-ordenação aduaneira, prevista e punível com coima de 10.500$00 (...) por inobservância do disposto no art° 2°, n° 3, com referência ao art° 11°, ambos do Decreto-Lei n° 40/93 de 18 de Fevereiro, com a redacção dada pelo art° 51° da Lei n° 39-B/94 de 27 de Dezembro, em virtude da sua viatura ligeira de mercadorias da marca ……., matrícula ……………, atribuída em 01 de Agosto de 1990, ter sido interceptada a circular na via pública sem a parte superior da antepara inamovível, possuindo no seu lugar apenas um tubo envolvente e um varão horizontal, elementos de suporte da dita parte superior da antepara, os quais, pela sua disposição, não separam totalmente o espaço destinado ao condutor e passageiros do destinado às mercadorias, mostrando-se, assim, alterada uma das características que determinaram a classificação fiscal do veículo. (...) Nestes termos, no uso da competência delegada pelo Comandante da Brigada Fiscal, por despacho de 13JAN98 (...), e de harmonia com o disposto no art° 60° do RJIFA; tendo ainda em conta que se trata de uma viatura matriculada em Agosto de 1990 e não estava totalmente desprovida da antepara inamovível, condeno o arguido Joaquim ……………, na coima de 30.000S00 (...)" - cfr. doc de fls. 31 -32 dos autos, para que se remete e se considera integralmente reproduzido;
K)
Nos autos de contra-ordenação aduaneira n° ……….98, o Autor pagou a coima no valor de 30.000$00, acrescida do valor de 7.000S00 de custas, no valor total de 37.000$00-cfr. fls. 16 dos autos;
L)
Em 15/03/1999 deu entrada acção judicial no Tribunal Judicial ………… proposta pelo ora Autor contra o Estado português, sendo pedida a condenação do Estado português a ressarcir os prejuízos causados, resultantes da apreensão da viatura - cfr. doc. de fls. 10-13 dos autos;
M)
O Autor veio a juízo propor a presente acção em 28/02/2002 - cfr. fls. l dos autos.
II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O âmbito do recurso jurisdicional, cujo objecto é a decisão recorrida, é delimitado pelo Recorrente nas conclusões (sintéticas e com a indicação das normas jurídicas violadas) das suas alegações quanto a questões (coisa diversa das considerações, argumentos ou juízos de valor) que tenham sido ou devessem ter sido das questões de conhecimento oficioso) ou cobertas por caso julgado.
0-
O tribunal a quo fundamentou assim a sua decisão:
Nos presentes autos vem o Autor a juízo demandar o Estado português, pedindo a sua condenação ao pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, em sequência da apreensão da viatura de que é proprietário, alegando para tanto a ilegalidade da decisão tomada, de apreensão do veículo.
Embora o Autor não qualifique expressamente a acção, por não se referir uma única vez à responsabilidade civil extracontratual do Estado, nem ao respectivo regime legal aplicável, o D.L. n° 48051, de 21/11/1967, é desse modo de enquadrar a presente lide, de acordo com o pedido e a causa de pedir alegados.
Com efeito, o Autor vem a juízo, mas sem que resulte da petição inicial a que título demanda o Estado português, sabendo-se que existe a responsabilidade civil a vários títulos e que em função dos mesmos varia os respectivos pressupostos legais, maxime, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado, por factos lícitos e por factos ilícitos.
Em função da alegação do Autor é de qualificar a presente acção como de apuramento da responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ilícitos, a que se aplica o regime substantivo previsto no D.L. n°48051, de 21/11.
A questão decidenda trazida a juízo consiste, por isso, em apurar a responsabilidade civil extracontratual do Estado português, como entidade pública, no domínio dos actos de gestão pública, concretamente aferir se o mesmo é responsável pelos danos causados pela apreensão alegadamente ilegal do veículo propriedade do Autor.

