Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06596/02
Secção:Contencioso Tributário - 1º Juizo Liquidatário
Data do Acordão:05/25/2004
Relator:Casimiro Gonçalves
Descritores:AUDIÊNCIA PRÉVIA
PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS ESPECIAS
Sumário:O direito de audição antes da liquidação e ou da conclusão do relatório da inspecção tributária, em que se materializa o princípio constitucional da participação do administrado, estando, embora, agora expressamente previsto e estabelecido nas als. a) e e) do nº 1 do art. 60º da LGT, já antes da entrada em vigor desta Lei (LGT) estava consagrado na lei ordinária, nomeadamente no art. 100º do CPA, por força do qual se impunha o direito de audiência prévia tanto para o procedimento administrativo comum, como para os procedimentos administrativos especiais.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:RELATÓRIO

1.1. A Fazenda Pública recorre da sentença que, proferida pelo Mmo. Juiz do TT de 1ª Instância de Braga no processo de impugnação que ali correu termos sob o nº 12/2001, julgou procedente tal impugnação deduzida por Maria .....e Deolindo ....., ambos com os sinais dos autos, contra as liquidações adicionais de IRS dos anos de 1995, 1996 e 1997.

1.2. Alega e termina formulando a Conclusão seguinte:
É esta a posição da Fazenda Pública que os Ilustres Desembargadores terão de decidir, em conclusão final.
Parece ao Representante da Fazenda Pública, e salvo melhor opinião, que a alínea d), do n° 1, do art. 60° da LGT foi interpretada no seu sentido literal, sem observância dos pressupostos da sua aplicação e dos inconsequentes efeitos que a sua omissão produziu.
Considera-se ainda, sem prescindir, que, pese a falta de audição prévia, deverá o acto ser mantido uma vez que o Impugnante aceitou expressamente a utilização dos métodos indirectos para apuramento do rendimento líquido dos anos em questão.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida, a ser substituída por outra que reponha a validade das liquidações impugnadas.

