Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08729/12
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:07/05/2012
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:MEDICAMENTOS GENÉRICOS – COMPETÊNCIA MATERIAL – ARBITRAGEM - NULIDADE – FUNDAMENTAÇÃO .
Sumário:- Os tribunais administrativos são competentes para apreciar a impugnação de autorizações de introdução no mercado ou a fixação de preços de venda ao público de medicamentos genéricos, porque nesta situação a questão principal a decidir incide sobre a legalidade do acto administrativo, constituindo a invocação de direitos de propriedade industrial mero argumento tendente à demonstração da sua ilegalidade, não sendo por isso um litígio subsumível à previsão do art.º 2.º da Lei n.º 62/2012, de 12 de Dezembro.
- Só a absoluta falta de fundamentação fáctica e ou jurídica é geradora da nulidade prevista no art.º 668.º, n.º 1, al. b), do CPC; quando a fundamentação é deficiente, incongruente ou pouco convincente não há nulidade por falta de fundamentação, ma eventualmente erro de julgamento;
- O indeferimento liminar de um processo cautelar basta-se com a demonstração da manifesta ilegalidade da pretensão, à luz dos factos alegados pelo requerente, os quais não necessitam de estar acantonados num segmento próprio do despacho de indeferimento;
-Se a decisão que indefere liminarmente uma providência cautelar com fundamento na manifesta ilegalidade da pretensão já deduzida ou a deduzir no processo principal distribui os factos alegados pela requerente e que justificam a opção tomada por toda a estrutura expositiva do despacho, não há nulidade por falta de fundamentação mas eventualmente apenas um mero erro técnico-processual, sem quaisquer efeitos invalidantes da decisão.
- A falta de notificação de um requerimento da parte contrária só é causa de nulidade, nos termos do n.º 1 do art.º 201.º do CPC, se esse requerimento influir no exame ou decisão da causa.
-Se os argumentos contidos nesse requerimento nem sequer forem de ponderar, ocorre uma verdadeira desnecessidade da sua notificação à parte contrária, nos termos do n.º 3 do art.º 3.º do CPC.
-Deve ser rejeitada liminarmente uma providência cautelar de suspensão de eficácia de AIM de medicamento genérico, por manifesta ilegalidade da pretensão formulada (fumus malus iuris), nos termos do art.º 116.º, n.º 2, al. b), do CPTA, face à interpretação autêntica efectuada pela Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, do Estatuto do Medicamento, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto.
- Dada a sua natureza interpretativa, a Lei n.º 62/2011 não padece de qualquer inconstitucionalidade, não inovando na ordem jurídica, já que se limita a consagrar um dos sentidos possíveis de interpretação que, mesmo antes da sua entrada em vigor, se extraía do regime do EM.
-Por isso não está imbuída de qualquer outra retroactividade que não seja aquela determinada pela retroacção dos seus efeitos à data da entrada em vigor da lei interpretada.
Aditamento:
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Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório

a) - As partes e o objecto do recurso
A...A/S com sede em ..., Dinamarca, inconformada com a sentença do TAC de Lisboa que lhe indeferiu liminarmente a providência cautelar tendente à suspensão do acto administrativo que fixou os preços de venda ao público (PVP) dos medicamentos genéricos Escitalopram B...(5 mg), Escitalopram B...(10 mg), Escitalopram B...(15 mg) e Escitalopram B...(20 mg), que intentou contra o Ministério da Economia e do Emprego e contra a contra-interessada Laboratórios B...– Produtos Farmacêuticos, Lda., veio interpor recurso jurisdicional em cujas alegações concluiu como segue:
A. Uma vez que o presente recurso se reporta a uma decisão de não decretamento das medidas cautelares requeridas, deverá ter efeito suspensivo, nos termos do artigo 143.° n.° 1 do CPTA.
B. Tendo em consideração que as Oposições apresentadas pelo Requerido MEE (através da DGAE) e pela Contra-Interessada não foram notificadas à Recorrente, tendo tal omissão influenciado o exame ou a decisão da causa, nomeadamente, no que diz respeito à aplicação da Lei n. 62/2011, de acordo com o n.° 1 do art. 201.° do CPC, aplicável ex vi art. 1.° do CPTA, a decisão recorrida deve ser declarada nula e revogada.
C. A sentença recorrida é igualmente nula de acordo com o disposto no art. 659.°, alínea b) e d) do n.° 1 do art. 668.° do CPC, uma vez que é omissa no que respeita à matéria de facto dada como provada.
D. Atendendo a que o Tribunal a quo foi omisso quanto aos argumentos de inconstitucionalidade da Lei n.° 62/2011, suscitados pela Recorrente aquando do requerimento inicial, nos termos da alínea d), n.° 1, do art. 668.°, a sentença deve necessariamente ser considerada nula e, portanto, revogada.
E. Não obstante a nulidade da decisão recorrida no que concerne à omissão de indicação de factos dados como provados, crê a Recorrente que tanto os factos constantes dos artigos 20.° a 25.°, 31.°, 35.°, 40.°, 42.°, 49.°, 50.° a 55.°, bem como os factos enunciados nos artigos 26.° a 29.°, 32.° a 34.°, 36.°, 43.° a 48.°, 50.°, 88.° a 90.°, 93.° e 94.° deveriam ter sido considerados como provados.
F. Sendo declarada nula a sentença, o tribunal de recurso pode decidir o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito, nos termos do disposto no n.° 1 do art. 149.° do CPTA.
G. Caso não seja este o entendimento deste Tribunal ad quem, i.e., se este Alto Tribunal não considerar como provado que o Escitalopram era ao tempo do pedido da patente PT 90 845 (14 de Junho de 1989) e da prioridade invocada nessa patente (14 de Junho de 1988), e que será necessário produzir prova adicional, então deverá ordenar a produção de prova testemunhal (em conjugação com a documental já produzida) nesta sede, nos termos do disposto no artigo 149.° n° 2 do CPTA ou, caso não se entenda ser aplicável esta disposição, mediante a anulação oficiosa da decisão e baixa do processo à 1.a Instância, para ampliação da decisão quanto aos factos, e produção de prova testemunhal (em conjugação com a documental já produzida), nos termos do disposto no artigo 712.° n.° 4 do CPC, aplicável ex vi o disposto no artigo 140.° do CPTA.
H. A norma constante do artigo 8.° da Lei n.° 62/2011 não tem, qualquer conteúdo útil no contexto da acção principal, uma vez que esta não pressupõe que as aprovações de PVP dos autos sejam “contrárias” aos direitos de propriedade industrial da Requerente, ora Recorrente, baseando-se exclusivamente na circunstância de que as mesmas viabilizam juridicamente a prática de actividade que, ela sim, é contrária a tais direitos.
I. As disposições constantes do artigo 8.°, n.° 1, 2, 3 e 4 da Lei n.° 62/2011, são insusceptíveis de obstarem ao provimento do presente recurso e procedência da acção principal, ou seja, à declaração de invalidade ou invalidação dos actos a impugnar ou à declaração da sua ineficácia, até ao termo dos direitos de propriedade industrial da Recorrente e, consequentemente também não poderão obstar à procedência do presente recurso e processo cautelar.
J. Se se entendessem as normas do artigo 8.°, n.° 1, 2, 3 e 4 da Lei n.° 62/2011, como contendo uma proibição absoluta de que o MEE/DGAE tomasse conhecimento, no quadro de procedimento de aprovação de PVP, da existência de violação de uma Patente por parte do medicamento objecto desse procedimento, ou o obrigassem a deferir requerimento de aprovação de PVP para um tal medicamento, tais disposições seriam materialmente inconstitucionais por violação, nomeadamente, dos artigos 17.°, 18.°, 62.° n.° 1 e 266.° da Constituição da República Portuguesa.
K. Tendo, o Tribunal a quo entendido que as normas constantes do artigo 8.°, n.° 1, 2, 3 e 4 da Lei n.° 62/2011, contêm uma proibição absoluta de que o MEE/DGAE tome conhecimento, no quadro de procedimento de aprovação de PVP, da existência deviolação de patente por parte do medicamento objecto desse procedimento, ou os obriguem a deferir os respectivos requerimentos de aprovação de PVPS para um tal medicamento, tais disposições seriam materialmente inconstitucionais por violação, nomeadamente, dos artigos 17.0, 18.°, 62.° n.° 1 e 266.° da Constituição da República Portuguesa, devendo, consequentemente, o Tribunal ad quem recusar a sua aplicação com fundamento na sua inconstitucionalidade.
L. Se se entendesse que as referidas normas eram aplicáveis no caso vertente por via do artigo 9.0, n.° 1 da Lei n.° 62/2011, a interpretação e aplicação deste artigo introduziria uma restrição retroactiva – e, portanto, inconstitucional por violação do art. 18.°, n.° 3 da Constituição — de um direito fundamental.
M. Por último, em concreto, uma vez que o Tribunal a quo aplicou as referidas normas no caso vertente com base no artigo 9.°, n.° 1 da Lei n.° 62/2011, tal interpretação (e aplicação) é inconstitucional por introduzir uma restrição retroactiva de um direito fundamental, violando-se o art. 18.°, n.° 3 da Constituição, devendo, consequentemente, o Tribunal ad quem recusar a sua aplicação com fundamento na sua inconstitucionalidade.
N. O Tribunal a quo considerou que a requerida providência cautelar deveria ser declarada improcedente ao abrigo das alíneas b) e c) do artigo 120, n.° 2 do CPTA. No entanto, a providência cautelar foi requerida nos termos do disposto nas alíneas a) do art. 120, n.° 1 e, subsidiariamente, na alínea b) do referido artigo, visto tratar-se de uma providência cautelar conservatória, pelo que a referência à alínea c) não pode ser considerada.
O. Assim, se o Tribunal a quo tivesse correctamente identificado a questão legal em discussão, teria concluído que o requisito do fumus bonus iuris exigido no artigo 120.° n.° 1 a) do CPTA se verifica no presente caso, ao não fazê-lo incorreu em erro de julgamento.
P. Uma vez que o presente processo cautelar tem um pedido de natureza conservatória, deve considerar-se o requisito do fumus non malus iuris previsto no artigo 120.° n.° 1 b) do CPTA suficiente e que se encontra verificado no presente caso, facto que foi ignorado pelo Tribunal a quo, violando, pois a referida norma e incorrendo também em erro de julgamento.
Q. O presente processo cautelar poderia e deveria, pois, ter sido decretado, visto que se não demonstrou qualquer facto ou se alegou qualquer razão de direito que tornasse manifesta a falta de fundamento da acção principal ou que determinasse que a mesma não pudesse ser apreciada no seu mérito.
R. A questão jurídica que se coloca nos presentes autos é a de saber se um acto administrativo que concede uma autorização de comercialização de um medicamento (um PVP) que irá violar uma patente válida e em vigor — como se deve considerar provado — é inválido porque ilegal e, por isso, deve ser anulado pelo tribunal, se for concedido pelo MEE/DGAE.
S. O princípio da imparcialidade da Administração, na sua dimensão objectiva, significa que o MEE/DGAE deverá ponderar todas as circunstâncias relevantes para a decisão, nomeadamente a existência de direitos,de propriedade industrial.
T. Uma vez que o acto que concede um PVP de um medicamento é um acto administrativo cujo objecto é o de permitir a actividade de comercialização desse medicamento no território nacional, uma actividade que de outra maneira seria proibida, e, uma vez que resulta também um imposição sobre o titular do PVP de um dever de realizar precisamente essa actividade, é ilegal, na medida em que viola o princípio da legalidade, i.e., o chamado bloco de legalidade.
U. O princípio da legalidade contém um comando de obediência à Lei e ao Direito, ou seja, uma total conformidade não só com as leis e os princípios jurídicos que disciplinam especificamente uma certa conduta da Administração, mas também aqueles que constituem todo o ordenamento jurídico.
V. A ausência dessa conformidade constitui infracção ao ordenamento jurídico e tem como consequência a invalidade da actividade administrativa, ao não considerar esta questão, uma vez mais, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento.
W. Os PVPs suspendendos devem ser anulados ou declarados nulos ao abrigo dos artigos 135.° e 133.°, n.° 2 c) e d) do CPA, respectivamente, uma vez que levantam barreiras administrativas referentes à exploração pela Contra-interessada do processo protegido pelo CCP — que estende o período de protecção da Patente 90 845 — de que é titular, cuja consequência será permitir a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental (de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias — o direito de propriedade industrial da Recorrente —, o qual beneficia do regime constante do art. 17.° da Constituição) e, em consequência, violando os arts. 18.°, 62.° e 266.° da Constituição, sendo o seu único efeito útil a viabilização de uma prática criminosa por terceiros.
X. A decisão recorrida deveria ter considerado como verificado a existência do periculum in mora, uma vez que o não decretamento desta providência originará uma situação de facto consumado. Por outro lado, causará à Recorrente danos imateriais de reparação difícil ou mesmo impossível, porquanto a comercialização dos Genéricos Escitalopram irá implicar que a Recorrente fique, contra a sua vontade, privada do uso e fruição do exclusivo que constitui o conteúdo essencial do direito de propriedade industrial de que é titular, o qual não poderá ser reparado mesmo que, na sequência de uma decisão condenatória, lhe viesse a ser atribuída uma compensação de natureza financeira, visto que tal entendimento viola o princípio da acessoriedade da indemnização em relação à constituição natural previsto no artigo 566.° do Código Civil. Pelo que, incorreu, assim, a sentença em erro de julgamento.
Y. Há um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado que tornará inútil a acção principal, apenas evitável com o deferimento do presente processo cautelar.
Z. Sem prejuízo de algumas situações específicas, previstas na lei, e nos termos e condições nela previstas, o interesse público não deve suplantar os direitos de propriedade industrial, anulando-os ou limitando o seu âmbito de protecção, mesmo que se trate de uma situação considerada pelas partes como de grande importância para a saúde pública lançar no mercado medicamentos genéricos contendo Escitalopram, violando tais actos de PVP os direitos de propriedade intelectual da Recorrente, não podendo tal direito ser restringido nos termos em que o MEE/DGAE sustenta e posteriormente defendidos pela decisão recorrida.
AA. A ponderação de prejuízos constante no n.° 2 do artigo 120.° do CPTA é favorável à concessão da providência à Recorrente, uma vez que o MEE/DGAE e a Contra-interessada não alegaram quaisquer danos específicos que para os mesmos decorressem do deferimento do processo cautelar e, mesmo que tais danos tivessem sido alegados e se verificassem, nunca seriam superiores aos da Recorrente, considerando que o que está em causa é a violação de um direito fundamental de natureza análoga.


