Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 04898/01 |
| Secção: | Contencioso Tributário |
| Data do Acordão: | 11/25/2003 |
| Relator: | Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa |
| Descritores: | IMPUGNAÇÃO JUDICIAL LIQUIDAÇÃO ADUANEIRA FUNDAMENTAÇÃO RAZÕES ENDÓGENAS E EXÓGENAS FUNDAMENTAÇÃO CONTEXTUAL E NÃO "A POSTERIORI" |
| Sumário: | I. A fundamentação de um acto administrativo deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito- podendo consistir em remissão, expressa, concretizada e individualizada, para os fundamentos de parecer, informação ou proposta. II. O dever legal de fundamentar tem justificação em razões exógenas (colocar o administrado em condições de conhecer as razões do acto alcançado, por forma de, em consciência, poder optar entre a aceitação do acto e a sua impugnação), e, sobremaneira, concomitantemente em razões endógenas (garantia de que os agentes ponderaram de forma cuidada toda a problemática envolvente, incluindo as próprias definições legais). III. Consoante a respectiva notificação, «apurada nos termos do impresso de liquidação em anexo», a liquidação aduaneira não goza de suficiente fundamentação formal, se do mesmo acto não puder colher-se um texto, expresso e coetâneo, explicativo dessa liquidação, no tocante mormente à verificação do facto tributário relevante, à base tributável considerada, e à taxa aplicada. |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | 1.1 “Antram-Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias”, devidamente identificada nos autos, vem interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Setúbal, de 19-1-2000, que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra a liquidação de imposto sobre o tabaco e de direitos aduaneiros CEE – cf. fls. 518 e seguintes. 1.2 Em alegação, a recorrente formula conclusões que se apresentam do seguinte modo – cf. fls. 549 a 583. a) O acto de liquidação dos autos padece do vício de forma por falta de fundamentação, violando o disposto no artigo 268 (3) da Constituição e 64 (1) do CPT, especialmente no que respeita à escolha da taxa de câmbio, pois, sobre esta o acto impugnado é pura e simplesmente omisso. b) Bem como do vício de violação de lei, por desrespeitar o disposto no artigo 8.º (7) da Convenção TIR, porquanto a Alfândega de Setúbal não procurou obter o pagamento da dívida aduaneira dos autos do transportador “Sc...”, ao contrário do que tal preceito impõe. c) O acto de liquidação dos autos viola igualmente o disposto no artigo 11.º (1) da Convenção TIR, na medida em que foi praticado depois de ter decorrido o prazo dentro do qual a Alfândega de Setúbal poderia solicitar à impugnante o pagamento da dívida aduaneira dos autos. d) O acto de liquidação dos autos viola igualmente o disposto no artigo 37.º da Convenção TIR, já que, sendo a infracção detectada em Espanha, era às autoridades aduaneiras espanholas que competia reclamar o pagamento da dívida aduaneira dos autos. e) Foi também violado o artigo 221.º do Código Aduaneiro Comunitário, na medida em que a Alfândega de Setúbal dispunha apenas de um prazo de três anos para comunicar ao devedor o montante dos direitos devidos, prazo esse que, no caso dos autos, não foi respeitado. 1.3 A Fazenda Pública contra-alegou, para defender a sentença recorrida – cf. fls. 588 a 596. 1.4 O Ministério Público neste Tribunal emitiu o parecer de que o recurso não merece provimento – cf. fls. 617 e 618. 1.5 Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência. Em face do teor das conclusões da alegação, e do teor da contra-alegação, bem como da posição do Ministério Público, a questão que aqui se põe – ficando prejudicado o conhecimento de qualquer outra, em caso de resposta negativa a esta – é a de saber se a liquidação impugnada goza, ou não, de suficiente fundamentação formal. 2.1 Com interesse para a decisão julgamos provada a seguinte matéria de facto. a) Por seu ofício n.º 1593, não datado, o Director da Alfândega de Setúbal enviou à impugnante, ora recorrente, essencialmente o seguinte texto: «Apuramento fraudulento da caderneta TIR n.º ... da AS... – Suíça. Na sequência do aviso de não quitação efectuado através do ofício n.º 506 de 96-02-14, desta Alfândega, tenho a honra de notificar V. Ex.a, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do a 11.