Começando pelo pressuposto da ilicitude, invoca o Autor que adquiriu a viatura em estado novo, que se apresentava com aquelas características, não tendo sofrido qualquer alteração e que, tendo pedido à DGV a certificação das características do veículo, a mesma veio informar que as características de anteparas entre o habitáculo e o compartimento de carga de veículos ligeiros de mercadorias foram definidas por Despacho n° 37/96, alterado por Despacho da DGV n° 49/96 e depois pelo Despacho n° 11201/97, os quais se aplicam aos veículos que tenham sido matriculados pela primeira vez a partir de Março de 1997.
Assim, alega o Autor, sendo a sua viatura matriculada em 1990, não se aplicam tais Despachos, ocorrendo a apreensão indevida e ilegal do veículo.
São aplicáveis os D.L. n°s 40/93, de 18/02 e 152/89, de 10/05 e a Lei n° 39-B/94, de 27/12, mas deles não resulta a interpretação efectuada pelo Réu.
À data da apreensão do veículo o mesmo possuía as características legais exigidas pelos D.L. n°s 40/93 e 152/89, pela Lei n° 39-B/94 e pelos Despachos da DGV n°s 37/96 e 49/96, pois possuía a antepara inferior e não possuía a antepara superior porque o Despacho que o exige, o Despacho n° 11201/97, impõe essa obrigação apenas a veículos matriculados depois de Março de 1997, sendo o veículo matriculado em 1990.
Contrapõe o Estado português no sentido de a apreensão da viatura se ter baseado na prática da infracção prevista no art° 11° do D.L. n° 40/93, de 18/02, por inobservância do n° 3 do art° 2° desse diploma, na redacção do art° 51° da Lei n° 39-B/94, de 27/12, o qual impõe que aquele tipo de veículos tivesse antepara com as características exigidas.
Embora o Despacho n° 37/96 da DGV se aplique a veículos matriculados pela primeira vez a partir de Março de 1997, não só não revoga, por não poder, a legislação em vigor, como vem criar uma nova antepara, não permitindo a passagem de um elemento cúbico com aresta superior a 5 cm.
A apreensão da viatura baseou-se no D.L. n° 40/93, por falta da parte superior da antepara e não por permitir a passagem de um elemento cúbico com aresta superior a 5 cm.
Analisando.
Explanadas as posições das partes, vejamos a matéria de facto que se encontra demonstrada em juízo.
Remetendo para o probatório apurado em juízo, resulta que o Autor é proprietário do veículo ligeiro de mercadorias, marca ………, matrícula ……, atribuída em 01/08/1990.
Em 07/04/1998, a GNR apreendeu o veículo antecedente, por o mesmo circular na via pública sem a parte superior da antepara inamovível, sendo, em sequência, elaborado o respectivo Auto de Notícia que revela quanto à ''Legislação infringida": ''Infracção prevista no Art° 11° do Dec. Lei n° 40/93 de 18Fev., por inobservância do n° 3 do art° 2° do mesmo diploma, com a nova redacção dada pelo art° 51° da Lei n° 39-B/94, de 27Dez, (...)" e quanto ao "Facto Verificado", o seguinte "(...) a qual possuía alteração das suas características, não possuindo a antepara superior que separa a mercadoria dos passageiros, mas somente a estrutura em tudo que suporta a mesma estrutura (...)".
Em 24/04/1998, o Autor requereu à DGV que lhe certificasse as características do veículo, tendo a DGV informado que "As características das anteparas entre o habitáculo e o compartimento de carga de veículos ligeiros de mercadorias estão definidas no Despacho DGV n° 37/96 alterado pelo Despacho DGV n° 49/96 e, posteriormente pelo Despacho n° 11201/97 (2asérie) (...). Com vista a uniformizar procedimentos esclarece-se:
1) O disposto nos referidos despachos é aplicável a veículos que tenham sido matriculados pela primeira vez a partir de 3 de Março de 1997. (..,)".
Em 29/05/1998, foi proferido "Despacho" nos autos de contra-ordenação sob n° 282/98, onde se pode ler: "Os factos imputados a JOAQUIM ……………………. (...), integram o ilícito de contra-ordenação aduaneira (...) por inobservância do disposto no art° 2°, n° 3, com referência ao art° 11°, ambos do Decreto-Lei n° 40/93 de 18 de Fevereiro, com a redacção dada pelo art° 51° da Lei n° 39-B/94 de 27 de Dezembro, em virtude da sua viatura ligeira de mercadorias da marca……….., matrícula ………….., atribuída em 01 de Agosto de J990, ter sido interceptada a circular na via pública sem a parte superior da antepara inamovível, possuindo no seu lugar apenas um tubo envolvente e um varão horizontal, elementos de suporte da dita parte superior da antepara, os quais, pela sua disposição, não separam totalmente o espaço destinado ao condutor e passageiros do destinado às mercadorias, mostrando-se, assim, alterada uma das características que determinaram a classificação fiscal do veículo. (...)".
Aqui chegados, vejamos sobre a interpretação e aplicação do Direito.
Nos termos do disposto no art° 6° do D.L. n° 48051, de 1967, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios jurídicos aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração,

