Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11067/02/A
Secção:Contencioso Administrativo- 2.ª subsecção
Data do Acordão:02/28/2002
Relator:Cândido de Pinho
Descritores:SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
ACTO DE CONTEÚDO NEGATIVO
PREJUÍZO DE DIFÍCIL REPARAÇÃO
PRESTAÇÃO DE PROVAS DE CONCURSOS
FRAUDE NOS EXAMES
Sumário:I - Um acto de conteúdo negativo é aquele que deixa intocada a esfera jurídica do interessado, a ponto de por ele nada ser criado, modificado, retirado ou extinto relativamente a um “status” anterior.
II - Se com a homologação e publicação da lista definitiva de classificação os concorrentes ficam constituídos no direito à nomeação, a posterior anulação administrativa do concurso traduz uma inovação gravosa na esfera dos titulares do direito relativamente à posição adquirida.
Tal despacho anulatório não é assim um acto de conteúdo negativo.
III - Mesmo que o estudo das matérias das provas escritas do concurso importe sacrifício de tempos livres e fins de semana, que o exame se realize em circunstâncias de pressão emocional de nervosismo e que a espera dos resultados possa ser angustiante, tudo isso é regra, normal e próprio de qualquer processo em que alguém pretende demonstrar o seu mérito em vista de uma modificação favorável na sua esfera pessoal académica, económica, profissional, etc.
IV - Não é, pois, um prejuízo moral que mereça protecção anormal ou que se apresente com tal gravidade que imponha especial tutela do direito, para efeitos do prejuízo previsto na al. a), do nº 1, do art. 76º da LPTA.
V - O interesse público de uma Administração séria, isenta, eficiente, com funcionários capazes, competentes e honestos reclama que todo o concurso seja anulado, se os resultados das provas pelo menos num dos centros de exame estiverem viciados por fraude.
VI- O mesmo interesse público demanda que a eficácia do acto que declara a anulação do concurso não possa ser suspensa, por inverificação do requisito negativo previsto na al. b), do nº 1, do mesmo artigo 76º citado.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 2ª Subsecção da 1ª Secção do TCA

I- O Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, com sede na Rua Carvalho Araújo, nº 66 A e B, em Lisboa, em representação e defesa colectiva de 41 associados, vem requerer a suspensão de eficácia do acto do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de 18/10/2001,que, com o argumento da existência de fraude por parte dos candidatos que prestaram provas no Centro de Exames de Setúbal, anulou o concurso interno de acesso limitado para as categorias de perito tributário de 2ª classe e perito de fiscalização tributária de 2ª classe, aberto pelo Aviso nº 17370/99.

Como fundamento, invoca a existência de prejuízos pretensamente subsumidos à previsão da al.a), do nº1, do art. 76º da LPTA. Em sua óptica, os representados, tendo sido admitidos ao concurso e aprovados nas provas a que se sacrificadamente se submeteram no âmbito dos ditos concursos, terão que voltar a ser sujeitos a novas provas, com novo esforço de preparação, com sacrifício de tempos livres e fins de semana e com os riscos de poderem falhar.
Diz também que a suspensão não determinará grave lesão do interesse público e que do processo não resultam fortes indícios de ilegalidade da interposição do recurso.
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O requerido bate-se pelo indeferimento da pretensão, considerando que o acto é insusceptível de suspensão dado o seu conteúdo negativo, que não foi feita prova dos prejuízos de difícil reparação a que alude a alínea a), do nº1, do art. 76º da LPTA e que, de qualquer modo, sempre não se mostraria verificado o requisito negativo da al.b), do mesmo artigo.
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O digno Magistrado do MP é de opinião que o pedido não procede pelo facto de a suspensão ser causa de séria perturbação à prossecução do interesse público.
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Cumpre decidir.
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II- Pressupostos processuais

O tribunal é competente em razão da matéria, nacionalidade e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III- Os Factos

1- Pelo Aviso nº 17 370/99(2ª série) publicado no DR, II, de 30/11/99, foi aberto concurso interno de acesso limitado para as categorias de perito tributário de 2ª classe e de perito de fiscalização tributária de 2ª classe do grupo de pessoal técnico de administração fiscal do quadro de pessoal da Direcção Geral de Impostos(fls. 25).