º da Convenção TIR, para no prazo de três meses, a contar da presente notificação efectuar o pagamento da dívida, apurada nos termos do impresso de liquidação em anexo» – cf. fls. 344 (anexo 17). b) Este «impresso de liquidação em anexo», aludido na alínea anterior, reza mormente o seguinte: código das mercadorias ......; base tributável de direitos aduaneiros 65 790 720; à taxa de 90%, o montante de 59 211 648; base tributável de “outras imposições” 300$x640 000, à taxa de 80%, o montante de 153 600 000; e o total de 212 811 748 – cf. fls. 343. c) Datado de 6-3-1996, o Director da Alfândega de Setúbal enviou à impugnante, ora recorrente, o fax n.º 392 do seguinte teor: «Caderneta TIR n.º .... emitida pela AS... – Suíça. Conforme solicitado por V. Ex.as no fax em apreço remete-se por cópia o Volet de apuramento recebido nesta Alfândega. Mais se informa que o carimbo posto, e que indicia a correcta quitação pela Alfândega de Algeciras, é falso. Estas informações foram veiculadas pela Inspecção das Alfândegas Espanholas em Madrid e transmitida a esta Alfândega pela Direcção de Serviços de Prevenção e Repressão da Fraude da Direcção Geral das Alfândegas de Portugal» – cf. fls. 328 (anexo 15). d) Já anteriormente, em data que não consegue ler-se, a impugnante, ora recorrente, havia recebido do Director da Alfândega de Setúbal o ofício com o texto seguinte: «Quitação fraudulenta da caderneta TIR n.º ... da AS... – Suíça. Nos termos do n.º 1 do artigo 11.º da Convenção TIR avisa-se V. Ex.a da quitação fraudulenta da caderneta suprareferenciada. Mais se informa que nos termos do n.º 2 do mesmo artigo poderão v. Ex.as vir a ser notificados do pagamento da quantia de direitos aduaneiros e demais imposições os quais perfazem um montante aproximado de 213 000 000$00» – cf. fls. 325 (anexo 325). e) Por seu ofício datado de 9-7-1996, a impugnante, ora recorrente, expôs e requereu ao Director da Alfândega de Setúbal o seguinte: «Por ofício n.º 1593, Proc. 5.5.1., de 28 de Maio d e1996, veio a Alfândega de Setúbal notificar a ANTRAN para o pagamento da dívida aduaneira de 21 811 748$00, respeitante ao apuramento fraudulento da caderneta TIR n.º...., emitida pela nossa congénere suíça, AST..... Sobre a caderneta TIR em causa havia já a ANTRAN colocado observações de fundo, através do seu ofício n.º 760 de 1 de Abril último, as quais até ao momento não mereceram qualquer resposta. Assim, renovam-se as observações contidas no supra referido ofício, de que junta cópia, e tendo em vista, se for caso disso, preparar o respectivo recurso da liquidação a que se alude solicita-se de se digne ordenar seja o acto de liquidação completado com os fundamentos que justificam o accionamento da ANTRAM, bem como nele passe a constar qual a via e prazos que aquela tem para impugnar. Ainda com relação ao montante pelo qual a ATRAM é chamada a responder, há manifesta discrepância com os limites de responsabilidade previstos na Convenção TIR no n.º 3 do artigo 8.º e ponto 0.8.3 do seu Anexo 6 (US$ 50 000 por caderneta TIR). Pelo que por este motivo se requer que seja o acto precisado. Com este pedido exerce a ANTRAM a faculdade prevista nos artigos 21.º e 22.º do Código de Processo Tributário aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91 de 23 de Abril» – cf. fls. 248. f) A este ofício da impugnante, ora recorrente, veio o Director da Alfândega de Setúbal responder do seguinte modo: «Considerando o requerimento de V. V.Ex.as com o n.º de registo de entrada 2325 de 96.07.10 desta Alfândega, o qual referenciava a notificação de pagamento transmitida pelo ofício n.º 1593 de 96.05.25 também desta Estância Aduaneira. Visto o despacho de 96.08.07 do Ex.mo Senhor Subdirector Geral que impende sobre o assunto, pelo presente ofício se procede ao complemento da notificação referida no 1.º parágrafo. Assim deverá ser efectuado pagamento da parte correspondente ao que lhe é imputável, no caso vertente de US$ 200.00, conforme estipulado na Decisão do Conselho de 10 de Março de 1994, como montante máximo exigível às Associações garantes no caso de transporte a coberto de Car... TIR para tabaco. A liquidação deste montante corresponde ao valor de 34 266 000$00, calculados à taxa de câmbio de 171$330, valor que vigorava à data de emissão do Carnet TIR em apreço (n.º 2 do artigo 202 do Reg. (CEE) n.