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O recorrido contra-alegou, pugnando em síntese pela manutenção da sentença.
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A EMMP suscitou, no seu parecer, a questão da incompetência do tribunal, por ser competente o tribunal arbitral, à luz da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.
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Sem vistos vem o processo à conferência.

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b) - Questões a decidir
¾ Apurar se existe infracção das regras de competência absoluta em razão da matéria;
¾ Saber se a decisão recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação e omissão de pronúncia;
¾ Apurar se a falta de notificação de um requerimento de uma das partes à parte contrária é causa de nulidade;
¾ Verificar se existe manifesta ilegalidade da pretensão deduzida ou a deduzir no processo principal, que conduza à rejeição da providência cautelar.

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2 – Fundamentação

a) - De facto

Com interesse para a decisão consigna-se a seguinte factualidade:
a) A Requerente é uma sociedade dinamarquesa que se dedica, designadamente, à investigação farmacêutica;
b) A Requerente é titular da patente PT 90 845, requerida em 14 de Junho de 1989, invocando a patente GB 8814057, de 14 de Junho de 1988;
c) A PT 90 845 foi concedida em 12 de Maio de 1994 pelo INPI;
d) Consta da Certidão, doc. n.° 1 do PI, que a patente n° 90 845 é válida até 14 de Junho de 2009;
e) A invenção correspondente à PT 90 845 é protegida pelo Certificado Complementar de Protecção n° 152, concedido pelo INPI em 15 de Setembro de 2003, válido até 15 de Junho de 2014;
f) Por despacho de 22-12-2011 do Director-Geral da DGAE foi autorizado o PVP dos medicamentos genéricos Escitalopram B...(5 mg), Escitalopram B...(10 mg), Escitalopram B...(15 mg) e Escitalopram B...(20 mg).