2- No DR, II, de 17/11/2001, pelo Aviso nº 9067/2001,foi publicada a lista dos candidatos aprovados e excluídos(fls. 28/55).

3- Os representados nestes autos ficaram aprovados nas provas, tendo a sua classificação sido afixada na lista atrás mencionada.

4- O requerido, Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, no seu despacho nº 209/2001, de 18/10/2001, face à existência de fraude na realização das provas prestadas no centro de exames de Setúbal, e devido a alegada violação de deveres funcionais por parte dos membros dos Júri Adjunto e Júri Auxiliar de Setúbal, anulou o concurso a partir da fase de admissão/exclusão, mandou nomear novo Juri e determinou a revogação do despacho de 19/06/2001 que homologou a lista de classificação final do concurso e determinou a instauração de processos de averiguações ao comportamento de funcionários.

5- Em 16/01/2002 o Director Geral dos Impostos determinou a repetição das provas do concurso para os dias 14 e 15 pretéritos nos distritos do Porto, Viseu, Leiria e Lisboa(fls. 57/58).

6- Em 01/02/2002 o requerido concordou com a proposta de fazer executar o acto suspendendo com o fundamento de que a sua suspensão causaria grave dano ao interesse público(fls. 70 a 76).
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IV- O Direito

A) da ineficácia de acto de execução

Foi pelo requerente, a fls. 57, pedida a intervenção do tribunal para declarar ineficaz o despacho de 16/01/2002 referido em III-5.
Contudo, o SEAF, ora requerido, acolhendo proposta nesse sentido, acabou por proferir resolução fundamentada de reconhecimento de grave urgência para o interesse público na imediata execução. E, assim, um dos efeitos daquele despacho foi o de marcar novas provas para os já idos dias 14 e 15 do mês em curso.
Ora bem. O acto reporta-se a uma execução já consumada. Por outro lado, ela fundou-se numa decisão formalmente bem estruturada, sancionada pelo art. 80º, nº1, “in fine” da LPTA. Por fim, os fundamentos invocados para a imediata execução mostram-se sérios e relevantes nos pontos seguintes da proposta nº 0008/02(fls. 71 e sgs):
Ponto 8: regular funcionamento dos serviços, a dignidade e o prestígio da DGI, bem como a honestidade, probidade e transparência da actividade administrativa;
Ponto 9: reflexos negativos na estabilidade e motivação dos funcionários com as inerentes quebras na qualidade de atendimento dos contribuintes e na arrecadação das receitas;
Ponto 10: Graves problemas na gestão de pessoal( (a)- não libertação de vagas para a nomeação no quadro dos técnicos de administração tributária-adjuntos estagiários, já aprovados em dois estágios realizados; b)- impossibilidade de nomeação de titulares para os cargos vagos de chefes de finanças de 2ª classe e de adjuntos de chefes de finanças de 1ª e 2ª classes, mantendo-se o exercício dessas funções em regime de substituição com os reflexos negativos inerentes).

Porque concordamos com os fundamentos invocados e, mais ainda, pelo facto de imediatamente passarmos à análise do pedido de suspensão de eficácia, em que o requisito da al.b), do nº1, do art. 76º da LPTA será analisado contra a pretensão do sindicato requerente, indefere-se o requerido a fls. 57.
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B) da suspensão de eficácia

1- Será o acto em causa de conteúdo negativo, como o defendeu o requerido a fls. 70?

Não cremos.
Um acto de conteúdo negativo propriamente dito é aquele que deixa intocada a esfera jurídica do interessado, a ponto de com ele, ou por ele, nada ter sido criado, modificado retirado ou extinto relativamente a um status anterior. O indeferimento de uma pretensão constitutiva, por exemplo, cabe perfeitamente na figura: se alguém pede o licenciamento para iniciar a exploração de um bar, o indeferimento deixa o requerente tal como se encontrava antes. Sendo assim, trata-se de um acto administrativo que para o interessado é neutro, do ponto de vista dos efeitos imediatos e consequentes, uma vez que para si tudo permanece como dantes(sobre o acto negativo e sua implicação no quadro do meio provisório da suspensão de eficácia, v. CLAUDIO RAMOS MONTEIRO, in Suspensão de eficácia de actos administrativos de conteúdo negativo, pag. 125 e sgs).