º 2913/92 do Conselho de 12 de Outubro de 1992), e os quais serão receitados a título de Recursos Próprios Comunitários, acrescidos de 100$00 a título de pagamento do impresso de liquidação. Mais se refere que para pagamento de tal montante prevalece o prazo da 1.ª notificação. Informa-se ainda que do acto de liquidação cabe a V. Ex.as a possibilidade de impugnação judicial nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 88.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – ETAF – publicado pelo Decreto-Lei n.º 129/84 de 27 de Abril» – cf. fls. 33. 2.2 O direito à fundamentação, e o correspectivo dever da Administração, decorre do imperativo constitucional do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa, que obteve claro acolhimento no artigo 124.º do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91 de 15/11. O regime jurídico geral da fundamentação dos actos administrativos continua, contudo, a constar dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 256-A/77 de 17-6. A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anterior parecer, informação ou proposta, que neste caso constituirão parte integrante do respectivo acto – n.º 2 do artigo 1.º do citado Decreto-Lei n.º 256-A/77. Imprescindível é, porém, que se dêem a conhecer aos interessados os motivos por que se decidiu no sentido adoptado no acto, e não em outro sentido – cf., por todos, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1.ª Secção, de 14-12-1989, nos Acórdãos Doutrinais n.º 341, p. 680. A adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto é equivalente à falta de fundamentação – n.º 3 do artigo 1.º do referido Decreto-Lei n.º 256-A/77. Fundamentar um acto consiste em indicar quais os motivos, as razões por que se pratica um acto e – como sublinha Marcelo Caetano – em deduzir das premissas indicadas a decisão tomada ou juízo formulado, como se de um silogismo se tratasse (cf. Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, I, p. 470 e seguintes). O regime jurídico da fundamentação dos actos administrativos contido no n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 256-A/77 visa claramente, entre outros objectivos, o do perfeito esclarecimento dos administrados em ordem a permitir-lhes a sua impugnação, ou sequer uma opção consciente entre a aceitação da sua legalidade e a justificação de um recurso contencioso, como se alcança do preâmbulo daquele Decreto-Lei, ao referir que a falta de fundamentação dificulta muitas vezes tanto aquela impugnação como esta opção. É para se conseguir esse esclarecimento que a lei traça os requisitos de que deve revestir-se a fundamentação. A fundamentação, de facto e de direito, tem de ser expressa e sucinta, clara, suficiente e congruente. Expressa, no sentido de explícita, concretamente cognoscível, ainda que por remissão inequívoca para algum elemento do processo, do qual, aí sim, directamente conste (cf. o n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei citado). Sucinta, no sentido de não prolixa. Todavia, não vaga nem truncada, isto é, só parcialmente explícita, porque tem também de ser suficiente (cf. o n.º 3 do artigo 1.º do mesmo Decreto-Lei). Clara no sentido de indicar ou revelar precisamente os factos e o direito, com base nos quais se decidiu, o que implica a rejeição de expressões vagas, genéricas, quer de facto quer de direito. Na verdade, tais expressões serão obscuras, incapazes de dar a perceber os motivos que afinal levaram o autor do acto a decidir-se por ele. Como diz a lei, é equivalente à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, nomeadamente por obscuridade, não esclareçam a motivação do acto. Suficientes têm de ser os fundamentos no sentido de aptos a dar a perceber o processo lógico e jurídico que levou à decisão consubstanciada no acto concretamente praticado. Daí que se deve ter como insuficiente a fundamentação só de facto ou só de direito, ou meramente conclusiva ou vagamente qualificativa de factos não expressamente indicados. Congruentes, ou não contraditórios, na terminologia da lei (n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei), significa que, relacionados com a concreta decisão tomada, a deduzir deles, os elementos fundamentadores se mostram logicamente aptos a que a decisão deles se extraia. O que importa é que a fundamentação, sem deixar de