Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06189/02
Secção:Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/01/2003
Relator:Eugénio Martinho Sequeira
Descritores:IMPOSTO SOBRE AS DOAÇÕES
TRANSMISSÃO DE BENS
PRESUNÇÕES
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário (2.ª Secção) do Tribunal Central Administrativo:

A. O relatório.
1. O Exmo Representante da Fazenda Pública (RFP), dizendo-se inconformado com a sentença proferida pelo M, Juiz do Tribunal Tributário de l.a Instância de Coimbra que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por Olga Cristina Correia Simões Cristo, veio da mesma recorrer para este Tribunal formulando para tanto nas suas alegações as seguintes conclusões e que na integra se reproduzem:

CONCLUSÕES
1) O Meritíssimo Juiz "a quo" deu como provados factos que manifestamente o não estão, alicerçando sobre eles, contudo a sua decisão;
2) A Impugnante impugna a liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações com o fundamento em errónea qualificação do acto tributário que lhe está subjacente;
3) Em 29 de Junho de 1992, foi adquirido pela Impugnante, na data da compra ainda solteira, pelo valor de 11.842.356$00, um veículo automóvel, marca BMW, matrícula 54- 36-AV, à empresa Baviera, Comércio de Automóveis, Lda.;
4) Cujo pagamento foi efectuado por José Miguel Raposo de Almeida Cristo;
5) Este contrato, não reúne, ao contrário do que pretende a impugnante, os requisitos de um mútuo previsto no ano 1142.° do Código Civil;
6) Ao contrário do que a impugnante afirma na petição, o seu património ficou enriquecido a expensas do património do seu noivo;
7) O veículo era pertença da impugnante;
8) O preço da aquisição foi pago com o dinheiro do seu então noivo;
9) O veículo foi vendido pela impugnante em 27 de Janeiro de 1993 à sociedade Europeia de Leasing Sei, S.A;
10) O contrato em causa só pode consubstanciar-se na doação prevista no n° l do art.º 940° do Código Civil, pelo que nos termos do art. ° 3° do Código da sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações tal contrato está sujeito a imposto.
Nestes termos e com o douto suprimento de V. Exas. deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que julgue a impugnação improcedente, mantendo-se válido o acto de liquidação ora posto em crise, assim se fazendo
JUSTIÇA.

Foi admitido o recurso para subir imediatamente, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.

Também a recorrida veio a apresentar as suas alegações e estas as respectivas conclusões, as quais igualmente na íntegra se reproduzem:

Conclusões
1) Desde logo, esteve de todo ausente o intuito de fazer uma liberalidade, de beneficiar a impugnante.
2) Como os Autos revelam, pretendeu-se tão só, fazer a impugnante titular de um bem para garantia de um empréstimo destinado à aquisição, por si, de uma farmácia.
3) Diga-se como se lê na douta Sentença que o «animus sibi habendi», esteve de todo, ausente no que «interest» entre a impugnante e a viatura BMW referenciada.
4) Quem dispôs, manifestamente, das utilidades e aproveitamento pelo uso e posterior alienação do bem em causa, foi o marido da impugnante, então noivo.
5) O que releva à transmissão fiscal é o enriquecimento real e efectivo, traduzido pela fruição ou posse dos bens, ou pelo aproveitamento económico obtido com a sua alienação.
6) Verificou-se, claramente, que a impugnante não usou e fruiu o bem, nem tão pouco tirou qualquer benefício.
7) A impugnante só foi titular do veículo.
8) O património da impugnante não ficou enriquecido a expensas do património do seu noivo.
9) O produto da alienação do veículo, foi entregue ao seu ora marido.
10) Não se configura uma transmissão gratuita de bens efectiva.
11) Não foi efectuada uma doação em 29.7.1992, à impugnante, pelo seu então noivo e ora marido, sujeita a imposto nos termos do artigo 3.° do Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações, como pretende o digno Representante da Fazenda Pública.
12) O M. M. Juiz a quo julgou com acerto e em conformidade com os factos manifestamente provados, bem como com perfeita observância da lei aplicável, proferindo a decisão jurídica adequada.
13) Atenta toda a matéria, fundamentos e razões acima expostos, deverá a douta Sentença proferida pelo MM. ° Juiz a quo, ser mantida na integra, por legal e ainda por estar em harmonia com a prova produzida.
Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve confirmar-se a douta sentença e decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso como é de JUSTIÇA!
O Exmo Representante do Ministério Público (RMP), junto deste Tribunal, no seu parecer, pronuncia-se por ser concedido provimento ao recurso por não existir nos autos qualquer documento que ampare as convicções do M. Juiz "a quo", quanto à não utilização do veículo pela mesma, devendo antes concluir-se pela transferência da propriedade do mesmo para a impugnante, com a correspondente posse, existindo liberalidade, sujeita a imposto.