A jurisprudência tem considerado que a eficácia de tais actos não é susceptível de ser suspensa, com a justificação de que não seria possível extrair de uma sentença favorável um efeito contrário ao que deles emanava(no exemplo fornecido, a suspensão nunca permitiria que o requerente pudesse dar início à exploração do negócio) porque isso poderia representar uma usurpação de poderes administrativos pelos tribunais, e na medida em que, portanto, dessa suspensão não adviria qualquer efeito útil para o interessado, nomeadamente o afastamento do espectro de uma situação de facto danosa com a caracterização qualitativa e quantitativa que do art. 76º, nº1, al.c), da LPTA estabelece.

No entanto, desde há algum tempo começam a ponderar-se situações em que o acto só aparentemente é negativo ou quando é acto negativo com efeitos positivos. Trata-se de uma categoria de actos em que há efectivamente uma utilidade na suspensão, na medida em que deles advêm efeitos secundários positivos. São actos de que resulta o indeferimento da manutenção de uma situação jurídica anterior: por exemplo, actos que denegam a renovação ou prorrogação de uma situação jurídica pré-existente e que, por isso, ferem legítimas expectativas de conservação dos efeitos jurídicos de um acto administrativo anterior. Nessas hipóteses, os actos alteram realmente a situação jurídica ou de facto do requerente(sobre o assunto, v.g. MARIA FERNANDA MAÇÃS, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº2, 13 e 16, JOSÉ CARLOS VIEIRA de ANDRADE, in A Justiça Administrativa, pag. 143; M. ESTEVES DE LIVEIRA e outros, in Código de Procedimento Administrativo, 2ª ed., pag. 716/717;Tb. o Ac. do STA de 30/10/97, Proc. Nº 42.790).

E diz-se ainda que se alguma utilidade puder advir da suspensão, a ponto de o requerente ir provisória ou condicionalmente obtendo algum ganho até ser decidida em definitivo a questão no recurso contencioso, a suspensão será de conceder, mesmo que o acto seja negativo(seria o caso de rejeição ou recusa de admissão a concursos e exames ou à frequência do estudante a algum curso).

Em todos os casos citados há, com efeito, um efeito positivo imediato para a esfera do interessado requerente em resultado da suspensão.
É também o que acontece com o caso dos autos. Com efeito, a aprovação dos representados nos respectivos concursos, a sua inclusão nas listas definitivas de classificação e a homologação destas coloca a Administração no dever ou na obrigação de os nomear, constituindo na esfera dos interessados o direito de serem nomeados(entre outros, os Acs. do STA de 12/10/93, in Ap. ao DR de 15/10/96, pag. 5112; 05/07/94, in Ap. ao DR, de 07/02/97, pag. 5344; 19/10/95, in AD nº 412/407 e BMJ nº 450/216; 05/07/96, in Ap. ao DR, 10/08/98, pag. 337).
Constituído o direito, há com certeza uma modificação favorável ou positiva na esfera jurídica de cada um dos titulares. De tal forma que o acto em apreço, cerceando-a e impedindo que o direito se concretize ou se materialize, representa uma inovação gravosa relativamente à posição adquirida.
Por isso, não se pode considerar “negativo” o “conteúdo do acto” em apreço no sentido tradicional que à noção anda associado.
Passemos, pois, à análise dos requisitos da suspensão.
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2- Como é sabido, a concessão da suspensão de eficácia dos actos administrativos depende da verificação dos seguintes requisitos:

a)- a execução tem que constituir causa de prejuízos de difícil reparação;
b)- a suspensão, se decretada, não pode implicar grave lesão do interesse público;
c)- do processo não hão-de resultar fortes indícios de ilegalidade na interposição do recurso contencioso.
Tal é o que emerge do artigo 76º da LPTA.