ser sucinta, se apresente com a indispensável clareza, suficiência e congruência, conforme emerge, expressis verbis, do texto legal. Claramente que a fundamentação é um conceito relativo, variando em função do tipo concreto do acto e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado. Para tanto, impõe-se adoptar um critério prático, consistente na questão de saber se um destinatário normal, face ao itinerário cognoscitivo e valorativo, constante do acto em causa, fica em condições de saber o motivo por que se decidiu num certo sentido e não noutro qualquer – o que, aliás, se coaduna com o princípio geral que se pode até extrair, nomeadamente, do disposto no artigo 236.º do Código Civil. Trata-se, em suma, de exigir motivação adequadamente compreensível. A jurisprudência tem-se orientado, normalmente, num sentido de equilíbrio face a cada tipo de situação, sem sacrificar ao chamado “fetichismo da forma”, mas também sem descurar o mínimo exigível, sem o que o disposto no citado artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 256-A/77 ficaria letra morta e, consequentemente, sem qualquer utilidade face aos objectivos práticos em vista. No âmbito desta ordem de considerações, importa adiantar que, se o n.º 2 do mencionado artigo 1.º admite que a fundamentação pode consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anterior parecer, informação ou proposta, tal não significa que se possa atender a outras peça de processo não expressamente referidas, não concretizadas, nem individualizadas. De outra forma ficar-se-ia sem saber, afinal, qual a verdadeira fundamentação do acto administrativo em concreto. Cf. tudo o que vem de ser dito no acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 27-5-1982, nos Acórdãos Doutrinais n.º 256, p. 534 e ss., citado também no já referenciado parecer da Procuradoria Geral da República, que tem vindo a seguir-se muito de perto. Cf. ainda, especialmente, José Carlos Vieira de Andrade, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, em particular, as páginas 13, 231, 243, 251, 254, e 320 e 321. A fundamentação de um acto deve ser entendida, assim, e conforme se deixou dito, como a obrigação de enunciar expressamente (de modo directo, ou por remissão) os motivos de facto e de direito que determinaram o agente. O grau de fundamentação exigível deverá estar directamente relacionado com o grau de litigiosidade existente, isto é, com a divergência existente entre a posição da Administração Fiscal e a do contribuinte – cf. Alfredo José de Sousa, e José da Silva Paixão, no Código de Processo Tributário Comentado e Anotado, 1998, na anotação 5. ao artigo 82.º. A obrigatoriedade da fundamentação só se cumpre, desde que o destinatário do acto fique em condições de saber, confrontado com a fundamentação usada, por que se decidiu em certo sentido e não em outro qualquer – cf. neste sentido, e por todos, o acórdão da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 14-6-1984, recurso n.º 16271. Mesmo na hipótese de remissão, é necessário que a indicação para onde a fundamentação do acto impugnado remeta seja feita de forma expressa, concretizada e individualizadamente para anterior parecer ou informação, sendo ainda preciso que, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5-6-1991, no Apêndice ao Diário da República de 30-9-1993, p 653 e ss., «se respigassem e identificassem os pontos ou os momentos concretos dos universos daquelas peças que se elegeram como possibilitadoras e justificadoras de deflagração da conclusão assumida». Esta necessidade de fundamentação radica-se, concomitantemente, em razões endógenas (garantia de que os agentes ponderaram de forma cuidada toda a problemática envolvente, incluindo as próprias definições legais) e exógenas (colocar o administrado em condições de conhecer as razões da fixação alcançada, por forma de, em consciência, poder optar entre a aceitação do acto e a sua impugnação) – cf. o acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 1-3-1989, no Apêndice ao Diário da República de 12-10-1990, p. 234 a 236. Ora, em aplicação da doutrina legal acabada de apontar, o que é que vemos no caso sub judicio? A impugnante, ora recorrente, vem alegando, desde a petição inicial dos presentes autos de impugnação judicial, nomeadamente que «no que se refere aos fundamentos do acto de liquidação nem uma palavra»; «também no que respeita à fundamentação da escolha da taxa de câmbio adoptada pela Alfândega de Setúbal, a remissão para o artigo 202.