Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10579/01/A
Secção:Contencioso Administrativo - 1º Juizo Liquidatário
Data do Acordão:06/09/2004
Relator:Cristina dos Santos
Descritores:EXECUÇÃO DE SENTENÇA
CASO JULGADO
IMPOSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA
SITUAÇÃO ACTUAL HIPOTÉTICA
Sumário:1. O efeito de caso julgado - entendido como a inadmissibilidade de substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade de impugnação por reclamação ou recurso ordinário - investe as decisões dos tribunais na qualidade de título jurídico da situação concreta, o que, aliado à natureza jurídica dos Tribunais enquanto órgão de soberania, cfr. artº 202º nº 1 CRP, define as decisões judiciais como (..) obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecentes sobre as de quaisquer outras autoridades, cfr. artº 208º nº 2 da CRP.
2. Em sede de execução de sentença, se a Administração se limita a alegar o que alegou em via de recurso não aporta nenhuns factos susceptíveis de constituir o fundamento que, em seu critério, configura impedimento da reconstituição da situação actual hipotética que existiria no domínio da relação jurídica de emprego público, não fora o indeferimento tácito respeitante à concessão da diuturnidade requerida pelo funcionário, jurisdicionalmente anulado.
3. A reconstituição da situação actual hipotética implica que, em juízo de prognose anterior objectivo, se retroceda ao momento em que o Recorrente prestou serviço com carácter de permanência em situação irregular de "regime de tarefa" e que em face daquele período, se efective na esfera jurídica do Recorrente o direito à percepção do valor pecuniário da diuturnidade, por efeito repristinatório da anulação na medida da invalidade e consequente destruição dos efeitos produzidos pelo acto anulado.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Ana ....., com os sinas nos autos, requer a declaração de inexistência de causa legítima de inexecução referente ao acórdão proferido no processo principal em que, concedendo “(..) provimento parcial ao recurso [acordam] em anular o indeferimento tácito respeitante à concessão da citada diuturnidade (..)”.
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A AR respondeu no sentido de ser declarada a existência de causa legítima de inexecução com fundamento em que “(..) a pretendida execução do acórdão operaria não o reconhecimento de uma diuturnidade, que era o que a Rte pedia, mas antes o reconhecimento de duas diuturnidades (..)”.

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O MP pronunciou-se em parecer exarado nos autos no sentido da declaração de causa legítima de inexecução.

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Colhidos os vistos legais e entregues as competentes cópias aos Exmos Adjuntos, vem para decisão em conferência.

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Com utilidade para a decisão, julga-se provada a seguinte factualidade:

