Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13029/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:05/18/2017
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:CESSAÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA DE EMPREGO PÚBLICO
PODER DISCIPLINAR
PENA DE DEMISSÃO
EXECUÇÃO DE JULGADO ANULATÓRIO
ARTIGO 173º, DO CPTA
Sumário:I – No âmbito de vigência do Estatuto Disciplinar de 2008 a cessação da relação jurídica de emprego público por aposentação do trabalhador não impedia a punição disciplinar e, em consequência, a competência disciplinar (abrangendo o poder de instaurar procedimento disciplinar e de aplicar sanções) mantinha-se mesmo nas situações de extinção do vínculo relativamente a infracções cometidas pelo trabalhador enquanto em exercício de funções.

II – De acordo com a LTFP, o poder disciplinar por parte do empregador público mantém-se enquanto vigorar o vínculo de emprego público, ou seja, com a cessação de tal vínculo a entidade empregadora já não pode perseguir nem punir as infracções cometidas por um trabalhador na pendência desse vínculo.

III – Um acto de execução de uma decisão anulatória é tão só e apenas o acto cuja prática o interessado pode exigir à Administração em processo de execução, pelo que o acto que, na sequência da referida sentença anulatória, faz prosseguir o processo disciplinar e impõe uma nova sanção disciplinar, não é um acto de execução dessa sentença, mas um acto novo, produzindo efeitos a partir da data em que foi proferido, nos termos do art.º 127 do CPA de 1991.

IV - Mesmo que se entenda de forma diferente da descrita em III, a verdade é que a nova deliberação punitiva não podia ter efeitos retroactivos, pois do disposto no art. 128º n.º 1, al. b), do CPA de 1991, conjugado com o art. 173º n.º 2, do CPTA, resulta que os actos renováveis não podem ter eficácia retroactiva se envolverem a imposição de deveres, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos.

V - A execução das sentenças anulatórias dos tribunais administrativos não envolve, apenas, o poder da Administração proferir novo acto no respeito pelos limites decorrentes do caso julgado, pois também lhe impõe a obrigação de reconstituir a situação actual hipotética (art. 173º n.º 1, do CPTA), o que significa que a Administração fica constituída no dever de executar a decisão anulatória, praticando os actos e operações necessárias à reintegração da ordem jurídica violada.

VI - A discriminação de tais actos e operações no âmbito da anulação de actos de demissão por motivos disciplinares foi objecto de concretização pelo legislador no art. 64º, do Estatuto Disciplinar de 2008 [e actualmente no art. 300º, do LTFP], actos e operações que já era possível de deduzir do dever de reconstituição consagrado no art. 173º, do CPTA, embora com esforço interpretativo.

VII – A reconstrução da situação actual hipotética, de acordo com o julgado anulatório do acto que aplicou a pena de demissão, engloba o pagamento das remunerações deixadas de auferir pelo funcionário desde a data de produção de efeitos do acto de aplicação da pena de demissão até à sua aposentação – pois o executado nada alegou, e, portanto, também nada comprovou, de que aquele recebeu importâncias com a cessação da relação jurídica de emprego público que não obteria se não fosse a pena aplicada -, incluindo os subsídios de férias e de Natal, mas não o subsídio de refeição, às quais acrescem juros de mora, contados desde a data em que cada remuneração devesse ter sido paga.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:*
I - RELATÓRIO
STAL – Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local – em representação do seu associado Guilherme ………. - requereu no Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra, nos termos dos arts. 173º e ss., do CPTA, a execução da sentença proferida a 9 de Outubro de 2006 (confirmada pelo Ac. do TCA Sul de 15.3.2012), contra o Município da Amadora, peticionando a condenação do executado no cumprimento integral dessa sentença – designadamente a anular a deliberação da Câmara Municipal da Amadora de 2 de Dezembro de 2004 -, bem como no pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso que, para além do prazo estabelecido, se possa vir a verificar na execução de sentença.

Por acórdão de 15 de Setembro de 2015 do referido tribunal foi a presente execução julgada improcedente e, em consequência, absolvida a entidade executada do pedido.