º (2) do Regulamento (CEE) n.º 2913/92, do Conselho, de 12.X.92 é perfeitamente insuficiente»; «diz aquele preceito do Código Aduaneiro Comunitário que “a dívida aduaneira considera-se constituída no momento da introdução irregular”»; «a impugnante não vê como é possível extrair deste preceito aquela conclusão»; «ora, não existindo uma fundamentação clara, suficiente e completa (...) o acto impugnado carece de anulação por estar ferido de vício de forma, por fundamentação insuficiente e obscura» – cf. os artigos 58.º a 61.º da petição inicial. À questão posta pela impugnante, ora recorrente, da fundamentação da liquidação aduaneira em causa, nada dizendo directa e especificamente sobre o assunto da fundamentação, responde a Fazenda Pública, tão somente de modo indirecto, «subscrevendo a posição da entidade recorrida, constante de fls. 274 a 290» – cf. em especial a parte final da resposta de fls. 365 e 366. Essa «posição da entidade recorrida, constante de fls. 274 a 290» vem no sentido de a Alfândega de Setúbal, nos termos do artigo 130.º do Código de Processo Tributário, manter o acto de liquidação impugnado, dizendo, especialmente a fls. 288, quanto à fundamentação da liquidação aduaneira em questão, que «constam quer do n/ofício n.º 1593 (anexo 17), quer ainda, em complemento, do n/fax n.º 392 (anexo 15), todas as razões de facto e de direito de que dispunha a Alfândega de Setúbal para fundamento do acto de liquidação, ou seja: a constatação, nos termos do artigo 11.º da Convenção TIR, de uma quitação fraudulenta, por utilização de carimbos e documentos falsos»; «aliás, é de referir que os métodos de investigação e de cooperação entre entidades oficiais, os quais conduzam aos objectivos de prevenção e repressão da fraude não deveriam ser, como é óbvio, objecto de referência na notificação»; «terá de bastar à notificada saber do resultado que foi obtido com as investigações, e nunca os métodos que foram utilizados para os obter»; «quanto ao montante pelo qual a ANTRAM é responsável, no caso vertente, foi revisto o constante da notificação efectuada em 96.05.28 e de acordo com o previsto na legislação aplicável, a qual ascende a 200.000 US$ por força da Decisão do Conselho de 10 de Março de 1994»; «a notificação de pagamento foi corrigida com vista a colmatar as insuficiências que continha e que estão expressas nos pontos 53.º e 56.º da presente decisão»; «da correcção foi dado conhecimento à ANTRAM por ofício n.º 2523 referido no ponto 25.º». Ora, «as razões de facto e de direito de que dispunha a Alfândega de Setúbal para fundamento do acto de liquidação» constantes «quer do n/ofício n.º 1593 (anexo 17), quer ainda, em complemento, do n/fax n.º 392 (anexo 15)», apresentam-se como segue – e estão, de resto, consignadas supra nas alíneas a) a d) do probatório. Esse ofício n.º 1593 (anexo 17) diz essencialmente o seguinte – cf. fls. 344. «Apuramento fraudulento da caderneta TIR n.º ... da AST... – Suíça. Na sequência do aviso de não quitação efectuado através do ofício n.º 506 de 96-02-14, desta Alfândega, tenho a honra de notificar V. Ex.a, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do a 11.º da Convenção TIR, para no prazo de três meses, a contar da presente notificação efectuar o pagamento da dívida, apurada nos termos do impresso de liquidação em anexo». Este «impresso de liquidação em anexo», encontra-se a fls. 343, e dele consta, mormente, como código das mercadorias 24022090000000; como base tributável de direitos aduaneiros 65 790 720, à taxa de 90%, o montante de 59 211 648; como base tributável de “outras imposições” 300$x640 000, à taxa de 80%, o montante de 153 600 000; e o total de 212 811 748. E o fax n.º 392 (anexo 15) reza assim, no essencial – cf. fls. 328. «Caderneta TIR n.º ... emitida pela AST... – Suíça. Conforme solicitado por V. Ex.as no fax em apreço remete-se por cópia o Volet de apuramento recebido nesta Alfândega. Mais se informa que o carimbo posto, e que indicia a correcta quitação pela Alfândega de Algeciras, é falso. Estas informações foram veiculadas pela Inspecção das Alfândegas Espanholas em Madrid e transmitida a esta Alfândega pela Direcção de Serviços de Prevenção e Repressão da Fraude da Direcção Geral das Alfândegas de Portugal». O que é facto é que, já anteriormente, a impugnante, ora recorrente, havia recebido da entidade recorrida o ofício do seguinte teor – cf. fls. 325. «Quitação fraudulenta da caderneta TIR n.