Nos termos que resultam, quer do Auto de apreensão, quer da decisão de aplicação da coima, foi aplicado o regime aprovado pelo D.L. n° 40/93, de 18/02, na redacção do art° 51° da Lei n° 39-B/94, de 27/12.
Nos termos do art° 2°, n° 3 do citado regime, resulta a definição de "Veículos automóveis ligeiros de mercadorias derivados de ligeiros de passageiros", como sendo "os que tenham uma antepara inamovível que separe totalmente o espaço destinado ao condutor e passageiros do destinado às mercadorias, devendo a caixa de carga ter um estrado contínuo.".
Por seu turno, estabelece o art° 11° do D.L. n° 40/93, de 18/02, o seguinte: "O incumprimento dos prazos, a alteração das características determinantes da classificação fiscal dos veículos, bem como a utilização de veículos com desvio do destino ou aplicação em vista aos quais foram concedidos regimes de benefício, constantes do presente diploma, serão considerados como descaminho.".
Aqui chegados, impõe dizer-se que não assiste razão ao Autor quando defende a ilegalidade da decisão tomada de apreensão da viatura, o que releva a título incidental, para efeitos de apuramento da responsabilidade civil do Estado.
Com efeito, não estabelecendo o art° 51° da Lei n° 39-B/94, de 27/12, que introduz alterações ao D.L. n° 40/93, de 18/02, qualquer ressalva quanto às viaturas anteriormente matriculadas, é de entender que o regime legal aprovado se aplica a todas as viaturas a partir do momento da sua entrada em vigor na ordem jurídica e, consequentemente, também à viatura do Autor.
Para tanto, não releva a interpretação expendida pela DGV, seja ela qual for, já que a mesma não tem a virtualidade de derrogar o regime legal aplicável.
Acresce não ser defensável o entendimento assumido na réplica, de a legislação não impor que a antepara ocupasse toda a altura do veículo, já que se extrai do supra transcrito art° 2°, n° 3 do D.L. n° 40/93, na redacção dada pelo art° 51° da Lei n° 39-B/94, que a viatura tenha "uma antepara inamovível que separe totalmente o espaço destinado ao condutor e passageiros do destinado às mercadorias", sem distinguir, portanto, entre a antepara inferior e superior (sublinhado nosso).
Assim, conforme decorre da factualidade apurada e da aplicação do Direito, é de refutar a verificação do pressuposto da responsabilidade civil, que consiste o facto ilícito, por nenhum juízo de censura ser a assacar à decisão de apreensão da viatura e respectiva decisão de aplicação de coima.
O Réu, Estado, conformou a sua actuação com a ordem jurídica, pelo que não é possível concluir pela verificação do alegado facto ilícito.
Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento dos demais pressupostos da responsabilidade civil, isto é, os requisitos da culpa, do dano e do nexo de causalidade.
Sem prejuízo, deve ainda dizer-se que, salvo no que respeita ao dano relativo ao valor da coima aplicada e respectivo valor de custas decorrentes do processo de contra-ordenação, no valor global de Esc. 37.000$00, nenhuns outros danos, sejam patrimoniais, sejam não patrimoniais, foram concretizados em juízo pelo Autor, por nenhuma factualidade sobre os mesmos ser alegada.
De resto é sabido que não podem recair meios de prova sobre factos não alegados em juízo, pelo que, também por esta razão, nunca poderia proceder o pedido de condenação formulado contra o Estado relativamente ao valor dos danos alegados em juízo.
