Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:78/08 3.9BEBJA
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:10/19/2017
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:PRAZO RAZOÁVEL
ARTIGO 22º DA CRP
Sumário:I – O DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967 é aplicável à responsabilidade civil por actos e omissões no âmbito da função administrativa, mas não a actos praticados no exercício da função jurisdicional.

II - A doutrina dominante e a jurisprudência largamente maioritária entendiam que o art. 22º, da CRP, no qual se consagra o princípio da responsabilidade civil ou patrimonial do Estado e das demais entidades públicas pelos danos causados aos cidadãos:
- era directamente aplicável, não carecendo de mediação normativa infraconstitucional para poder ser invocada pelos lesados, pois trata-se da previsão de direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, estando sujeita ao regime destes (cfr. arts. 17º e 18º n.º 1, da CRP);
- abrangia não só a responsabilidade do Estado por danos resultantes do exercício da função administrativa, mas igualmente das funções legislativa e jurisdicional, pois “as acções ou omissões praticadas” são aí referidas sem quaisquer restrições e a própria letra do preceito inculca este entendimento, ao aludir a “funções”, que abrangem naturalmente todas as funções do Estado, incluindo a função jurisdicional.

III - Entendia-se que na falta de regulamentação legal específica do direito de indemnização, por atraso na justiça [delimitação do âmbito da indemnização, caracterização do dano indemnizável, pressupostos e condições da acção respectiva, etc.], seria de recorrer à aplicação analógica das normas legais relativas à responsabilidade civil da Administração, como era o regime do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, na medida em que estava em causa o plano administrativo do funcionamento dos tribunais.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:*
I - RELATÓRIO
Agro-……………….., Lda., intentou no TAC de Beja acção administrativa comum, sob a forma ordinária, contra o Estado Português, na qual peticionou a condenação do réu no pagamento da quantia de € 188 515,60 - a título de indemnização por danos patrimoniais -, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efectivo e integral pagamento.

Por sentença de 29 de Junho de 2016 do referido tribunal foi julgada procedente a presente acção e, em consequência, condenado o Estado Português no pagamento à autora de € 173 515,60, acrescidos de juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral pagamento.

Inconformado, o réu interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul dessa decisão, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:
«1.ª — O ESTADO PORTUGUÊS impugna a sentença de fls. 1133-1161, que o condenou no pagamento de uma indemnização de € 173.515,60 à autora, por atraso, de quase 13 anos de 16-03-1992 a 08-03-2005 —, na prolação de sentença no âmbito de uma ação sumária de denúncia de contrato de arrendamento rural, limitando-se o recurso ao julgamento da matéria de direito.
2.ª — A condenação, afastando expressamente — bem — a aplicabilidade do D.L. n.º 48051, de 21-11-1967, e tendo ainda em conta que, à data do facto, a Lei n.º 67/2007 não fora sequer publicada, fundou a pretensão material da autora direta e exclusivamente no art.º 22.º da Constituição.
3.ª — Porém, como se decidiu no acórdão do STA de 09-10-1990 (processo n.º 025101), “o art.º 22.º da Constituição não abrange a responsabilidade decorrente da função jurisdicional” e “o D.L. n.º 48051, de 21-11-1967, não abrange a função jurisdicional já que esta não integra a chamada Administração, e os atos judiciais no âmbito daquela função jurisdicional não suportam a qualificação de ´atos de gestão pública´” (sumário, pontos I e IV), entendimento também acolhido, ao menos implicitamente, pelo STJ, em acórdão de 03-12-2009 (proc.º n.º 9180/07.3TBBRG.G1.S1), em cujos termos “em matéria de natureza cível, só com a entrada em vigor da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, faz sentido responsabilizar o Estado, por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, mas apenas nos apertados limites da previsão do seu artigo 13.º, e nunca antes, ou seja, com base no articulado do revogado Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de novembro de 1967” (sumário, ponto I).
4.ª — Porém, mesmo que se devesse entender que o vocábulo “funções” possui, no contexto da citada norma constitucional, o alcance de abarcar qualquer atividade dos entes públicos, v.g. a jurisdicional, nem daí resultaria espaço interpretativo para fundar nessa norma, sem intermediação da lei ordinária, a atribuição a eventuais particulares lesados do direito subjetivo (público) à reparação de danos emergentes daquela atuação.
5.ª — Com efeito, como demonstrou, de modo claro e logicamente irrefutável, MARIA LÚCIA AMARAL na sua tese Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, a norma do art.º 22.º da Constituição “não existe para atribuir aos privados o direito fundamental à indemnização; não foi consagrada para definir o elenco de condições que fazem nascer o correspondente dever de compensar do Estado. Existe, e foi consagrada, tão[-]somente para acolher um determinado instituto de direito público e para garantir a preservação da sua identidade” (pág. 449).
6.ª — Aliás, conferir ao art.º 22.º da Constituição o alcance geral de norma de atribuição direta de situações jurídicas subjetivas geraria uma perplexidade e incongruência intransponíveis na interpretação do n.º 6 do art.º 29.º da lei fundamental, que para os casos de condenação injusta prevê a ressarcibilidade dos causados daí emergente para o cidadão lesado apenas “nas condições que a lei prescrever”, mal se compreendendo que para uma hipótese particular do dever de indemnizar dos poderes públicos se exigisse expressamente a interpositio legislatoris, dispensando-a, contudo, nos casos comuns, apesar de menos densos e caracterizados normativamente.
7.ª — A sentença recorrida procedeu a incorreta interpretação e aplicação do art.º 22.º da Constituição, pelo que deve ser revogada e substituída por decisão que decrete a absolvição do Estado, não porque seja tolerável que uma sentença judicial demore 13 anos a ser prolatada, mas porque o Direito vigente à data do facto pura e simplesmente omitia a concessão do direito à reparação por essa omissão censurável.».

A recorrida, notificada, apresentou contra-alegação de recurso na qual pugnou pela manutenção da decisão recorrida.

II - FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:
«A) A Autora, na qualidade de senhoria, intentou contra VIRGÍLIO …………… e mulher JEREMINIA ……………., na qualidade de arrendatários, uma ação com processo sumário, para denúncia de um contrato de arrendamento rural, que tinha por objeto o prédio rústico denominado "Aos Algarvios", inscrito na matriz cadastral rústica sob o artigo 000 4 da Secção V e o prédio rústico denominado "Herdade dos Algarvios", inscrito na matriz cadastral rústica sob o artigo 0005 da Secção Z, ambos descritos sob a descrição predial nº …, a fls. 145, do Livro B-6 da suprimida (cfr. processo n .º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
B) A Autora formulou na dita ação sumária o seguinte pedido: declarar-se que a denúncia do contrato de arrendamento para 1989-01-01, não põe em risco a subsistência económica do Réu, e do seu agregado familiar, tendo para o efeito de se declarar válida e eficaz a denúncia do contrato de arrendamento feita pela Autora, nos termos da alínea b) do artº. 17º da Lei do Arrendamento Rural, condenando-se o Réu a despejar os prédios" (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
C) Em 01/10/1987, deu entrada no TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCÁCER DO SAL, a referida ação judicial, sob a forma sumária, tendo sido autuada com o nº (inicial) 188 / 87 (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
D) Em 15/10/1987, foi proferido despacho ordenando a citação dos Réus (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
E) Em 22/01/1988, foram os Réus naquela ação, regularmente citados (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
F) E, em 02/05/1988, contestaram a ação e deduziram reconvenção (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
G) Em 14/04/1988, a Autora apresentou a Réplica (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
H ) Em 18/05/1988 foi proferido despacho saneador, especificação e questionário (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
I) Em 26/09/1988 foi, o acima referido despacho saneador, objeto de reclamações de ambas as partes (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
J) Na mesma data os Réus apresentaram ainda recurso do despacho saneador, na parte em que julga improcedente a deduzida exceção de caducidade (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
K) Em 17/10/1988 no seguimento de notificação das partes das respetivas reclamações, vieram os Réus responder (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
L) Em 04/01/1989, tendo em atenção a entrada em funcionamento dos tribunais de círculo, foi proferido despacho a determinar a remessa da Ação ao TRIBUNAL DE CÍRCULO DE SANTIAGO DO CACÉM (cfr. processo n .º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
M) Em 05/04/1989, foi a ação remetida ao TRIBUNAL DE CÍRCULO DE SANTIAGO DO CACÉM (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
N) Em 06/04/1989, a acima referida ação deu entrada no TRIBUNAL DE CÍRCULO DE SANTIAGO DO CACÉM e foi distribuída e autuada sob o nº 471/89 (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
O) Em 12/04/1989, foi aberta conclusão (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
P) Em 13/04/1989, foi proferido despacho declarando-se incompetente o TRIBUNAL DE CÍRCULO DE SANTIAGO DO CACÉM (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
Q) Em 05/04/1990, suscitada a resolução do conflito negativo de competência, o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA decidiu a questão fixando a competência para julgar a causa ao TRIBUNAL DE CÍRCULO DE SANTIAGO DO CACÉM (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
R) A ação judicial foi então autuada sob o nº 471 / 89 do TRIBUNAL DE CÍRCULO DE SANTIAGO DO CACÉM (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
S) Em 01/02/1991, foram decididas as reclamações à especificação e questionário, tendo sido aditados dois quesitos (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
T) Em 01/02/1991, as partes ofereceram, meios de prova testemunhal (a Autora, indicou 4 testemunhas e os Réus 10 testemunhas), documental e pericial (sendo que a aí e ora Autora requereu como meio de prova arbitramento por vistoria e exame) (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
U) Em 25/02/1991, foi ordenada a inquirição por deprecada da 10ª testemunha indicada pela Autora (cf r . processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
V) Em 13/03/1991, foi designado o dia 08/04/1991 para a nomeação de perito, o que veio a ocorrer nessa data (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
W) Em 09/04/1991, foi designado o dia 22/04/1991 para o juramento dos peritos e início da diligência, o que também ocorreu, tendo a Autora apresentado os quesitos (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
X) Em 27/05/1991, foi entregue o relatório da perícia colegial efetuada, o qual foi notificado às partes (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
V) De acordo com o mencionado relatório pericial, o rendimento líquido anual que os arrendatários retiram da exploração dos prédios arrendados é de € 15.504,38 (quinze mil quinhentos e quatro euros e trinta e oito cêntimos) (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
Z) Em 05/07/1991, foram as partes notificadas da data da realização da audiência de discussão e julgamento, marcada para 15/11/1991 (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
AA) Em 09/07/1991, realizou-se a referida deprecada inquirição da 10ª testemunha, depois de ter sido adiada por impossibilidade de comparência do mandatário dos Réus (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
BB) Em 15/11/1991, data designada para julgamento, faltaram testemunhas, tendo sido adiado para 14/02/1992 (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
CC) Em 14/02/1992 os Réus requereram a ampliação do pedido reconvencional, o que foi deferido pelo Meritíssimo Juiz (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
DD) A requerimento das partes, foi também solicitado um prazo não inferior a 15 dias por haver a possibilidade de acordo, o que lhes foi concedido, tendo sido então designada a data de 13/03/1992 (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
EE) Em 13/03/1992, realizou-se a audiência de julgamento, com diversos requerimentos de ambas as partes a terem de ser apreciados e decididos antes da inquirição das testemunhas (cf r. processo n.º 125/10.4T2ASL a penso aos autos);
FF) Nesse mesmo dia, foi proferido Acórdão que decidiu da matéria de facto (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
GG) Em 16/03/1992, o processo foi concluso ao Meritíssimo Juiz para elaboração da sentença (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
HH) A sentença foi iniciada, identificando-se as partes e o objeto do litígio, sintetizando-se as pretensões por elas formulados e os seus fundamentos, e discriminando-se os factos considerados provados (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
II) Em 15/09/1999, por força da extinção do TRIBUNAL DE CÍRCULO DE SANTIAGO DO CACÉM, o processo foi remetido ao TRIBUNAL DE ALCÁCER DO SAL, onde foi agora autuado sob o nº 175/1999 (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
JJ) Em 08/03/2005 foi prolatada sentença pelo Mm.º Juiz do Tribunal de Círculo de Portimão em acumulação de serviço, nos termos do despacho do Ex.º Sr. Vice Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 01/03/2005;
KK) Em 18/03/2005 foi a Autora notificada da sentença proferida na ação judicial em causa (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
LL) A referida sentença, decidiu a causa da seguinte forma: "...Julgar procedente a presente acção e, em consequência, declaro válida a denúncia do contrato de arrendamento rural celebrado entre A. e o Réu marido, referente aos prédios rústicos identificados nas als. A) e B) da especificação. Condenar os réus a entregarem os referidos prédios à A., no termo do ano agrícola posterior à presente sentença. Julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional e, em consequência, condenar a A. a pagar aos Réus a quantia de € 64.345,57, acrescida de juros à taxa legal desde a data em que a A. foi notificada da reconvenção...(cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
MM) Em 21/03/2005, a aí e ora Autora interpôs recurso da sentença, apenas na parte relativa ao pedido reconvencional em que tinha sido condenada (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
NN) Em 23/03/2005, por ter falecido o Réu VIRGÍLIO, os seus herdeiros deduziram incidente de habilitação de herdeiros, o qual veio a ser procedente (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
OO) A parte da sentença que decidiu sobre os pedidos formulados pela Autora não foi objeto de recurso, pelo que, quanto a esta parte, a decisão proferida transitou em julgado em 28/03/2005 (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
PP) Em 13/05/2005, foram julgados habilitados os herdeiros do Réu VIRGÍLIO, por decisão que transitou em julgado, sem que da mesma tenha sido interposto recurso (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
QQ) Na mesma data de 13/05/2005, foi admitido recurso da sentença melhor identificado na alínea MM) supra (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
RR) Em 01/06/2005, a Autora requereu a emissão do respetivo mandado de despejo dos prédios em virtude da falta de pagamento das rendas devidas pela exploração dos mesmos (cfr. processo n .º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
SS) Em 14/06/2005, os Réus contraditaram (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
TT) Em 09/02/2006, foi proferida decisão sobre tal requerimento onde se entendeu constituir a sentença título executivo e ordenando-se a citação pessoal dos executados para, em 10 dias, abrirem mão daqueles prédios e deles fazerem a entrega à Autora, sob pena desta ser judicialmente investida na posse dos mesmos (cfr. processo n .º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
UU) Em 07/03/2006, foi admitido o recurso que os Réus interpuseram desta decisão (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
VV) Em 22/06/2006, em resultado da interposição dos referidos recursos, o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA confirmou a sentença proferida na 1ª instância e,
WW) revogou o acima despacho recorrido pelos Réus, por entender que o pedido formulado pela Autora de emissão de mandado de despejo dos prédios por falta de pagamento das rendas era extemporâneo e estranho à sentença e à própria ação (o pedido era a denúncia do contrato de arrendamento rural e não para a resolução do contrato por falta de pagamento das rendas), não contemplando o incidente de despejo (cfr. processo n.º 125/10 .4T2ASL apenso aos autos);
XX) Em 23/06/2006, não se conformando com o Acórdão melhor identificado nas alíneas VV) e WW) supra, a Autora recorreu para o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA-STJ, na parte que confirma a sentença proferida na 1ª instância relativamente ao pedido reconvencional (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
YY) Em 25/01/2007 foi pelo STJ revogado o Acórdão recorrido e condenada a recorrente/Autora a pagar aos Réus juros à taxa legal, calculados sobre o valor da indemnização de € 64.345,57, desde a data da sentença proferida na 1ª instância, em 08/05/2005, até ao efetivo pagamento, mantendo-se esta decisão em tudo o resto (cf r. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
ZZ) Entre a data da notificação da reconvenção e a data da sentença (respetivamente 24/03/1988 e 08/03/2005) mediaram quase 17 anos para a Autora ser condenada a pagar a indemnização aos Réus;
AAA) O valor de € 64.345,57 em 1988 (ou o equivalente na moeda corrente da altura - o escudo) não é o mesmo que o de igual quantia em 2005 (acordo das partes);
BBB) Nesse período houve uma evidente depreciação do valor da moeda para além de outros fatores, pelo efeito corrosivo da inflação (acordo das partes);
CCC) Em 2007 transitou em julgado a decisão proferida em 1ª instância (vide alínea OO) supra) (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
DDD) O Tribunal de Círculo de Santiago do Cacém e o Tribunal Judicial de Alcácer do Sal, no período em que a sentença demorou a ser elaborada, efetuaram diligências, em outros processos urgentes e não urgentes;
EEE) Como é publicamente conhecido e noticiado, a partir da década de 90 verificou-se um aumento exponencial de processos, nos quais se incluem os processos cíveis, aumento esse que também desse modo afetou os TRIBUNAIS DE SANTIAGO DO CACÉM e de ALCÁCER DO SAL;
FFF) O que acarretou uma evidente sobrecarga de trabalho dos magistrados nesses tribunais;
GGG) Trata-se de um processo com 161 folhas, à data da sua conclusão para efeitos de elaboração de sentença (cfr. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos);
HHH) A Autora é dona e legítima proprietária dos Prédios melhor identificados na alínea A) supra (v. processo n.º 125/10.4T2ASL apenso aos autos).
III) Os prédios arrendados, objeto da ação judicial em referência, e anteriormente identificados, foram entregues pelos arrendatários à A. no termo do ano agrícola posterior à sentença, ou seja, em Fevereiro de 2007 (cfr. documentos juntos com requerimento de fls. 1096 dos autos, conjugados com os depoimentos das testemunhas João ……………, Esperança ……….);
JJJ) Só nesse momento a ora A. voltou a poder explorar e dispor dos seus mencionados bens imóveis (depoimentos das testemunhas João …………….., Esperança ……………….);
KKK) A Autora, desde a data da propositura da ação em Juízo, até à data da entrega dos prédios arrendados, recebeu a renda anual de € 498,80 (quatrocentos e noventa e oito euros e oitenta cêntimos) (depoimentos das testemunhas João Nuno Lança Cardeira e Esperança do Sacramento Sezões Dias Duarte Lança);
LLL) Os prédios rústicos melhor identificados na alínea A) supra, tinham, respetivamente, as áreas de 214,6500 hectares e 13,7500 hectares, totalizando a área de 228,4000 hectares (cfr. relatório pericial e certidão do Instituto Geográfico Português de 12/03/2010 juntos aos autos);
MMM) A distribuição das culturas em ambos os prédios é a seguinte:
i) arroz: 29,05 hectares
ii) sobreiral: 5 hectares
iii) cultura arvense de sequeiro: 33,5 hectares
iv) pastagem natural: 16,5 hectares
v) pinhal manso: cerca de 100 hectares
(cfr. relatório pericial);
NNN) Os referidos prédios durante o período entre 1992-04-16 e 2005-03- 08, mantiveram a mesma distribuição e aptidão culturais (cfr. depoimentos das testemunhas João …………….e Esperança ………………..);
OOO) Nos termos do contrato de arrendamento, então em vigor, os rendimentos dos sobreiros e da resinagem dos pinheiros bravos era auferida pela Autora, e os rendimentos decorrentes da exploração das parcelas de arroz, da pastagem natural, da cultura arvense de sequeiro e da venda das pinhas dos pinheiros mansos pertencia aos arrendatários (cfr. depoimento das testemunhas João …………….e Esperança ………………..);
PPP) Durante o período de tempo em causa, o rendimento líquido médio anual que a Autora podia retirar da exploração de tais parcelas (arroz, pastagem natural, cultura arvense e pinheiro manso) era, no mínimo, de € 15.000.00 (quinze mil euros) (cfr. relatório pericial)».
*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