1. Por acórdão proferido nos autos principais, a fls. 1/11, foi concedido parcial provimento ao recurso e anulado o indeferimento tácito “(..) respeitante à concessão da citada diuturnidade (..)” ;
2. Em sede de probatório, naquele acórdão foi julgada provada, além do mais, a seguinte factualidade:
A) O parecer jurídico n.° 189/94, emitido pela consultadoria jurídica da Direcção-Geral de Contabilidade Pública, que mereceu a concordância do Director-Geral respectivo, desencadeou a actuação da Administração no sentido no sentido de pagar, não só aos funcionários que intervieram, como partes, nos recursos contenciosos de anulação, como também aos demais que se encontrassem em situação idêntica, os quantitativos respeitantes aos subsídios de férias e de Natal e a férias que não foram concedidos durante o lapso de tempo em que permanecerem na situação de "falsos tarefeiros";
B) Pelo período em que exerceu funções inerentes à categoria de Liquidadora Tributária Estagiária "em regime de tarefa", de 15 de Julho de 1980 a 19 de Abril de 1989, a recorrente foi abonada dos quantitativos referentes a férias não gozadas, subsídios de férias e de Natal;
C) Pela forma que consta do documento junto ao processo instrutor, entrado em 15 de Novembro de 2000, deu entrada um recurso hierárquico de um indeferimento tácito imputável ao Director-Geral dos Impostos, que não obteve decisão;
D) No requerimento dirigido ao Director-geral dos Impostos, a ora recorrente requereu que lhe fosse processado "o abono das quantias que lhe são devidas a título de diferenças de vencimento e diuturnidades, pelo tempo em que permaneceu na situação de tarefeiro";
E) Em 20 de Janeiro de 1993, a ora recorrente dirigiu ao Director-Geral das Contribuições e Impostos um requerimento no qual pedia que aquela entidade se dignasse mandar "alterar a situação de modo a ser-lhe reconhecido o direito ao descongelamento do índice 295 para 310 desde 23/7/91 (quinze dias após a aprovação no estágio), já que possui nessa data 11 anos de antiguidade na categoria, e que seja integrado no índice 340 a partir de 07/10/92, data da sua nomeação definitiva como Liquidador Tributário".
F) Sobre o requerimento a que se reporta a alínea E) do probatório não foi emitida qualquer pronúncia;
G) O requerimento de interposição do recurso contencioso deu entrada em 24 de Abril de 2001.
3. Em sede de fundamentação, naquele acórdão afirmou-se:
“(..) 2.2.2.2. Já no que se reporta à pretendida concessão de diuturnidade, afigura- se-nos que assiste razão à recorrente, atento o disposto no n°s l e 3 do art.° 1.° do DL n.° 330/76, de 7 de Maio.
Nos termos do n.° l do art.° l.° desse diploma: "Os trabalhadores civis do Estado e das autarquias locais, em efectividade de serviço ou em situação, que, nos termos legais, lhes confira direito a auferirem vencimento, têm direito a uma diuturnidade de 500$ por cada cinco anos de serviço, até ao limite de cinco diuturnidades".
Por outro lado, estabelece o n.° 3 que são abrangidos no n.° l, todos os trabalhadores que, independentemente de possuírem título de provimento ou da natureza deste, estejam a prestar serviço com carácter de permanência e em regime de tempo completo.
E ainda segundo o n.° l do art.° 3.°: "...será levado em conta todo o tempo de serviço prestado no exercício de funções públicas"'.
Face a estes preceitos, é devida a concessão da pretendida diuturnidade, sendo-lhe contado, para esse efeito, o tempo de serviço prestado como tarefeira (vide Ac. do STA de 6 de Outubro de 1994, in processo 34 337, e Acórdãos do TCA e do STA, supra citados). (..)”
4. O requerimento de execução deu entrada em 30.12.03 – fls. 2.


DO DIREITO

A propósito da execução de sentenças constitutivas, como é o caso das sentenças de anulação dos actos administrativos, tem sido tratada pela Doutrina a extensão do dever de execução para além do âmbito da decisão jurisdicional.
Segundo uns, com fundamento nos designados “efeitos ultraconstitutivos” resultantes dos efeitos de natureza substantiva por ela produzidos, no sentido de que “(..) o que se pretende com a sentença do contencioso administrativo não é a abstracta anulação de um acto administrativo, mas a concreta protecção da posição jurídica subjectiva do particular face à Administração. Daí que se tenha a necessidade de falar do dever da Administração reconstruir a situação hipotética em que o particular se encontraria antes da prática do acto anulado, uma vez que a sentença não tem que ver com um auto-controlo introspectivo por parte da Administração, as com a tutela de uma situação jurídica de um particular lesado por uma conduta administrativa (..)” ( Vasco Pereira da Silva, Para um contencioso administrativo dos particulares, Almedina, 1989, pág.219.).
Segundo outra orientação que não aceita tais efeitos, defendendo que na execução de sentença “(..) O dever de executar resulta, pois, do próprio efeito constitutivo da sentença anulatória, sem que, por isso, possa ou deva ser imputado a um qualquer outro efeito, porventura compreendido no seu conteúdo (..) Não se trata de cumprir uma condenação formalmente imposta pela sentença, mas de cumprir os deveres que decorrem da modificação jurídica, da anulação, operada pela sentença.
Utiliza-se, assim, neste contexto, o conceito de execução num sentido amplo (..) o mesmo sentido em que o conceito também é, por exemplo, reportado à execução de um acto administrativo. Trata-se, com efeito, de exigir da Administração a adopção dos actos e medidas tornados necessários por força da anulação judicialmente decretada, um pouco à maneira do que se passa quando também se fala na execução de actos administrativos (..) que não se resume à execução forçada de um comando (..) mas, em termos mais amplos, à consubstanciação da modificação introduzida pelo acto na ordem jurídica – portanto, a toda a actividade através da qual se passa da situação do que é (..) para aquela a que o acto se dirige (..) – e, assim, compreende o próprio cumprimento voluntário desse acto (..)” ( Mário Aroso de Almeida, Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes, Almedina, 2002, págs. 29 e 30.).