Não basta alegar que ocorreram danos patrimoniais e não patrimoniais, se os mesmos não são concretizados, desconhecendo-se que danos em concreto são esses, pelo que, a simples alegação da ocorrência de danos não é suficiente para dar por concretizada a causa de pedir.
1-
Portanto, a sentença considerou não haver um dos principais pressupostos da responsabilidade civil delitual: a ilicitude (os restantes pressupostos, como sabemos, são o dano ou prejuízo, o facto humano, a culpabilidade do agente e o nexo causal adequado entre o facto e o dano).
Está em causa dano que o A reporta ao facto de o R lhe ter apreendido indevidamente um seu carro.
O recorrente entende que a sentença decidiu mal, porque:
- A matrícula do carro é de 1990, quando vigorava o cit. DL 152/89, não lhe sendo aplicável o DL 40/93 (v. art. 24º (4)), pelo que o processo e a decisão contraordenacionais são ilegais;
- Falta a prova da finalidade (dolo?) no tipo legal de ilícito de descaminho, com referência aos cit. arts. 2º e 11º DL 40/93 (v. art° 51° da Lei n° 39-B/94) e ao cit. art. 35º-2 do RJIFA; trata-se de questão não colocada na 1ª instância;
- É impossível uma separação total entre o espaço destinado ao condutor e passageiros e o espaço destinado às mercadorias;
- O dano de privação de uso é indemnizável, o recorrente deixou de poder ir trabalhar e o tribunal poderia utilizar o art. 661º-2 CPC.
Apreciemos.
a)
A lei nova é de aplicação imediata (art. 12º-1 CC).(5)
Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (art. 12º-2 CC).
Ora, resulta assim claro desta “teoria do facto passado” na versão de NIPPERDEY, maxime do art. 12º-2-2ª parte cit. (não mencionado pelo tribunal a quo) que o DL 40/93 (na sua versão original e na versão de 1994) se aplicava a todos os veículos existentes; portanto, a lei aplicada pelo R aplicava-se aos carros novos e aos carros preexistentes, como o do A (é a “retrospectividade”(6)).(7) O art. 24º DL 40/93, invocado pelo recorrente, não o desmente.
Pelo que o R fez bem em aplicar tal norma, não havendo aí, portanto, ilicitude. Como se decidiu.
b)
Por outro lado, sem prejuízo de a questão do elemento subjectivo do tipo legal de contraordenação não poder ser aqui invocada e analisada (pois não foi questão colocada na 1ª instância), sempre se dirá que o tipo legal de ilícito contraordenacional aduaneiro resulta do art. 11º-1 cit. conjugado com o art. 35º-2-d cit. Pelo que o elemento subjectivo do ilícito culposo em questão (dolo ou negligência) refere-se ao tipo objectivo descrito no art. 11º-1 cit. e não ao do descrito no art. 35º-1 cit. De qualquer forma, neste processo não se discutiu, em si, a contraordenação aduaneira, havendo outra sede para tal. O que tem de se provar aqui é que a apreensão do veículo foi ilícita (ou que no processo em que tal ocorreu houve ilicitude de base).
c)
Não se alegou e provou que é impossível uma separação total entre o espaço destinado ao condutor e passageiros e o espaço destinado às mercadorias.
d)
Não havendo facto ilícito, é irrelevante para o tribunal haver ou não dano de privação de uso ou outro tipo de dano.
III- DECISÃO
Pelo que acordam os Juizes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso, mantendo assim a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
Lisboa, 12-1-2012