Inconformado, o exequente interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul desse acórdão, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:
«A - Não se conforma o ora Agravante com o Acórdão recorrido que julgou a presente execução improcedente e em consequência absolveu a Entidade Executada do pedido;
B - Com o devido respeito, a douta decisão recorrida interpretou incorrectamente o direito aplicável ao caso sub judice, razão pela qual o ora Agravante não pode concordar com a posição ali defendida;
C - Efectivamente, o ora Recorrido foi, nos presentes autos, condenado a anular a deliberação da Câmara Municipal da Amadora, datada de 2 de Dezembro de 2004, que aplicou ao associado do A. a pena disciplinar de Demissão;
D - O associado do ora Recorrente encontra-se actualmente e desde o ano de 2010 na situação de Aposentado pela CGA;
E - A Recorrida, por entender estar em causa uma invalidade decretada por vício de forma, pretende executar a sentença em causa, na simples renovação do acto anulado, isto é na prática de um novo acto;
F - Depois de, numa primeira fase, apresentar o argumento de que por estarmos perante uma invalidade decretada por vício de forma, nada haveria a realizar em sede de execução de sentença, a Recorrida, posteriormente, procedeu à execução da decisão proferida judicialmente através da alegada repetição do processo disciplinar a partir da fase de acusação, de forma a saná-lo do vício de que padecia;
G - Terminando pela deliberação, em reunião de Câmara de 15.01.2014, no sentido de aplicar agora e novamente a pena de demissão ao Recorrente por facto imputável ao trabalhador;
H - A douta decisão, de que agora se apresenta Recurso, entendeu que, tendo a Recorrida praticado novo acto expurgado do vício de falta de audiência prévia, reconstituindo, alegadamente, a situação que existiria se o acto nulo não tivesse sido praticado e aplicando-lhe agora a pena de demissão por facto imputável ao trabalhador, estará executado o julgado anulatório;
I - Salvo o devido respeito, não se conforma o Recorrente com este entendimento, porquanto, o Recorrente encontra-se aposentado pela CGA desde 2010, ou seja há quatro anos e o cumprimento da decisão judicial proferida nos presentes autos que, recorde-se, a Recorrida evita desde Março de 2012, data do respectivo trânsito em julgado, não poderá consistir em nova demissão do Recorrente, num momento em que se encontra já desvinculado do serviço, por aposentação, há quatro anos;
J - Veja-se a este propósito e a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte n.º 00417-A/2002-Coimbra, de 30.11.2012, que com a adaptação necessária acompanha o entendimento do ora Recorrente;
L - A decisão proferida, em Outubro de 2006, no sentido de anular a decisão proferida pela Recorrida em Dezembro de 2004, que aplicou ao Recorrente a pena disciplinar de demissão é, pelos motivos acima explanados, legalmente impossível de executar;
M - Devendo a Recorrida, porquanto não existir no caso sub judice outra possibilidade, executar a sentença proferida em 09.10.2006, nos termos do previsto nos artigos 165º e 166º do CPTA e não nos termos realizados pela Recorrida e confirmados pela douta decisão agora recorrida;
N - Sem prejuízo do acima exposto, é de notar, que a sentença ora recorrida, proferida no seguimento da decisão do Tribunal Central Administrativo Sul (processo n.º 11941/15 2º Juízo - 1ª Secção), que, recorde-se, decidiu anular a decisão então recorrida e ordenar a baixa ao TAF de Sintra para nova decisão em que se proceda ao julgamento da matéria de facto nos termos aí enunciados, é, na integra, idêntica à anteriormente proferida, olvidando-se, totalmente, o que foi decidido pelo TCA Sul.
Termos em que e nos demais de direito, vem o Agravante requerer a Vossas Excelências que seja concedido provimento ao presente recurso com as legais consequências, nomeadamente ser o Réu condenado a dar integral execução à referida sentença de 09/10/2006, nos termos legalmente previstos e possíveis».

O recorrido, notificado, apresentou contra-alegação de recurso na qual pugnou pela improcedência do presente recurso jurisdicional.

A DMMP junto deste TCA Sul emitiu parecer no qual sustentou que o recurso não merece provimento, posicionamento esse que, objecto de contraditório, não mereceu qualquer resposta.

Pela Juíza relatora foi proferido o seguinte despacho:
A deliberação de 15.1.2014 violará o art. 127º n.º 1, do CPA de 1991, ou, assim não se entendendo, o estatuído no art. 128º n.º 1, al b), do CPA de 1991, conjugado com o art. 173º n.º 2, do CPTA, no segmento em que atribui efeitos retroactivos (a 2.12.2004) à pena de despedimento aplicada, o que implicará o pagamento ao associado do recorrente da remuneração que deixou de auferir desde a data de produção de efeitos da deliberação de aplicação da pena de demissão de 2.12.2004 até à sua aposentação.
Nestes termos, notifique as partes para, querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 (dez) dias, sobre o ora suscitado.”.

Na sequência do cumprimento deste despacho, apenas o recorrente emitiu pronúncia.
II – FUNDAMENTAÇÃO
No acórdão recorrido foram dados como assentes os seguintes factos:
“1. Por Acórdão proferido em 09 de Outubro de 2006, o Colectivo de Juízes deste Tribunal acordou em: a) anular a deliberação da Câmara Municipal da Amadora datada de 2 de Dezembro de 2004, que aplicou a Guilherme ………… a sanção disciplinar de demissão; b) absolver o Município da Amadora do pedido de condenação a deliberar no sentido de ser aplicada a sanção de aposentação compulsiva a Guilherme ……….. – fls. 111 do processo principal apenso
2. Por Acórdão do TCA Sul de 15 de Março 2012, foi confirmada a decisão recorrida, mas com diferente fundamentação – fls. 177 do processo principal apenso.
3. A diferente fundamentação consistiu na “anulação da citada deliberação punitiva por violação do princípio da falta de audiência prévia do arguido, em processo disciplinar, e não por qualquer violação do princípio da proporcionalidade, que não ocorre” – idem.
4. A Executada veio juntar “Termo de não entrega da Acusação” e “Termo de Entrega da Acusação”, “Relatório Sumário de ocorrência” e “Relatório Final” e “Deliberação tomada em reunião de Câmara de 15 de Janeiro de 2014”, que aprovou o Relatório final e aplicou ao exequente a pena de despedimento por facto imputável ao trabalhador – fls. 42 a 59.
5. O exequente encontra-se actualmente e desde o ano de 2010 na situação de aposentado pela Caixa Geral de Aposentações – facto admitido.”.

