Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:00230/04
Secção:Contencioso Tributário- 2.º Juízo
Data do Acordão:10/26/2004
Relator:Eugénio Martinho Sequeira
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IVA
TRANSACÇÕES INTRACOMUNITÁRIAS
EXPORTAÇÃO DE MERCADORIAS
DUPLICAÇÃO DE COLECTA
Sumário:1. Não se integra em operação de transacção de mercadorias intracomunitária, isenta de IVA, aquela em que tem como adquirente uma entidade sediada fora do espaço comunitário, ainda que as mercadorias tenham sido entregues em empresa sediada em Estado membro da UE, mas por orientação e instruções daquela;

2. Tal operação também não pode ser qualificada como de exportação de mercadorias, isenta de IVA, desde logo por tais mercadorias não terem chegado a deixar o espaço comunitário da UE;

3. Inexiste unicidade do facto tributário entre o IVA suportado na aquisição de mercadorias por um sujeito passivo do imposto e o IVA que este é obrigado a liquidar na factura e a entregar nos cofres do Estado, nas vendas dessas mesmas mercadorias, não sendo também o adquirente nessa operação, o sujeito passivo desse imposto, mas sim o vendedor;

4. Nestes casos, nunca pode existir duplicação de colecta entre o IVA suportado nas aquisições e o IVA devido nessas vendas.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário (2.ª Secção) do Tribunal Central Administrativo Sul:


A. O Relatório.
1. João ...& Filhos, Lda, actualmente transformada em sociedade anónima, com a firma I... – Indústria e Comércio de Ferro, SA, identificada nos autos, dizendo-se inconformada com a sentença proferida pelo M. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa 2 que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida, veio da mesma recorrer para este Tribunal formulando para tanto nas suas alegações as seguintes conclusões e que na íntegra se reproduzem:


1ª) - além dos factos dados como assentes na douta sentença há que considerar também provados e com relevância para a decisão da causa os que acima (A: 1.1, 1.2, 1.3, 1.4, 1.5 e 1.6) se deixaram descritos e cujo teor aqui se dá por reproduzido;
2ª) - no contencioso tributário vigora o princípio do inquisitório, com vista a atingir a verdade material e a realizar o fim da justiça material, definido pela LGT como um dos objectivos da tributação (Artº 5°, n° 2);
3ª) - as transacções efectuadas configuram transmissões intra - comunitárias, visto que o destino final da mercadoria foi a Espanha e uma empresa espanhola, beneficiando, por isso, tais transmissões de isenção prevista no Artº 14° do RITI;
4ª) - ainda que assim não se entendesse as transacções em causa deveriam, então, ser qualificadas como exportações, beneficiando da isenção do Artº 14°, n° 1, al. a) do CIVA;
5ª) - pois a exigência da emissão das declarações previstas no n° 8 do Artº 28° do CIVA mostra-se preenchida com o facto de todas as partidas de sucata transportadas por camião para Espanha se terem feito acompanhar dos respectivos CMR's.
6ª) - a recorrente suportou nas compras no mercado nacional o IVA correspondente às compras de sucatas que, posteriormente, foram revendidas para Espanha através das facturas juntas aos autos (docs. 13 a 32 da p.i.) e só foi reembolsada do IVA referente às facturas que correspondem aos documentos 13 e 14, pelo que, se por uma hipótese, não fossem atendidas as conclusões anteriores, haveria que concluir pela existência de duplicação da colecta (Artº 205° do CPPT) em relação ao IVA dos docs. 15 a 32, na medida em que com as liquidações adicionais, a recorrente seria compelida a pagar segunda vez o IVA já pago com a aquisição no mercado nacional das sucatas em questão.

Termos em que, devendo concluir-se pela ilegalidade das liquidações adicionais devem as mesmas ser anuladas, revogando-se a douta decisão recorrida e julgando-se procedente a impugnação, com o que se fará Justiça!


Foi admitido o recurso para subir imediatamente, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.


B. A fundamentação.
2. A questão decidenda. São as seguintes as questões a decidir: Se deve ser acrescentado ao probatório a matéria indicada pela recorrente na alínea A) das suas alegações de recurso; Se as vendas das mercadorias em causa podem ser qualificadas de transacções intracomunitárias isentas de IVA; Se tais operações podem ainda ser consideradas como de exportação de bens, igualmente isentas de IVA; E se pode ocorrer duplicação de colecta entre o IVA suportado pela impugnante enquanto compradora das mercadorias com o IVA devido pela venda das mesmas mercadorias.