Paulo Pereira Gouveia, relator

António C. da Cunha

Fonseca da Paz
(1) Art. 11.º
1 - O incumprimento dos prazos, a alteração das características determinantes da classificação fiscal dos veículos, bem como a utilização de veículos com desvio do destino ou aplicação em vista dos quais foram concedidos regimes de benefício, constantes do presente diploma, serão considerados como descaminho.
2 - ...
(2) Artigo 51.º Imposto automóvel
1 - Os artigos 1.º, 2.º, 4.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 40/93, de 18 de Fevereiro, passam a ter a seguinte redacção:
Artigo 1.º
1 - O imposto automóvel (IA) é um imposto interno incidente sobre os veículos automóveis ligeiros de passageiros - incluindo os de uso misto, os de corrida e outros principalmente concebidos para o transporte de pessoas, com exclusão das autocaravanas - admitidos ou importados no estado de novos ou usados, incluindo os montados ou fabricados em Portugal e que se destinem a ser matriculados.
2 - Estão abrangidos pelo disposto no número anterior os veículos todo-o-terreno, os veículos automóveis ligeiros de mercadorias derivados de ligeiros de passageiros e os furgões ligeiros de passageiros.
3 - Ficam ainda sujeitos ao IA os veículos automóveis ligeiros:
a) Para os quais se pretenda nova matrícula, após cancelamento da matrícula inicial junto da Direcção-Geral de Viação, tenham ou não os veículos sido objecto de transformação;
b) Que, após a sua admissão ou importação, sejam objecto de alteração da cilindrada do motor, mudança de chassis ou de transformação de veículos de mercadorias para veículos de passageiros ou de passageiros e de carga.
4 - O imposto automóvel é de natureza específica e variável em função do escalão de cilindrada e determinável de acordo com as tabelas I, II, III e IV anexas ao presente diploma, que dele fazem parte inte4grante, correspondendo a tabela II às fórmulas de conversão em centímetros cúbicos a aplicar aos veículos automóveis não convencionais.
5 - A tabela I aplica-se aos veículos automóveis referidos no n.º 1, à excepção dos veículos todo-o-terreno e dos furgões ligeiros de passageiros, que ficam sujeitos à tabela III, bem como os veículos automóveis ligeiros de mercadorias derivados de ligeiros de passageiros, que ficam sujeitos à tabela IV.
6 - (Anterior n.º 4.).
7 - (Anterior n.º 5.)
8 - Para efeitos de aplicação dos n.º 6 e 7 entende-se por tempo de uso o período que decorre desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos, pela entidade competente, até ao termo da sua validade.
Art. 2.º
Para efeitos do presente diploma, consideram-se:

3) Veículos automóveis ligeiros de mercadorias derivados de ligeiros de passageiros - os que tenham uma antepara inamovível que separe totalmente o espaço destinado ao condutor e passageiros do destinado às mercadorias, devendo a caixa de carga ter um estrado contínuo.
4) Veículos todo-o-terreno - …
5) Furgões ligeiros de passageiros ...
6) (Anterior n.º 3.)
7) (Anterior n.º 4.)
8) (Anterior n.º 5.)
9) (Anterior n.º 6.)
10) (Anterior n.º 7.)
11) (Anterior n.º 8)
Art. 4º

5 - (Anterior n.º 4.)
Art. 8.º
(3) Artigo 35.º Descaminho
1 - A todo o facto que tenha por fim evitar, no todo ou em parte, o pagamento da prestação tributária aduaneira, tal como definida no artigo 2.º deste Regime Jurídico, ou fazer passar através das alfândegas ou delas retirar quaisquer mercadorias sem serem submetidas às competentes formalidades de desembaraço fiscal, ou mediante falsas indicações, será aplicável coima de 10 000$00 a 10 000 000$00.
2 - A mesma coima será aplicável quando, nas mesmas condições:

d) Forem violadas disposições especiais que expressamente tipifiquem o facto como descaminho; …
(4) O presente diploma reporta os seus efeitos a 1 de Janeiro de 1993.

(5) OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito…, nº 236.

(6) Sumariamente, ver JOSE MELO ALEXANDRINO, D. Fundam…, 2ª ed., p. 86.

(7) OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito…, nº 239 e ss; J. BATISTA MACHADO, Introdução ao D…, 1985, p. 231-234.