1.3. Os recorridos contra-alegaram pela forma seguinte:
1. A douta sentença recorrida que a Fazenda Nacional quer ver revogada nenhuma censura merece, e, aliás, honra seja feita ao Meritíssimo Juiz do Tribunal Tributário de Braga, que não teve qualquer dúvida em decidir como decidiu, interpretando de forma clara que o que estava em causa, antes de mais, era a invocada falta de audição prévia dos impugnantes, cujo incumprimento pela AF inquinava de ilegalidade o acto tributário.
2. Falta esta, que diga-se grave, dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos impugnantes, consignadas da Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 267°, princípios estes que foram transpostos para o artigo 60° da LGT, que pelos vistos no entender da F.N. se trata de letra morta ou apenas de "mera formalidade", como afirma.
3. O recurso da F.N. é estranho, porque, se na contestação da impugnação dizia que a AF não estava obrigada a cumprir o direito de audição prévia, porque se tratava de uma acção de fiscalização que teve início em 14.10.98, e que a LGT apenas entrou em vigor em 01.01.99, afinal,
4. agora, em sede de recurso, a questão para a FN não é a da entrada em vigor da LGT, mas sim a "relegação para o campo das meras formalidades da notificação do impugnante quanto à utilização do referidos métodos".
5. Deve dizer-se que esta mudança da FN só se entende, porque, talvez a FN não tenha tido tempo para estudar convenientemente os autos, para se aperceber que qualquer recurso era manifestamente votado ao insucesso, isto porque,
6. Desde logo, as alegações de recurso que, sendo eruditas, foram apresentadas no mesmo dia da notificação daquele despacho/sentença (23.10.01), o que, se na verdade até tem algum mérito, devido à celeridade com que foram apresentadas, já não se compreende que se recorra "a torto e a direito" só porque se deve recorrer, obstando, deste modo, a que se obtenha em tempo razoável a celeridade da justiça.
7. Mas, a verdade é que a FN não tem qualquer razão ao pretender que V. Exs. revoguem a douta decisão do MJ do TT de Braga, uma vez que,
8. O direito de audição prévia é um direito fundamental dos contribuintes, elevado à dignidade de "garantias fundamentais" consagradas na CRP, donde que não é dada a possibilidade à AF e, muito menos à FN, de dispensar o exercício daquele direito,
9. sendo que a sua violação, como fez a AF, ao não dar oportunidade à impugnante de ponderada e conscientemente decidir ou não da justeza da tributação, cometeu um vício do procedimento por preterição de uma formalidade absolutamente essencial, cuja omissão gera a anulabilidade do acto tributário, daí que a tese da FN não faz qualquer sentido e, até é contrária ao que defende a AF.
10. A verdade é que não se compreende este recurso da FN, e até é despropositado, quando através da circular 13/99 os Serviços Fiscais, em esclarecimento ao artigo 60° da LGT, no seu n° 1, instruíram os serviços do seguinte modo: «1. Deverão ser objecto de audiência dos contribuintes, designadamente: a)... b) As decisões que se fundamentem em elementos que já deveriam ter sido submetidos a audiência prévia, mas em que esta formalidade não foi cumprida».
11. Pena é que o Estado, se tivesse que pagar custas nos processos e demais encargos inerentes, à semelhança dos particulares, que antes de recorrerem aos tribunais têm que pensar se valerá apenas gastar tempo e dinheiro, não tenha esta mesma visão, o que com toda a certeza se pensaria se valeria a pena recorrer de decisões que inclusivamente para casos semelhantes a FN não recorreu e se contentou com as decisões judiciais,
12. Inclusivamente, a AF refez muitas das decisões para poder notificar os contribuintes de um direito (audiência prévia) que lhes assistia e assiste.
13. Por que será que aos ora impugnantes se tenta negar esse direito?
14. Não seria muito mais fácil para a FN cumprir apenas as instruções emanadas superiormente (direito circulatório) para se dissiparem todas as dúvidas, se é que alguma vez elas existiram?
15. Razão porque se entende que a douta sentença deve ser mantida.
16. Porém, se V. Exas. assim não entenderem sempre se dirá que o processo deve ser remetido ao Tribunal "a quo" para apreciação das restantes questões nele suscitadas.

1.4. O EMMP emite Parecer onde sustenta o provimento do recurso por entender que, constando dos autos (fls. 14 e 38) que os contribuintes concordaram com a aplicação de métodos indirectos de fixação da matéria colectável e tendo deduzido oportunamente impugnação, por não terem logrado vencimento na reclamação apresentada (fls. 38/40), se verifica que o respectivo interesse não ficou desprotegido da defesa adequada.
Dos elementos dos autos ressalta que, quer a decisão de aplicação de métodos indiciários, quer a conclusão do relatório da inspecção tributária ocorreram antes da entrada em vigor da LGT, ou seja no decurso do ano de 1998, o que afasta desde logo a aplicação do disposto no art. 60° da LGT, se considerarmos que a declaração expressa dos impugnantes, de concordância com a aplicação dos métodos indiciários corresponde à opção implícita contida no n° 2 do art. 3° do DL 398/98 de 17 de Dezembro.
Ora, a violação do art. 100° do CPA reconduz-se a um vício de forma, por preterição de uma formalidade essencial, estando essa formalidade instituída para assegurar as garantias de defesa da interessada, por forma a garantir justeza e correcção do acto final do procedimento. Porque se trata de um trâmite destinado a assegurar as garantias de defesa dos particulares a possibilidade de também aqui ser possível ocorrer a sua degradação em formalidade não essencial, quer dizer que a preterição não implica necessariamente a invalidade do acto final.

1.5. Correram os Vistos legais e cabe decidir.

FUNDAMENTOS

2.1. A sentença recorrida julgou provados os factos seguintes:
1. A AF procedeu a inspecção da contabilidade da impugnante, relativamente aos exercícios referidos, tendo o relatório respectivo a data de 14.10.98 - fls. 29 a 34; 2. Na sequência deste relatório, a 21.01.99, o director distrital de finanças fixou, por aplicação de métodos Indiciários, o conjuntos dos rendimentos líquidos dos impugnantes naqueles anos - fls. 23 a 28;
3. Antes destes despachos, nenhum dos impugnantes foi notificado para se fazer ouvir.