É, por outro lado, ponto assente que estes requisitos são de verificação cumulativa, necessariamente. Donde, bastará que um deles fique por demonstrar para que a providência já não possa ser decretada( entre outros, os Acs. do STA de 9/6/92, in AD nº 379/723; de 3/5/94, in AD nº 403/759; STA de 2/7/96, in Proc. Nº 40.501).
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3- Vejamos o requisito primeiro enunciado na al.a), do nº1, do art. 76º da LPTA.
Não duvidamos que os associados do Sindicato que se candidataram ao concurso tiveram que se preparar arduamente se queriam ter a esperança num resultado positivo nas provas a que tinham que se submeter.
Antes das provas, admitimos verosímil que, no esforço de aprendizagem das matérias, alguns tempos livres e fins de semana tenham sido sacrificados ao descanso e repouso dos concorrentes responsáveis. E que tudo isso tenha sido feito com algum “stress”, até igualmente concedemos.
Por outro lado, foram três horas de prova e vastas as matérias, porque tudo isso resulta dos autos e do anúncio do concurso. Provas que às vezes são realizadas em circunstâncias de pressão emocional, de nervosismo e estado psicológico nem sempre adequados a uma boa prestação. Tudo isso sabemos.
Tudo somado, cremos que não é uma experiência maravilhosa que sempre se repita com agrado. E até assentimos que esse ambiente do “antes”, do “durante” e do “após” o «exame»(neste último caso, traduzido numa angustiante espera dos resultados) sempre algum dano causa, quanto mais não seja, à esfera moral de cada um.
Simplesmente, não vemos que esse prejuízo possa ser afastado de qualquer processo de selecção. Quer dizer, ele não é melhor, nem pior do que aquele que se verifica sempre que alguém quer provar o seu mérito e valor em busca de uma modificação favorável na sua esfera pessoal académica, económica, social, profissional, etc., etc..
Todo teste de avaliação sempre implica essa contingência, essa “probation” individual com que o interessado se entrega sacrificadamente a uma causa em vista de um agradável resultado.
Se cada um destes interessados se apresentou livremente ao concurso, fê-lo sabendo que o resultado final positivo implicaria estudo e algum sacrifício. Sacrifício que, sendo próprio de um processo de concurso, dele é regra com que toda a gente conta. E assim, e não é algo que mereça protecção anormal, nem se apresenta com gravidade tal que imponha especial tutela do direito(cfr. art. 496º do Cod. Civil).

Claro que a repetição de provas obrigará a uma repetição de esforços, de estudo, de novo trará ansiedade. É certo. Mas o problema mantém-se: esse eventual dano moral é suportável e normal como num qualquer outro processo de avaliação.
Acresce, até, que a sua dimensão se antevê agora um pouco menor, visto que sendo provavelmente as mesmas matérias em apreciação( já estudadas, por conseguinte), a taxa de esforço para as aprender( a bem dizer, para as mostrar sabidas) se mostra aparentemente reduzida.

Julgamos, pois, que no caso em apreço não podemos dar por caracterizado o “prejuízo de difícil reparação” contido na norma.
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4- De resto, e como o sustenta o requerido, um exame de tipo nacional cujo resultado está viciado por fraude pelo menos num dos centros de exame, só pode ser aniquilado. Em causa está a imagem de seriedade, de isenção da entidade promotora do concurso e, afinal, de toda a Administração Pública.
Além do mais, o interesse público de uma Administração eficiente, com funcionários capazes, competentes e honestos, reclama que todo o concurso seja transparente, que não haja sequer a possibilidade de algum candidato vir a ser provido não obstante se admitir ter obtido classificação positiva à custa de meio ilícito, como teria sido o de conhecimento prévio das questões ou o de ter sido auxiliado durante as provas por colegas ou por membros de juri, conforme resulta dos fundamentos do acto.
O mesmo interesse público que demanda que a eficácia do acto que declara a anulação do concurso não possa ser suspensa, por inverificação do requisito negativo previsto na al,b), do nº1, do art. 76º citado.
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V- Decidindo

Por todo o exposto, acordam em indeferir o pedido de suspensão de eficácia do acto requerido.
Sem custas(cfr. art. 4º, nº3, do DL nº 84/99, de 19/03).

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2002