Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05979/02
Secção:Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/26/2003
Relator:Rogério Martins
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes do Tribunal Central Administrativo:

J....interpôs o presente RECURSO CONTENCIOSO do despacho de Sua Ex.cia o Secretário de Estado da Saúde, de 17.10.2001, pelo qual foi aplicada ao recorrente a pena de inactividade de um ano suspensa na sua execução pelo período de três anos.

Invocou para tanto que o acto impugnado padece de vícios de violação de lei, por desrespeito de normas e princípios legais.

A autoridade recorrida respondeu, defendendo a validade do acto impugnado.

Em alegações as partes mantiveram no essencial as suas posições iniciais.

O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Foram colhidos os vistos legais.
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Cumpre decidir.
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Factos com relevo:

. O recorrente é médico especialista em Pediatria, exercendo funções no Hospital de São Marcos, em Braga.

. No seguimento de participação disciplinar feita pelo Sr. Presidente do Conselho de Administração do Hospital de S. Marcos em 27.3.2000, foi instaurado um processo disciplinar ao recorrente pela Inspecção-Geral da Saúde.

. Terminado o inquérito procedeu-se à instrução do processo disciplinar.

. Sobre o relatório final apôs o Inspector-Geral, em 29.12.2000, seu despacho concordante, pelo qual foi aplicado ao Recorrente a pena de inactividade de um ano suspensa por três anos.

. Deste despacho foi interposto recurso Hierárquico para o Sr. Secretário de Estado da Saúde.

. Com a data de 27.9.2001 foi emitido o parecer n.º 339/2001 do qual se extrai o seguinte:

“ (…)
1. 0 Dr. José Barros de Brito, vem acusado de ter violado o dever geral de correcção previsto na alínea f) do n°. 4 e no n°. 10 do art°. 3°. do Decreto-Lei n°. 24/84 de 16/1, por ter prestado declarações a órgãos de comunicação social falada e escrita, contra o Conselho de Administração do Hospital de São Marcos, cujo teor é o seguinte:
- Dia 09/03/2000 - Rádio “Antena do Minho” : "O Dr. Carlos Valério e o Dr. Fernando Dias são racistas e xenófobos ".
Dia 10/03/2000 - Diário de Notícias:
"Fui obrigado a assinar o contrato sob ameaça de despedimento"
"No Hospital de São Marcos estão a reeditar-se as arbitrariedades perpretadas no Estado Novo Salazarista ".
"Não sei se os seguro no Brasil por muito tempo, porque eles já quiseram cá vir!".
- Dia 10/03/2000 - Diário do Minho:
"A Administração do Hospital de São Marcos é racista e xenófoba. "
"O Dr. Carlos Valério, Director do Hospital de São Marcos e o Dr. Fernando Dias são racistas e xenófobos, não têm respeito pelas leis portuguesas. "
"O Hospital de São Marcos é administrado por mentalidades que usam argumentos de teor hipernacionalista e xenófobo ".
"Com este contrato injusto e ilegal do Clínico Geral, por razão da minha nacionalidade foi-me reservado um estatuto de médico de 2. Classe".
Dia 20/03/2000 - Estação de Televisão Independente – TVI:
"O Director do Hospital e o Director Clínico são racistas e xonófobos ".
2. Vem também acusado de ter distribuído um documento da sua autoria nos corredores do Hospital de São Marcos, no dia 27/03/2000, com o título "Carta Aberta aos Médicos e todos os funcionários do Hospital de São Marcos", no qual afirma que a médica Senhora Dra. Cristiana Maria Gama Lima Macedo foi transferida "(..) ao arrepio das normas legais e regulamentares (.) "do Serviço de Anatomia Patológica, para o Serviço de Dermatologia tendo para o efeito beneficiado da circunstância de ter uma relação de parentesco com o Director deste último Serviço.
3. O que não corresponde à verdade como ficou provado, uma vez que o processo de transferência observou todas as formalidades e requisitos legais.
4. Conclui, pois, a acusação que os comportamentos descritos, atentatórios do bom nome, honra e consideração dos membros do Conselho de Administração do Hospital de São Marcos e do Director do Serviço de Dermatologia do mesmo Hospital, constituem infracção disciplinar nos termos da alínea a) do n°. 2 do art°. 26°., por violação do dever geral de correcção previsto na alínea f) do n°. 4 e no n°. 10 do art°. 3°., punível com a pena de demissão prevista no n°. 1 do art°. 26°. e alínea f) do n°. 1 do art°. 11°. todos do Decreto-Lei n°. 24/84 de 16/1.
5. Mais refere que contra o arguido milita a circunstância agravante especial prevista na alínea g) do n°. 1 do art. 310. do Decreto-Lei n°. 24/84 de 16/1, não se verificando em seu favor qualquer circunstância atenuante especial das previstas no art. 29.º daquele diploma.
6. 0 arguido apresentou a sua defesa em 18.08.2000, referindo os factos que motivaram o comportamento assumido.
7. Considera pois o arguido, existirem vícios no processo de regularização contratual ao abrigo dos Decretos-Lei n°. 81-A/96 de 21/6 e 195/97 de 31/7, os quais consubstanciam erro nos pressupostos de facto e violação de lei.
8. Pois entende o arguido que deveria ser admitido no quadro de pessoal médico do Hospital de São Marcos, como médico especialista de pediatria e não como clínico geral, categoria para que foi nomeado em 07/07/1999 na sequência de concurso a que se candidatou ao abrigo do Decreto-Lei n°. 195/97 de 31/7.
9. Conclui o arguido relativamente à matéria constante da acusação que nestas circunstâncias "Não houve (..) mais do que o uso democrático do direito à Crítica, emergente do Direito à Indignação, cuja repressão mais não é do que cercear a liberdade de expressão constitucionalmente reconhecida (..)', devendo por isso o processo ser arquivado sem quaisquer consequências para o próprio.
10. Atenta a defesa, o Senhor Instrutor do Processo Disciplinar, vem concluir e propor no Relatório Final o seguinte:
Está provada a conduta infractória de que o arguido foi acusado.
Propõe que seja aplicada ao arguido, Senhor Dr. José Barros de Brito, a pena de inactividade prevista na alínea d) do n°. 1 do art°. 11°. e no n°. 1 do art°. 25°., ambos do Estatuto Disciplinar, graduado em 1 ano, nos termos do n°. 5 do art°. 12°..
Contudo propõe também que a pena disciplinar de inactividade, seja suspensa por 3 anos, nos termos do disposto nos n°s. 1 e 2 do art°. 33°. do Decreto-Lei n°. 24/84 de 16/1 pelo "(..) facto de o arguido demonstrar no louvável apego ao trabalho hospitalar, um inexcedível empenho no trabalho de equipa e ainda ter, ao longo dos últimos anos, assegurado sem desfalecimentos o serviço de urgência obstétrica (..) ", conforme consta do relatório final.
11. Submetido o processo disciplinar a despacho do Exm°. Senhor Inspector-Geral da Saúde, foi proferido despacho concordante com o Relatório em 29/12/2000, tendo assim sido aplicada ao arguido a pena de inactividade graduada em 1 ano, cuja execução ficou suspensa por 3 anos.
12. Não se conformando com o despacho que lhe aplicou a pena disciplinar referida, vem o arguido interpor o presente recurso requerendo a anulação do acto recorrido.
13. Para o efeito, mantém a posição sustentada na audiência de defesa, alegando que as frases que proferiu não foram insultuosas, nem ofenderam o bom nome, a honra e consideração dos membros do Conselho de Administração do Hospital de São Marcos.
14. Refere que a sua integração no quadro do Hospital não foi resolvida da forma adoptada para situações iguais existentes em instituições afectas ao S.N.S.
