| Decisão Texto Integral: | 1. RELATÓRIO
1.1 Os Recorrentes, Impugnantes ou Contribuintes vieram recorrer para este Tribunal da sentença que julgou improcedente a impugnação por eles deduzida contra a liquidação de IRS (() Embora o pedido formulado na petição inicial tenha sido o de que deve «ser declarado ilegal o despacho impugnado» e «ser considerado válido e eficaz o atestado de incapacidade em causa, ordenada a sua aceitação e revista e corrigida a liquidação impugnada em conformidade com os benefícios fiscais a que o mesmo dá direito» e não, como deveria ter sido, de anulação da liquidação, certo é que na petição inicial, logo no intróito, identificou-se como acto impugnado a liquidação do IRS e foi este o acto que a sentença recorrida, que nessa parte não foi posta em causa, considerou como sendo o impugnado.) que lhes foi efectuada com referência ao ano de 1996, do montante de esc. 276.569$00, depois da Administração tributária (AT), ao abrigo do disposto no art. 66.º, n.º 4, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) (() Todas as referências ao CIRS reportam-se à versão anterior à revisão operada pelo DL n.º 198/2001, de 3 de Julho.), ter procedido à correcção dos elementos declarados, por entender que não estava devidamente comprovada a deficiência fiscalmente relevante invocada pelo Contribuinte marido na declaração de rendimentos daquele ano, uma vez que considerou que o atestado por ele apresentado para fazer prova dessa deficiência, emitido pela Administração Regional de Saúde ao abrigo do disposto no Decreto-Lei (DL) n.º 341/93, de 31 de Outubro, não era adequado para esse efeito, antes devendo essa prova «ser efectuada com a apresentação de um atestado emitido posteriormente à vigência dos novos critérios» (() As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.), por certo querendo referir-se aos critérios definidos pelo DL n.º 202/96, de 23 de Outubro.
1.2 Na sentença recorrida, depois de se tecerem diversos considerandos, concluiu-se:
«Estabelece o art. 14º n.º 7 do CIRS que a situação pessoal dos sujeitos passivos que releva para efeitos de tributação é aquela que se verificar no último dia do ano a que o imposto respeite.
Em 31 de Dezembro de 1996, ano a que respeita o imposto aqui em causa, encontrava-se já em vigor o DL 202/96.
Como tal, o grau de invalidez permanente fiscalmente relevante exigia, para que se tivesse por devidamente comprovado, a apresentação por parte do sujeito passivo de um atestado médico emitido de acordo com os critérios definidos naquela lei.
No caso dos autos, o atestado médico apresentado não se mostra passado em conformidade com as exigências legais.
Falece, por isso, um dos pressupostos de a lei fiscal faz depender o acesso aos benefícios que consagra - a devida comprovação do grau de invalidez.
Bem andou, por isso, a Administração Fiscal, ao desconsiderar o atestado médico aqui em causa e em não ter como provada a incapacidade e em, consequência, ter corrigido os elementos declarados pelos impugnantes no que a essa parte concerne».
1.3 O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
1.4 Os Recorrentes apresentaram alegações de recurso, que terminaram com as seguintes conclusões:
«
1. Com a conduta, a AF altera, de tacto, os pressupostos de concessão do regime em vigor à data dos actos tributários e não o podia fazer.
2. A pretensa aplicabilidade genérica de novos critérios tem de ter na sua base lei da A.R. ou DL autorizado e nunca circulares, que são documentos meramente internos.
3. A AF actua de modo ilegal quando o faz alicerçada em lei publicada posteriormente a uma definitiva comprovação de incapacidade, a qual permite a obtenção de benefícios fiscais a partir de certificado de incapacidade como o apresentado.
4. Em 31 de Dezembro de 1996 existia incapacidade.
5. É errado afirmar-se que existindo incapacidade permanente em 22.09.95, a mesma "tenha deixado de existir" posteriormente.