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b) - De Direito

b.1) – Apreciando a questão da incompetência do tribunal:

A Exm.ª Magistrada do Ministério Público junto deste TCA Sul veio, no seu douto parecer, invocar a incompetência absoluta em razão da matéria deste tribunal. Baseia-se no art.º 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, cuja redacção, sob a epígrafe arbitragem necessária dispõe: “Os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência, na acepção da alínea ii) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto –Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de protecção, ficam sujeitos a arbitragem necessária, institucionalizada ou não institucionalizada.

Por sua vez a al. ii) do n.º 1 do art.º 3.º do Decreto –Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto tem esta redacção: «Medicamento de referência», medicamento que foi autorizado com base em documentação completa, incluindo resultados de ensaios farmacêuticos, pré-clínicos e clínicos.

A redacção da norma em causa (art.º 2.º) não é isenta de ambiguidade, não sendo clara a intenção do legislador quando se refere a litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial (DIP): serão todos os litígios em que seja invocado um direito dessa natureza, independentemente da posição das partes na relação jurídica substantiva de direito privado, ou são apenas aqueles litígios em que o DIP é invocado contra quem alegadamente o viola, isto é, quando o cerne da questão se situa unicamente numa relação de natureza privatística?

Para melhor se perceber a intenção do legislador, vejamos o que nos diz a este respeito a Proposta de Lei n.º 13/XII, que deu origem ao diploma.

Na respectiva Exposição de Motivos é referido que “tem vindo, assim, a assistir-se a um vasto conjunto de litígios judiciais a respeito da concessão da autorização de introdução no mercado, da autorização do preço de venda ao público e da autorização da comparticipação do Estado no preço dos medicamentos relacionados com a subsistência de direitos de propriedade industrial a favor de outrem.

No entanto, a questão de saber se existe, ou não, violação de direitos de propriedade industrial depende de sentença a proferir pelos tribunais.

Através da presente proposta de lei o Governo pretende estabelecer um mecanismo alternativo de composição dos litígios que, num curto espaço de tempo, profira uma decisão de mérito quanto à existência, ou não, de violação dos direitos de propriedade industrial. Institui-se, por isso, o recurso à arbitragem necessária para essa composição, solução já adoptada, inclusive no âmbito dos conflitos atinentes aos direitos de autor.

Ainda com o objectivo de promover a celeridade, estabelecem-se prazos para a instauração do processo e para a oposição, contados da publicitação pelo INFARMED, I. P., do pedido de autorização de introdução no mercado. Verificando-se o incumprimento do prazo de oposição, o requerente de autorização de introdução no mercado do medicamento genérico não poderá iniciar a sua exploração industrial ou comercial na vigência dos direitos de propriedade industrial.

Adopta-se, ainda, uma tramitação consentânea com a preocupação de celeridade, com garantia pelo devido contraditório das partes, bem como o direito a uma instância de recurso, fixando-se o efeito meramente devolutivo do mesmo, de modo a manter os efeitos da decisão arbitral até à decisão que sobre o mesmo recair.

Por outro lado, e tendo em conta que a jurisprudência nacional vem entendendo que os direitos de propriedade industrial podem ser afectados pela concessão das autorizações de introdução no mercado, do preço de venda ao público e da comparticipação do Estado no preço dos medicamentos, estabelece-se a compatibilização que se considera adequada desses direitos com outros de idêntica relevância, como é o caso do direito à saúde e ao acesso a medicamentos a custos comportáveis, bem como dos direitos dos consumidores. Assim, e indo também ao encontro das recomendações da Comissão Europeia, prevê-se expressamente que a concessão das referidas autorizações não depende da apreciação, pelas entidades administrativas competentes, da eventual existência de direitos de propriedade industrial.

Subsequentemente, estabelece-se, ainda, que os pedidos de autorização não possam ser indeferidos com esse fundamento e que as mesmas autorizações não podem ser alteradas, suspensas ou revogadas, pelas respectivas entidades emitentes, com base na subsistência desses direitos”.

Resulta evidente deste texto que o legislador da Lei n.º 62/2011 se preocupou com duas realidades: a questão dos direitos de propriedade industrial tout court, em relação aos quais remeteu para a arbitragem necessária, e as questões relativas às autorizações de introdução no mercado (AIM) e fixação de preços de venda ao público (PVP), em que as questões relacionadas com DIP deixaram de ter lugar.
Quer isto dizer que, como flui claramente do diploma em apreço – independentemente das questões que a respeito deste são suscitadas em matéria de constitucionalidade – não sendo dever das autoridades administrativas apreciar questões de DIP, então a referência a litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial só abrange os litígios que se instalam entre quem invoca um DIP a seu favor e quem alegadamente o põe em causa, ou seja, refere-se à relação substantiva de direito privado entre dois entes de natureza privada e não àqueloutra relação de natureza administrativa que intercede entre quem solicita uma AIM, por um lado, e o INFARMED, por outro, e na qual um terceiro, alegadamente titular de um direito de patente supostamente afrontado, pretende interferir.
Consequentemente a invocação da violação de um DIP a pretexto de se obter a declaração de ilegalidade de um acto de AIM ou de fixação de PVP não encaixa no conceito restrito de litígio a que se reporta o art.º 2.º da Lei n.º 62/2011.
Isto é, a invocação de violação de uma patente de um medicamento de referência no âmbito de uma acção administrativa especial ou do respectivo processo cautelar não traduz um litígio em torno de um DIP mas apenas um argumento (dos vários que abstractamente é possível alinhar) tendente a demonstrar a ilegalidade do acto ou a justeza da suspensão da sua eficácia.
Não é, por conseguinte, uma questão que esteja ou possa ser subtraída à jurisdição administrativa, sem embargo da improcedência que a mesma venha a sofrer por força do regime instituído pela lei citada.
Termos em que improcede a questão da incompetência material suscitada pelo MP.