Foram colhidos os vistos dos Exmos Adjuntos.


B. A fundamentação.
2. A questão decidenda. São as seguintes as questões a conhecer: Se a conclusão das alegações do recorrente reportada à matéria de facto a que imputa erro, sem especificar a qual, é susceptível de ao seu abrigo exercer censura sobre a decisão recorrida no tocante a tal julgamento; E se preenche as regras de incidência do imposto sobre as doações, a aquisição de um veículo com dinheiro de outrem, utilizado a título gratuito.

3 3. A matéria de facto.
Em sede de probatório o M. Juiz do Tribunal "a quo" fixou a seguinte factualidade e que passamos a subordinar às seguintes alíneas:
a) Em 29 de Julho de 1992, foi adquirido, em nome de Olga Cristina Correia Simões Cristo, pelo valor de Esc. 11.842.356$00, um veículo automóvel, marca BMW, matrícula 54- 36-AV, à Baviera, Comércio de Automóveis, Lda.;
b) Cujo pagamento foi efectuado por José Miguel Raposo de Almeida Cristo;
c) Actualmente casado com a impugnante., de quem, à data a que os Autos se reportam, era noivo;
d) Por tal facto a impugnante nada participou à respectiva Repartição de Finanças;
e) Foi o Sr. José Miguel que negociou a aquisição da carrinha BMW e a pagou;
f) Tendo a carrinha ficado em nome da impugnante;
g) Com o objectivo de a fazer titular de um bem para garantia de empréstimo destinado à aquisição, por si, de uma farmácia;
h) Pois não tinha outros bens em nome dela;
i) Dado que não tinha dinheiro, teve de fazer um empréstimo ao banco, que lhe exigia bens para garantia;
j) Nessa altura, o noivo comprou a carrinha BMW, que içou em nome da Dra. Olga, tão só para garantia de tal empréstimo referenciado;
l) A testemunha Célia Maria Freitas Gomes, que vivia hospedada na casa da impugnante, e estava a par da situação, sabe que a carrinha esteve em nome desta, sem que, no entanto, a tenha chegado a ver;
m) A impugnante utilizava o carro da sua mãe;
n) Quem o utilizou foi o marido, então noivo;
o)Mais tarde o BMW foi vendido, uma vez que o casal teve outras prioridades de investimento;
p) A impugnante negociou, em 20.10.93, com o Banco Borges & Irmão, S.A., um contrato de conta corrente;
q) Tendo entregue, para garantia do seu cumprimento uma livrança;
r) Em princípios de 1993, o Sr. José Miguel negociou com a Moreirascar - Comércio de Automóveis, Lda, a venda do BMW;
s) A firma Moreirascar adquiriu a carrinha para seu uso; t)Sendo que o seu representante legal, Sr. Moreira, a utilizou, até a empresa encerrar, em 1995;
u) Tendo sido feito um "leasing" do BMW, a favor da Moreirascar;
v) Que celebrou um contrato de locação financeira, com a "Sociedade Europeia de Leasing Sei, S.A.;
x) Era vulgar o Sr. Jorge Moreira ter dois "leasings" sobre a mesma viatura;
z) O BMW teve o registo de propriedade a favor da Sociedade Europeia de Leasing - Sel, S. A. e o registo de locação financeira a favor da Moreirascar, Comércio de Automóveis, Lda;
al) Ambos desde a mesma data de apresentação, 20.01.95;
bl) Quando a carrinha foi adquirida pela Moreirascar tinha 4 ou 5.000 quilómetros;
cl) A Moreirascar pagou a viatura com alguns cheques, uma mota e uma mota de água;
dl) O valor da mota de água em questão, rondaria, na altura, os 1.800 a 2.000 contos;
el)0s cheques provenientes da Moreirascar foram entregues ao Sr. José Miguel Cristo em períodos diferenciados.