Nos termos do art. 662º n.º 1, do CPC de 2013, ex vi art. 140º, do CPTA (na redacção anterior à dada pelo DL 214-G/2015, de 2/10, tal como as demais referências feitas ao CPTA neste acórdão), procede-se ao aditamento da seguinte factualidade:
6. A deliberação de 15.1.2014, descrita em 4., consistiu na aprovação da proposta n.º 11/2014, de 9.1.2014, com o seguinte teor:
Considerando que:
1 – Por deliberação camarária de 2 de dezembro de 2004 foi aplicada a Guilherme ……….. a pena disciplinar de demissão, por violação dos deveres de zelo, assiduidade e lealdade;
2 – Em 15 de março de 2012, o Tribunal Central Administrativo Sul anulou a sobredita deliberação camarária que aprovou a aplicação da pena de demissão, uma vez que considerou ter existido violação do princípio da audiência prévia do arguido;
3 – Em consequência, foi repetido todo o processo disciplinar a partir da acusação, de forma a expurgar o processo disciplinar do vício que o inquinava;
4 – Pela Instrutora do mencionado processo disciplinar, foi elaborado Relatório Final, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 54.º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, o qual conclui pela aplicação da pena de despedimento por facto imputável ao trabalhador;
5 – A Câmara Municipal é competente para aprovar a pena, ao abrigo do nº 4 do artigo 14º do Estatuto Disciplinar;
Propõe-se que a Câmara Municipal da Amadora delibere:
Aplicar a Guilherme ……., tendo em conta os factos constantes do Relatório Final e nos termos da Informação nº 44/2013 do Gabinete de Apoio Jurídico, a pena de despedimento por facto imputável ao trabalhador, ao abrigo do disposto no artigo 18º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas (Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro), com efeitos retroativos a 2 de dezembro de 2004, data da deliberação da Câmara Municipal da Amadora” (cfr. fls. 49, dos autos em suporte de papel).
*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

Quanto ao invocado na al. N), das conclusões da alegação de recurso, improcede o aí alegado, pois o acórdão (de 16.9.2014) que foi anulado pela decisão sumária de 12.6.2015 era constituído por um parágrafo, enquanto que o acórdão ora recorrido consta de cinco páginas.

A questão suscitada neste recurso jurisdicional resume-se, em suma, em determinar se o acórdão recorrido enferma de erro ao ter julgado improcedente a presente execução.

Defende o recorrente que, estando o seu associado desvinculado do serviço, por aposentação, desde 2010, a execução do acórdão anulatório - de 9.10.2006, no segmento em que anulou a deliberação da Câmara Municipal da Amadora, de 2.12.2004 (que aplicou ao associado do ora recorrente, Guilherme …………, a sanção disciplinar de demissão), por falta de audiência prévia, confirmado, nesta parte, pelo Ac. do TCA Sul de 15.3.2012 - não poderá consistir em nova demissão do seu associado, isto é, tal constitui uma impossibilidade, mas sem razão, como se passa a demonstrar.

Prescreve o art. 4º n.º 4, do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas (Estatuto Disciplinar de 2008), aprovado pela Lei 58/2008, de 9/9, o seguinte:
A cessação da relação jurídica de emprego público ou a alteração da situação jurídico-funcional não impedem a punição por infracções cometidas no exercício da função”.

E estabelece o art. 12º, do Estatuto Disciplinar de 2008, que:
Em caso de cessação da relação jurídica de emprego público, as penas previstas nas alíneas b) a d) do n.º 1 do artigo 9.º são executadas desde que os trabalhadores constituam nova relação jurídica de emprego público”.

Do art. 4º n.º 4 ora transcrito decorre que, no âmbito de vigência deste Estatuto Disciplinar, a cessação da relação jurídica de emprego público - sendo certo que, de acordo com o disposto nos arts. 248º, al. a), 251º, al. c), e 254º, todos do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP), aprovado pela Lei 59/2008, de 11/9, a caducidade é um factor extintivo do contrato de trabalho em funções públicas, podendo o mesmo caducar nomeadamente pela reforma ou aposentação do trabalhador por velhice, a qual ocorrerá quando o trabalhador atinja os pressupostos legais ou, ainda que tal não suceda, quando complete 70 anos de idade - não impedia a punição disciplinar e que, em consequência, a competência disciplinar (abrangendo o poder de instaurar procedimento disciplinar e de aplicar sanções) mantinha-se mesmo nas situações de extinção do vínculo relativamente a infracções cometidas pelo trabalhador enquanto em exercício de funções.

Em 1 de Agosto de 2014 entrou em vigor a Lei 35/2014, de 20/6, a qual aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP) - cfr. os arts. 1º, 2º e 44º n.º 1, da Lei 35/2014.

Dispõe o art. 76º, da LTFP, que:
O empregador público tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o vínculo de emprego público.”.

E estatui o art. 176º, da LTFP, o seguinte:
(…)
4 - A alteração da situação jurídico-funcional do trabalhador não impede a punição por infrações cometidas no exercício da função”.

Destes dois preceitos ora transcritos decorre que, de acordo com a LTFP, o poder disciplinar por parte do empregador público mantém-se enquanto vigorar o vínculo de emprego público, ou seja, com a cessação de tal vínculo a entidade empregadora - sendo certo que, de acordo com o disposto nos arts. 289º n.º 1, al. a), 291º, al. c), e 292º, todos da LTFP, a caducidade é um factor extintivo do contrato de trabalho em funções públicas, podendo o mesmo caducar nomeadamente pela reforma ou aposentação do trabalhador por velhice, a qual ocorrerá quando o trabalhador atinja os pressupostos legais ou, ainda que tal não suceda, quando complete 70 anos de idade - já não pode perseguir nem punir as infracções cometidas por um trabalhador na pendência desse vínculo, pois só a alteração (e não já a cessação) da situação jurídico-funcional do trabalhador é que não impede a punição por infracções cometidas no exercício de funções.

Esta conclusão é corroborada pelo facto da LTFP não reproduzir uma norma idêntica à que constava do art. 12º, do Estatuto Disciplinar de 2008.