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b.2) - A recorrente imputa à decisão recorrida várias nulidades, quer por omissão de pronúncia, quer por falta de fundamentação. Argui ainda uma outra nulidade, por não ter sido exercitado o contraditório relativo às contestações da entidade recorrida e contra-interessada.
Para melhor decidir estas questões julga-se útil transcrever a decisão recorrida na parte que interessa:
Os presentes autos deram entrada em tribunal a 30.12.2011 (cfr. fls. 21 e carimbo aposto a fls. 3), ou seja, após a entrada a vigor da Lei n.° 62/2011, de 12 de Dezembro2, que, a par da criação de um regime de composição de litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, veio proceder à quinta alteração do Estatuto do Medicamento, aprovado pelo Decreto-Lei n° 176/2006, de 30 de Agosto (doravante EM) e à segunda alteração ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.° 48-A/2010, de 13 de Maio.
Dessas alterações ao EM, resultou, em suma, o seguinte:
O artigo 23.9-A do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, aditado pela Lei n.° 62/2011, de 12 de Dezembro, prevê que:
"1- A concessão pelo INFARMED, IP, de uma autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano, bem como o procedimento administrativo que àquele conduz, têm exclusivamente por objecto a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento.
2 — O procedimento administrativo referido no número anterior não tem por objecto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial".
Por sua vez, o artigo 4.º da Lei n.2 62/2011, supra identificada, alterou a redacção do n.º 2 do artigo 25.º do EM que passou a prever que:
"O pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 18.º.".
Mas, para o caso que aqui nos ocupa, face aos pedidos formulados pela Rte. e que estarão em causa no processo principal identificado, sintomática de toda a ambiência que antecedeu a publicação da nova Lei 62/2011, é a redacção introduzida ao n.º 2 do artigo79.º do EM, passando este a dispor que:
"A autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento genérico não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial."
Por seu turno, quanto à fixação de PVP, o mesmo se estabelece no número 4 do artigo 8.º, da citada Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, com a epígrafe: "Autorização de preços do medicamento", que:
"1- A decisão de autorização do PVP do medicamento, bem como o procedimento que àquela conduz, não têm por objecto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial.
2 - A autorização do PVP dos medicamentos não é contrária aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de protecção de medicamentos.
3 - O pedido que visa a obtenção da autorização prevista nos números anteriores não pode ser indeferido com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial.
4 - A autorização do PVP do medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial.".
At last but not least, o n.º 1 do artigo 9.º da Lei 62/2011, atribui natureza interpretativa às alterações supra evidenciadas, esclarecendo que:
"A redacção dada pela presente lei aos artigos 19.4, 25.4 e 179.º do Decreto -Lei n.° 176/2006, de 30 de Agosto, bem como o aditamento introduzido ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos e o disposto no artigo anterior, têm natureza interpretativa.".
Pelo que, integrando-se a norma interpretativa na lei interpretada — cfr. artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil - imperioso é concluir que as supra citadas e transcritas normas do EM e, bem assim, o artigo 8.4 da Lei 62/2011 no que concerne à aprovação de PVP, ao estabelecerem expressamente que tais actos, AIM e PVP, não podem ser alterados, suspensos ou revogados com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial determinam a improcedência dos presentes autos, face aos pedidos e fundamentos em causa.
Na verdade, identifica-se na citada Lei 62/2011 um claro intento de acabar com uma corrente jurisprudencial favorável à suspensão de eficácia destes actos, de que a signatária era, aliás, partidária, pelo que, sem prejuízo de a Rte. continuarem a defender os seus interesses e direitos noutras instâncias, designadamente, junto do Tribunal Constitucional, como se antevê do seu requerimento inicial de interposição da presente providência, impõe-se a este tribunal, no contexto legislativo supra descrito, formular um juízo de improcedência da presente pretensão cautelar, na medida em que os pedidos formulados não beneficiam do fumus boni iuris necessário ao seu decretamento (cfr. art. 120.º n.º 2, alíneas b) e c) do CPTA)”.
Vejamos então a arguida nulidade por falta de fundamentação (de facto e de direito):
A recorrente imputa ao despacho em causa a nulidade por falta de fundamentação no domínio da matéria de facto, por não ter sido consignado qualquer facto que suporte a decisão, e em matéria de direito, por ter sido omitida pronúncia sobre as questões de nulidade que suscitou.
O art.º 20.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, ao estabelecer que “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”, estabelece uma cláusula geral que impõe uma justiça efectiva e não meramente aparente, que salvaguarde através da tutela cautelar a defesa em tempo útil dos referidos direitos, mormente daqueles que se situam no quadrante dos direitos fundamentais.
Por outro lado, nos termos do art.º 2.º, n.º 2, do CPTA, “a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, isto é, a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”, como decorre também do art.º 2.º, n.º 2, do CPC.
Resulta do disposto no art.º 116.º, n.º 1, do CPTA que nos processos cautelares o juiz profere despacho liminar de admissão ou rejeição, sendo fundamentos desta, nos termos do n.º 2, al. d), a manifesta ilegalidade da pretensão formulada.
Numa interpretação a contrario emerge do art.º 120.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte, do mesmo diploma, que as providências cautelares não são adoptadas quando não seja evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, designadamente por estar em causa a impugnação de acto manifestamente legal.
A necessidade de composição provisória subjacente aos processos cautelares advém do prejuízo que a demora na decisão da acção principal e na composição definitiva causaria à parte cuja situação jurídica merece ser tutelada, evitando-se assim a lesão que sofreria por efeito da demora na definição categórica da situação jurídica.
Visando as providências cautelares antecipar o efeito útil da decisão a proferir no processo principal, mantendo o status quo enquanto esta não é proferida, saltam à vista duas das suas características: a provisoriedade e a instrumentalidade. Por isso, destinando-se apenas a evitar os “inconvenientes que ameaçam a efectividade da tutela jurisdicional das mais diversas posições jurídicas”(1), logo se vê que as exigências de prova são consideravelmente reduzidas se comparadas com as da acção principal, desde logo porque não se exige uma cabal exibição do direito mas apenas uma mera demonstração da sua aparência. Dai que seja entendimento comum que a prova no âmbito dos processo cautelares é meramente perfunctória.
