Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERNANDA ISABEL PEREIRA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL CONTRATO DE FACTORING EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS TRIBUNAL ADMINISTRATIVO TRIBUNAL COMUM CONCURSO PÚBLICO CRÉDITO PEDIDO CAUSA DE PEDIR CESSÃO DE CRÉDITOS OPONIBILIDADE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO OPOSIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS E DECISÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 03/02/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - TRIBUNAIS / COMPETÊNCIA MATERIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAL / COMPETÊNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / EXCEPÇÕES DILATÓRIAS ( EXCEÇÕES DILATÓRIAS ) / INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL. DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS. | ||
Doutrina: | - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, 91. - Pedro Romano Martinez, Contratos Comerciais, 69. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 585.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 96.º, AL. A), 576.º, N.º 2, 577.º, AL. A), 608.º, N.º 2. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 211.º N.º 1, 212.º, N.º3. ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (ETAF), APROVADO PELA LEI N.º 13/2002, DE 19 DE FEVEREIRO, (COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELAS LEIS N.º 4/2003, DE 19 DE FEVEREIRO, N.º 107-D/2003, DE 31 DE DEZEMBRO, N.º 1/2008, DE 14 DE JANEIRO, N.º 2/2008, DE 14 DE JANEIRO, N.º 26/2008, DE 27 DE JUNHO E DECRETO-LEI N.º 166/2009, DE 31 DE JULHO): - ARTIGOS 1.º, 4.º, N.º 1, ALS. E) E F). LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS (APROVADA PELA LEI N.º 52/2008, DE 28 DE AGOSTO): - ARTIGO 26.º | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DOS CONFLITOS: -DE 04/07/2006, PROC. N.º 11/2006, DE 09-06-2010, PROC. N.º 05/10, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT . | ||
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Sumário : | I - A repartição da competência em razão da matéria entre as diferentes categorias de tribunais tem por base o princípio da especialização, do qual resulta, por um lado, a competência residual dos tribunais judiciais para todas as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional e, por outro, a competência exclusiva dos tribunais administrativos e tributários para as causas que lhe são atribuídas, as quais, genericamente, são aquelas que emergem de relações jurídico-administrativas e fiscais (n.º 1 do art. 211.º e n.º 3 do art. 212.º, ambos da CRP, art. 26.º da LOTJ e art. 1.º do ETAF). II - A competência material é aferida pelo pedido e pelos respectivos fundamentos, irrelevando qualquer juízo de prognose que se possa fazer relativamente à sua viabilidade. III - Tendo-se demonstrado que, por via de um contrato de factoring, a autora adquiriu um crédito que teve origem em empreitadas de obras públicas que foram precedidas de procedimentos concursais encetados pelo réu e respeitando as facturas cujo pagamento é peticionado à execução dos correspondentes contratos (os quais se regem por normas de direito público), é de concluir que a causa se insere na previsão das als. e) e f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, carecendo, consequentemente, os tribunais judiciais de competência em razão da matéria para dirimir o litígio. IV - O contrato de factoring não constitui um negócio jurídico abstracto, tendo sempre por de trás o negócio constitutivo do direito de crédito transmitido. Sendo um negócio baseado estruturalmente na figura da cessão de créditos, são oponíveis ao factor todos os meios de defesa que poderiam ser invocados pelo devedor contra o seu credor, ainda que aquele os ignorasse (art. 585.º do CC). V - Não pode cindir-se a competência material para conhecer do litígio consoante o devedor – aderente ou cedente – tenha ou não deduzido oposição com base nos meios de defesa que podia opor relativamente ao negócio donde emerge o direito de crédito e atribuir-se a mesma, no primeiro caso, aos tribunais administrativos e fiscais e, no segundo caso, aos tribunais judiciais. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório:
Caixa AA - Instituição Financeira de Crédito, S.A., intentou, em 14 de Fevereiro de 2013, a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra o Município de …, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de € 391.891,27, e, bem assim, de juros de mora à taxa dos juros comerciais sucessiva e legalmente em vigor, acrescida de dois pontos percentuais, desde a data de vencimento até integral pagamento, computando os vencidos em € 53.158,03. Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que no dia 3 de Fevereiro de 2011 celebrou com a Sociedade BB - Engenharia, S.A., um contrato de factoring que teve por objecto a aquisição, por cessão, de créditos comerciais a curto prazo derivados da respectiva venda de mercadorias ou prestação de serviços a terceiros considerados devedores, designadamente, os créditos que a esta sociedade eram devidos pelo Município de Santiago do …. Notificado da cedência, o réu deixou de efectuar pagamentos, em Março de 2011, encontrando-se em dívida à autora facturas que totalizam o montante peticionado. Contestou o réu, alegando, em suma, não lhe ter sido comunicado e desconhecer o conteúdo do contrato celebrado entre a sociedade BB – Engenharia, S.A., e a autora. Ainda assim, pagou inicialmente as facturas à autora, designadamente algumas cujo pagamento foi agora solicitado, mas após a declaração de insolvência da BB – Engenharia, S.A., passou a efectuar os pagamentos à respectiva administradora por solicitação desta. Mais alegou que resolveu os contratos de empreitada de obras públicas celebrados com a BB que estão na origem das facturas em causa devido ao incumprimento desta sociedade. Concluiu pela improcedência da acção. Na réplica a autora respondeu à matéria da excepção do cumprimento parcial. Realizado julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar: «a) parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido formulado pela A. CAIXA AA - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A., e, consequentemente, condena[r] o R. MUNICÍPIO DE … a pagar-lhe a quantia de € 388.528,67, acrescida de juros de mora (…), absolvendo o R. do demais peticionado». Desta sentença apelou o réu, tendo o Tribunal da Relação de Évora proferido acórdão, em 3 de Dezembro de 2015, decidindo «revogar parcialmente a sentença recorrida e, consequentemente: a) Atento o invocado pelo Réu nos art.ºs 24º e 13º da sua Contestação e o disposto no art.º 4º, n.º1, e) e f) do ETAF declara-se o Tribunal “a quo” incompetente em razão da matéria para apreciar o presente litígio quanto à matéria das seguintes facturas: u) - Factura n.º HC-00… emitida em 05/05/2011 e vencida em 04/07/2011 no valor de €4.305,00. k) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €3.834,76; n) - Factura n.º HC-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €5.196,79; q) - Factura n.º HC-C-00… emitida em 26/09/2011 e vencida em 26/11/2011 no valor de €1.904,72; b) Mantendo-se a sua competência para apreciar o presente litígio quanto à restante matéria. c) Altera-se a decisão da matéria de facto nos termos acima expendidos; d) Condena-se o Município de … a pagar à Caixa AA - Instituição Financeira de Crédito, S.A., a soma global das facturas constantes do Ponto 9) dos factos assentes, que ascende ao valor global de € 373.287,40 (trezentos e setenta e três mil, duzentos e oitenta e sete Euros e quarenta cêntimos). e) Condena-se o Município de … a pagar à Caixa AA - Instituição Financeira de Crédito, S.A., a quantia relativa a juros de mora, a calcular em função dos juros comerciais estabelecidos nos Avisos supra citados, contados desde a data de vencimento de cada uma das facturas elencadas no Ponto 9) e até integral pagamento». Ainda inconformado interpôs o réu recurso de revista, aduzindo na respectiva alegação a seguinte síntese conclusiva: «A - O presente recurso vem interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que julgou parcialmente improcedente o recurso da sentença proferida pela Comarca de Setúbal, no processo em referência, na parte em que julga o Tribunal Judicia! competente para dirimir parte do litígio e condena o Município no pagamento de facturas no valor de 373 287,40€ provenientes de contratos de empreitada, que a autarquia já pagou à massa insolvente do co-contratante do Município, BB, SA. B - A decisão ora recorrida julgou, e bem, a Comarca de Setúbal incompetente em razão da matéria para apreciar o presente litígio quanto a quatro das facturas emitidas pela BB, SA ao Município de …, resultantes de CONTRATOS DE EMPREITADAS DE OBRAS PÚBLICAS, cujo pagamento era peticionado pela Caixa AA, SA, primitiva Autora e ora recorrida, contra o primitivo R. ora recorrente; B - Julgou erradamente, no nosso entender a Comarca de Setúbal competente para apreciar o litígio quanto às restantes facturas peticionadas por Caixa AA, SA ao Município …, o que, no entender do recorrente, não está devidamente fundamentado de direito e, está em contradição, aliás, com asserções do próprio Acórdão e viola regras processuais constitucionais e legais. C - Revogou bem a sentença da Comarca de Setúbal quanto à taxa de juros aplicável ao caso - a fixada na cláusula 12a do contrato de factoring celebrado entre a BB, SA e a aqui recorrida - decidindo que são aplicáveis "…as taxas de juro devidas pelo atraso de pagamento de trabalhos executados no âmbito de empreitadas de obras públicas..." que "...correspondem às taxas de juro das operações comerciais." ; D - Na sequência de concursos públicos, o Município recorrente, entre Setembro de 2010 e Fevereiro de 2011 celebrou com a BB, SA os contratos de empreitada de " Requalificação da EM 5… - Acolhimento a M…" e de Requalificação Urbana dos bairros da …, … e … em …. E - Logo em Fevereiro de 2011, BB, SA., celebrou com a aqui recorrida, Caixa