6. Tais incapacidades, porque permanentes não podem alterar-se.
7. Os novos critérios (constantes do normativo contido no Dec.-Lei n.º 202/96), não são aplicáveis.
Pelo que
A Douta Sentença recorrida faz errada interpretação dos factos e da lei, nomeadamente, quanto à entrada em vigor da lei, a sua não aplicabilidade aos casos anteriores, viola os princípios da legalidade, segurança e certeza jurídicas, devendo ser revogada e substituída por outro que extinga a liquidação efectuada, por nula.
Assim se fazendo JUSTIÇA!».
1.5 O Magistrado do Ministério Público emitiu parecer nos seguintes termos:
«
1. recurso não merece provimento.
2. Na verdade, não só a sentença aprecia devidamente os factos como faz adequada aplicação da lei, de acordo, aliás, com a jurisprudência do S.T.A. citada na mesma».
1.6 Com dispensa dos vistos, por se tratar de questão já amplamente tratada pela jurisprudência, cumpre apreciar e decidir.
1.7 A questão sob recurso, delimitada pelas conclusões dos Recorrentes, é a de verificar se a sentença recorrida fez errado julgamento quando considerou que a Administração tributária (AT) pode recusar, com referência ao ano de 1996 e para efeitos do benefício fiscal previsto nos arts. 25.º e 80.º do Código do IRS (CIRS) (() Todas as referências ao CIRS reportam-se à versão anterior à revisão operada pelo DL n.º 198/2001, de 3 de Julho.) e 44.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) (() Todas as referências ao EBF reportam-se à versão anterior à revisão operada pelo DL n.º 198/2001, de 3 de Julho.), o atestado médico apresentado pelos ora recorrentes, no qual a avaliação da incapacidade do impugnante marido foi efectuada ao abrigo da legislação anterior ao DL n.º 202/96, de 23 de Outubro.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
2.1.1 A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos, nos quais ora se introduzem meras alterações de forma:
a) Os impugnantes apresentaram em devido tempo a declaração dos rendimentos auferidos no ano de 1996.
b) Nessa declaração consignaram que o Impugnante marido era portador de uma invalidez permanente de grau igual ou superior a 60%.
c) O Director Distrital de Finanças de Viana do Castelo proferiu um despacho cujo teor consta dos autos e que aqui se passa a reproduzir:
«Na declaração de rendimentos do ano acima referido, foi mencionada a existência no agregado familiar de uma situação de incapacidade de carácter permanente igual ou superior a 60% (...).
Nos termos do n.º 7 do art. 14º do Código do IRS, a situação pessoal e familiar dos sujeitos passivos é aquela que vigorar em 31 de Dezembro do ano a que o imposto respeita.
Uma vez que não foi efectuada a competente prova da manutenção da incapacidade, à luz dos critérios vigentes em sede de avaliação, que lhe permita beneficiar do disposto no art. 44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, não obstante tenha já sido, oportunamente, para tal notificado(a).
Considerando que essa prova deveria ser efectuada com a apresentação de um atestado médico emitido posteriormente à vigência dos novos critérios.
Nesta conformidade, procedo à alteração dos elementos declarados.
Notifique».
d) Este despacho foi notificado aos Impugnantes.
e) Na sequência foi efectuada a liquidação cuja nota demonstrativa consta dos autos e que se dá por reproduzida e que ora se encontra sob impugnação.
f) Como comprovativo da incapacidade permanente que alegam os Impugnantes juntaram o atestado médico que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Ao abrigo do disposto no art. 712.º do Código de Processo Civil (CPC), fixa-se ainda a seguinte matéria de facto, que igualmente se mostra provada:
g) Da liquidação dita em e) resultou o montante a pagar de 276.569$00 (cfr. cópia da «nota demonstrativa da liquidação», a fls. 18);
h) F...e mulher, M..., foram notificados dessa liquidação, bem como para efectuar o respectivo pagamento até 15 de Dezembro de 1997 (cfr. cópia do documento de cobrança, a fls. 18);
i) Em 11 de Dezembro de 1997 os mesmos Contribuintes fizeram dar entrada no Serviço de Finanças de Viana do Castelo a petição inicial que deu origem a este processo, pela qual vieram impugnar a liquidação dita em e) (cfr. a peça processual de fls. 3 a 11, bem como o carimbo de entrada que lhe foi aposto);
j) O atestado referido em f) foi emitido em 22 de Setembro de 1995 e assinado pela Autoridade de Saúde de Viana de Castelo, que atestou, para efeitos de IRS e outros, que F... apresenta deficiência de carácter permanente, anterior a 1993, que, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), aprovada «pelo Decreto-Lei N.º 341 de 30.09.93», lhe confere o grau de incapacidade de 80,75% (cfr. cópia do atestado a fls. 14);
l) Em 5 de Março de 1997 o Adjunto do Delegado Regional de Saúde de Viana do Castelo emitiu declaração do seguinte teor: «(...) declara para os devidos efeitos que o Atestado Médico de Incapacidade passado pela Autoridade de Saúde do Concelho de Viana do Castelo (...) a FRANCISCO PARENTE FERREIRA no dia 22 de Setembro de 1995 mantém a sua validade, visto não ter sido revogado tal acto administrativo» (cfr. cópia da declaração a fls. 16).