Nesta visão das coisas, quando a situação de facto alegada, conjugada com o direito aplicável, mostra que independentemente da prova não se verificam de forma manifesta, inquestionável, os pressupostos legais necessários para a procedência da pretensão cautelar, isto é, quando é evidente a sua inviabilidade, inexoravelmente “destinada ao malogro, ao insucesso ou ao naufrágio”(2), impõe-se o indeferimento liminar.
Nessas situações não é necessário que o tribunal convoque a matéria de facto que entenda estar provada; basta que o raciocínio se faça segundo um juízo de probabilidade e plausibilidade, baseado na alegação fáctica do requerente e na sua subsumissão ao direito aplicável. Dito de outro modo: nesta situação, quando o Direito (rectius, o ordenamento jurídico) não concede a tutela pretendida, é irrelevante que os factos alegados pelo requerente estejam ou não provados, venham ou não a sê-lo. Neste caso o raciocínio decisório basta-se com a constatação da improcedência da pretensão face ao direito aplicável à situação de facto alegada no requerimento, supondo que esta exista.
Não é necessário, pois, que o direito esteja plenamente comprovado através de um suporte fáctico adequado, mas apenas que ressalte uma evidente inconcludência, mais profunda que um mero “fumus malus juris”, ou seja, que o direito se apresente patentemente inverosímil.
Que dizer, portanto, de um despacho como o aqui sindicado, que indefere liminarmente uma providência cautelar, se ele não contém nenhum segmento probatório?
Tem-se afirmado que “a lei não traça um conceito de nulidade de sentença, bastando-se com a enumeração taxativa de várias hipóteses de desconformidade com a ordem jurídica que, uma vez constatadas na elaboração da sentença, arrastam à sua nulidade”(3).
Esse elenco taxativo das causas de nulidade da sentença está consagrado nas alíneas a) a e) do nº 1 do art.º 668º do C.P.C..
A al. b) deste normativo fulmina de nulidade a sentença que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Trata-se de um afloramento do comando constitucional do art.º 205.º, n.º 1, da CRP, e que o art.º 158.º do CPC (também) acolhe, e que se aplica quer às sentenças, quer aos despachos.
No que concerne à sentença, o art.º 659.º, n.º 2, do CPC, impõe que o juiz discrimine “os factos que considera provados” e indique, interprete e aplique “as normas jurídicas correspondentes”.
Mas tem sido reiteradamente sustentado na doutrina e na jurisprudência que a sentença só será nula por esse motivo se carecer de total ou absoluta falta de fundamentação (fáctica e ou jurídica); não assim quando a esse nível a decisão seja deficiente, incompleta, pouco convincente.
A ausência de fundamentação corresponde, neste entendimento, à total impossibilidade de descortinar as razões que justificaram a opção decisória; ora, o que a lei visa com a exigência de fundamentação é que os destinatários das decisões judiciais percebam o raciocínio decisório, o caminho que o julgador trilhou, permitindo-lhes que possam manifestar a sua discordância fundamentada por via de reclamação ou recurso. Se a decisão contém, ainda que por remissão ou distribuídos ao longo do seu texto, elementos de facto e de direito que sejam suficientes para revelar o motivo pelo qual o julgador enveredou por uma via em detrimento de uma outra qualquer, não há falta de fundamentação, mas eventualmente um erro de julgamento que compromete o valor doutrinal e dispositivo da sentença e sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em via recursória.
Assim, se no caso em concreto a recorrente, conforme se colhe das suas alegações, não tem dúvidas que o sentido da decisão é o de que as providências cautelares que digam respeito a Autorizações de Introdução no Mercado de medicamentos são legalmente manifestamente inviáveis e por isso totalmente improcedentes, não pode falar-se de falta de fundamentação invalidante da decisão recorrida, mas eventualmente em mero erro de julgamento.
Por outro lado a Senhora Juíza a quo não deixou de sinteticamente reproduzir os argumentos esgrimidos pela recorrente na petição inicial, pelo que se percebe que gizou a sua decisão à luz do direito e factos alegados na perspectiva acima enunciada, concluindo que a ordem jurídica não concedia a tutela que a recorrente reclamava.
E daí que a discordância radical que a decisão enfrenta por banda da recorrente não signifique uma nulidade por falta de fundamentação, visto que tal vício só ocorreria se a Senhora Juiz a quo não tivesse providenciado uma justificação das razões que a levaram ao indeferimento liminar.
Ora, como se colhe da decisão recorrida transcrita, no que respeita à fundamentação de direito verifica-se que esta se encontra suficientemente desenvolvida, independentemente do acerto ou desacerto da mesma, e quanto à fundamentação de facto esta está disseminada ao longo do despacho, incluindo na reprodução das razões alinhadas pela recorrente, ou seja, a decisão está fundamentada de direito face à factualidade alegada pela recorrente.
E tendo em consideração que o dever de fundamentação dos despachos é o que consta do art.º 158.º, n.º 1, do CPC, aos quais não é (necessariamente) aplicável a estrutura típica das sentenças, prevista no art.º 659.º do CPC, concluiu-se que o despacho em causa se mostra suficientemente fundamentado e não sofre a esse nível de qualquer vício que o torne inválido.
Não se verifica, assim, a putativa nulidade prevista no art. 668.°, n.° 1, al. b), do CPC, acometida ao despacho recorrido.
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Uma segunda causa de nulidade seria a não notificação das contestações da entidade recorrida e da contra-interessada.
Mas também aqui há que encarar a questão com algum cuidado.
A primeira pergunta a fazer é se essas contestações poderiam influenciar ou influenciaram a decisão recorrida. E a resposta é negativa, bastando para tanto percorrer o respectivo texto. Sendo assim essa nulidade degrada-se para mera irregularidade, nos termos do art.º 201.º, n.º 1, do CPC, na medida em que a mesma não influiu no exame ou na decisão da causa. Além disso, como tais contestações eram irrelevantes para a decisão que foi tomada, ocorre aqui uma verdadeira desnecessidade de exercitar o contraditório, que o art.º 3.º, n.º 3, do CPC, permite.
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Quanto à questão da não pronúncia sobre as alegadas inconstitucionalidade da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, a questão já é diferente. Embora seja defensável argumentar que a Mm.ª Juíza a quo implicitamente rechaçou as inconstitucionalidades arguidas, numa perspectiva mais rigorista tem de reconhecer-se que a tal respeito a decisão recorrida nada disse. E, portanto, outro remédio não há que não seja considerar a decisão nula neste aspecto, com a consequência que isso envolve: do tribunal ad quem se substituir ao tribunal recorrido na solução a dar a essa questão (art.º 149.º, n.º 4, do CPTA).