3. A matéria de facto.
Em sede de probatório o M. Juiz do Tribunal “a quo” fixou a seguinte factualidade, a qual igualmente na íntegra se reproduz:
1-Nos anos de 1993 e 1994, o impugnante, "J... & Filhos, L.da.", com o n.i.p.c. ..., estava colectado em I.V.A., no regime normal de periodicidade mensal, pelo Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos, devido ao exercício da actividade de importação, exportação e comércio por grosso de sucatas e desperdícios de metal (cfr. cópia de relatório da A. F. junta a fls.22 a 28 dos autos; cópia de certidão da C.R.C. relativa à impugnante junta a fls.140 a 142 dos autos);
2-Em 31/12/1996, em resultado de exame à escrita do impugnante incidente, além do mais, sobre os anos de 1993 e 1994, através de correcções técnicas, a A.F. apurou I.V.A. não entregue nos cofres do Estado no montante de € 89.269,53, tendo a liquidação efectuada por base a tributação do montante relativo à venda de diversas partidas de sucata pela impugnante e para a firma "E..., S.L.", com sede em Andorra, sendo que a descarga da mercadoria se efectuou em Barcelona, Espanha, e não constando das respectivas facturas a liquidação de I.V.A. incidente sobre as transacções efectuadas, as quais estão sujeitas a tal tributo ao abrigo do art.º 6, nº.1, do C.I.V.A. (cfr. cópia de relatório da A. F. junta a fls.22 a 28 dos autos; documentos juntos a fls.29 a 50 dos autos);
3-Em consequência, em 7/10/1997 a A. Fiscal estruturou liquidações adicionais de I.V.A. e juros compensatórios, relativas aos anos de 1993 e 1994, baseadas nas correcções técnicas identificadas no nº.2, no montante total de € 136.922,83, das quais surge como sujeito passivo o impugnante e cujo termo do prazo de pagamento voluntário se fixou em 30/11/1997 (cfr. documentos juntos a fls.10 a 20 dos autos);
4-Em 26/2/1998, deu entrada no Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos a impugnação apresentada por "J...& Filhos, L.da.", a qual tem por objecto as liquidações mencionadas no nº.3 (cfr.carimbo de entrada aposto a fls.1 dos autos);
5-As vendas de sucata que originaram as correcções técnicas identifica das no nº.2 foram todas efectuadas à firma "E..., S.L.", com sede em Andorra, sendo que a descarga da mercadoria se efectuou sempre nos armazéns da firma "C..., S.L.", sitos na zona industrial de Cervera, em Barcelona, Espanha (cfr. documentos juntos a fls.49 e 50 dos autos; depoimentos das testemunhas arroladas pelo impugnante e exarados a fls.129 a 134 dos autos).
X
Factos não Provados
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Dos factos constantes da impugnação, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.

Motivação da Decisão de Facto
X
A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam e nos depoimentos das testemunhas arroladas pelo impugnante, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

X

4. Tendo sido imputada à sentença recorrida o vício de errado julgamento sobre a matéria de facto – cfr. matéria da sua conclusão 1ª - importa, em primeiro lugar, conhecer de tal questão a fim de se firmar o necessário quadro factológico a que de seguida se possa aplicar o direito correspondente.

Contudo, na matéria de tal alínea, não especifica a recorrente, como lhe cabia, os requisitos exigíveis na norma do art.º 690.º-A do CPC, para o tribunal de recurso puder exercer qualquer censura sobre o julgamento de tal matéria tal como efectuado pelo tribunal “a quo”, designadamente não invocando quais os concretos meios probatórios, constantes do processo, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, o que acarretaria uma rejeição da apreciação de tal invocado erro de julgamento.
Porém, tendo em conta que as conclusões das alegações do recurso mais não são do que uma sua síntese ou súmula (art.º 690.º n.º1 do CPC), não podendo ser perspectivadas como uma realidade jurídica autónoma, valendo por si e em si mesmas, antes com aquelas devendo ser compaginadas, e que nas anteriores alegações constam os concretos pontos da matéria de facto que a recorrente pretende ver acrescentados ao probatório, bem como os documentos que na sua tese os demonstram, passamos a conhecer de tal questão, tendo também em vista sobrepôr o conhecimento das questões na vertente substantiva à vertente adjectiva.