2.2 DE DIREITO
2.2.1 Na declaração de rendimentos que apresentaram para efeitos de IRS do ano de 1996, os ora recorrentes consignaram que o Contribuinte marido era pessoa com deficiência com grau de invalidez permanente igual ou superior a 60%. Como comprovativo da situação do Contribuinte marido como pessoa com deficiência fiscalmente relevante, apresentaram os Contribuintes um atestado emitido pela autoridade regional de saúde em 1995 e onde se certifica que, «de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades aprovadas pelo Decreto-Lei N.º 341/93 de 30. 09.93», aquele apresenta deficiência de carácter permanente anterior a 1993 que lhe confere o grau de incapacidade de 80,75%
A AT, considerou que esse atestado não faz prova da incapacidade para efeitos de benefícios fiscais relativamente ao ano de 1996. Isto, se bem interpretamos o despacho que esteve na base da correcção que deu origem à liquidação impugnada, porque entendeu que tal prova haveria de ser feita mediante atestado emitido em face dos critérios vigentes no último dia do ano a que o imposto respeita, atento o disposto no art. 14.º, n.º 7, do CIRS.
Por isso, notificou o Contribuinte para juntar novo atestado emitido ao abrigo do DL n.º 202/96, de 23 de Outubro.
Porque o Contribuinte não o apresentou, a AT, considerando que o Contribuinte não podia ser tido como pessoa com deficiência fiscalmente relevante, procedeu à correcção dos elementos declarados e à liquidação do imposto sem aplicação do benefício fiscal previsto nos arts. 25.º e 80.º do CIRS e 44.º do EBF.
Os Contribuintes impugnaram judicialmente essa liquidação e a impugnação foi julgada improcedente, considerando-se na sentença, em resumo, que o atestado médico apresentado não comprovava a deficiência invocada.
É dessa sentença que vem interposto o presente recurso, no qual a questão a apreciar, delimitada pelas conclusões dos Recorrentes, é a de saber se a AT pode ou não recusar, com referência ao ano de 1996 e para efeitos do benefício fiscal previsto nos arts. 25.º e 80.º do CIRS e 44.º do EBF, o atestado médico apresentado pelos ora recorrentes, emitido em 1995.
2.2.2 A lei concede alguns benefícios em matéria de tributação em IRS às pessoas com deficiência cujo grau de invalidez permanente, devidamente comprovado pela entidade competente, seja igual ou superior a 60%. Sem a preocupação de sermos exaustivos, (tanto mais que o legislador, tendo adoptado para a sistematização dos benefícios fiscais, por uma «solução mista» (() Cfr. NUNO SÁ GOMES, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 165, págs. 20/21.), fez constar alguns do EBF e outros do CIRS), realçamos os seguintes:
- um acréscimo de 50% ao limite para a dedução prevista no n.º 1 do art. 25.º do CIRS para os rendimentos brutos da categoria A, por força do n.º 3 do mesmo artigo;
- um aumento de 50% nos limites às deduções à colecta previstos no n.º 1 do art. 80.º do CIRS, por força do n.º 6 do mesmo artigo;
- a isenção de 50% dos rendimentos do trabalho, com um limite que foi variando, nos termos do art. 44.º, n.º 1º, alínea a), do EBF, na redacção original;
- por força do n.º 2 do mesmo art. 44.º do EBF, um abatimento ao rendimento colectável, nos termos do art. 55.º do CIRS, da totalidade das despesas efectuadas com educação e reabilitação e, bem assim, dos prémios de seguro em que o deficiente figure como primeiro beneficiário.