Na sentença recorrida imputou-se ao Estado Português a prática de um facto ilícito (e culposo) pela existência de um período de atraso (excessivo) na tramitação da acção judicial intentada em 1.10.1987 no Tribunal Judicial de Alcácer do Sal, concretamente por atraso na prolação de sentença, pois decorreram cerca de 13 anos entre a data da conclusão para elaboração de sentença (16.3.1992) e a data em que foi proferida a sentença (8.3.2005), tanto mais que se tratava de um processo urgente, bem como se considerou que existiam danos patrimoniais sofridos pela ora recorrida no montante de € 173 515,60 e que os mesmos eram consequência directa do facto ilícito e culposo em questão (atraso na administração da justiça).

Para tanto entendeu-se nessa decisão nomeadamente que, à data dos factos, estava em vigor o DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, o qual, embora não previsse a responsabilidade por actos ou omissões no âmbito da função jurisdicional, sempre seria aplicável in casu, dado que o art. 22º, da CRP - o qual prevê o princípio geral da responsabilidade civil extracontratual do Estado -, além de incluir a função jurisdicional, é de aplicação imediata, pois consagra um direito com natureza análoga aos direitos, liberdades e garantia.

A única questão suscitada pelo réu, Estado Português, representado pelo Ministério Público, no presente recurso jurisdicional - no qual não põe em causa que no caso sub judice existiu um atraso indevido na prolação da sentença - resume-se, em suma, em determinar se o ordenamento português tutelava (ou não), à data dos factos, a posição substantiva da recorrida, em termos de lhe conferir um direito subjectivo à reparação dos danos emergentes do atraso judicial, ou seja, se é possível fundar directa e exclusivamente no art. 22º, da CRP, uma pretensão indemnizatória contra o Estado por danos resultantes do exercício da função jurisdicional.

Defende o recorrente que a resposta deve ser negativa, argumentando que a sentença recorrida interpretou e aplicou o art. 22º, da CRP, de forma incorrecta.

Vejamos.

À data dos factos encontrava-se em vigor o DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967 (o qual foi revogado pela Lei 67/2007, de 31/12, que entrou em vigor em 30.1.2018 – cfr. os respectivos arts. 5º e 6º) diploma que é aplicável à responsabilidade civil por actos e omissões no âmbito da função administrativa, mas não a actos praticados no exercício da função jurisdicional.

De todo o modo, a doutrina dominante e a jurisprudência largamente maioritária entendiam que o art. 22º, da CRP – que corresponde ao previsto no n.º 1 do art. 21º, da versão originária da Constituição de 1976, o qual, com a revisão constitucional de 1982, passou para o actual art. 22º [“O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”] -, no qual se consagra o princípio da responsabilidade civil ou patrimonial do Estado e das demais entidades públicas pelos danos causados aos cidadãos:
- era directamente aplicável, não carecendo de mediação normativa infraconstitucional para poder ser invocada pelos lesados, pois trata-se da previsão de direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, estando sujeita ao regime destes (cfr. arts. 17º e 18º n.º 1, da CRP);
- abrangia não só a responsabilidade do Estado por danos resultantes do exercício da função administrativa, mas igualmente das funções legislativa e jurisdicional, pois “as acções ou omissões praticadas” são aí referidas sem quaisquer restrições e a própria letra do preceito inculca este entendimento, ao aludir a “funções”, que abrangem naturalmente todas as funções do Estado, incluindo a função jurisdicional.

Podendo tal art. 22º ser directamente invocado, tornava-se necessário perceber como se efectivava o direito de indemnização, isto é, a delimitação do âmbito da indemnização, a caracterização do dano indemnizável, pressupostos e condições da acção respectiva, etc..

Assim sendo, entendia-se que na falta de regulamentação legal específica do direito de indemnização, por atraso na justiça, seria de recorrer à aplicação analógica das normas legais relativas à responsabilidade civil da Administração, como era o regime do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, na medida em que estava em causa o plano administrativo do funcionamento dos tribunais.