Como é sabido, devem constar no probatório, hoje chamado de base instrutória, os factos relevantes para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida (art.º 511.º n.º1 do CPC), e não todos e quaisquer factos alegados que não obedeçam a tal desiderato, como os factos irrelevantes e sem qualquer interesse para esse fim.

Tais factos pretendidos acrescentar ao probatório são os indicados nos pontos 1.1 a 1.6 da alínea A) das suas alegações de recurso (págs. 193 e 194 dos autos).

Quanto aos factos pretendidos acrescentar ao probatório desses pontos 1.1 e 1.2 e 1.4 a 1.6 das alegações de recurso, em geral, desde logo, não constituem qualquer matéria controvertida, não tendo a AF, sobre tal matéria factual, diversa posição da assumida pela ora recorrente, sobre a existência da mesma, como se pode ver da cópia do relatório do exame à escrita constante de fls 22 e segs dos autos, não tendo qualquer interesse ali a sua inclusão, pelo que do mesmo não deve constar, sob pena de se praticar um acto inútil, como tal não permitido (art.º 137.º do CPC).
Quanto à proibição ou não da entrada e descarga de sucatas em Andorra – matéria do ponto 1.4 – não tomou a AT qualquer posição sobre esse facto, no referido relatório, o qual de resto não se pode dar como provado, apenas face à declaração da empresa espanhola E..., SL, que em declaração escrita o afirma (fls 49 dos autos) e ao depoimento da testemunha João ..., que o afirma por lhe ter sido dito pelo representante da E..., SL, e por contactos que teve com empresas do sector sediadas em Espanha (fls 132 e 133 dos autos), quando para mais, a referida testemunha era sócio e gerente da impugnante e depois veio a ser accionista e vogal do conselho de administração da mesma sociedade quando transformada em sociedade anónima – cfr. doc. de fls 180 a 187 dos autos – o que a impedia mesmo de ser inquirida como testemunha, sendo inábil para tal, porque como representante da sociedade, podia ser inquirida como parte – cfr. art.ºs 617.º, 553.º n.º2 e 635.º n.º2 do CPC.

Quanto à matéria do ponto 1.3 – de a E... ter fornecido à recorrente o número de identificação fiscal da empresa C..., SL, e de a ter indicado como seu agente comercial em Espanha, e estando autorizados a receber as mercadorias àquela destinadas – tal matéria consta provada pelos documentos de fls 49 e 50 dos autos e pelos depoimentos das duas primeiras testemunhas inquiridas, que foram os motoristas dos veículos que transportaram as mercadorias para Espanha, como declararam – cfr. fls 129 e 130 dos autos. E deve tal facto ser levado ao probatório, porque pelo menos é instrumental de versão da impugnante, contrária à posição da AT, vazada na sua petição inicial de impugnação judicial, de que verdadeiramente a adquirente das mercadorias foi a empresa espanhola C..., SL, e não a E..., sediada na Andorra.

Assim adiciona-se ao probatório um ponto 6. com seguinte redacção:
Por carta de 1.7.2003 a E..., SL, comunicou à ora recorrente o CIF B-... da empresa espanhola C..., SL, e que as mercadorias por si compradas deveriam ser entregues nos armazéns desta sitos no polígono industrial de Cerveira, S/N LLEIDA (ESPANHA), local onde assim passaram a ser entregues as mercadorias vendidas pela impugnante àquela empresa – doc. de fls 49 e 50 e depoimentos das duas primeiras testemunhas inquiridas, referidas supra.

Procede, assim o recurso, nesta parte, quanto à matéria de facto.

4.1 Para julgar a impugnação judicial improcedente, considerou o M. Juiz do Tribunal “a quo”, em síntese, que as mercadorias vendidas pela impugnante, não podiam beneficiar do estatuto de transacções intra-comunitárias, porque a sua aquisição fora efectuada por empresa com sede fora do espaço comunitário e também não podiam ser consideradas exportações isentas de IVA por a mercadoria em causa não ter chegado a sair do espaço comunitário, encontrando-se as mesmas sujeitas a IVA, carreando em abono da sua tese diversa doutrina e jurisprudência.