Note-se que todos estes benefícios fiscais (() Como salienta NUNO SÁ GOMES, idem, págs. 22/23, e resulta do n.º 2 do art. 2.º do EBF, são qualificadas como tal, entre outros tipos de medidas desagravadoras, isenções, deduções à matéria colectável e à colecta.) dependem, não de uma qualquer deficiência a comprovar por qualquer modo, mas de uma deficiência que confira um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60% e que seja «devidamente comprovado pela entidade competente», como se refere expressamente nos citados arts. 25.º, n.º 3, e 80.º, n.º 5, do CIRS, e 44.º, n.º 5, do EBF.
A lei fiscal não dá qualquer definição de pessoa com deficiência, não estabelece qual a entidade competente para comprovar a deficiência e estabelecer o grau da respectiva incapacidade, nem o modo por que deve ser feita a prova desses factos.
O n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 9/89, de 2 de Maio (Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência), define como pessoa com deficiência «aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de estrutura ou de função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatómica susceptível de provocar restrições da capacidade, pode estar considerada em situações de desvantagem para o exercício de actividades consideradas normais, tendo em conta a idade, o sexo e os factores sócio-culturais dominantes». Na ausência de definição de deficiência própria da lei fiscal, afigura-se-nos dever ser a citada definição a aplicável, tanto mais que não descortinamos qualquer rejeição da mesma, expressa ou tácita (() Como diz SOARES MARTÍNEZ, Direito Fiscal, 7ª edição, pág. 67, «o legislador fiscal só deverá afastar-se das noções e juízos já elaborados no seio de outros ramos de Direito (...) quando isso lhe é exigido pelos fins próprios do sistema fiscal ». Este princípio doutrinal veio a ser acolhido pelo legislador, que o verteu no n.º 2 do art. 11.º da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro, onde se diz: «Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei». ).
Antes da entrada em vigor do DL n.º 202/96, de 23 de Outubro, a lei não previa o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, designadamente na lei fiscal.
Como se refere no preâmbulo do DL n.º 202/96 – diploma legal que veio estabelecer o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei –, «Face à inexistência de normas específicas para a avaliação de incapacidades na perspectiva desta lei [Lei n.º 9/89], tem sido prática corrente o recurso à Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, perspectivada para a avaliação do dano em vítimas de acidentes de trabalho e doenças profissionais, de forma a possibilitar alguma uniformidade valorativa, a nível nacional». Ou seja, porque a lei, até à data da entrada em vigor do referido DL n.º 202/96 e como se reconheceu no preâmbulo deste diploma, não estabelecia as regras para avaliar a incapacidade da pessoa com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, generalizou-se a prática de nessa avaliação aplicar a TNI, se bem que esta esteja perspectivada para a avaliação do dano em vítimas de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Aliás, aquele diploma veio pôr termo ao vazio legislativo existente nesse domínio, consagrando a prática que vinha sendo seguida (n.º 1 do seu art. 4.º), sem prejuízo de reconhecer a necessidade de instituir uma tabela específica para esse fim.
No n.º 1 do art. 2.º do mesmo diploma legal, comete-se a competência para a avaliação da incapacidade às juntas médicas constituídas nas sub-regiões de saúde. Também neste ponto, a lei mais não fez do que reconhecer expressamente a prática que vinha sendo seguida e a que se alude também no preâmbulo daquele decreto-lei.
Quanto ao meio de provar essa incapacidade antes da entrada em vigor do DL n.º 202/96, admitindo que para esse efeito pudessem também servir outros meios de prova, sem dúvida que o atestado médico de incapacidade emitido pelas sub-regiões de saúde era meio idóneo para fazer essa prova. Aliás, no ponto 1.1 da Circular da DGCI com o n.º 28/90, de 22 de Junho, a AT reconhecia que «A prova da deficiência poderá ser feita por declaração passada pelas Administrações Regionais de Saúde ou Centros de Saúde; declaração da Associação de Deficientes das Forças Armadas ou certidão de sentença judicial, cujo documento deve referir de modo inequívoco se a deficiência é permanente e qual o grau de invalidez».