Como a este propósito escreveu Eurico João da Silva, A lei geral de trabalho em funções públicas e o processo disciplinar, in Direito e Processo Administrativo, Centro de Estudos Judiciários, Novembro de 2016, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ Administrativo_fiscal/eb_Direito_Processo_Administrativo.pdf, págs. 294, 295 e 298:
7.5. O poder disciplinar, o vínculo de emprego público e o Artigo 76.º da LTFP
Neste âmbito, a LTFP, inovando, veio traçar uma fronteira para lá da qual o exercício do poder disciplinar deixa de ter lugar, limite que até aí inexistia.
O poder disciplinar tal qual se encontra configurado na LTFP encontra fundamento apenas e só
na própria relação jurídica de emprego público, enquanto esta perdurar e à luz dos interesses a cargo do respetivo empregador, ou seja, no quadro e limites da relação jurídica de emprego público.
A norma que conforta e sustenta tal entendimento é, ainda na mesma sequência, o artigo 76.º
da LTFP onde se dispõe:
«O empregador público tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o vínculo de emprego público.».
Este é, talvez, o mais importante sinal da aproximação da LTFP ao regime laboral comum instituído pelo Código do Trabalho, já que, conforme podemos verificar, a redação e sentido do artigo 76.º da LTFP correspondem ao que se dispõe no artigo 98.º do Código do Trabalho.
Quer isto dizer: a aplicação de sanções disciplinares só prevalece na medida e desde que subsista a relação jurídica de emprego público.
Cessando essa relação, o empregador público deixa de ter poder disciplinar sobre o trabalhador e, como tal, deixa de ter sobre ele poder sancionatório.
E assim, a primeira consequência a retirar do artigo 76.º da LTFP é a de que, logo que o vínculo
de emprego público se extinga, devem ser arquivados os procedimentos disciplinares que não se encontrarem concluídos.
A extinção desse vínculo pode concretizar-se pelas formas previstas nos artigos 288.º e seguintes da LTFP (...).
Perante a norma do artigo 76.º da LTFP, não custa imaginar que possa haver casos em que um
trabalhador, para se furtar ao poder disciplinar, possa por sua iniciativa, por exemplo, promover a extinção do vínculo de emprego público, por escrito e com aviso prévio.
Daí que, em termos de instrução de um procedimento disciplinar que se encontre subordinado
ao regime da LTFP, faz sentido que o respetivo instrutor possa diligenciar, junto da unidade orgânica de Recursos Humanos do órgão ou serviço a que o trabalhador pertença, pela obtenção de informação que esclareça, no seio e para efeitos do procedimento disciplinar, se o trabalhador denunciou, ou não, o contrato de trabalho ou se requereu, ou não, a respectiva exoneração, de modo a que, conforme a resposta obtida, o instrutor possa, ou promover o arquivamento do processo, ou prosseguir com as diligências instrutórias.
É de sublinhar que não encontramos na LTFP norma idêntica ao artigo 12.º do ED/2008, onde se previa que as penas de multa, suspensão e demissão ou despedimento por facto imputável ao trabalhador seriam executadas desde que o trabalhador constituísse nova relação jurídica de emprego público.
(…)
Encontramos pois na LTFP disposições que, além de aproximarem o respetivo regime disciplinar ao regime laboral comum, revelam-se para com o trabalhador agente de uma infração disciplinar mais generosas, tolerantes e benévolas, do que disposições vigentes em ED anteriores, ao ponto de se admitir que, agora, o mesmo trabalhador possa constituir nova relação jurídica de emprego público sem as consequências que antes advinham do artigo 12.º do ED/2008, norma que não encontra qualquer correspondência no articulado da Lei n.º 35/2014 ou da LTFP.
Em suma, há pois a reter que, nos termos do regime disciplinar instituído pela LTFP, o empregador público deixa de ter poder disciplinar sobre o trabalhador logo que se extinga o vínculo de emprego público.
(…)
10. Considerações finais
Conforme vimos, nos termos do regime disciplinar instituído pela LTFP o empregador público deixa de ter poder disciplinar sobre o trabalhador logo que extinto o vínculo de emprego público, o que constitui uma alteração de paradigma, mesmo tendo em consideração o já de si inovador ED/2008.
Não encontramos na LTFP norma idêntica ao artigo 12.º do ED/2008 e estamos já distantes do
que dispunha, por exemplo, o artigo 15.º do ED/1984, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, onde se previa a aplicação de penas a aposentados, não havendo norma idêntica na LTFP, pelo contrário, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 289.º, n.º 1, alínea a) e 291.º, alínea c,) da LTFP, o vínculo de emprego público extingue-se por caducidade com a reforma ou aposentação, o que por si só é suficiente para que se perceba o quão distante estamos do ED/1984.” (sublinhados nossos).

Retomando o caso vertente verifica-se que a nova deliberação que procedeu ao despedimento do associado do ora recorrente foi proferida em 15.1.2014, ao abrigo do Estatuto Disciplinar de 2008, ou seja, em data em que ainda não se encontrava em vigor a LTFP – a qual, como acima referido, entrou em vigor em 1.8.2014 –, pelo que o facto do associado do recorrente se encontrar aposentado - desde 2010 – não impedia que lhe fosse aplicada uma sanção disciplinar, pois, como supra explicitado, só com a LTFP o empregador público deixou de ter poder disciplinar sobre o trabalhador logo que extinto o vínculo de emprego público.

De todo o modo, tal não significa que tal deliberação punitiva de 15.1.2014 se possa manter na sua integralidade, pelas razões a seguir indicadas.

Tal deliberação de 15.1.2014 atribuiu à pena de despedimento aplicada efeitos retroactivos, concretamente a 2.12.2004, data em que foi praticada a anterior deliberação punitiva, sendo certo que esta deliberação de 15.1.2014, neste segmento (de atribuição de efeitos retroactivos), mantém, sem fundamento válido, a situação ilegal, razão pela qual terá nesta parte de ser anulada (cfr. art. 179º n.º 2, do CPTA).

Efectivamente, essa deliberação de 15.1.2014 ao aplicar novamente a sanção de despedimento ao associado do recorrente não se consubstancia num acto de execução do acórdão anulatório de 9.10.2006, razão pela qual, e face ao disposto no art. 127º n.º 1, do CPA de 1991, tal deliberação apenas podia ter efeitos desde a data em que foi proferida.