2.2. Em sede de fundamentação dos factos provados a sentença exarou: «Os factos dados como assentes sob 1 e 2 estão documentalmente provados, resultando o de 3 do raciocínio "por exclusão de partes".

3. Perante esta factualidade e especificando que a única questão a resolver será, para já, a da falta de audição invocada, posto que, procedendo, inutiliza o conhecimento de qualquer outra, a sentença julgou procedente a impugnação por entender que o processo de liquidação sofre de ilegalidade por preterição de formalidade legal: a falta de audiência prévia prevista na al. d) do nº 1 do art. 60º da LGT.
Para tanto, a sentença funda-se no seguinte entendimento:
A lei processual é de aplicação imediata, salvo disposição em contrário (art. 142°/1 do CPC) e relativamente à LGT, nenhuma ressalva existe (arts. 1° a 6° do DL 398/98, de 17.12), pelo que ela se aplica aos processos pendentes.
Assim, em 21/1/99, o director de finanças, antes da prolação dos ditos despachos, deveria ter ordenado o cumprimento do disposto na al. d) do nº 1 do art. 60º da LGT, posto que estava em questão, anunciada no relatório da fiscalização, a adopção de métodos indirectos de tributação e já que se trata de formalidade essencial, cujo incumprimento inquina de ilegalidade o processo de liquidação.

4. Discorda a recorrente Fazenda do assim decidido, alegando que a al. d), do n° 1, do art. 60° da LGT foi interpretada no seu sentido literal, sem observância dos pressupostos da sua aplicação e dos inconsequentes efeitos que a sua omissão produziu, sendo que, no caso, pese embora a falta de audição prévia, o acto deverá ser mantido uma vez que o impugnante aceitou expressamente a utilização dos métodos indirectos para apuramento do rendimento líquido dos anos em questão.
É esta última asserção que, por ser de natureza factual, determina a competência em razão da hierarquia deste TCA.
Mas, todavia, esta aceitação expressa por parte do impugnante não vem especificada no Probatório da sentença.
Ora, apesar de no despacho que consubstancia a «decisão do órgão competente» (cfr. fls. 65 a 67) se fazer constar que «De harmonia com a acta da reunião, houve acordo entre os peritos quanto à existência de fundamentos para a tributação por métodos indirectos, mas não quanto à quantificação do rendimento líquido da categoria C», não se vê que esta conclusão (existência de acordo) resulte da dita acta (cfr. cópia respectiva a fls. 57 e 58) nem do Parecer do perito representante do impugnante (cfr. cópia respectiva a fls. 61 a 63), em cujo ponto 2º ele afirma, mesmo, que o teor do relatório da fiscalização «... contradiz a aplicação dos métodos indiciários».
É verdade que na reclamação para a Comissão, apresentada em 1/3/99 - cfr. cópia a fls. 14 e 15 - o reclamante Deolindo que aceita e concorda que lhe sejam aplicados métodos indiciários sobre os anos em causa, especialmente em 1995 e 1996, mas já não resulta de tal reclamação que aceite esse regime em relação ao ano de 1997.
Por esta razão, também agora se acolhe o Probatório fixado na sentença não se julgando provado que o impugnante tenha aceite expressamente a utilização dos métodos indirectos para apuramento do rendimento líquido dos anos em questão.