A que, nos termos do disposto na alínea a) do n.° do art.º 712.° do Código de Processo Civil (CPC) , se acrescentam mais as seguintes alíneas em ordem a constar do probatório a matéria sobre as inscrições do veículo, documentalmente provadas :
fl) A Conservatória do Registo automóvel do Porto certificou em 17.4.1998, que o veículo de matrícula 54-36-AU, marca BMW, se encontrava registado desde 6.8.1996 a favor de Bescleasing - Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S. A., e que anteriormente se encontrou registado a favor de Baviera, Comércio de Automóveis, S. A., desde 26.8.1992, a favor de Olga Cristina Correia Simões, desde 31.8.1992, e a favor de Sociedade Europeia de Leasing Sei, S. A., desde 20.1.1995 - doe. de fls 65 e 66;
gl) Tais inscrições tiveram por base os requerimentos (cópias) para registo inicial de propriedade de fls 57, o requerimento-declaração para registo de propriedade de fls 59 e 60, o requerimento-declaração para registo de propriedade de fls 61 e 62 e o requerimento-declaração para registo de propriedade de fls 63 e 64.

4. Na matéria da conclusão l.a das sua suas alegações de recurso, insurge-se o recorrente que o M. Juiz do Tribunal "a quo", deu como provados factos que manifestamente o não estão, parecendo por isso pretender que este Tribunal reaprecie o julgamento da matéria de facto tal como foi efectuado na decisão recorrida.
Porém, quando o recorrente impugne a matéria de facto, deve o mesmo obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios, constantes do processo, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida - cfr. art.º 690.° n.°l do CPC - o que o mesmo não cumpriu, já que não indicou em concreto qual a matéria de facto que considera mal julgada, quer na referida conclusão, quer mesmo na respectiva alegação, não podendo por isso deixar de rejeitar-se o recurso e do mesmo se não conhecer, quanto a esta matéria.

4.1. Para julgar a impugnação judicial procedente considerou o M. Juiz do Tribunal "a quo", em síntese, que no caso, inexistiu o "animus donandi", na entrega dos valores à vendedora do veículo à impugnante e com que foi paga a viatura por si comprada, não existindo qualquer intuito de lhe aumentar o seu património por esse acto, mas tão só de habilitar o seu património com o valor desse bem, a fim de facilitar a obtenção de um empréstimo que a mesma necessitava tendo em vista a aquisição de uma farmácia para si.
Cremos, contudo, que não se terá decidido bem, como se tentará demonstrar.

A Administração Fiscal (AF) para proceder à liquidação em causa teve por suporte elementos documentais encontrados na posse do sujeito passivo aquando uma visita de fiscalização realizada em Julho de 1995, para controlo de sinais exteriores de riqueza, em que foi detectado que o veículo em causa, por si adquirido em 31.7.1992, havia sido pago à vendedora com um cheque de José Miguel Raposo de Almeida Cristo, então namorado da ora impugnante e com quem veio a casar em 10.9.1994, como não sofre qualquer contestação - cfr. doe. de fls 8 a 10, repetido a fls 30 a 32 - tendo concluído que tal pagamento do veículo integrou uma liberalidade, havendo transferência de valores de um património para o outro, sem qualquer causa, como tal sujeito a imposto sobre as doações.
A impugnante, ao invés, na sua petição inicial de impugnação judicial - cfr. seus art.ºs 7.°, 19.° e 20.° - vem defender que o preço do veículo pago pelo então seu noivo, constituiu um empréstimo, sem juros, que este lhe efectuou, para dotar o seu património de um bem de elevado valor, que lhe pudesse fazer face à garantia de um empréstimo que tinha : vista obter junto de instituição bancária para a aquisição de uma farmácia para si, já que então era estudante de farmácia, cujo curso terminou em Junho de 1993, tendo de resto, com a venda do veículo à Moreirascar, em 1993, sido restituído directamente por esta empresa ao mesmo José Cristo o preço dessa venda, por conta do mesmo empréstimo.