15. Acrescenta que em idêntica situação se encontra mais um médico brasileiro.
16. E ainda, que os médicos portugueses que estavam naquele Hospital em igualdade de circunstâncias foram integrados em carreiras de especialidades.
17. Mais afirma o arguido que a atitude assumida pelo Conselho de Administração "(..) pode perfeitamente ser definida (..)" como xenófoba e a reacção do recorrente "(..) só pode ser entendida como lógica, normal e dentro do direito à indignação"
18. Não obstante ter ficado provado que a Senhora Dr. Cristiana Lima Macedo foi sujeita a exames médicos que confirmaram alergias que a impossibilitaram de permanecer no Internato de Anatomia Patológica, afirmou o recorrente que a mesma situação se irá repetir no Internato de Dermatologia, acrescentando "(..) quem não tem nota para entrar naquela especialidade, consegue na secretaria o que não consegue no concurso ".
19. Por último, conclui o arguido que o comportamento por si adoptado ao proferir as frases objecto de análise "Foi no mais legítimo direito à indignação e à crítica (…), face ao irregular processo de integração nos quadros da Administração Pública que afectou a sua carreira profissional.
20. Requer assim, a anulação do acto recorrido.
21. Sobre o recurso, pronunciou-se a entidade recorrida no sentido de dever ser mantido o despacho recorrido, uma vez que as frases proferidas pelo arguido e que pelo próprio foram confessadas são desrespeitosas e injuriosas, "(...) atenta a carga negativa e depreciativa que emerge (...)" dos termos usados, reconhecidos publicamente como desprestigiantes.
22. Na verdade, pelas razões aduzidas no Relatório do processo disciplinar e na pronúncia da entidade recorrida que se acolhem integralmente, parece que o acto recorrido deverá manter-se inalterável.
23. Provada está a matéria de facto que consta do processo disciplinar - afirmações faladas e escritas pelo arguido a órgãos de comunicação social e outros divulgados por escrito no serviço contendo juízos pejorativos e de natureza injuriosa, dirigidas ao Conselho de Administração e ao Director do Serviço de Dermatologia.
24. Com o comportamento adoptado o arguido violou o dever de correcção, nos termos do n°. 10 art°.3°. do Decreto-Lei n°. 24/84 de 16/1. Caso existam irregularidades no seu processo de integração no quadro de pessoal do Hospital de São Marcos que lesem os seus direitos e interesses pode o ora recorrente dispor dos mecanismos legais que estão ao seu alcance para repor a legalidade dos actos.
25. Caso existam irregularidades no seu processo de integração no quadro de pessoal do Hospital de São Marcos que lesem os seus direitos e interesses pode o ora recorrente dispor dos mecanismos legais que estão ao seu alcance para repor a legalidade dos actos.
26. Pois que a existência de irregularidades naquele processo não constitui causa adequada ao comportamento ilícito que o arguido adoptou e pelo qual é acusado.
27. Fundamenta o recorrente a licitude do seu comportamento por o mesmo integrar o pleno exercício do seu direito à liberdade de expressão previsto no art°. 37°. da Constituição da República Portuguesa.
28. Porém, improcede a alegação do recorrente.
29. Porquanto, também do Texto Constitucional, concretamente no n°. 3 da supra citada disposição legal, se conclui que há certos limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, cuja infracção pode conduzir à punição penal. . "Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, de tal modo importantes, que gozam de protecção penal.
Entre eles estarão designadamente os direitos dos cidadãos á sua integridade moral, ao bom nome e reputação; a injúria e a difamação (..) não podem reclamar-se da manifestação de liberdade de expressão ou de informação", inf. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa, Anotada.
31. Também previsto Constitucionalmente no art°. 26°. encontram-se outros direitos pessoais, entre eles o direito ao bom nome e reputação, que como referem aqueles autores, "(..) consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrém, bem como no direito de defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação. Neste sentido, este direito constitui um limite para outros direitos (..) "
Conclusão:
32. 0 facto censurado no processo disciplinar refere-se à exteriorização de guizos valorativos feita pelo arguido utilizando adjectivos depreciativos que publicamente ofenderam a honra, dignidade e consideração social dos seus superiores hierárquicos.
33. Deste modo, como ficou demonstrado foi desrespeitado o dever de correcção, o qual consiste nos termos do n°. 10 do art°. 3°. do Estatuto Disciplinar "(..) em tratar com respeito quer os utentes dos serviços públicos, quer os próprios colegas, quer ainda os superiores hierárquicos ".
34. Tendo assim sido enquadrada a infracção disciplinar cometida pelo arguido, a autoridade recorrida aplicou a pena de inactividade prevista na alínea d) do n°. 1 do art. 11°. e no n°. 1 do art°. 25°., graduada em 1 ano nos termos do n°. 5 do art°. 12°., ficando suspensa por 3 anos conforme o disposto nos n°s. 1 e 2 do art°. 33°., todos do Decreto-Lei n°. 24/84 de 16/1.
35. Não obstante o recorrente não identificar legalmente qualquer vício do acto recorrido.
Analisado o processo disciplinar, conclui-se não existirem quaisquer vícios que afectem a imputabilidade e qualificação das infracções que invalidem a decisão punitiva nos termos do Decreto-Lei n°. 24/84 de 16/1. 13
Termos em que se propõe que seja negado provimento ao recurso mantendo-se o acto recorrido.
(…)”