Com efeito, e como esclarecem Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005:
- A págs. 210 e 211, “O artigo 22.º da Constituição, cuja redacção permanece inalterada desde 1976, estabelece um princípio geral de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas.
a) O legislador tem em vista, não apenas as actuações administrativas, mas também as actuações político-legislativas e jurisdicionais. (…) É significativo, por outro lado, que o preceito se refira, não às acções ou omissões praticadas no exercício das “funções administrativas”, como chegou a ser sugerido em 1980 no projecto da autoria de Francisco Sá Carneiro, mas genericamente às acções ou omissões no exercício das funções. A referência indiferenciada aos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, conjugada com a previsão, noutros preceitos constitucionais, para além da responsabilidade civil dos funcionários e agentes da Administração (artigo 271.º), da responsabilidade civil dos titulares de cargos políticos pelas acções ou omissões que pratiquem no exercício das suas funções (artigo 117.º n.º 1), incluindo ainda que com limitações, dos juízes (artigo 216.º n.º 2), confirma a amplitude do princípio da responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas afirmado no artigo 22º.da Constituição.” (sublinhados nossos);
- A pág. 213, “IV – O artigo 22.º, na medida em que consagra um direito fundamental à reparação dos danos causados ilícita e culposamente pelo Estado ou demais entidades públicas, constitui - por imperativo constitucional (artigos 17.º e 18.º, n.º 1, da Constituição) – uma norma directamente aplicável, sendo aplicável, não apenas contra legem, mas também na ausência de lei, cabendo ao órgão aplicador estabelecer, a partir das coordenadas constitucionais e do sistema legal, os critérios de decisão no caso concreto.
Com efeito, nesta dimensão, o direito fundamental à reparação dos danos tem um conteúdo essencialmente determinável, apresentando uma natureza análogo à dos direitos, liberdades e garantias e beneficiando, portanto, nos termos do artigo 17.º da Constituição, do regime destes direitos.
A conclusão é particularmente importante em face do défice de legislação concretizadora do artigo 22.º da Constituição. A matéria, no essencial, continua a ser regulada pelo parcelar e lacunoso Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967 (e, no âmbito das autarquias locais, pelos artigos 96.º e 97.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro).
(…)
V – A intervenção do legislador, se bem que não seja, em rigor, necessária para tornar exequível o artigo 22.º da Constituição, pode, em qualquer caso, revelar-se conveniente. Embora os juízes em geral possam e devam assegurar a tutela do direito fundamental dos lesados à reparação dos danos, uma tal via apresenta inconvenientes, tanto do ponto de vista da separação de poderes e do papel que, num Estado democrático, deve ser reservado ao legislador legitimado democraticamente, como na perspectiva da igualdade e da segurança jurídica.” (sublinhados nossos);
- E a pág. 192, “X – O artigo 20.º n.º 4, inclui, desde 1997, uma referência expressa ao direito a que a causa seja objecto de uma decisão jurisdicional em prazo razoável. Todavia, mesmo antes da quarta revisão constitucional, a solução já resultava implicitamente do próprio direito de acesso aos tribunais, não sendo, por conseguinte, necessário, para afirmar em Portugal um direito fundamental a uma decisão em prazo razoável, recorrer ao artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
(…)
O artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 22.º, permite aos particulares lesados pela excessiva morosidade da justiça propor, nos tribunais portugueses, uma acção de responsabilidade civil contra o Estado.” (sublinhado nosso).

Conforme também ensinam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 2007, 4ª Edição, págs. 428 a 431:
VI. Se a leitura do art. 22° como afirmação do princípio da responsabilidade directa do Estado e demais entidades públicas não suscita nem pode suscitar grandes dúvidas, já o mesmo não acontece com outros importantes problemas metódicos relacionados com este preceito. Desde logo, procura-se saber qual a natureza deste preceito. A sua colocação, em sede de princípios gerais referentes a direitos fundamentais, é por vezes interpretada no sentido de não se tratar de um verdadeiro direito fundamental, mas tão somente de um princípio principalmente objectivo, ao lado de outros princípios, como, por exemplo, os princípios da universalidade (art. 12°) e da igualdade (art. 13°). Quando muito, constituiria: (1) um princípio-garantia associado ao princípio do Estado de direito, à garantia de protecção jurídica e ao princípio da constitucionalidade e da legalidade vinculativo dos poderes públicos; (2) uma garantia institucional que, tendo em conta o sentido e a evolução história do instituto da responsabilidade dos poderes públicos, daria protecção aos particulares no caso de acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes, praticados no exercício das suas funções e lesivas de posições jurídico-subjectivas privadas. A garantia institucional estaria ligada à instituição «funcionalismo público» e à necessidade de protecção contra «actos de gestão pública» ilícitos e culposos dos funcionários. O art. 22° constituiria uma garantia mínima a favor do particular lesado pelo exercício ilícito do poder público, estando vedado ao legislador aniquilar esta garantia.
A colocação do preceito em sede de princípios gerais não prejudica, porém, a sua dimensão subjectiva, no sentido de o art. 22° consagrar o direito de reparação de danos causados por acções ou omissões pelos titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas. A sua caracterização como princípio-garantia ou como garantia institucional também deixa imperturbada a sua dimensão subjectiva com o sentido acabado de referir. Note-se que em sede de princípios gerais dos direitos e deveres fundamentais do Título 1 estão incluídos outros direitos e garantias indiscutíveis (exs.: direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, com todas as densificações constantes do art. 20°; direito de resistência, consagrado no art. 21°).
VII. Directa ou indirectamente relacionado com a natureza deste preceito, discute-se também a sua eficácia mediata ou imediata. Em causa está o problema de saber se o art. 22° constitui direito constitucional imediatamente vinculante e autoexecutivo ou se estamos perante uma norma sem suficiente determinabilidade a nível constitucional e, por isso, carecedora da mediação concretizadora do legislador. A Constituição não oferece uma disciplina exaustiva do instituto da responsabilidade do Estado e não pretendeu aniquilar normas constantes da legislação ordinária reguladoras desta responsabilidade, desde que não sejam contrárias às normas e princípios constitucionais. De qualquer modo e, não obstante a sua formulação tendencialmente principial, o art. 22° transporta regras imediatamente aplicáveis: (1) o Estado e as demais pessoas colectivas públicas são responsáveis, isto é, têm de assumir a responsabilidade civil por lesões causadas aos particulares pelos seus órgãos, titulares ou agentes no exercício dos poderes públicos; (2) o Estado e as demais entidades públicas são directamente responsáveis, podendo ser demandados em acções de responsabilidade sempre que os seus funcionários ou agentes sejam subjectivamente responsáveis por qualquer dano causado ao particular e independentemente do direito de regresso contra estes; (3) os particulares, cujos direitos, liberdades e garantias foram violados ou sofreram prejuízos na sua esfera jurídico-subjectiva, podem, observados os pressupostos gerais da responsabilidade civil, accionar judicialmente o Estado com o objectivo de obter a reparação pelas lesões ou prejuízos sofridos. Esta disciplina jurídico-constitucional directamente aplicável deixa larga margem de conformação ao legislador quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado e constitui uma disciplina normativa aberta ao desenvolvimento judicial do instituto da responsabilidade. A liberdade de conformação tem, porém, de atender ao sentido da norma de proibição que o art. 22° também transporta e que se traduz na garantia da responsabilidade directa do Estado e das demais entidades públicas por actos ou omissões dos seus funcionários ou agentes sendo vedado ao legislador excluir, por via de lei, essa garantia.
VIII. O art. 22° não explicita quais as funções, cujo exercício por titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado, pode dar origem ao desencadeamento da responsabilidade civil. É indiscutível que cabe ao âmbito normativo do preceito a responsabilidade civil da Administração por acções ou omissões praticadas no exercício da função administrativa, ou seja, está constitucionalmente consagrada a responsabilidade civil da Administração por acções ou omissões praticadas por titulares de órgãos, funcionários ou agentes no exercício ou por causa do exercício da função administrativa. Coloca-se o problema de saber se no âmbito normativo deste preceito cabe também a responsabilidade por facto da função legislativa e a responsabilidade por facto da função jurisdicional. Sob o ponto de vista jurídico-constitucional, não há qualquer fundamento para não aplicar o princípio geral da responsabilidade do Estado às acções ou omissões normativas ilícitas (legislativas e outras) e às acções ou omissões praticadas no exercício da função jurisdicional («responsabilidade dos juízes», «responsabilidade pelo funcionamento da justiça»), desde que seja possível recortar no exercício destas funções os pressupostos de culpa, ilicitude e nexo de causalidade, indispensáveis para a efectivação da responsabilidade civil do Estado. O enunciado linguístico do art. 22° («titulares de órgãos, funcionários e agentes) suporta, mesmo numa interpretação textual, este entendimento. De qualquer modo, tal conclusão sempre decorreria dos princípios do Estado de direito. (…)
O art. 22° constitui também fundamento constitucional quanto à responsabilidade do Estado por facto de função jurisdicional. A Constituição prescreve, expressas verbis, a indemnização no caso de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (mesmo quando decretada por um juiz) e nos casos de condenação injusta, como, por exemplo, nas hipóteses de erro judiciário (arts. 27°-5 e 29°-6). Mas, para além destes casos, deve valer o princípio geral da responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional sempre que das acções ou omissões ilícitas praticadas por titulares de órgãos jurisdicionais do Estado, seus funcionários ou agentes resultem violações de direitos, liberdades e garantias ou lesões de posições jurídico-subjectivas (ex.: prisão preventiva ilícita, prescrição de procedimento, não prolação de uma decisão jurisdicional num prazo razoável).” (sublinhados nossos).