São sujeitas a imposto municipal de sisa e a imposto sobre as sucessões e doações... as transmissões perpétuas ou temporárias dos bens, qualquer que seja o título por que se operem, art.° 1.° do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto Sobre as Sucessões e Doações (cimsisd) .
O imposto sobre as sucessões e doações incide sobre as transmissões a título gratuito de bens mobiliários e imobiliários, art.° 3. ° do mesmo Código.
Só se considera transmissão, para efeitos deste imposto, a transferência real e efectiva dos bens; e assim, não se verificará a transmissão... nas sucessões ou doações de propriedade separada do usufruto, sem este acabar ou sem a propriedade ser alienada, seu § l. °.
A incidência da sisa e do imposto sobre as sucessões e doações regular-se-á pela legislação em vigor ao tempo em que se efectuar a transmissão (Cfr. neste sentido o acórdão do STA publicado no Apêndice ao Diário da República de 20.5.1996, págs. 4073 e segs.) art.° 10.° do mesmo Código.

Desde que exista acto ou contrato (reduzido a escrito ou verbal) susceptivel de operar transmissão, o chefe da repartição de finanças só poderá abster-se de fazer a respectiva liquidação com fundamento em nulidade ou ineficácia julgada pelos tribunais competentes, art.° 82.° do CIMSISD, o que traduz um principio geral, hoje com assento expresso, como tal, na norma do art.° 32.° do CPT e 38.° e 39.° da Lei Geral Tributária.
E o que interessa, para efeitos fiscais, é a transmissão económica dos bens que não a jurídica, e mesmo que para efeitos civis, o contrato ou acto seja nulo por falta de forma ou ineficaz, desde que do ponto de vista económico, produza o seu resultado típico, normal.

Como refere Cardoso da Costa, ....em matéria de imposto sobre a sucessões e doações , verifica-se a incidência real de tal imposto, em qualquer efectiva transmissão gratuita de bens, em qualquer efectiva liberalidade, mesmo que lhe esteja subjacente um negócio jurídico insusceptível de produzir efeito translativo da propriedade (in Curso de Direito Fiscal, pág. 129.).
Também A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, referem que. . . não se tendo concretizado a liberalidade decorrente do acto ou negócio jurídico apto, em abstracto, à transmissão de bens, não há que distinguir, se esse negócio está ferido de nulidade ou anulabilidade, para efeitos de tributação. Só quando tal negócio for anulado por decisão judicial, é que a liquidação tributária sobre ele incidente poderá ser anulada. É o que parece resultar do presente artigo (in Código de Processo Tributário, Comentado e Anotado, 4.a Edição, pág. 95, nota 6, infine) (82. °) .

No caso, desde 31.8.1992, encontra-se inscrita a favor da ora impugnante a propriedade do veículo por aquisição, donde resulta a presunção registrai, deste derivada nos termos do disposto no art.° 7. ° do Código do Registo Predial e que dispõe:
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo define.
Encontrando-se inscrita a aquisição do direito de propriedade sobre tal veículo a favor da mesma, na ausência de qualquer prova em contrário, temos de concluir que é aquela a verdadeira possuidora do mesmo, na acepção do direito civil - cfr. art.° 1251.° do Código Civil.
"Posse" é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real - art.º 1251.° do C.Civil. Para ter a posse não é necessária a prática de actos materiais sobre a coisa, basta a possibilidade de os praticar, já que o nosso Código Civil perfilhou uma concepção subjectiva da posse, onde, a par da actuação de facto sobre a coisa é preciso que haja por parte do detentor a intenção "animus" de exercer como o seu titular um direito real e não um mero poder de facto sobre ela - cfr. na doutrina , Código Civil Anotado, Vol. III, de Pires de Lima e A, Varela, 2.a Edição revista e actualizada, pág. 5 e segs,, França Pitão, Direito das Coisas, Coimbra 1976, pág. 47 e segs. e POLIS - Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. IV, pág. 1427 e segs.

Transferindo-se a propriedade da coisa por mero efeito do contrato de compra e venda - art.° 408.° do Código Civil (CC) - no âmbito da transferência consensual do domínio: consensus parit proprietatem - é de presumir quando se tratar de uma aquisição derivada, igual transferência da posse - posse causal.
Ou por outras palavras, o proprietário é, por inerência, um legítimo possuidor da coisa ou seja, tem a aptidão natural para exercer a posse em relação à coisa dele objecto, com ostensiva evidenciação do "corpus e do animus". O direito de propriedade presume pois, a coexistência do "direito de posse", por conatural àquele (Na expressiva linguagem do acórdão do então Tribunal Tributário de 2.a Instância de 13.4.1993, recurso n.° l 313. Cfr. no mesmo sentido o acórdão do STA de 26.2.1997, recurso n.° 21 059.)