Todavia, surpreende-se unanimidade no que tange à obrigação de a “(..) Administração aceitar não apenas a anulação do acto, mas também os termos em que é decretada e os fundamentos com que o é.
O respeito do caso julgado exige, assim, antes de mais, que a Administração não pratique acto algum em que directa ou indirectamente discorde da sentença proferida pelo tribunal: deve a Administração abster-se de sustentar opiniões contrárias às expressas na sentença e, bem assim, de pôr em causa a procedência dos fundamentos invocados ou o acerto da decisão tomada (..) a Administração , para acatar uma sentença de anulação de uma acto ilegal seu, tem de abster-se de praticar uma novo acto administrativo idêntico ao anulado, que esteja inquinado pelo mesmo vicio (..)” ( Freitas do Amaral, A execução das sentenças dos tribunais administrativos, Almedina, 2ª edição, 1997, págs. 35 e 36.).
De modo que o efeito de caso julgado - entendido como a inadmissibilidade de substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade de impugnação por reclamação ou recurso ordinário - investe as decisões dos tribunais na qualidade de título jurídico da situação concreta ( Oliveira Ascensão, O direito – introdução e teoria geral, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, pág. 489.), o que, aliado à natureza jurídica dos Tribunais enquanto órgão de soberania, cfr. artº 202º nº 1 CRP, define as decisões judiciais como (..) “obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades”, cfr. artº 208º nº 2 da CRP.
Nestas circunstâncias, no que ao efeito de caso julgado importa, o fundamento da decisão jurisdicional só pode ter um conteúdo, que é exactamente o conteúdo valorativo declarado na norma aplicada podendo, assim, dizer-se que “(..) o caso julgado material recai sobre a decisão e os fundamentos, de facto e de direito, pois incide sobre a decisão fundamentada (..) o raciocínio subsuntivo vale no seu todo de conjunto e nos seus elementos de composição, o que (..) significa que a questão de facto (..) e a questão de direito do raciocínio de subsunção [facto subsumido e norma subsuntiva] são (..) globalmente abrangidos pelo caso julgado material da decisão fundamentada de facto e de direito (..) o caso julgado material integra os fundamentos decisivos para o sentido da sentença e os elementos, ou motivos objectivos, da relação jurídica litigiosa (..) ( Miguel Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material, BMJ, 325, págs.208, 209, 211 e 213 – “(..) No direito positivo, o recurso de revista (artºs. 721º e ss) demonstra que a qualificação jurídica integra o caso julgado material da sentença jurisdicional. Com efeito, o pressuposto específico do recurso de revista é a violação, por erro de interpretação ou subsunção, de lei substantiva(..)”. ).
Dito de outro modo, no que tange à produção do efeito do caso julgado“(..) não existe uma diferença estrutural entre a sentença de anulação do acto administrativo e aquelas que, em geral, dão provimento a processos impugnatórios (..): contendo a verificação judicial da pretensão anulatória (reconstitutiva da posição) do recorrente, a sentença de provimento do recurso traduz “o resultado da aplicação da norma ao facto e assim a enunciação da regra do caso concreto” (..)” ( Mário Aroso de Almeida, Sobre a autoridade de caso julgado das sentenças de anulação de actos administrativos, Almedina, 1994, pág. 122. ).
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Por último, mas não menos importante, cumpre atender que “(..) para apagar inteiramente s vestígios da ilegalidade cometida, não pode tomar-se como critério a ideia de restabelecer a situação anterior à prática do acto ilegal, antes se faz mister aplicar o critério a que podemos chamar de reconstituição da situação actual hipotética; importa, na verdade, considerar o período de tempo que medeou entre a prática do acto ilegal e o momento em que se reintegra a ordem jurídica, e reconstituir, na medida do possível, a situação que neste último momento existiria se o acto ilegal não tivesse sido praticado e se, portanto, o curso dos acontecimentos nesse período se tivesse apoiado sobre uma base legal.
É que o restabelecimento da situação anterior à prática do acto ilegal é uma noção construída no pressuposto de que o acto ilegal apenas deu origem a efeitos positivos: nesta hipótese, sim, o que interessa é restabelecer a situação que existia antes de o acto ser praticado.
Mas a verdade manda reconhecer que de um acto ilegal podem resultar efeitos negativos, isto é, omissões que não se verificariam se o acto não tivesse sido praticado: nesta outra hipótese, o mero restabelecimento da situação anterior ao acto ilegal deixaria tudo na mesma e só a reconstituição da situação actual hipotética permite reintegrar a ordem jurídica violada, obrigando a realizar tudo o que entretanto se teria realizado se não fosse o acto ilegal. (..)” ( Autor e Obra citada na nota (3), pág. 41.).