Sobre esta questão sumariou-se no Ac. do STA de 4.11.2009, proc. n.º 661/09, o seguinte:
I - Um acto de execução de uma decisão anulatória é tão só e apenas o acto cuja prática o interessado pode exigir à Administração em processo de execução.
(…)
III - O acto que, na sequência da referida sentença anulatória, faz prosseguir o processo disciplinar e impõe uma nova sanção disciplinar, agora de aposentação compulsiva, não é um acto de execução dessa sentença, mas um acto novo, produzindo efeitos a partir da data em que foi proferido, nos termos do art.º 127 do CPA”.

Nesse aresto escreveu-se a este propósito o seguinte:
Voltemos aos factos. Por ter faltado injustificadamente o autor viu ser instaurado contra si um processo disciplinar que culminou com a pena de demissão imposta em 1998. Essa pena foi anulada por sentença do TAF de Lisboa (com fundamento em falta de fundamentação e falta de ponderação entre demissão e aposentação compulsiva), de 9.10.00, que transitou em julgado. Entretanto, o autor continuara ao serviço por via de uma providência cautelar, um pedido de suspensão de eficácia, ocupando ininterruptamente o seu posto de trabalho, desempenhando as respectivas funções e auferindo a remuneração devida, não sofrendo qualquer percalço na sua carreira profissional. Estando o Município obrigado a executar espontaneamente esta decisão judicial anulatória (art.º 162 do CPTA) importa ver quais seriam os actos em que essa execução se poderia traduzir. Ou seja, se a Administração nada fizesse que actos o autor, em processo de execução de sentença nos termos do art.º 164 do CPTA, podia exigir-lhe. A resposta é simples. Esses actos seriam tão só e apenas os tendentes a reconstituir a "situação actual hipotética" em que o autor se encontraria se a deliberação anulada não tivesse sido emitida, eliminando todos os actos praticados em desconformidade com o julgado anulatório e emitindo os necessários para lhe dar cabal cumprimento. E, nesses actos, não está, seguramente, a exigência da prática de um acto que o aposentasse compulsivamente. Ora, por um lado, a sentença ao transitar em julgado eliminou definitivamente o acto punitivo e, por outro, o autor, por força da providência cautelar viu continuarem a ser-lhe garantidos todos os direitos profissionais inerentes à sua qualidade de funcionário público. Ou seja, o autor, pela conjugação destes dois aspectos, na ocasião da emissão da sentença anulatória, via-se na mesmíssima situação em que se encontrava ao tempo da imposição da sanção (a demissão) por ela anulada. Por isso, no caso em apreço, desaparecido o acto punitivo e pago tudo quanto havia a pagar (assim se encontrando inteiramente reconstituída a sua carreira), no momento da trânsito em julgado da decisão anulatória nada mais havia a executar, podendo a Administração perfeitamente, se assim o entendesse, ficar inactiva continuando o autor ao serviço como até aí. Ou podia, como acabou por fazer, prosseguir com o processo disciplinar, reapreciando-o em toda a sua amplitude e decidir avançar na investigação, arquivá-lo, ou impor uma sanção disciplinar se considerasse a prova produzida suficiente. De todo o modo, este novo acto seria sempre um acto novo, um acto autónomo, jamais podendo incluir-se na categoria dos actos de execução daquela decisão anulatória.
A regra, em matéria de eficácia, é a de que os actos administrativos produzem os seus efeitos desde a data em que são praticados (art.º 127 do CPA). Não sendo um acto de execução não cabe na hipótese contemplada na alínea b) do n.º 1 do art.º 128 do CPA (tornando-se desnecessária a discussão sobre a sua qualificação como acto renovável) nem em nenhuma das outras previstas nesse preceito. Sendo a deliberação que impôs a sanção disciplinar de aposentação compulsiva de 8.11.00 é a partir dessa data, e não de qualquer outra, que se produzem todos os seus efeitos jurídicos. (…)” (sublinhados e sombreado nossos).

Mesmo que assim não se entenda - ou seja, caso se considere que a deliberação punitiva de 15.1.2014 é ainda um acto de execução do acórdão anulatório de 9.10.2006 -, a verdade é que tal deliberação punitiva de 15.1.2014 não podia ter efeitos retroactivos.

Com efeito, e conforme se sumariou no Ac. do STA de 2.7.2008 (Pleno), proc. n.º 1328-A/03:
III - Hoje, o artº 128º, nº 1 b) do CPA deve ser interpretado em conjugação com o artº 173º do CPTA que, embora integrado na lei do processo administrativo, estabelece o regime jurídico substantivo, pelo qual a Administração se deve pautar sempre que lhe cumpra extrair consequências da anulação dos seus actos administrativos.
IV - Assim, e nos termos conjugados dos nº 1 e 2 do citado artº 173º do CPTA, a Administração pode ficar constituída no dever de praticar actos dotados de eficácia retroactiva, desde que não envolvam a imposição de deveres, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos.”.

Dito por outras palavras, do art. 128º n.º 1, al. b), do CPA de 1991 [“Têm eficácia retroactiva os actos administrativos que dêem execução a decisões dos tribunais, anulatórias de actos administrativos, salvo tratando-se de actos renováveis.”], conjugado com o art. 173º n.º 2, do CPTA [“Para efeitos do disposto no número anterior, a Administração pode ficar constituída no dever de praticar actos dotados de eficácia retroactiva que não envolvam a imposição de deveres, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos (…)”], resulta que os actos renováveis não podem ter eficácia retroactiva se envolverem a imposição de deveres, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos, ou seja, tais actos podem ter eficácia retroactiva se não envolverem a imposição de deveres, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos – também neste sentido, António Bento São Pedro, Execução das sentenças dos Tribunais Administrativos e Fiscais na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (algumas questões práticas), in Direito Administrativo, Centro de Estudos Judiciários, Agosto de 2014, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ Administrativo/Direito_Administrativo.pdf, pág. 35 [O art. 128º, 1, b) diz-nos que têm eficácia retroactiva os actos que “dêem execução a decisões dos tribunais, anulatórias de actos administrativos, salvo tratando-se de actos renováveis”. O art. 173º, 2 do CPTA permite, que em execução do julgado anulatória, se pratiquem actos “dotados de eficácia retroactiva que não envolvam a imposição de deveres, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos”./Um acto renovável que não imponha as restrições a que se refere o art. 173º, 2 do CPTA pode ter eficácia retroactiva – creio ser esta a leitura que compatibilizam os dois preceitos.].