Como salienta Ricardo Pedro, Contributo para o Estudo da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado por Violação do Direito a uma Decisão em Prazo Razoável ou sem Dilações Indevidas, 2011:
- A pág. 30, “Por último, teve por motivo ainda as constantes condenações do Estado português nos tribunais nacionais. Desde há vinte anos, desde a - velha – decisão do STA, Garagens Pintosinho, Lda. (4 Acórdão do STA, de 7 de Março de 1989, processo n.º 26524), que a jurisprudência nacional decide, não sem avanços e recuos, pela condenação do Estado português por violação do direito a uma decisão em prazo razoável” (sublinhados nossos);
- A págs. 60 e 61, “A Constituição da República de 1976, no artigo 21.º (102 Alterado na sequência da revisão constitucional de 1982, pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro. A par deste preceito deverão considerar-se o disposto nos artigos 27.º/5, 29.º/6, 216.º/2, 219.º/4 e 271.º da nossa Lei Fundamental), actual artigo 22.º, vem ampliar o sentido da responsabilidade civil dos entes públicos. A interpretação deste normativo tem sido objecto de enormes e variadas controvérsias, nomeadamente no que toca à responsabilidade do Estado por violação do direito a uma decisão em prazo razoável, originando jurisprudência nos mais variados sentidos. Apesar de falta de lei ordinária expressa que prescrevesse a responsabilidade do Estado por violação do direito a uma decisão em prazo razoável, a nossa jurisprudência, com o apoio da jurisprudência do TEDH, não sem bastantes recuos, tem avançado e desde 1989 que se admite este tipo de responsabilidade, podendo contar-se já vinte anos de jurisprudência neste sentido.” (sublinhados nossos);
- A págs. 74 e 75, “A nossa jurisprudência há muito que assume o dever de reparação dos danos por facto jurisdicional, mormente pelos danos causados pela demora injustificada na administração da justiça. A jurisprudência dos últimos tempos (152 Por exemplo, Acórdão do TCAN, de 30 de Março de 2006, processo n.º 5/04.2) aceita de forma pacífica o dever de indemnizar, uma vez verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil (art. 483.º do CC). Mas nem sempre foi unânime. Entre as dúvidas levantadas pela jurisprudência ressaltavam, em especial, as que se prendiam com a apreciação dos pressupostos da obrigação de indemnizar, as relativas à determinação do tribunal competente e as que se prendiam com o regime ordinário a mobilizar (155 Em causa estava a discussão da aplicação do regime da Responsabilidade da Administração por actos de gestão pública, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, ou um outro mais adequado).” (sublinhados nossos);
- E a págs. 76 e 77, “A nossa jurisprudência é muito parca (160 Ainda se torna mais parca quando comparada com a avultada jurisprudência do TEDH e, por exemplo, a não menos comum jurisprudência do Supremo Tribunal Espanhol) em decisões de reparação dos danos causados por violação do direito a uma decisão em prazo razoável, apesar de, antes mesmo de estar consagrado constitucionalmente como direito fundamental já dispormos de uma decisão condenatória do Estado. Referimo-nos à decisão do STA, de 7 de Março de 1989, processo n.º 26524, comummente conhecida por processo Garagens Pintosinho, Lda..
A prolação de decisões condenatórias do Estado por violação do direito a uma decisão em prazo razoável tem seguindo um “processo a conta gotas”, pois só passada quase uma década da decisão referida é que os nossos tribunais voltaram a proferir outra decisão no mesmo sentido (Acórdão do STA, de 15 de Outubro de 1998, processo n.º 36811). E, sucessivamente, 3 anos depois, o STA voltou a decidir no mesmo sentido, (Acórdão do STA, de 1 de Fevereiro de 2001, processo n.º 46805). Mais recentemente, o STA voltou a decidir, revogando parcialmente uma decisão do TCAN e condenando o Estado por demora na administração da justiça ou violação do direito a uma decisão em prazo razoável, por via do Acórdão de 28 de Novembro de 2007, processo n.º 308/07, arresto este apontado pelo TEDH como jurisprudência a seguir (162 Referimo-nos ao Acórdão do TEDH, de 10 de Junho de 2008, caso Martins Castro e Alves Correia de Castro c. Portugal). Não podemos, contudo, deixar de fazer justiça e considerar que esta jurisprudência, ainda dentro da ordem judiciária administrativa, provém também de instâncias inferiores, como sejam do TCAS (163 Acórdão de 30 de Abril de 2008, processo n.º 1299/05) e dos tribunais de primeira instância, como é o caso do Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra (164 Sentença de 14 de Julho de 1999).
Encontram-se ainda decisões no mesmo sentido do Supremo Tribunal de Justiça (165 Acórdão de 17 de Junho de 2003, processo n.º 2A4032), do Tribunal da Relação de Lisboa (166 Acórdão de 26 de Abril de 2001, processo n.º 86096), do Tribunal da Relação de Évora (167 Acórdão de 22 de Janeiro de 2004, processo n.º 2407/03-2), do Tribunal da Relação do Porto (168 Acórdão de 19 de Dezembro de 2007, processo n.º 5728/07) e da primeira instância (169 Sentença da primeira Vara Cível de Lisboa, 1.º Secção, de 5 de Outubro de 2007).”.

Acrescentando ainda esse mesmo autor (Ricardo Pedro), Administração da Justiça Morosa: La Storia Continua… Anotação ao acórdão do STA, de 15.05.2013, Proc. n.º 0144/13, em Revista da Ordem dos Advogados, Ano 74, 2014, Janeiro/Março, pág. 348:
Podem encontrar-se várias dezenas de acórdãos proferidos pelos nossos tribunais superiores, que refletem mais de 20 anos de jurisprudência sobre este tema; como se confirma pela análise do leading case (19 Assim o denomina GOMES CANOTILHO, in “Ac. do STA de 7 de março de 1989 — anotação”, RLJ, Ano 123, n.º 3799, 1991, pp. 293-307) que prefigurou o caso Garagem Pintosinhos, Lda (20 Acórdão do STA, de 7 de março de 1989, proc. n.º 26524, António Samagaio), de 1989, até às mais recentes decisões do STA, de que é exemplo o acórdão aqui em referência, datado de 2013 (21 Para a referência das decisões nacionais até 2009, cf., o nosso, Contributo…, pp. 76-79. Posteriormente a essa data deve ter-se em conta, entre muitos, acórdão do TCAN, de 26 de outubro de 2012, proc. n.º 01490/09.1BEPRT, Antero Pires Salvador, e acórdão do STA, de 06 de novembro de 2012, proc. n.º 0976/11, Fernanda Xavier).
A jurisprudência dos nossos tribunais superiores (…) há muito que vai no sentido — não sem grandes avanços e recuos — da admissão da responsabilidade civil do Estado por este título de imputação. Tem sido, sobretudo, a jurisprudência administrativa o motor do desenvolvimento/acolhimento dogmático desta matéria, quer por via da sua atuação criativa, quer pela receção dos contributos oferecidos pelo TEDH (…). Mas não é menos verdade que esta jurisprudência tem, nalguma medida, sido acompanha pela jurisprudência dos tribunais comuns (22 Acórdão do STJ, de 17 de junho de 2003, proc. n.º 02A4032, Moreira Camilo, e acórdão do STJ, de 08 de setembro de 2009, proc. n.º 368/09.3 YFLSB, Sebastião Póvoas).”.