Com a entrada em vigor do DL n.º 202/96, a prova da incapacidade passou a ser efectuada através de atestado emitido pelo presidente da junta médica, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 4.º daquele diploma e obedecendo ao modelo em Anexo II ao mesmo. Esse atestado, que deve obedecer aos requisitos enumerados no n.º 4 art. 4.º do DL n.º 202/96() Requisitos que foram alargados pela nova redacção dada àquele número pelo DL n.º 174/97, de 19 de Julho., adquiriu uma função multiuso, nos termos do n.º 6 do mesmo preceito legal, aditado pelo DL n.º 174/97, de 19 de Julho.
Concluindo: ainda antes da entrada em vigor do DL n.º 202/96, como depois, por força do que ficou expressamente consignado neste diploma, as sub-regiões de saúde eram competentes para, mediante a aplicação da TNI, avaliar a incapacidade da pessoa com deficiência e emitir o atestado respectivo, com vista à obtenção dos benefícios previstos na lei, designadamente benefícios fiscais em sede de IRS. Isso mesmo era reconhecido pela Administração, através da referida Circular n.º 28/90.
No entanto, pese embora a entrada em vigor do DL n.º 202/96 não tenha, nos termos que ficaram referidos, trazido inovação de monta no que respeita à atribuição da competência para avaliar as incapacidades das pessoas deficientes para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, designadamente aos benefícios fiscais, ao método usado para essa avaliação (a aplicação da TNI) e ao meio de comprovar a incapacidade (ainda que tenha definido novos termos para o atestado a emitir), trouxe uma alteração quanto aos critérios a observar na determinação do valor final da incapacidade que assumiu grande repercussão prática: afastou a consideração de quaisquer limites na determinação da incapacidade sempre que a disfunção possa ser atenuada ou compensada, ao contrário do que sucedia na TNI, em que a redução da incapacidade, no caso de substituição, no todo ou em parte, através de prótese, poderia ser reduzida, mas não em limite superior a 15%. Ou seja, de acordo com o regime do DL n.º 202/96, para a fixação do coeficiente de incapacidade apenas releva a disfunção residual existente após a aplicação dos respectivos meios de correcção.
Isto porque, enquanto a alínea c) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI dispõe que «Quando a função for substituída, no todo ou em parte, por prótese, a incapacidade poderá ser reduzida, consoante o grau de recuperação da função e da capacidade de ganho do sinistrado, não podendo, porém, tal redução ser superior a 15%», a alínea e) do n.º 5 das Instruções Gerais que constituem o Anexo I ao DL n.º 202/96, dispõe: «Sempre que a disfunção possa ser atenuada, no todo ou em parte, pela aplicação de meios de correcção ou compensação (próteses, ortóteses ou outros), o coeficiente de capacidade arbitrado deve ser correspondente à disfunção residual após aplicação de tais meios, sem limites máximos de redução dos coeficientes previstos na Tabela».
Como é facilmente perceptível, esta alteração tem como consequência que deficiências que anteriormente conferiam um grau de incapacidade igual ou superior a 60% e, por isso, que permitiam aceder à atribuição de benefícios fiscais em sede de IRS, deixaram de o permitir. Em termos mais simples, muitos dos que anteriormente eram considerados pela lei fiscal como pessoas com deficiência relevante para acederem aos benefícios fiscais em sede de IRS, deixaram de o ser.
É essa alteração, afinal, que ditou que a AT tenha considerado que o atestado apresentado pelos Contribuintes – emitido em 1995 e, por isso, ao abrigo de regime da avaliação da incapacidade que não era o do DL n.º 202/96 – não servia para documentar a deficiência declarada relativamente ao Contribuinte marido e ao ano de 1996 e, consequentemente, tenha procedido à correcção dos elementos declarados, no sentido de desconsiderar a deficiência invocada, e, com base nesses elementos corrigidos, tenha procedido à liquidação impugnada nestes autos.