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Feito o enquadramento doutrinário pertinente no que ao conteúdo do conceito de execução de sentença respeita, vejamos se o alegado em sede de impossibilidade de cumprimento releva.
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Diz-nos Marcello Caetano que as diuturnidades “(..) são quantias concedidas aos funcionários pela permanência durante certo número de anos na mesma categoria hierárquica sem possibilidade legal de promoção (..)” ( Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 9ª edição, pág. 767), qualificando-as de vencimentos acessórios.
Donde, a reconstituição da situação actual hipotética implica que, em juízo de prognose anterior objectivo, se retroceda ao momento em que o Recorrente prestou serviço com carácter de permanência em situação irregular, no caso concreto, “em regime de tarefa” no período de 5.03.85 a 28.02.90 e, atento este período, se efective na esfera jurídica do Recorrente o direito à percepção do valor pecuniário da diuturnidade, por efeito repristinatório da anulação na medida da invalidade e consequente destruição dos efeitos produzidos pelo acto anulado.
Por outras palavras, há um montante a título de diuturnidade cujo momento constitutivo já tinha ocorrido no passado mas que apenas com a anulação se tornou exigível.
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Alega a AR no artigo 1º: “(..) os serviços da ER quando tentaram dar execução ao douto Acórdão proferido no processo nº 10579/01, da 1ª Secção, 2ª Subsecção desse Tribunal, deparou com o facto impeditivo de a Rte, ao tempo da transição ao NSR, já ter visto ser-lhe reconhecida a aquisição de uma diuturnidade e levada em conta essa realidade na sua transição ao NSR. (..)”
E no artigo 2º: “(..) A Requerente foi notificada pelos serviços competentes de que nada tinha a receber porque a diuturnidade a que se julga com direito lhe foi reconhecida em Dezembro de 1989, reportada a Abril desse ano, como detentora da categoria de liquidador tributário estagiário com uma diuturnidade, pelo que transitou, no NSR, para o escalão 2, índice 295, de acordo com a tabela anexa ao DL 187/90 de 7 de Junho (cfr. doc. nº 3 junto com a petição inicial estes autos.(..)”
E no artigo 3º: “(..) Assim sendo, o recurso contencioso inerposto pela Recorrente nem sequer tinha objecto, e só a vastidão e dispersão dos serviços da DGCI impediu que a ER não tivesse desde o níco alegado tal facto ao recurso. (..)”.
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Ou seja, a AR limita-se a alegar em sede de execução de sentença o que alegou em via de recurso, aquando da resposta ao peticionado, pelo que não aporta nenhuns factos que, uma vez provados e analisados, sejam a razão que fundamente, em seu critério, o impedimento de reconstituição da situação actual hipotética que existiria no domínio da relação jurídica de emprego público, não fora o indeferimento tácito respeitante à concessão da mencionada diuturnidade, jurisdicionalmente anulado.

Do que vem dito se conclui que à luz da factualidade fixada nos autos, não é jurídicamente configurável a extinção da obrigação da com a consequente exoneração do obrigado na exacta medida em que a AR nada alegou de relevante nesse sentido ( Antunes Varela, Das obrigações em geral, Vol. II, Almedina, 1978, págs. 64 e ss.; Freitas do Amaral, Obra citada na nota (3), pág. 127.), ao que acresce, que se a Administração discordava da fundamentação vazada no Acórdão deveria ter interposto recurso, não lhe sendo legalmente admissível, nesta sede, contrariar o discurso jurídico fundamentador do decidido em razão dos efeitos do caso julgado referidos supra.
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Do que vem dito se conclui pela procedência da pretensão do Requerente, ex vi artº 9º nº 1 DL 256-A/77, de 17.6.


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Termos em que acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul – 1º Juízo Liquidatário em:
a) julgar não verificada causa legítima de inexecução
b) ordenar a notificação das partes, para, em 10 (dez) dias se informar nos autos os actos e operações devidos à execução e prazo julgado necessário para o efeito – artº 9º nº 1 in fine DL 256-A/77 de 17.6.

Sem tributação.

Lisboa, 09.06.2004.



(Cristina dos Santos)
(Teresa de Sousa)
(Coelho da Cunha)