Referem igualmente Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, Comentário às disposições introdutórias da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, em Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, 2013, o seguinte:
- A págs. 33 e 34, “(…) o artigo 22.º é de interpretar amplamente – isto é, abrangendo a responsabilidade legislativa e judicial -, pelos seguintes motivos: (i) o artigo 22.º faz referência genérica aos “titulares dos órgãos, funcionários ou agentes”; (ii) outros preceitos constitucionais apelam, de forma mais ou menos direta, à responsabilidade do poder legislativo e do poder judicial, respectivamente, o art. 117.º. n.º 1, e o artigo 216.º, n.º 2, da Constituição (RUI MEDEIROS, anotação ao artigo 22.º, cit., p. 474)” (sublinhados nossos);
- A págs. 40 a 42, “O artigo 22.º da Constituição, que normatiza a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, foi – e ainda é hoje – objecto de uma longa e acesa discussão doutrinal. Num esforço sistemático-doutrinal, podemos identificar teses subjetivistas e teses objetivistas a propósito da sua natureza jurídica. A opção por uma ou outra não é despicienda, tanto que da sua classificação decorrerá a admissibilidade de um efeito direto (aplicabilidade direta) e imediato do preceito.
A maioria da doutrina considera a responsabilidade das entidades públicas como um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. neste sentido, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 5ª ed., 2012, pp. 177-178; GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4ª ed., cit., p. 425; MARCELO REBELO DE SOUSA, Responsabilidade dos estabelecimentos públicos de saúde: culpa do agente ou culpa da organização?, em Direito da Saúde e Bioética, 1996, pp. 145-185, p. 161; RUI MEDEIROS, anotação ao artigo 22º, cit., p. 477, e Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, 1992, p. 121; MANUEL AFONSO VAZ/RAQUEL CARVALHO/CATARINA SANTOS BOTELHO/INÊS FOLHADELA/ANA TERESA RIBEIRO, Direito Constitucional – O sistema constitucional português, 2012, pp. 251 e 262).
Aderimos a esta tese, na medida em que entendemos a responsabilidade das entidades públicas, prevista no artigo 22.º, como um direito-garantia, que atribui aos particulares um direito fundamental de estrutura subjectiva, com suficiente determinabilidade constitucional, garantidor de reparação dos danos causados aos seus direitos, liberdades e garantias pelos poderes públicos. Entendemos, assim, que no artigo 22.º está garantido aos cidadãos um direito suficientemente subjectivado, concretizador (ao nível constitucional) do princípio geral da responsabilidade extracontratual do Estado. Por conseguinte, tendo o artigo 22.º conteúdo determinado ao nível constitucional e, destarte, directamente aplicável, beneficia do regime do n.º 1 do artigo 18.º, ex vi artigo 17.º, e será admissível a sua direta invocação pelos particulares numa situação de inércia do legislador ordinário (FREITAS DO AMARAL/RUI MEDEIROS, Responsabilidade civil do Estado por omissão de medidas legislativas – o caso Aquaparque, RDES, ano XLI, agosto-dezembro, 2000, pp. 299-383, pp. 380-381; e MANUEL AFOSO VAZ, Lei e reserva da lei, 2ª ed., 2013, pp. 378 ss).
Outros Autores, advogando uma tese objectivista, defendem que o preceito constitucional em análise não atribui direitos subjetivos, devendo ser classificado como uma garantia institucional, associada à instituição “funcionalismo público”, consagradora do instituto da responsabilidade civil (é este o entendimento de VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., 2012, p. 136; e de MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, 1998, pp. 439-444).
(…)
Quanto a nós, como já referimos, entendemos que o artigo 22.º é um direito fundamental fora do catálogo, dado que possui estrutura, função e intencionalidade próprias de um direito fundamental e é “direito, liberdade e garantia”, ainda que fora do catálogo do Título II da Parte I da Constituição, pois é suficientemente determinável ao nível constitucional. Adicionalmente, cumpre referir que a sua formulação de cariz principial não impede que nele se vislumbrem normas-regras, preceitos, diretamente aplicáveis.” (sublinhados nossos);
- E a pág. 43, “Quanto ao âmbito normativo do artigo 22.º - sem prejuízo do que se dirá na análise dos normativos respectivos – são várias as considerações a fazer, necessariamente prévias e genéricas. Desde logo, somos confrontados com uma ausência de especificação de quais as funções do Estado que estão em causa. Se atentarmos ao texto constitucional, apenas se faz referência às “acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício” (sublinhado nosso). Esta abertura constitucional permitir-nos-á, certamente, ver mais além de uma mera responsabilidade pela função administrativa, que caracterizou a responsabilidade do Estado no longo período histórico que antecedeu a aprovação da actual Constituição, em 1976.
Assim, é inegável a admissibilidade de uma responsabilidade pelo exercício da função administrativa, onde precisamente surgiu e se começaram a esboçar os traços básicos do que é hoje a responsabilidade do Estado. A responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional também se retira igualmente da letra do preceito “titulares dos seus órgãos”, uma vez que os magistrados judiciais são titulares de órgãos de soberania – os tribunais. Ainda que tal não resultasse directamente da letra do princípio geral da responsabilidade, o certo é que o poderíamos descortinar em várias disposições constitucionais, tais como o n.º 5 do art. 27.º (indemnização por privação da liberdade ilegal ou inconstitucional) e o n.º 6 do artigo 29.º (indemnização por condenação injusta)” (sublinhado nosso).

Afirma também Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, 2013, em anotação ao art. 12º:
- A pág. 320, “A jurisprudência maioritária seguia a doutrina na defesa da aplicabilidade do artigo 22.º da Constituição à função jurisdicional (…)”;
- A pág. 322, “Uma análise mais fina revelava a existência de uma tese maioritária na jurisprudência e claramente hegemónica na doutrina, que sustentava que a responsabilidade civil por factos da função jurisdicional estava compreendida no âmbito do artigo 22.º da Constituição (e, bem entendido, nas normas específicas sobre a matéria penal), impondo-se a criação, urgente, no plano ordinário de um quadro normativo que desse resposta cabal às especificidades dessa responsabilidade – definindo, entre outros aspectos, os limites e o conteúdo da função jurisdicional, a natureza objectiva ou subjectiva da correspondente responsabilidade, os pressupostos do dever de indemnizar e a identidade dos sujeitos passivos e respectivo relacionamento. Em todo o caso, entendia-se que a inexistência dessa lei não prejudicava a afirmação de um dever de indemnizar a cargo do Estado, que seria efectivado por aplicação direta do artigo 22.º, em conjugação com uma norma densificadora ad hoc ou até com o próprio Decreto-Lei n.º 48051, após um processo de adaptação e de expurgo de inconstitucionalidades.” (sublinhados nossos);
- E a pág. 330 “(…) no caso da responsabilidade por morosidade processual, que se reconduz sem particulares dificuldades ao modelo clássico da não efectivação de prestações individualizadas devidas por um serviço do Estado. Assim se explica, aliás, que nestas matérias fosse menor a relutância em lançar mão do regime do Decreto-Lei n.º 48051, pois se tratava de uma situação típica de “administração judiciária” (...)” (sublinhados nossos).