Ora, a este respeito esta formação de juízes do TCA Sul já teve oportunidade de se pronunciar em sentido negativo quanto à existência de inconstitucionalidades na Lei n.º 62/2011. Fê-lo no ac. de 2012-04-19 (Proc. n.º 0830/12), com esta argumentação:

“A questão essencial que o presente recurso coloca resume-se a saber se por parte do INFARMED/DGAE há uma obrigatoriedade de averiguar a eventual existência de direitos de propriedade industrial (DPI), envolvendo um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre a Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, por esta comportar uma eficácia retroactiva e por limitar a protecção a um direito fundamental.

No período anterior à data da sua publicação a jurisprudência e a doutrina encontravam-se divididas quanto a natureza dos DPI relativos a patentes farmacêuticas: para uns esses direitos teriam natureza análoga aos direitos fundamentais e, por esse motivo, um tutela constitucional reforçada, enquanto para outros, ainda que se admitisse essa natureza análoga a mesma não impedia as limitações impostas por outros direitos fundamentais, com supremacia sobre os DPI.

Para os primeiros a tutela constitucional reforçada dos DPI obrigava a uma indagação prévia de constitucionalidade em todos os actos administrativos, quaisquer que fossem, que concreta ou potencialmente, directa ou indirectamente, pudessem colocar em crise os referidos direitos. No domínio dos processos de introdução de medicamentos no mercado, designadamente de genéricos, tal indagação pressupunha que as AIM e a fixação dos PVP só pudessem ser concedidas e atribuídos, respectivamente, depois da autoridade administrativa competente ter constatado a inexistência de qualquer ofensa a patente em vigor.

Para a segunda tese esta orientação não fazia sentido, desde logo porque a violação dos DPI não se verificava no momento da emissão das AIM ou da fixação dos PVP, mas sim no momento da comercialização do medicamento genérico, e porque o procedimento administrativo relativo à autorização de comercialização de um medicamento não se destina a averiguar a existência de eventuais DPI mas sim os aspectos da qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos, tanto mais que em relação a eventuais infracções a direitos de propriedade industrial a lei faculta adequados meios de protecção, o que impedia a impugnação no contencioso administrativo das AIM ou dos PVP com base, unicamente, na violação de DPI.

Claro está que estas teses em confronto tinham na sua génese diferentes interpretações do Estatuto do Medicamento (EM), designadamente quanto aos seus artigos 25.º e 179.º.

Ora, ao consagrar, no art. 9.º da Lei n.º 62/2011, sob a epígrafe Disposições Transitórias, a natureza interpretativa desta lei, o legislador vincou, apenas, a bondade da segunda corrente e da sua interpretação em torno dos citados preceitos do EM, esclarecendo que, por um lado, o procedimento de AIM de medicamentos tem por objecto, apenas, a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento, e, por outro lado, que nunca foram conferidas ao INFARMED quaisquer competências de averiguação ou fiscalização em matéria de propriedade industrial, que de resto são incompatíveis com as atribuições deste Instituto.

Portanto, a Lei n.º 62/2011 não tem a natureza retroactiva que a recorrente lhe empresta, ou seja, uma retroactividade quase absoluta. Como, nos termos do art. 13.º, n.º 1 do Código Civil (CC), “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada ou por actos de análoga natureza”, e como a Lei n.º 62/2011, não inova na disciplina jurídica relativa às AIM de medicamentos genéricos, segue-se que não está imbuída de qualquer outra retroactividade que não seja aquela determinada pela retroacção dos seus efeitos à data em vigor da lei interpretada, como justamente salientam Pires de Lima e Antunes Varela(4).

Argumenta a recorrente, porém, de que a consequência que decorre dessa interpretação – isto é, de que o INFARMED/DGAE não têm de apreciar os DPI relativos às patentes dos medicamentos de referência - é inconstitucional por limitar a protecção de um direito fundamental.