Porém, para este CIMSISD a posse é algo mais abrangente do que a posse civilística.
É que este Código adoptou um conceito (fiscal) próprio transmissão da posse interessando-se apenas pelo efeito económico, de modo a nele incluir toda a tradição de valores do património de uma pessoa para o de outra sem qualquer espécie de compensação ou contrapartida económica por banda de quem recebe, qualquer que seja o meio ou acto jurídico através do qual se opere a tradição (Cfr. neste sentido o acórdão do então Tribunal Tributário de 2.a Instância de 9.6.1992, recurso n.° 57 838.) (transmissão gratuita (Cfr. no mesmo sentido o acórdão do STA (Pleno) de 20.6.1961, in Acs. Dts. 1-140.)).
E no caso de tal transmissão ocorrer inter vivos, encontra-se sujeito ao imposto sobre as doações.

O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, nos termos do disposto no art.° 1305.° do Código Civil.
E nada impede que o proprietário, como legitimo possuidor, possa ceder ou entregar a outrem, por um qualquer negócio obrigacional, a titulo gratuito, parte ou a totalidade dos poderes que enquanto tal, exerce ou pode exercer sobre a coisa, e caso o faça, apenas continua na sua esfera jurídica o remanescente desses poderes, designadamente podendo entregar a outrem, os poderes sobre a coisa de a usar e fruir, na totalidade ou parcialmente, o que terá sido o que aconteceu no caso, com o uso do veiculo pelo seu então noivo.

Existindo como existiu, uma transferência económica de um bem de um património para o outro - ou seja do património daquele José Cristo para o da ora impugnante, concretizado na quantia do preço do veículo pago por aquele ao vendedor e a integração do veículo adquirido no património desta - ocorreu essa deslocação patrimonial, a título gratuito, sobre a qual não pode deixar de incidir o imposto o imposto sobre as doações nos termos do art.° 3.°, citado.