Como esclarece identicamente Tiago Lourenço Afonso, A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado por Acto da Função Jurisdicional: A alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do Código Processo Penal e a absolvição, por falta de prova, do arguido em prisão preventiva, em Revista da Ordem dos Advogados, Ano 74, 2014, Abril/Junho:
- A págs. 518 a 521, “Foi apenas no ano de 1976 que a CRP definiu os termos gerais em que se processa a responsabilidade civil do Estado. A redacção do art. 22.º permanece inalterada desde a 1.ª RC (1982) (…)
(…)
Em primeiro lugar, o referido normativo, ao consagrar um princípio geral em matéria de direitos fundamentais, leva-nos inexoravelmente a considerar que se inserem neste artigo, todas as acções funcionais do Estado, designadamente, as acções no âmbito da função legislativa e função jurisdicional.
(…)
Através da leitura dos trabalhos preparatórios da RC de 1989, compreendemos que a fórmula ampla em que foi redigido o artigo 22º, naturalmente inclui todas as funções do Estado. Como refere LUÍS CATARINO (11 Contributo para uma reforma do Sistema Geral de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, 2002, pp. 281-282), a vocação integradora do art. 22.º na responsabilidade do Estado por acto jurisdicional, não é caso único, aliás, essa vocação surge com traços idênticos em Itália, ou em Espanha, onde se tentou desde cedo, dogmática e jurisprudencialmente, a aplicação directa de disposições constitucionais.
Denote-se que a questão não foi, inicialmente, pacífica. Aliás, para esta teoria geral da responsabilidade do Estado por acto jurisdicional, contribuiu bastante a interpretação jurisprudencial do art. 22.º da CRP. Os pressupostos e condições dessa obrigação de indemnizar baseavam-se na aplicação directa dos princípios da responsabilidade aquiliana.
Assim e, após desusada resistência, é actualmente pacífico na jurisprudência, salvo escassas vozes em contrário (12 Cf. Acs. STJ de 8.03.07, de 11.09.08, de 03.12.09 e 11.10.11 e o Ac. STA de 09.10.90), que o art. 22.º da CRP consagra, em termos gerais, a responsabilidade civil do Estado por actos na Juris Dictio (13 cf. Acs. STJ de 1.06.04, de 29.06.05, de 08.09.09, de 14.01.10, TRL de 17.06.10 e STA de 7.03.89).” (sublinhados nossos);
- A págs. 524 e 525, “Em terceiro lugar, consideramos que o art. 22º da CRP, consagra um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (art. 17.º da CRP), e como tal, de acordo com o art. 18.º da CRP é directamente aplicável (27 cf. MARIA MESQUITA, in Responsabilidade, cit., pp. 115-122; TIAGO SILVEIRA, A reforma da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, pp. 79-117 e LUÍS CATARINO, Contencioso da Responsabilidade — uma Hidra de Lerna, 2003, pp. 3-13; CATARINA VEIGA, Prisão Preventiva, Absolvição e Responsabilidade do Estado, II, 2005, p. 459; GOMES CANOTILHO, Anotação, cit., p. 86; a Desembargadora MARIA GOMES, na declaração de voto de vencido junta ao Ac. do TRL de 17.06.10), “independentemente de mediação normativa infraconstitucional” (29 Cf. Ac. STJ de 19.02.04), sendo susceptível de ser invocado pelos particulares para fazer valer uma eventual pretensão indemnizatória contra o Estado-Juiz.
Salvo o devido respeito, rejeitamos a tese, segundo a qual o mesmo depende da concretização de lei ordinária para se tornar líquido e poder ser invocado pelo lesado. Pelo contrário, o direito de indemnização fixado na CRP, tem o seu conteúdo e respectivas linhas essenciais determinadas, não revestindo natureza de norma programática (31 Para a conveniência da intervenção legislativa e exequibilidade do preceito, vide LUÍS CATARINO, A responsabilidade pela Administração da Justiça. O erro judiciário e anormal funcionamento, 1999, p. 170 e GOMES CANOTILHO, Anotação, cit., pp. 84-85).
Seguimos a linha de argumentação crítica de RUI MEDEIROS (32 Constituição, cit., pp. 477-478), realçando que o art. 22.º possui uma dimensão subjectiva, surgindo não apenas enquanto princípio objectivo e orientador, mas como instrumento fundamental de protecção dos particulares.
(…)
Ex expositis, consideramos que o art. 22.º da CRP é directamente aplicável (35 Cf. Acs. STJ de 31.03.04, 29.06.05, 21.03.06, 07.03.06, 08.09.09) (36 Em sentido contrário e minoritário, vide Acs. STJ de 08.03.07 e de 19.06.08), “não apenas contra legem, mas também na ausência de lei” (37 RUI MEDEIROS, Constituição, cit., p. 480; LUÍS CATARINO frisa que, o art. 22.º da CRP “por regra não carece de mediação ou concretização legislativa, aplicando-se mesmo na ausência de lei, contra a lei e em vez da lei, sendo inválidas as normas que o contrariem”, A Responsabilidade, cit., p. 170). Reconhece-se a possibilidade de o Estado ser responsabilizado por actos jurisdicionais ilícitos e lícitos, cabendo, por sua vez, ao julgador, a partir das coordenadas constitucionais e do sistema legal, a criação de normas de decisão no caso concreto.” (sublinhados nossos);
- E a págs. 529 e 530, “Após a implementação da CRP e do seu art. 22.º (e ainda na vigência do DL n.º 48051), a jurisprudência largamente dominante ancorou neste preceito, a responsabilidade civil do estado por acto ilícito, no exercício da função jurisdicional (57 Cf. Ac. STJ de 8.09.09). (…)
Refira-se que a jurisprudência teve um papel de extrema relevância na concretização do princípio constitucional previsto no art. 22.º CRP na vigência deste DL (…)”.