2.2.3 Pode a AT exigir aos contribuintes que, sujeitos a avaliação da sua incapacidade antes da entrada em vigor do DL n.º 202/96 e munidos do respectivo atestado, apresentavam grau igual ou superior a 60%, a apresentação de novo atestado médico emitido de acordo com os critérios de avaliação aprovados por aquele diploma legal?
A questão não é nova e tem sido amplamente tratada pela jurisprudência, tendo-se firmado quase unanimidade no sentido de que a avaliação relevada em sede de IRS como pressuposto de benefícios fiscais deve ser efectuada segundo os critérios da TNI, relativamente aos anos anteriores a 1996, e segundo os critérios do DL n.º 202/96, relativamente ao ano de 1996 e seguintes (() Face aos numerosos casos, dispensamo-nos de os identificar, referindo apenas, por mais recentes, os acórdãos do STA proferidos nos processos com os n.ºs 26.087, 26.243 e 26.145, em 14 de Novembro de 2001, os dois primeiros, e em 21 do mesmo mês, o terceiro.).
Seguimos essa jurisprudência, da qual decorre que a AT, no exercício dos seus poderes de fiscalização (cfr. art. 119.º, n.º 1, do CIRS), pode exigir do sujeito passivo, que relativamente ao ano de 1996 e seguintes se declarou como pessoa com deficiência igual ou superior a 60%, que exiba atestado comprovativo emitido nos termos do DL n.º 202/96.
Vejamos porquê:
O IRS é um imposto sobre o rendimento, periódico e de repetição anual, em que «[a] situação pessoal e familiar dos relevante para efeitos de tributação é aquela que se verificar no último dia do ano a que respeita o imposto» (art. 14.º, n.º 7 (() Aditado pelo art. 24.º, n.º 2, da Lei n.º 65/90, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 1991).), do CIRS).
Assim, porque a situação pessoal fiscalmente relevante é a que se verifica em 31 de Dezembro do ano a que respeita o imposto e porque a incapacidade relevada pela lei fiscal como pressuposto dos benefícios a conceder aos sujeitos passivos de IRS integra essa situação pessoal, os critérios técnico-legais de avaliação daquela incapacidade são os que vigorarem no último dia do ano a que respeita o imposto.
Note-se também que o direito a esses benefícios, como benefícios fiscais que são, constitui-se na data da verificação dos respectivos pressupostos, nos termos do disposto no art. 11.º do EBF (() Disposição legal que diz: «O direito aos benefícios fiscais deve reporta-se à data da verificação dos respectivos pressupostos, ainda que esteja dependente de reconhecimento declarativo pela administração fiscal ou de acordo entre esta e a pessoa beneficiada, salvo quando a lei dispuser de outro modo».). Assim, não pode falar-se no direito aos benefícios fiscais antes de completados os factos tributários cujos efeitos constitutivos da obrigação tributária aqueles benefícios impedem ou conformam; aquele direito só nasce em 31 de Dezembro do ano a que respeita o imposto.
Note-se ainda que, em relação aos benefícios fiscais em causa, tratando-se de benefícios fiscais automáticos (() Porque a respectiva eficácia surge automaticamente, ope lege, sem necessidade de qualquer iniciativa por parte do contribuinte ou intervenção da AT com vista ao reconhecimento do direito ao benefício. Nos termos do art. 4.º, n.º 1, do EBF, os benefícios que «resultam directa e imediatamente da lei» são «automáticos» (por oposição aos benefícios «dependentes de reconhecimento», que «pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento»). Como diz NUNO SÁ GOMES, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 165, pág. 133, «nestas situações, os benefícios fiscais não são concedidos pela administração fiscal, mas estabelecidos directamente na lei, nascendo o direito subjectivo ao benefício correspondente, da simples verificação dos respectivos pressupostos».), pode o legislador, a todo o tempo, alterar quer os respectivos pressupostos quer o critério legal para determinação dos mesmos.