Vejamos então.
O imposto sobre o valor acrescentado, abreviadamente IVA, tal como é praticado nos países que o adoptam é um imposto geral sobre o consumo. É um imposto plurifásico: aplica-se em várias fases do processo produtivo. O que caracteriza o IVA é o método de cálculo da dívida fiscal de cada operador, conhecido por método do crédito do imposto(indirecto, subtractivo ou das facturas): cada operador económico liquida imposto à taxa legal, sobre as transacções que efectua, mas em cada período de imposto recebe crédito do imposto que suportou nesse mesmo período nas aquisições dos "inputs" da sua produção. O imposto a entregar ao Estado é assim o que resulta da diferença entre o IVA liquidado nas facturas de venda e o IVA suportado, constante das facturas de compra(tudo referido a um determinado período de imposto). Não existem efeitos cumulativos, apesar de se tributarem todos os estádios produtivos: o imposto liquidado num estádio é deduzido pelo estádio seguinte. A taxa do imposto é a que gravar as transacções fiscais, no caso de serem de montantes diversos aos vários estádios de produção. A neutralidade do tributo apenas é afectada quando se prevêem isenções para certos operadores, ou certas transacções, e quando a concessão dessas isenções implica a não possibilidade legal de deduzir o imposto que o operador isento suportou na aquisição de "inputs" produtivos.
A génese do moderno IVA deve buscar-se nos sucessivos ajustamentos introduzidos nos impostos de tipo cumulativo, com a finalidade de minorar distorções fiscais que lhes eram próprias. A evolução mais característica verificou-se em França, a justo título considerado o País em que nasceu o IVA actualmente em vigor - cfr. POLIS - Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado - Tomo 5, pág. 1478 e segs.

Em Portugal, o IVA começou a vigorar em 1.1.1986, tendo o respectivo Código sido aprovado pelo Dec-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro.
Do seu preâmbulo, designadamente do seu ponto 4, quanto à incidência do imposto, o mesmo visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, sendo, porém, a base tributável limitada ao valor acrescentado em cada fase. A dívida tributária de cada operador económico é calculada pelo método do crédito de imposto, traduzindo-se na seguinte operação: aplicada a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período, deduz-se ao montante assim obtido o imposto por ela suportado nas compras desse mesmo período revelado nas respectivas facturas de aquisição. O resultado corresponde ao montante a entregar ao Estado.

Nos termos do disposto no art.º 1.º do respectivo Código, estão sujeitas a IVA:
a)As transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal;
b)As importações de bens;
c)As operações intracomunitárias efectuadas no território nacional, tal como são definidas e reguladas no Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias.
2....
...
E são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou colectivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam actividades de produção, comércio ou prestação de serviços... seu art.º 2.º.

O imposto é devido e torna-se exigível, nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente... seu art.º 7.º.

O valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto será o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro... seu art.º 16.º.

O Dec-Lei n.º 290/92, de 28 de Dezembro, para além de alterar vários artigos do Código do IVA, procedeu também à adaptação do regime jurídico do imposto sobre o valor acrescentado à Directiva do Conselho n.º 91/680/CEE, de 16 de Dezembro, tendo aprovado o Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias, completando o sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado e tendo em vista a abolição das fronteiras fiscais.

Nos termos do art.º 1.º, alínea a), deste Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias (RITI), estão sujeitas ao imposto:
As aquisições intracomunitárias de bens efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo...agindo como tal, quando o vendedor for um sujeito passivo, agindo como tal, registado para efeitos do IVA noutro Estado membro que não esteja aí abrangido por um qualquer regime particular de isenção de pequenas empresas...
Porém, a norma do art.º 14.º deste mesmo RITI, isenta do imposto:
a)As transmissões de bens efectuadas por um sujeito passivo dos referidos na alínea a) do n.º1 do art.º2.º, expedidos ou transportados pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes a partir do território nacional para outro Estado membro com destino ao adquirente, quando seja uma pessoa singular ou colectiva registada para efeitos do IVA nesse outro Estado membro, que tenha utilizado o respectivo número de identificação para efectuar a aquisição e aí se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens;
b)...
...