Ora, in casu a deliberação de 15.1.2014 traduz-se na aplicação de uma sanção (disciplinar, concretamente de despedimento), pelo que, mesmo que se considere que tal deliberação se traduz num acto de execução do acórdão anulatório de 9.10.2006, não podia ser dotada de eficácia retroactiva (cfr. neste mesmo sentido, Ac. deste TCA Sul de 2.6.2016, proc. n.º 12417/15), sendo certo que o executado, ao dotá-la de eficácia retroactiva, está, na prática, a convalidar os efeitos do acto que foi anulado, fazendo com que tudo se passasse como se esse acto não tivesse sido ilegal e o recorrente não tivesse tido de recorrer à via impugnatória para obter a respectiva anulação (neste sentido, Mário Aroso de Almeida, Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, 2002, pág. 665 e 666), razão pela qual tal deliberação tem de ser anulada ao abrigo do art. 179º n.º 2, parte final, do CPTA, no segmento em que foi dotada de efeitos retroactivos, dado que nessa parte teve o alcance de afastar a reconstituição da situação que deveria existir (pagamento de remunerações, como de seguida será analisado).

Em geral, a execução das sentenças anulatórias dos tribunais administrativos impõe à Administração a obrigação de desenvolver uma actividade de execução com a finalidade de pôr a situação de facto de acordo com a situação de direito constituída pela decisão anulatória. E esta obrigação subdivide-se, segundo a lei, em dois deveres concretos:
- dever de respeitar o julgado, conformando-se com as limitações que dele resultam para o eventual exercício dos seus poderes [efeito preclusivo, inibitório ou conformativo – cfr. art. 173º n.º 1, do CPTA (“Sem prejuízo do eventual poder de praticar novo acto administrativo, no respeito pelos limites ditados pela autoridade do caso julgado (…)”)], e
- dever de reconstituir a situação que existiria se não tivesse sido praticado o acto anulado [efeito repristinatório, reconstitutivo ou reconstrutivo – cfr. art. 173º n.º 1, do CPTA (“(…) a anulação de um acto administrativo constitui a Administração no dever de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado (…)”)].

Assim, a execução das sentenças anulatórias dos tribunais administrativos não envolve, apenas, o poder da Administração proferir novo acto no respeito pelos limites decorrentes do caso julgado, pois também lhe impõe a obrigação de desenvolver uma actividade de execução tendo em vista pôr a situação de facto de acordo com a definição de direito que resulta da decisão anulatória, ou seja, e nas palavras da lei (art. 173º n.º 1, do CPTA), com a finalidade de “reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado”.

Trata-se, pois, de reconstituir a situação actual hipotética, o que significa que a Administração fica constituída no dever de executar a decisão anulatória, praticando os actos e operações necessárias à reintegração da ordem jurídica violada, mediante a reconstituição da situação que existiria se o acto ilegal anulado não tivesse sido praticado.

A discriminação de tais actos e operações no âmbito da anulação de actos de despedimento por motivos disciplinares foi objecto de concretização pelo legislador no art. 64º, do Estatuto Disciplinar de 2008 [e actualmente no art. 300º, do LTFP].

Conforme salienta Miguel Lucas Pires, Os regimes de vinculação e a extinção das relações jurídicas dos trabalhadores da Administração Pública, 2013, págs. 235 e 236:
Não concordamos, por isso, que a discriminação dos efeitos da anulação de um despedimento ilegal careça de sentido, alegando que tais efeitos já decorrem dos arts. 157º e segs. do CPTA, nos termos dos quais os tribunais administrativos, em sede de execução das suas próprias decisões, podem determinar os actos e operações em que tal execução consistirá: salvo melhor juízo, o efeito útil do art. 64º é precisamente o de especificar, no âmbito da anulação de actos de despedimento, aquela estatuição genérica contida no CPTA e válida para a anulação de qualquer acto administrativo” (sublinhado nosso).

Dito de outro modo, a especificação de actos e operações que resulta do art. 64º, do Estatuto Disciplinar de 2008, e, actualmente, do art. 300º, do LTFP, é possível de deduzir do dever de reconstituição consagrado no art. 173º, do CPTA, embora com esforço interpretativo.