Assim, para efeitos da concessão de benefícios fiscais a pessoas com deficiência relativamente ao ano de 1996 e seguintes não releva a avaliação da incapacidade efectuada com base em critérios anteriores aos do DL n.º 202/96, que entrou em vigor em 30 de Novembro de 1996, motivo por que, em relação àqueles anos, não pode servir de comprovativo do grau de incapacidade produzido pela deficiência o atestado emitido com base nesses critérios.
Pode, pois, a AT, no exercício dos poderes de fiscalização que lhe incumbem (arts. 119.º, n.º 1, e 124.º, n.º 1, alínea c), do CIRS e 6.º do EBF), exigir que o sujeito passivo que se declarou como pessoa com deficiência igual ou superior a 60% na declaração de rendimentos do ano de 1996 ou seguintes, exiba atestado comprovativo emitido nos termos do DL n.º 202/96.
Assim, não tendo os Recorrentes demonstrado que a incapacidade declarada havia sido avaliada de acordo com os critérios definidos pelo DL n.º 202/96, em vigor à data em que, segundo o disposto no art. 14.º, n.º 7, do CIRS, se define a situação concreta dos contribuintes – no caso, 31 de Dezembro de 1996 –, não enferma de ilegalidade a liquidação impugnada. A sentença recorrida, que julgou nesse sentido, não merece censura.
2.2.4 Não se argumente, como decorre da conclusão n.º 1 das alegações dos Recorrentes, que a AT altera os pressupostos de concessão do benefício fiscal.
Na verdade, a AT não altera aqueles pressupostos, que estão definidos na lei. O que a AT se limita a fazer, no exercício de competências que lhe cabem, é a verificar se estão ou não verificados tais pressupostos, designadamente se o Contribuinte logrou provar que é pessoa com deficiência fiscalmente relevante, a fim de poder usufruir dos benefícios fiscais que a lei concede em tal caso.
A AT não altera pressuposto algum, nem sequer questiona o valor probatório do atestado apresentado pelos Contribuintes. Como resulta do que ficou já dito, não pode questionar-se que o Recorrente marido, face ao critério utilizado naquele atestado, tem uma incapacidade superior a 60%, nem sequer (() Pelo menos de acordo com a jurisprudência maioritária (cfr. o acórdão do STA de 15 de Dezembro de 1999, proferido no processo com o n.º 24.305).) que esse atestado é meio idóneo para comprovar a deficiência fiscalmente relevante em relação aos anos anteriores a 1996. No entanto, porque a avaliação a que se reporta o atestado foi efectuada ao abrigo de um critério legal que já não vigorava em 31 de Dezembro de 1996, o atestado não é meio idóneo para fazer operar o benefício fiscal relativamente ao ano de 1996 e seguintes. Foi esse o entendimento da AT na liquidação impugnada.
Quanto ao teor da conclusão n.º 2, a mesma, salvo o devido respeito, parece assentar num pressuposto que não se verifica. Na verdade, na fundamentação externada pela AT relativamente ao acto impugnado não existe referência a circular alguma.
Não se argumente também, como parece resultar das conclusões com os n.ºs 3 e 7, que a AT estaria a aplicar retroactivamente o DL n.º 202/96, de 23 de Outubro. Como ficou já dito, sendo a situação pessoal fiscalmente relevante a existente em 31 de Dezembro do ano a que o imposto respeita e porque a incapacidade do sujeito passivo se reporta a essa situação pessoal, a incapacidade a considerar é a existente nessa data, aferida nos termos da lei então vigente. Assim, a AT, ao exigir aos Contribuintes que comprovassem a deficiência fiscalmente relevante por eles declarada com referência ao ano de 1996 de acordo com o regime fixado pelo DL n.º 202/96, não fez qualquer aplicação retroactiva deste diploma.