Como é sabido, as normas que concedem isenções de tributos, porque contrárias às normas de incidência, são normas excepcionais que devem ser interpretadas restritivamente, não comportando a integração analógica, nos termos do disposto nos art.ºs 11.º do Código Civil e 11.º n.º4 da LGT.
Assim, a recorrente apenas poderia beneficiar da isenção de IVA na venda das mercadorias em causa, se a situação fosse directamente subsumível à respectiva norma do art.º 14.º a) do RITI ou a qualquer uma outra que directamente a previsse, em que o adquirente fosse um outro sujeito passivo do imposto registado para efeitos de IVA nesse outro Estado membro (Espanha), o que não é o caso em que a adquirente tem sede em Andorra, que não pertence a nenhum Estado membro da U.E.
O facto de tais mercadorias terem sido descarregadas em Espanha nos armazéns da empresa C..., SL, País membro da U.E., é absolutamente irrelevante para a pretendida isenção, porque desde logo, foi por instruções da própria compradora que as mesmas aí foram descarregadas, como as próprias testemunhas também corroboraram, alegadamente por tais mercadorias não puderem circular no interior do Principado de Andorra, como consta da comunicação da E..., SL, de fls 49 dos autos, o que bem demonstra que era esta empresa E..., SL, e não a C..., SL, que contratara com a impugnante e que por via dessa qualidade de compradora detinha junto da vendedora o poder sobre o destino a dar às mesmas mercadorias adquiridas.

Por outro lado, tendo em conta que todas essas transacções foram facturadas à empresa E..., SL, de Andorra, documentos esses que fazem parte e se encontram inseridos na contabilidade organizada da impugnante, que aliás era obrigada a possuir, nos termos da lei comercial e fiscal, designadamente dos art.ºs 44.º do Código Comercial, 17.º e segs e 98.º do CIRC, presumem-se verdadeiros os dados e apuramentos dela decorrentes, não se vê como poderia ser esta empresa espanhola a verdadeira adquirente das mercadorias em causa, que não consta dessas facturas e nenhuma prova foi efectuada para explicar e justificar que as facturas não lhe tenham sido passadas, mas sim à empresa E..., SL, de Andorra.
E a factura é o documento em que o vendedor faz a discriminação completa das mercadorias que vende ao comprador e em que indica as despesas que efectuou, bem como as vantagens que concede nos preços e as condições de entrega e de pagamento, cfr. A. Filomeno Lourenço de Sousa Leite, Compêndio de Noções de Comércio, 2.ª edição, pág. 107.

É ainda de referir que o RITI é especialmente exigente no conteúdo das facturas relativas às transacções intracomunitárias, exigindo que para além dos requisitos exigidos no art.º 35.º n.º5 do CIVA, tenham de conter o número de identificação fiscal do sujeito passivo do imposto, precedido do prefixo «PT» e o número de identificação para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado do destinatário ou adquirente, que deve incluir o prefixo do Estado membro que o atribuiu, conforme à norma internacional código ISO- 3166 alfa 2, bem como o local de destino dos bens, nos termos do disposto no art.º 28.º n.º5 do RITI, elementos que não constam das facturas em causa – cfr. fls 29 e segs dos autos – elementos que são essenciais para o controlo e fiscalização do imposto, e como tal indispensável para aceder à isenção em causa, como se afirma no acórdão do STA de 19.2.2003, recurso 1772/02.

Também a transmissão de tais mercadorias não pode conferir o direito à isenção do imposto, por ser de qualificar como de exportação de bens, ao abrigo do disposto no art.º 14.º n.º1 a) do CIVA, porque desde logo, como bem se fundamentou na sentença recorrida, tal mercadoria, nessa operação, não chegou a sair do espaço comunitário tendo sido entregue em Espanha.

Na verdade, a norma do art.º 14.º n.º1 a) do CIVA, na redacção então vigente, introduzida pelo citado Dec-Lei n.º 290/92, dispunha:
(Estão isentas do imposto) as transmissões de bens expedidos ou transportados para fora da Comunidade pelo vendedor ou por um terceiro por conta deste;
b)...
...
Aqui, a lei erigiu como um dos pressupostos da isenção do IVA nessa operação, que as mercadorias tenham efectivamente, saído do espaço físico da Comunidade, o que no caso não aconteceu, porque descarregadas em Espanha, como não se coloca em causa, não podendo por isso também, beneficiar da pretendida isenção ao abrigo de tal norma.