º ... da AST.... – Suíça. Nos termos do n.º 1 do artigo 11.º da Convenção TIR avisa-se V. Ex.a da quitação fraudulenta da caderneta suprareferenciada. Mais se informa que nos termos do n.º 2 do mesmo artigo poderão v. Ex.as vir a ser notificados do pagamento da quantia de direitos aduaneiros e demais imposições os quais perfazem um montante aproximado de 213 000 000$00». Como se vê do que em matéria de facto se deixou especificado, não podemos, de certo modo, de deixar de estar de acordo com a impugnante, ora recorrente, quando esta afirma que «no que se refere aos fundamentos do acto de liquidação nem uma palavra». Com efeito, não é possível a um destinatário considerado normal, colocado na posição do real destinatário, como a impugnante, ora recorrente, perceber o caminho escolhido e percorrido pela entidade liquidadora para alcançar os valores constantes do «impresso de liquidação em anexo» acima referido (como o código das mercadorias; a base tributável de direitos aduaneiros; a taxa de 90%; bem como a base tributável de “outras imposições”; a taxa de 80%; e, por fim, o montante total da liquidação – montante em que a entidade recorrida não esteve sempre de acordo consigo própria). De resto, da matéria de facto que se deixou especificada para sustentar a decisão a encontrar no presente acórdão, logo se vê também que a fundamentação apresentada neste processo pela Administração Aduaneira é sempre, para além de insuficiente, uma fundamentação “a posteriori” e nunca contextual. Na verdade, não se vê no presente processo que a liquidação aduaneira em causa tenha sido precedida ou acompanhada da produção e documentação escrita pela entidade ora recorrida das razões de facto e direito que servem de fundamento a essa liquidação. É que o dever de a Administração fundamentar os seus actos obedece sobretudo a razões endógenas, decorrentes da necessidade de garantir, como acima se deixou dito, que os agentes ponderaram de forma cuidada toda a problemática envolvente, incluindo as próprias definições legais. E o que é certo é que a fundamentação dos actos administrativos tem de ser expressa e contextual, isto é, tem de ser coeva e estar compreendida, ou apropriada, no mesmo texto de produção do acto em causa – e não se vê que neste caso, aquando da liquidação em questão, tenha sido explicitada alguma razão fundamentadora ou justificativa dessa mesma liquidação. Assim sendo, como é, concluímos – e em resposta ao thema decidendum – que a liquidação em causa não goza de suficiente fundamentação formal. Conseguintemente, deve ser revogada a sentença recorrida, que não laborou neste entendimento. Do exposto podemos extrair, entre outras, as seguintes proposições, que se alinham em súmula. I. A fundamentação de um acto administrativo deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito – podendo consistir em remissão, expressa, concretizada e individualizada, para os fundamentos de parecer, informação ou proposta. II. O dever legal de fundamentar tem justificação em razões exógenas (colocar o administrado em condições de conhecer as razões do acto alcançado, por forma de, em consciência, poder optar entre a aceitação do acto e a sua impugnação), e, sobremaneira, concomitantemente em razões endógenas (garantia de que os agentes ponderaram de forma cuidada toda a problemática envolvente, incluindo as próprias definições legais). III. Consoante a respectiva notificação, «apurada nos termos do impresso de liquidação em anexo», a liquidação aduaneira não goza de suficiente fundamentação formal, se do mesmo acto não puder colher-se um texto, expresso e coetâneo, explicativo dessa liquidação, no tocante mormente à verificação do facto tributário relevante, à base tributável considerada, e à taxa aplicada. 3 Termos em que decide: - conceder provimento ao recurso; - e, em consequência, revogar a sentença recorrida; - e julgar procedente a impugnação judicial; - anulando-se a liquidação impugnada. Sem custas, por delas estar isenta a contra-alegante recorrida Fazenda Pública. Lisboa, 25 de Novembr de 2003 |