A tese em contrário da impugnante, de que tal quantia com que foi adquirido o veículo lhe foi emprestada pelo seu então noivo, sem juros, e lhe foi restituída mais tarde com o preço da venda do veículo à Moreirascar entregue directamente ao mesmo, não pode colher, pelas seguintes razões:
- Tendo em conta o respectivo montante (mais de 11.000 contos) , e não ter sido esse invocado mútuo celebrado por escritura pública, não era por isso válido nos termos do art.° 1143.° do Código Civil - embora para efeitos fiscais, como acima se disse, tal falta de forma não constituísse óbice à sua tributação como tal, desde que existisse;
-Não ter sido tal mútuo declarado às Finanças para efeito de imposto de capitais, como era exigível, ainda que a impugnante invoque o não vencimento de juros, porque tal presunção do seu vencimento (dos juros) só pode ser ilidida por decisão judicial em acção intentada pelo contribuinte contra o Estado, mantendo-se tal obrigação de o declarar, ainda que pudesse requerer a suspensão da liquidação do imposto, se litigioso - cfr. art.°s 3.°, 14.°, 28.° e 29.° do Código do Imposto de Capitais;
-Não existir nos autos qualquer prova consistente de que o veículo em causa tenha sido vendido em 1993 à empresa Moreirascar, Comércio de Automóveis, Lda., por não ter sido preenchido qualquer requerimento para registo de propriedade a favor desta empresa, contrariamente ao que aconteceu na venda a favor da Sociedade Europeia de Leasing Sel, S.A., em Janeiro de 1993, e desta a favor de Bescleasing - Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S.A., em Maio de 1995, não constando também na Conservatória do Registo de Automóveis do Porto, qualquer inscrição da propriedade do veículo a favor daquela Moreirascar, e nem qualquer ónus ou encargo sobre o mesmo veiculo - cfr. doe. de fls. 56 a 66.
Aliás, se o veículo logo no início desse ano de 1993 foi vendido pela impugnante à referida Sociedade Europeia de Leasing Sei, S.A., como poderia também ter sido vendido pela impugnante àquela Moreirascar?
A própria impugnante nem veio invocar em que data concreta teria ocorrido essa venda do veículo a esta empresa, apenas refere no decurso do ano de 1993, não indica por que preço, como também o referido José Cristo, no seu depoimento prestado como testemunha disse não se recordar do valor do negócio, e que o preço pago teria sido constituído por uma mota de água, uma moto (cuja marca, modelo ou matrícula nem sequer indica) e alguns cheques.
O "requerimento para registo de actos diversos", cuja cópia consta a fls 74 e 75 dos autos, apresentado na Conservatória em 20.1.1995, tendo em vista a inscrição da locação financeira referida do referido veículo a favor daquela Moreirascar por aquela Sociedade, Europeia de Leasing Sei, S.A,, não terá produzido quaisquer efeitos, já que na certidão emitida em 17.4.1998, pela referida Conservatória, nada consta a tal respeito, mostrando-se escrito nesse requerimento em letra manual a expressão, Inviável: a locação paga multa" (fls 74). E se tal locação financeira tivesse ocorrido, o que a impugnante nem invoca na sua petição inicial de impugnação, tratar-se-ia de um negócio entre aquela Sociedade Europeia de Leasing e a referida Moreirascar, não se vendo em que medida a impugnante nele poderia participar, sendo de resto obrigatória a sua inscrição na Conservatória do Registo Automóvel nos termos do disposto no art.° 5.° n.°l alínea d) e n.°2 do Dec-Lei n.° 54/75, de 12 de Fevereiro, na redacção introduzida pelo Dec- Lei n.° 461/82, de 26 de Novembro.
Também os três cheques emitidos por aquela Moreirascar a favor do referido José Cristo, em Junho, Julho e Agosto de 1993, não se vê que possam ter qualquer relação com a invocada venda do veículo, sabido que constituem meios abstractos de pagamento, tanto mais que se reportam a valores diminutos (dois de 450 contos e um de 385.910$00);
- A própria tese da aquisição do veículo como garantia de valor patrimonial para a obtenção do empréstimo se revela inconsistente, já que a mesma acabou por vender o veículo em 27.1.1993 à referida Sociedade Europeia de Leasing e só em Outubro deste mesmo ano é que celebrou com o Banco Borges & Irmão, S.A., o contrato de conta corrente, ou seja em momento que o já não possuía, não se vendo como o veículo em causa pudesse então constituir uma sua garantia patrimonial !
E a prova destes factos por si invocados cabia-lhe, desde logo por força do princípio geral contido no art. ° 342. ° n.° do Código Civil, de que aquele que invocar um direito lhe caber fazer a prova do direito alegado, quer por força da norma da norma do art. ° 127.° n.°l do CPT então vigente, como os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido à anulação, e hoje do art.° 74.° n.°l da LGT, por serem incompatíveis com os pressupostos carreados pela AF e em que assentou a liquidação e tendo em vista infirmá-los, o que se encontra longe de acontecer, como se fundamentou supra, sendo de conceder provimento ao recurso.


A sentença que em contrário decidiu, não se pode manter, desde logo por erradamente ter fixado no probatório que não ocorreu uma verdadeira transmissão do direito de propriedade do veiculo para a impugnante, quando a prova documental e testemunhal produzidas, não lograram afastar a presunção registrai atinente, e por dar como provada uma venda do veículo pela impugnante à Moreirascar, sem a devida prova, sendo por isso de eliminar do probatório a matéria atinente, constante das alíneas i), j), r), s), t), u), v), x), z), ai), bl), cl) e dl) do probatório, tendo efectivamente ocorrido uma transferência ou transmissão de valores patrimoniais, a título gratuito, do património do referido José Cristo para o da Impugnante, operada pelo pagamento do veículo à vendedora por aquele e a integração deste no património da referida impugnante, sujeito por isso à incidência do imposto sobre doações.


C. DECISÃO.
Nestes termos, acorda-se, em conceder provimento ao recurso, em revogar a sentença recorrida e em julgar improcedente a impugnação judicial.

Custas pela recorrida em ambas as instâncias, fixando-se nesta a taxa de justiça em oito UCs .
Lisboa, 1.4.2003
as.) Eugénio Martinho Sequeira
Maria Cristina Gallego dos Santos
José Carlos de Almeida Lucas Martins