Finalmente, não se argumente, como parecem fazê-lo os Recorrentes nas conclusões n.ºs 5 e 6, que o direito ao benefício fiscal surgiu na data em que o atestado por eles apresentado foi emitido, motivo por que a AT não podia deixar de considerar o benefício fiscal. A actuação da AT só seria ilegal, repete-se, caso entendesse que o benefício em causa não podia operar em relação aos anos anteriores a 1996. Em relação a este ano e aos seguintes, a AT não só pode, como deve, exigir que a comprovação do grau de incapacidade seja efectuada mediante atestado emitido ao abrigo do DL n.º 202/96. Não pode sequer falar-se de qualquer direito adquirido, pois como também já ficou dito, o direito aos benefícios não nasce antes de completados os factos tributários cujos efeitos constitutivos da obrigação tributária aqueles benefícios impedem ou conformam, ou seja, aquele direito só nasce em 31 de Dezembro do ano a que respeita o imposto A este propósito, permitimo-nos aqui citar o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 6 de Junho de 2001(() Proferido no processo com o n.º 26113.): «não poderá falar-se da existência de qualquer efeito jurídico consolidado consubstanciado na definição irrevogável de uma certa natureza e grau de incapacidade.
E não poderá falar-se porque [...] a questão da existência e da relevância que a incapacidade possa alcançar no domínio tributário apenas se pode colocar quando pela ocorrência dos factos tributários haja de ser convocada a aplicação de norma que impeça ou atenue o âmbito dos efeitos constitutivos da obrigação tributária que a lei faz deles emergir.
Apelar à determinação da incapacidade deita anteriormente com o recurso a critérios técnico-científicos entretanto abandonados apenas seria juridicamente admissível se a lei previsse a aplicação ultra-activa do regime anterior ao abrigo do qual o exame de avaliação da incapacidade foi feito.
Ora, não existe norma que tenha determinado esta eficácia ultra-activa dos critérios de aferição da incapacidade fiscalmente relevante, pelo que vale a regra geral».
2.2.5 Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões:
I – Antes da entrada em vigor do DL n.º 202/96, de 23 de Outubro, a lei não previa o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, designadamente na lei fiscal, motivo por que era prática corrente o recurso à Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), aprovada pelo DL n.º 341/93, se bem que esta esteja perspectivada para a avaliação do dano em vítimas de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
II – O DL n.º 202/96, que veio regular o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de aceder às medidas e benefícios previstos na lei, designadamente aos benefícios fiscais, trouxe uma inovação quanto aos critérios a observar na determinação do valor final da incapacidade que assumiu grande repercussão prática: apenas dá relevância à disfunção residual verificada após a melhor correcção ou atenuação, ou seja, afastou a consideração de quaisquer limites na determinação da incapacidade sempre que a disfunção possa ser atenuada ou compensada, ao contrário do que sucede na TNI, em que a redução da incapacidade, no caso de substituição, no todo ou em parte, através de prótese, pode ser reduzida, mas não em limite superior a 15% (cfr. alínea c) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI e alínea e) do n.º 5 das Instruções Gerais que constituem o Anexo I ao DL n.º 202/96).
III – A situação pessoal dos sujeitos relevante para efeitos de tributação em IRS é aquela que se verificar no último dia do ano a que o imposto respeite (art. 14.º, n.º 7, do CIRS).
IV – A incapacidade relevada pela lei fiscal como pressuposto dos benefícios a conceder aos sujeitos passivos de IRS integra essa situação pessoal, motivo por que os critérios técnico-legais de avaliação daquela incapacidade são os que vigorarem no último dia do ano a que respeita o imposto.
V – Assim, para efeitos da concessão de benefícios fiscais a pessoas com deficiência relativamente ao ano de 1996 e seguintes não releva a avaliação da incapacidade efectuada com base em critérios anteriores aos do DL n.º 202/96, que entrou em vigor em 30 de Novembro de 1996, motivo por que, em relação àqueles anos, não pode servir de comprovativo do grau de incapacidade produzido pela deficiência o atestado emitido com base nesses critérios.
VI – Pode, pois, a Administração tributária, no exercício dos poderes de fiscalização que lhe incumbem (art. 119.º, n.º 1, e 124.º, n.º 1, alínea c), do CIRS e 6.º do EBF), exigir que o sujeito passivo que se declarou como pessoa com deficiência igual ou superior a 60% na declaração de rendimentos do ano de 1996 ou seguintes, exiba atestado comprovativo emitido nos termos do DL n.º 202/96. * * * 3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em duas UCs. * Lisboa, 23 de Abril de 2002 |