. Sobre este parecer o Senhor Secretário de Estado da Saúde exarou o despacho ora impugnado, de 17.10.2001:
Concordo. Nego Provimento ao recurso.”
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Enquadramento jurídico:

1. O vício de violação de lei por desrespeito ao disposto nos art.ºs 15º e 37º da Constituição da República Portuguesa: o direito à livre expressão e o direito à indignação.

Entende o recorrente que as expressões que lhe são imputadas e que não põe em causa ter proferido são a manifestação dos seus direitos de liberdade de expressão e à indignação, constitucionalmente garantidos, perante as injustiças de que se crê vítima e o favorecimento de terceiros que o prejudica.

Não tem no entanto razão, essencialmente pelos fundamentos invocados pela autoridade recorrida.

Com efeito a liberdade de expressão tem como limites os direitos de terceiros aos bons nome e reputação.

Ora dizer-se de superiores hierárquicos que são racistas e xenófobos, não têm respeito pelas leis e reeditam as arbitrariedades do Estado Novo não é uma mera análise objectiva das características dos visados.

Tais expressões traduzem, claramente, um juízo global sobre a personalidade dos visados, depreciativo, ofensivo. Não são a simples manifestação da liberdade de expressão ou do direito à indignação pois ultrapassam manifestamente a análise objectiva de factos ou comportamentos.

Por outro lado, os direitos à liberdade de expressão e à indignação – que se deve cingir a uma análise objectiva e não reconduzir-se a uma análise subjectiva depreciativa, podia – e devia – o recorrente tê-los realizado pelos meios próprios, designadamente, através dos meios judiciais postos ao seu dispor para atacar actos administrativos ilegais, como são, alegadamente, aqueles que imputa aos seus superiores hierárquicos.

Garantindo assim aos visados o respeito por direitos igualmente garantidos pela Constituição, o direito a exercer o contraditório e o direito ao bom nome.

Não se verifica, pois, este vício.

2. O vício de violação de lei - art.ºs 3º e 28º do Estatuto Disciplinar.

Defende a este propósito o recorrente que foi mal tipificado o seu quadro sancionatório, uma vez que não cometeu qualquer infracção; houve erro nos pressupostos ao não se atender à razão que levou o recorrente a concluir pelo favorecimento; finalmente, não houve qualquer atitude ofensiva na actuação do recorrente.

Vale aqui aquilo que ficou dito a propósito do vício anteriormente analisado.

Não estava vedado ao recorrente, pelo contrário, tem cobertura legal até de nível constitucional, defender os seus direitos pelos meios adequados, apontando em sede própria os factos e as normas legais violadas, para tutela dos seus legítimos interesses alegadamente violados.

Invocando, designadamente, com factos concretos, em que se tinha traduzido o invocado favorecimento que o prejudicou.

O que lhe estava vedado era insultar os seus superiores hierárquicos, como fez, com uma análise subjectiva e depreciativa das suas personalidades, atingindo os direitos destes ao bom nome e ao contraditório.

O enquadramento jurídico da conduta do ora recorrente como infracção disciplinar, mais concretamente como violação do dever de correcção – art.º 3º, n.º 10, do Estatuto Disciplinar - e a punição como tal, foi, portanto, correcta.

Quanto à escolha e medida da pena, insere-se no âmbito da actividade discricionária da Administração e só em casos excepcionais -como de desvio de poder ou erro grosseiro que não foram invocados nem se vislumbram – poderia ser atacada.

Impõe-se, face ao exposto, manter o acto recorrido, porque válido.
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Pelo exposto acordam em julgar o presente recurso improcedente, mantendo o acto recorrido.

Pagará a recorrente as custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 200 € (duzentos euros) e a procuradoria em ½.
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Lisboa, 26.6.2003