Efectivamente, esclarece a este propósito Mário Aroso de Almeida, Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, 2002:
- A págs. 544 a 547, «Ora, no domínio específico no qual nos movemos, a questão não parece colocar-se desta forma, dado que a situação de impossibilidade de cumprir a prestação de trabalho é imputável a um acto de credor, que é o acto de despedimento. É o acto de despedimento que impede o trabalhador de realizar as prestações a que se tinha obrigado. Como a natureza dessas prestações faz com que a impossibilidade da sua realização não constitua um mero risco gerado pela conduta do credor, mas um resultado automático e inevitável dessa conduta, parece de reconhecer que o acto de despedimento configura a conduta do credor à qual se deve a impossibilidade da realização das prestações a cargo do trabalhador. Pode, por isso, sustentar-se que, a não se admitir, neste domínio, a aplicação do regime da mora credendi, a resultados substancialmente idênticos se chega mediante a aplicação do regime da impossibilidade por facto imputável ao credor, do artigo 795.º, n.º 2, do Código Civil.
186. Afigura-se, entretanto, de admitir que, se e na medida em que se demonstre que o trabalhador não conservou a – total – disponibilidade para o trabalho, ele não deve auferir – a totalidade – das remunerações a que teria direito. E também neste plano não divergem as soluções alternativas da mora do credor e da impossibilidade de prestar por facto imputável ao credor.
No que ao primeiro dos institutos diz respeito, do seu próprio tipo legal resulta que, se a disponibilidade do trabalhador não tiver de todo existido ou tiver deixado de existir a partir de determinado momento, não se preenchem os pressupostos da aplicação do instituto, porquanto deixa de existir oferta da prestação por parte do trabalhador e falta injustificada de aceitação da mesma por parte da entidade patronal. Para além disso, o artigo 815.º do Código Civil determina que, “no caso de o devedor ter algum benefício com a extinção da sua obrigação, esse valor deva ser descontado da mesma contraprestação”. O mesmo resulta do regime da impossibilidade de prestar por facto imputável ao credor, uma vez que também nesse domínio se impõe deduzir as vantagens que o devedor tenha retirado da impossibilidade de prestar – benefícios que, no campo da nossa análise, se concretizarão, naturalmente, nos proventos que o trabalhador terá obtido no exercício de actividade que não poderia ter exercido se a relação laboral se tivesse continuado a desenrolar nos termos normais.
187. Aplicadas, enfim, as ideias expostas à questão em análise, no domínio do funcionalismo público, parece, assim, de admitir que, no que toca aos vencimentos que teria auferido, não se deve apenas reconhecer ao funcionário ilegalmente demitido o direito a uma eventual reparação por danos, mas um direito efectivo à prestação desses vencimentos. Trata-se de um dever de prestar – inscrito na relação específico de emprego público – que o incumprimento da contraprestação por parte do funcionário (a prestação efectiva de serviço) não afasta, porque se deveu a facto imputável ao credor. Como existe “imputabilidade à Administração da inexecução pelo funcionário porquanto a autoridade, por facto próprio, tornou impossível ao funcionário a prestação de serviço”, “a autoridade será obrigada a realizar a própria prestação que por facto próprio impediu aquela do funcionário”.
Com o que nos vemos conduzidos a uma primeira conclusão. A de que, em circunstâncias normais, o conteúdo da prestação do funcionário se concretiza na efectiva prestação de serviço (artigo 528.º do Código Administrativo). Existe, contudo, direito ao vencimento sempre que, disponibilizando-se o funcionário para o efectivo exercício do cargo, a prestação seja inviabilizada por facto imputável à Administração (princípio recebido no artigo 538.º, n.º 4, do Código Administrativo, mas que possui alcance geral).
188. Já no que toca ao problema das eventuais vantagens que para o funcionário poderão ter advindo da situação em que o acto ilegal o colocou, que possam ter resultado de remunerações eventualmente auferidas por serviços medio tempore prestados e que, constituindo vantagens decorrentes da situação criada pelo acto anulado, exigiriam uma compensatio lucri cum damni, apenas possível em sede de responsabilidade civil, afigura-se, pelo menos no plano teórico, fundada a preocupação da jurisprudência em evitar que o funcionário beneficie, a esse nível, de um enriquecimento injustificado.
No entanto, a dedução, no montante nos vencimentos, de eventuais rendimentos entretanto auferidos ao serviço de outra entidade patronal – ou da própria Administração, se o que estiver em causa forem diferenças de vencimento: por exemplo, em caso de rescisão ilegal de uma comissão de serviço – é, como vimos, perfeitamente possível no âmbito da própria relação obrigacional de emprego público, sem que, para isso, haja que remeter a questão para o campo da responsabilidade civil.
Com efeito, podemos verificar que, tanto da aplicação do instituto da mora do credor como da impossibilidade de prestar por facto imputável ao credor, decorre tal solução. É, assim, de entender que “se, medio tempore, o funcionário, com o próprio trabalho – e entenda-se, com um trabalho que não teria podido prestar se tivesse prestado serviço junto da Administração – obteve outros rendimentos, estes são deduzidos no montante dos vencimentos prestados. Deste modo se afasta o receio de que o reconhecimento do direito do funcionário aos vencimentos pudesse conduzir ao seu locupletamento injustificado.» (sublinhados nossos);
- A pág. 550, «a Administração fica sempre automaticamente constituída, por efeito da anulação, no dever de prestar ao funcionário os vencimentos que ele teria auferido se não tivesse sido objecto do acto ilegal e se, por isso, tivesse podido prestar normalmente o serviço a que se tinha comprometido. Devendo, portanto, ser deduzido, ao montante dos vencimentos devidos, o valor dos eventuais proventos auferidos que teriam sido incompatíveis com o normal desenvolvimento da relação jurídico-administrativa, na ausência do acto anulado.»;
- E a págs. 551 e 552, «De todo o exposto resulta, na verdade, que, em nossa opinião, o direito do funcionários aos vencimentos, a não ter sido, desde logo, accionado no próprio processo principal, pode e deve poder sê-lo no âmbito do processo de execução da sentença de anulação e que, nessa sede, ele pode e deve ser reconhecido pelo tribunal, sem que a questão possa ou deva ser, em caso algum, remetida para uma qualquer acção. Para o efeito deve o tribunal, à partida, presumir que, durante o período em que se encontrou ilegalmente afastado do serviço, o funcionário não auferiu rendimentos do trabalho que não poderia ter obtido se tivesse estado ao serviço – pelo que terá, por via de regra, direito ao exacto montante dos vencimentos não auferidos. Só não será assim se for feita prova, por parte da Administração, de que o montante da prestação a que se encontra obrigada é efectivamente inferior àquele valor, e por ela demonstrado em quanto a prestação deve ser reduzida» (1).