Conforme finalmente explicita Jorge Silva Sampaio, A Lei n.º 67/2007 e a Constituição da República Portuguesa – o recorte normativo da norma constitucional de responsabilidade civil extracontratual do Estado e a jurisprudência constitucional, em O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentários à Luz da Jurisprudência, Coordenação de Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, 2017:
- A págs. 29 e 30, “(…) no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa («CRP»), do qual decorre um princípio geral de responsabilidade patrimonial das entidades públicas, norma que também vinha sendo entendida pela doutrina como abrangendo todas as actuações dos poderes públicos, ou seja, não apenas os danos decorrentes da actividade administrativa, mas igualmente os decorrentes das actividades político-legislativa e jurisdicional.” (sublinhados nossos);
- A págs. 36 e 37, “(…) outra questão que se impõe abordar, concretamente a que se prende com saber se a norma de responsabilidade civil extracontratual do Estado se traduz e se esgota naquilo a comummente se chama de «garantia institucional», que em certa medida se refere à «dimensão objectiva» dos direitos fundamentais (teses objectivistas) (18 Cfr. MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra Editora, 1998, pp. 424 ss; igual ideia parece resultar de VIEIRA DE ANDRADE, “Panorama geral do direito da responsabilidade da Administração Pública em Portugal”, in ANTONIO CALONGE VELÁSQUEZ/JOSÉ LUIS MARTÍNEZ LÓPEZ-MUÑIZ, La responsabilidade patrimonial de los poderes públicos: III Coloquio hispano-luso de derecho administrativo Valladoid, Madrid: Marcial Pons, 1999, p. 53. Actualmente, porém, VIEIRA DE ANDRADE, embora continue a caracterizar a responsabilidade civil do Estado enquanto garantia institucional, não lhe nega subjectividade – cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 136), ou se, ao invés, também implicaria uma «dimensão subjectiva» (teses subjectivistas) (19 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito…, Tomo IV, cit. pp. 177 e 178; GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República…, Vol. I,, cit., p. 425; RUI MEDEIROS, “Anotação ao artigo 22º”, Tomo I, cit., p. 477; MARCELO REBELO DE SOUSA, “Responsabilidade dos estabelecimentos públicos de saúde: culpa do agente ou culpa da organização?”, in AAVV, Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, AAFDL, 1996, p. 161; PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, Vol. I, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 112 e 113; MANUEL AFONSO VAZ/CATARINA SANTOS BOTELHO, “Comentário às disposições…”, cit., p. 40; FERNANDO ALVES CORREIA, “A indemnização pelo sacrifício: contributo para o estabelecimento do seu sentido e alcance”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 140, 2011, n.º 3966, p. 146; TIAGO LOURENÇO AFONSO, “A responsabilidade civil extracontratual do estado por acto da função jurisdicional” in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 74, 2014, pp. 513 ss). A questão pode, pois reconduzir-se à questão de saber se o artigo 22.º da CRP consagra ou não um direito subjectivo do particular à reparação dos danos eventualmente causados, o que, em consequência, permitirá a invocação directa da norma constitucional em juízo.” (sublinhados nossos);
- A págs. 42 e 43, “(32) Mais recentemente, secundando o entendimento de «que a caracterização de tal princípio [constante do artigo 22.º da CRP] como princípio-garantia ou como garantia institucional não prejudica a sua dimensão subjectiva, no sentido de estar em causa também um direito fundamental à reparação dos danos causados por acção ou omissão ilícitas dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias», veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015, de 9 de Julho.
8. Daquilo que se acaba de expor resulta claro que a norma constante no artigo 22.º da CRP não se esgota numa dimensão objectiva, mas carrega tal-qualmente uma dimensão jusfundamental subjectiva que se traduz num direito subjectivo à reparação dos danos causados de forma ilícita e culposa pelo Estado e demais entidades públicas – no fundo está aqui em causa uma norma que atribui uma situação jurídica de vantagem de tipo «direito a algo», está em causa uma norma exequível por si mesma, cuja acção descrita na estatuição (a obrigação de indemnizar) não depende (necessariamente) de uma norma terceira que estabeleça, por exemplo, os pressupostos de que depende a responsabilidade em causa – de outro prisma, é, pois, uma norma directamente aplicável. Assim, a norma de responsabilidade civil extracontratual do Estado pode ser aplicada tanto contra a lei, como na ausência de lei, cabendo em tais casos ao intérprete-aplicador a fixação dos critérios de decisão no caso concreto, à luz do quadro normativo constitucional e legal vigente.
Como é óbvio, o facto de a norma de responsabilidade civil extracontratual do Estado poder ser directamente aplicada independentemente da existência de normas terceiras infra-constitucionais não significa que a mediação do legislador não se afigure conveniente. Com efeito, pode afirmar-se que, em especial por imperativos de segurança jurídica e igualdade e, bem assim, de forma a evitar eventuais violações do princípio da separação de poderes, mostra-se razoável salientar a necessidade (política) de o legislador concretizar o regime da responsabilidade, ainda que nos termos que entender. (…)” (sublinhados nossos);
- E a págs. 48 e 49, “No artigo 22.º é feita referência genérica a funções estaduais – “acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções” -, não se excluindo, pois, do enunciado nenhum das várias funções do Estado. Assim, em virtude do amplo recorte linguístico do presente enunciado tem de se concluir que estão abrangidas pela previsão da norma em análise as actuações e omissões (i) administrativas, (ii) legislativas, (iii) políticas e (iv) jurisdicionais. (…)
(…) Logo, nos termos do artigo 22.º da CRP, ao ser reconhecido o direito dos particulares a verem reparados os danos provocados por quaisquer acções ou omissões estatais ilícitas e censuráveis, a título de exemplo, são igualmente abrangidas pela norma referida, além do funcionamento anormal da administração de justiça e de medidas de privação de liberdade inconstitucionais (cfr. n.º 5 do artigo 27.º CRP), erros judiciários qualificados, bem como a responsabilidade por actos políticos (como a demissão do Governo, a dissolução da Assembleia da República, ou a declaração do estado de sítio ou de emergência de forma inconstitucional), caso se encontrem verificados os respectivos pressupostos da responsabilidade (…)” (sublinhados nossos).

Do exposto resulta que o entendimento perfilhado pelo recorrente apoia-se em doutrina (Maria Lúcia Amaral) e jurisprudência (Ac. do STA de 9.10.1990, proc. n.º 25101) notoriamente minoritárias, que não merecem a nossa adesão pelas razões enunciadas nas diversas transcrições supra feitas.

Aliás, sempre se dirá que se estranha tal entendimento do recorrente, Estado Português, no presente recurso jurisdicional, já que o mesmo está em contradição com o teor da contestação que apresentou, na qual consignou designadamente o seguinte:
Refira-se desde já que a responsabilidade pelo atraso no funcionamento da justiça é aferida à luz dos critérios gerais definidos pelos arts. 2º e 6º do Dec-Lei nº 48051, de 21/11/67, e 483º do Código Civil, ou seja, tem de assentar nos pressupostos gerais da lei civil, com as especialidades do regime próprio da responsabilidades dos entes públicos - isto é – no facto ilícito, na culpa, no dano e no nexo de causalidade entre o facto e o dano – tornando-se imprescindível a verificação cumulativa desses mesmos pressupostos.
Conforme tem sido jurisprudência pacífica.
E conforme tem vindo a ser jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, os critérios para determinação do prazo razoável são a natureza e complexidade do processo, o comportamento das partes e o comportamento dos órgãos dos poderes judicial, executivo ou legislativo,” (sublinhados nossos).

E mais se estranha tal entendimento do ora recorrente, dado que o mesmo está em contradição com a posição que o Estado Português assume internacionalmente.

Com efeito, e conforme expressivamente explica Ricardo Pedro, Contributo para o Estudo da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado por Violação do Direito a uma Decisão em Prazo Razoável ou sem Dilações Indevidas, 2011, págs. 72 e 73:
Contudo, antes da entrada em vigor do RRCEE não faltavam decisões judiciais em que o defensor do Estado, em sede de contestação da acção de responsabilidade civil por facto jurisdicional, defendia que “não existe direito ordinário que permita a efectivação do disposto no referido no artigo 22.º da CRP que consagra apenas um princípio geral de direito constitucional” (138 Acórdão do TCAN, de 30 de Março de 2006, processo n.º 5/04.2). Relembre-se que este tipo de argumentação tem valido ao Estado português a sua condenação no TEDH (recente condenação de 10 de Junho de 2008, no processo Martins Castro e Alves Correia de Castro C. Portugal (139 Neste processo estava em causa uma acção de despejo que corria sob a forma de processo sumário, que demorou cerca de 10 anos a ser decidida)). Após cerca de meia década sem condenações, por ter feito prova de que dispunha de meios jurisdicionais capazes de responder às pretensões daqueles que reivindicavam uma indemnização por dilações indevidas (140 Referimo-nos a um quadro estatístico apresentado pelo Estado português junto das instituições do Conselho da Europa, quadro esse que evidenciava que foram instauradas nos Tribunais Administrativos 25 acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado por duração excessiva do processo. Tendo o Estado sido condenado em 4, outras 4 improcederam e 17 continuavam em curso, sendo que em 2 delas já havia condenação em primeira instância, mas o Estado tinha recorrido. E que, portanto, Portugal dispunha de um meio eficaz para indemnizar os danos causados pela morosidade da administração da justiça), o Estado português voltou a ser condenado por não dispor de um recurso interno eficaz e efectivo. A Corte de Estrasburgo, no referido aresto (maxime considerando n.º 55) afirma “que não é de aceitar que os agentes do Ministério Público ao nível interno apresentem argumentos incompatíveis com a posição sustentada pelo defensor do Governo diante do Tribunal” (142 No mesmo sentido, Acórdão do TEDH, de 16 de Outubro de 1995, caso A.C.R.E.P. c. Portugal)” (sublinhados nossos).

Nestes termos, terá de improceder o presente recurso jurisdicional.
*
Uma vez que o recorrente ficou vencido no presente recurso jurisdicional deverá suportar as respectivas custas (cfr. art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul o seguinte:
I – Negar provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, manter a sentença recorrida.
II – Condenar o recorrente nas custas relativas ao presente recurso jurisdicional.
III – Registe e notifique.
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Lisboa, 19 de Outubro de 2017



(Catarina Gonçalves Jarmela - relatora)



(Conceição Silvestre – 1ª adjunta)



(Carlos Araújo – 2º adjunto)