Este argumento é também de rejeitar, uma vez que a intangibilidade dos DPI é refutada por ampla corrente doutrinária e jurisprudencial, que considera que os direitos patrimoniais, incluindo o direito de patente, são limitados pela sua função social, pelo que não obstante serem absolutos, no sentido de que devem ser respeitados por todos (eficácia erga omnes), não têm natureza de direito fundamental equivalente aos “direitos, liberdades e garantias”, legitimando que lhes sejam feitas amputações nos termos do art.º 335.º, n.º 2, do CC, nomeadamente quando ocorram colisões com verdadeiros direitos fundamentais, tais como os direitos à saúde e ao acesso a medicamentos, ou mesmo no confronto com a própria sustentabilidade económico-financeira do Estado, que justifica a redução dos direitos particulares de natureza económica, do titular da patente, aos seus justos limites.

De qualquer modo, no momento da concessão das AIM e ou da fixação dos PVP não ocorre qualquer violação de DPI. Tal violação, a verificar-se se a patente do medicamento de referência se mantiver em vigor, ocorre apenas no momento da comercialização do medicamento genérico. Defender o contrário significa afastar a cláusula Bolar, cuja aplicação a Lei n.º 62/2011 expressamente afirmou mas que já anteriormente se entendia estar presente no EM, que permite a apresentação do pedido de AIM de medicamento genérico na vigência da patente, possibilitando a sua comercialização logo que a patente caduque.

Além disso as AIM e os PVP não constituem a última fronteira administrativa antes da entrada dos medicamentos genéricos no mercado, o que prova que uma eventual violação do DPI da patente do medicamento de referencia não pode ser situada no momento da prática destes actos. Por outro lado o princípio do esgotamento da patente e a possibilidade de importação paralela de medicamentos genéricos (art.os 80.º a 91.º do EM) demonstram que só no momento da efectiva comercialização do medicamento genérico é que se pode dar uma colisão com eventual direito de patente ainda em vigor, não emergindo por isso da AIM ou do PVP qualquer lesão irreversível no direito de exclusivo que a patente confere. Aliás, nestes casos a ordem jurídica não deixa de facultar ao titular da patente os necessários mecanismos de defesa desse direito.

Donde, ao INFARMED competir, apenas, sindicar os aspectos do medicamente que possam conflituar com a saúde pública, os quais se encontram legal e taxativamente fixados, não podem ser-lhe “atribuídas” competências para averiguação da colisão da AIM com a patente em vigor, impondo que abandone a posição de neutralidade administrativa que nesta matéria deve observar.

Resumindo, seja qual for o prisma pelo qual se encare estas questões, concluiu-se sempre que não existe qualquer inconstitucionalidade associada à Lei n.º 62/2011 ou qualquer obrigatoriedade de sindicar a existência de DPI em sede de concessão de AIM e ou atribuição de PVP a medicamentos genéricos. E assim, não estando o INFARMED/DGAE legalmente vinculados a tal averiguação e sendo o procedimento administrativo de introdução de genéricos no mercado apenas um meio de controlo da qualidade, segurança e eficácia desses medicamentos, logo se vê que um processo cautelar tendente ao decretamento de providência cautelar de suspensão de eficácia de AIM e/ou PVP, alicerçado unicamente na pretensa violação de DPI está fatalmente condenado a soçobrar.

Neste contexto, justifica-se a antecipação do único juízo que poderia ser formulado na decisão final do processo, de que a pretensão cautelar é manifestamente improcedente, infundada, inviável, por evidente falta de fumus boni iuris, ou se se quiser, patente existência de fumus malus iuris, o que redunda em manifesta ilegalidade da pretensão formulada [art.º 116.º, n.º 2, al. c), do CPTA], tanto mais que nesta perspectiva a averiguação de violações a DPI por parte do tribunal administrativo acabaria por significar a violação das regras atributivas de competência jurisdicional material nessa matéria aos juízos do comércio (cfr. art.º 101.º, n.º 5, da LOTJ).

Impõe-se, até, que esse juízo seja tomado logo no despacho liminar, evitando-se assim a prática ulterior de actos inúteis (art.º 137.º do CPC), como justamente assim fez o douto despacho recorrido”.

Não há qualquer razão para divergir deste entendimento, que em seu benefício pode agora invocar a doutrina de três Pareceres de outros tantos eminentes jurisconsultos, posteriores à Lei supra citada, pelo que se impõe concluir como se conclui no citado acórdão quanto à questão nuclear, isto é, que naufragam todas e cada uma das conclusões da recorrente.

Rematando, a decisão recorrida deve ser declarada nula pelo fundamento referido (omissão de pronúncia quanto às questões de inconstitucionalidade), e em substituição, nos termos do art.º 149.º, n.º 4, do CPTA, deve negar-se provimento ao recurso, rejeitando a providência cautelar intentada pela recorrente.


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3 - Dispositivo:

Em face de todo o exposto, acordam em conceder provimento parcial ao recurso e nessa medida:
1. Declarar nula a decisão recorrida;
2. Rejeitar a providência cautelar.

Custas pela recorrente.

D.n.

Lisboa, 2012-07-05

________________ (Benjamim Barbosa, Relator)

________________ (Sofia David)

________________ (Carlos Araújo)


1-J. P. REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra, Coimbra Ed.ª, 2007, p. 108.
2-ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil, Volume II, Coimbra, Coimbra Ed.ª, p. 378
3- FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., 2003, pp. 46-47
4-Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., págs. 286 e ss..