Na matéria da sua conclusão 6.ª, vem agora, de novo, a recorrente invocar a duplicação de colecta, entre o IVA que suportou na aquisição dessas mercadorias e o IVA afinal devido nas vendas e que não liquidou, questão que embora não tenha sido articulada na sua petição inicial de impugnação judicial e que dela a sentença recorrida não tenha conhecido, se impõe agora a este Tribunal conhecer por a mesma ser de conhecimento oficioso, como então se dispunha na norma do art.º 287.º n.º2 do CPT.

A duplicação de colecta, quer no âmbito do CPCI, quer do CPT, quer do hoje CPPT, continua a constituir um fundamento não só de oposição, como também de impugnação judicial, e hoje também de fundamento de revisão do acto tributário, que pode ser invocado no prazo de 4 anos (art.º 78.º n.º5 da LGT), por constituir uma causa de ilegalidade do acto tributário, ainda que às vezes, superveniente, visando-se impedir que seja repetida a cobrança de um mesmo tributo.
Dispõe a norma do art.º 205.º do actual CPPT:
1 - Haverá duplicação de colecta para efeitos do artigo anterior quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.
...

Constituem seus requisitos cumulativos (1):
a)Unicidade dos factos tributários;
b)Identidade da natureza entre a contribuição ou imposto e o que de novo se exige;
c)Coincidência temporal do imposto pago e o que de novo se pretende cobrar.

Para se verificar a unicidade dos factos tributários, torna-se necessário que a realidade fáctica que está subjacente à pluralidade de liquidações seja a mesma, o que não acontecerá por exemplo, no caso de liquidações adicionais, em que se pretende cobrar um tributo que, indevidamente não foi liquidado inicialmente.

No caso, a liquidação ora impugnada teve lugar por a recorrente ter deixado de liquidar o IVA devido nas vendas das mercadorias à empresa E..., SL, e que consequentemente não entregou nos cofres do Estado.
Já o IVA que a mesma terá suportado, o foi nas operações de aquisição dessas mesmas mercadorias, aos seus vendedores e em que aí aparece como compradora, não sendo a mesma nestas operações o sujeito passivo desse imposto, porque nenhuma obrigação tributária existe entre si e o sujeito activo da relação tributária, mas sim entre esses vendedores e o sujeito activo – cfr. art.º 18.º da LGT - sendo por isso manifesto, desde logo, que para além de inexistir qualquer unicidade do facto tributário, não havendo a repetição de cobrança de um mesmo tributo, no caso de liquidações adicionais, em que se pretende cobrar um tributo que, indevidamente não foi liquidado inicialmente (2), também a recorrente não é o sujeito passivo desse imposto.

O IVA que lhe foi liquidado adicionalmente, consiste no imposto que indevidamente não liquidou nas facturas de vendas dessas mercadorias e cuja obrigação de o entregar nos cofres do Estado lhe pertence; ao invés, o IVA que suportou nas aquisições dessas mesmas mercadorias não lhe cabe a si entregar nos cofres do Estado, mas às empresas vendedoras, imposto este, em todo o caso, que tem o direito a deduzir no âmbito do apuramento do mesmo e terá exercido em seu devido tempo – cfr. art.ºs 26.º e 19.º do CIVA.

Em suma, também facilmente se verifica que inexiste unicidade dos factos tributários, sendo os dois momentos em que o imposto é devido, relativo a operações diversas (num caso reporta-se à aquisição das mercadorias e o outro reporta-se à sua venda), sendo liquidados por factos tributários diversos, subsumíveis a normas de incidência diversas, pelo que nunca poderia ocorrer a pretendida duplicação de colecta, como claramente resulta do seu regime legal.

Improcedem assim, as restantes alíneas da matéria das suas conclusões do recurso, sendo de lhe negar provimento.

C.DECISÃO.
Nestes termos, acorda-se, em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em dez UCs.

Lisboa,26 de Outubro de 2004

ass: Eugénio Sequeira
ass: Francisco Rothes
ass: Jorge Lin0
_________________________________________
1)n acórdão do STA de 25.10.1978, publicado nos AD n.º 207, pág. 397 e segs.
(2) Cfr. neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado, 2.ª Edição, 2000, VISLIS, pág. 944, nota 3.