5. A questão a decidir é, assim, a de saber se a falta de audição invocada integra, ou não, ilegalidade por preterição de formalidade legal, nos termos da al. d) do nº 1 do art. 60º da LGT.
Vejamos.
A Fazenda sustenta que esta al. d) foi interpretada no seu sentido literal, sem observância dos pressupostos da sua aplicação e dos inconsequentes efeitos que a sua omissão produziu e que, apesar disso, no caso, pese embora a falta de audição prévia, o acto deverá ser mantido uma vez que o impugnante aceitou expressamente a utilização dos métodos indirectos para apuramento do rendimento líquido dos anos em questão.
Mas, a nosso ver, falece-lhe a razão.
Com efeito, vem apenas provado que o relatório da Fiscalização foi elaborado em 14/10/98 e que, na sequência disso, o DDF fixou, em 21/1/99, por aplicação de métodos Indiciários, o conjuntos dos rendimentos líquidos dos impugnantes nos anos em causa.
Ora, o direito de audição antes da liquidação e ou da conclusão do relatório da inspecção tributária, em que se materializa o princípio constitucional da participação do administrado, estando, embora, agora expressamente previsto e estabelecido nas als. a) e e) do nº 1 do art. 60º da LGT, já antes da entrada em vigor desta Lei (LGT) estava consagrado na lei ordinária, nomeadamente no art. 100º do CPA, por força do qual se impunha o direito de audiência prévia tanto para o procedimento administrativo comum, como para os procedimentos administrativos especiais (cfr. ac. do STA, de 30/10/2002, rec. 0780/02).
Assim, independentemente da questão da aplicação do regime consignado na LGT (constatando que o despacho do DDF é proferido já na vigência da LGT e que as liquidações são efectuadas também na vigência dessa lei, a sentença considera a norma do art. 60º da LGT como de natureza processual e por isso entende que a mesma é de aplicação imediata), já o disposto naquele citado art. 100º do CPA impunha tal audiência prévia (aliás, a doutrina veiculada pela Circular 13/99 da AT, citada pelos recorridos no art. 10º das suas contra-alegações, parece aceitar tal aplicabilidade).
É verdade que, como sustenta o MP ao referenciar o ac. de 25/1/2000, deste TCA, rec. 1023/98, se tem entendido que a violação do art. 100° CPA, pode, em certos casos, ficar sanada, quando a preterição de tal formalidade legal se degrada em preterição de formalidade não essencial: embora se reconduza a um vício de forma, por preterição de uma formalidade essencial, essa formalidade está instituída para assegurar as garantias de defesa da interessada, por forma a garantir a justeza e correcção do acto final do procedimento, pelo que, porque se trata de um trâmite destinado a assegurar as garantias de defesa dos particulares, pode ocorrer a sua degradação em formalidade não essencial (caso em que a preterição não implica necessariamente a invalidade do acto final) se não tiver resultado uma lesão efectiva e real dos interesses ou valores protegidos pela norma violada.
E, no caso, na tese da recorrente e do MP, uma vez que os contribuintes concordaram com a aplicação de métodos indirectos de fixação da matéria colectável e deduziram oportunamente impugnação, por não terem logrado vencimento na reclamação apresentada, verificar-se-ia tal condicionalismo, ou seja, o interesse dos contribuintes não terá ficado desprotegido da defesa adequada.
Todavia, esta tese não pode acolher-se.
É que, como se disse, por um lado, também não ficou provado aquele circunstancialismo atinente à concordância dos contribuintes com a aplicação de métodos indirectos de fixação da matéria colectável e, por outro lado, mesmo que se aceitasse a relevância da declaração do contribuinte Deolindo no sentido de que aceitava os métodos indirectos para os anos de 1995 e 1996, sempre ficaria de fora o exercício de 1997 e sempre ficaria de fora a discordância quanto à quantificação em relação a todos os anos, pelo que, uma vez que o direito de audição se não restringe apenas à aplicação do método indiciário mas também à quantificação operada com recurso a esse método, não se poderia, no caso, concluir que a preterição dessa formalidade não resultou em lesão efectiva e real dos interesses ou valores protegidos pela norma violada.
Improcede, portanto, o recurso.

DECISÃO
Termos em que acordam, em conferência, os juizes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo em, negando provimento ao recurso, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, atenta a qualidade da recorrente (Fazenda Pública).

Lisboa, 25 de Maio de 2004