Nestes termos, a fim de suprimir os efeitos negativos do acto anulado pelo acórdão de 9.10.2006 e, assim, reconstituir a situação actual hipotética, o recorrido terá de proceder ao cálculo e ao pagamento ao associado do recorrente, Guilherme .………, das remunerações que este deixou de auferir desde a data de produção de efeitos da deliberação de aplicação da pena de demissão de 2.12.2004 até à sua aposentação em 2010, pois, por um lado, neste período, e face ao teor do acórdão anulatório de 9.10.2006, Guilherme ………. não esteve, afinal, demitido, mas antes disponível para o serviço, só não o executando por facto imputável ao executado (cfr. Acs. deste TCA Sul de 18.12.2014, proc. n.º 6811/10, e 2.6.2016, proc. n.º 12417/15, bem como o art. 64º n.ºs 1, al. b), e 2, do Estatuto Disciplinar de 2008, e art. 300º n.º 2, da LTFP), e, por outro lado, o recorrido nada alegou – e, portanto, também nada comprovou - no sentido de que Guilherme ………… recebeu importâncias com a cessação da relação jurídica de emprego público que não obteria se não fosse a pena aplicada.

As remunerações que o executado terá de calcular e pagar ao associado do recorrente incluem os subsídios de férias e Natal (cfr. art. 17º n.º 3, do DL 184/89, de 2/6, e art. 70º n.º 3, da Lei 12-A/2008, de 27/2 – diplomas em vigor à data em que são devidos os referidos subsídios -, e, actualmente, art. 150º n.º 2, da LTFP), mas não o subsídio de refeição [cfr. Ac. do TCA Norte de 15.7.2016, proc. n.º 1954/07.1 BEPRT-A (“1. A reconstrução da situação de facto de acordo com o julgado anulatório do acto que aplicou a pena de aposentação compulsiva não engloba o pagamento de subsídio de refeição.”)].

A tais remunerações acrescem juros de mora, os quais ascendem a 4% ao ano (cfr. art. 559º n.º 1, do Cód. Civil, art. 1º n.ºs 1 e 2, da Lei 3/2010, de 27/4, e Portaria 291/03, de 8 de Abril), até efectivo e integral pagamento, contados desde a data em que cada remuneração devesse ter sido paga, os quais visam corrigir a falta de tempestividade do pagamento das referidas remunerações (cfr. arts. 804º, 805º n.º 2, al. a), e 806º n.ºs 1 e 2, todos do Cód. Civil) – neste sentido, Ac. do STA de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2012 (proferido em 16.11.2011, no proc. n.º 35/10), publicado no DR, 1ª Série, de 30.1.2012, o qual uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos: “Estando em causa, no âmbito da execução de sentença proferida numa acção de reconhecimento de direito, a prestação de quantias pecuniárias relativas a diferenças remuneratórias essa execução passa não só pelo pagamento dos montantes que são devidos como pelo pagamento dos correspondentes juros moratórios, os quais são contados desde o momento em que as diferenças salariais a que o Exequente tem direito deveriam ter sido pagas”.
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Do exposto resulta que deverá ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, revogado o acórdão recorrido e, consequentemente:
- Anulada a deliberação de 15.1.2014, da Câmara Municipal da Amadora, no segmento em que atribuiu à pena de despedimento aplicada efeitos a 2.12.2004.
- Condenado o recorrido a pagar ao associado do recorrente, no prazo de 30 dias úteis, as remunerações que este deixou de auferir desde a data de produção de efeitos da deliberação de aplicação da pena de demissão de 2.12.2004 até à sua aposentação, bem como os juros de mora contados desde a data em que cada remuneração lhe devesse ter sido paga, até efectivo e integral pagamento, calculados à taxa de 4% ao ano e correspondentes taxas legais subsequentemente em vigor.

Quanto ao pedido de condenação do executado ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, considera-se que tal condenação, por ora, não se justifica, já que aquele não executou o acórdão anulatório proferida nos autos principais por considerar – erradamente - que a deliberação de 15.1.2014 dava cumprimento integral ao mesmo (cfr. art. 179º n.º 3, do CPTA).
*
Uma vez que o recorrido ficou vencido, deverá suportar as respectivas custas em ambas as instâncias (cfr. art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:
I – Conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando o acórdão recorrido e, em consequência:
a) Anular a deliberação de 15.1.2014, da Câmara Municipal da Amadora, no segmento em que atribuiu à pena de despedimento aplicada efeitos a 2.12.2004.
b) Condenar o ora recorrido, Município da Amadora, a pagar ao associado do ora recorrente, Guilherme ……….., no prazo de 30 (trinta) dias úteis, as remunerações que este deixou de auferir desde a data de produção de efeitos da deliberação de aplicação da pena de demissão de 2.12.2004 até à sua aposentação, bem como os juros de mora contados desde a data em que cada remuneração lhe devesse ter sido paga, até efectivo e integral pagamento, calculados à taxa de 4% ao ano e correspondentes taxas legais subsequentemente em vigor.
II – Condenar o recorrido nas custas, em ambas as instâncias.
III – Registe e notifique.
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Lisboa, 18 de Maio de 2017




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(Catarina Jarmela - relatora)


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(Conceição Silvestre)


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(Cristina dos Santos)

(1)Neste sentido, Miguel Lucas Pires, cit., pág. 241, “o ónus da prova da percepção, por parte do trabalhador, de rendimentos susceptíveis de ser deduzidos aos salários intercalares recai, nos termos gerais (art. 342º, nº 2, do Cód. Civil), sobre o empregador”.