AA, SA, o contrato de factoring COM RECURSO constante dos autos. F - Os créditos da BB, SA sobre o Município, cedidos à sociedade recorrida eram, pois, emergentes dos contratos administrativos de empreitada referidos na alínea D) que tinham por objecto obras públicas, e foram celebrados na sequência de procedimentos concursais, e são obrigatoriamente submetidos a normas de direito público. G - Em Dezembro de 2011, a BB, SA foi declarada insolvente por sentença judicial de 5 de Dezembro de 2011. H - Notificado o Município de que tinha sido celebrado o contrato de factoring aludido, autarquia acusou a recepção da comunicação, sem qualquer termo de consentimento e pagou algumas facturas (em Março e Novembro de 2011) à recorrida, que documentavam execução de obras pela BB, SA, no âmbito dos referidos contratos de empreitada de obras públicas. I - Declarada insolvente a BB, SA por sentença publicada no diário da república, 2a série, que advertia os credores para pagarem os créditos devidos à insolvente à massa insolvente, o recorrente Município pagou à respectiva administradora de insolvência, facturas emitidas pela BB, SA, no âmbito dos contratos de empreitada de obras públicas. J - Em Outubro de 2011, a BB deixou ao abandono as obras que vinha executando, criando, aliás, numa delas - reabilitação da Estrada Municipal 5… - fortes condicionantes de acesso dos habitantes a Bairro Residencial, e criando risco de não financiamento das obras candidatadas a fundos europeus, obrigando o Município a realizar novos procedimentos concursais para a realização das obras deixadas ao abandono. L - Face ao que antecede o recorrente RESOLVEU SANCIONATORiAMENTE OS CONTRATOS e reteve o pagamento de facturas em dívida à BB, no montante de 8 761€, para compensação dos prejuízos que lhe foram causados. M - A primitiva A. instou o Município, em Junho e Julho de 2012, a pagar-lhe 391 891,27€ relativo às facturas emitidas pela BB, ao que o recorrente respondeu já ter pago à Administradora de insolvência. N - Em 13 de Fevereiro de 2013 a primitiva acção propôs a presente acção, pedindo condenação da autarquia no pagamento dos referidos 391 891,27€. O - Contudo, o douto Acórdão recorrido considerou a Comarca de Setúbal competente para dirimir a lide no que respeita a algumas das facturas e considerou o mesmo tribunal incompetente no que respeita a outras facturas (as que o Município reteve por força da resolução sancionatória a que alude na alínea L) P - Mas, a causa de pedir na primitiva acção era uma e única para todas as facturas emitidas por BB, SA, no âmbito dos já aludidos contratos de empreitadas de obras públicas. Q - O douto Acórdão recorrido não indicou nem especificou qual a norma legal que fundamenta ter declarado a competência da Comarca de Setúbal, pelo que infringiu o art. 615 n°1 al. b) do CPC, o que determina a nulidade do Acórdão. R - Por outro lado, o douto Acórdão (fls. 14) - decidindo, aliás, bem - diz que "No entanto, em face do disposto no n° 1 do art. 326° do CCP...as taxas de juro devidas pelo atraso no pagamento de trabalhos executados no âmbito de empreitadas de obras públicas, correspondem às taxas de juro das operações comerciais". S - O que é reconhecimento expresso de que à lide não podem deixar de se aplicar as normas de direito público do Código dos Contratos Públicos. T - E está em contradição com os fundamentos por que decide que a Comarca de Setúbal é competente para dirimir a lide, na parte relativa às facturas que o recorrente reteve por força da resolução sancionatória dos contratos de empreitada. U - O douto Acórdão recorrido contém, deste modo, fundamentos que estão em oposição com a decisão, sendo, assim, nulo em conformidade como art. 615° n° 1 alínea c) do CPC. V - Em qualquer caso, ao julgar competente a Comarca de Setúbal para apreciar "...acção em que uma instituição financeira pede a condenação de um Município a pagar-lhe a importância correspondente aos créditos que lhe foram cedidos ao abrigo de um contrato de factoring quando esses créditos emergem de contratos de direito público celebrados entre o ente público e o prestador de bens e serviços" (Ac. do Tribunal de Conflitos do STA de 18/6/2014 - p° n° 3/14), o Acórdão recorrido violou as normas processuais sobre competência dos tribunais. X - A causa de pedir na acção não se funda nem se podia fundar exclusivamente no contrato de factoring celebrado entre a primitiva A. e BB, SA, mas necessariamente se funda também nas relações jurídicas constituídas pelos contratos de empreitada de obras públicas, celebrados entre a BB e o aqui recorrente. Z - Do teor da p.i. não resulta que exista qualquer garantia que autonomize a causa de pedir relativamente aos contratos de empreitada. AA - A douta decisão recorrida infringiu as regras do art. 211° n°1 da CRP, art. 64° do CPC, art. 212° n° 3 da CRP e art. 4º n° 1 alínea e) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, devendo ser revogada e substituída por outra que declare a incompetência absoluta da Comarca de Setúbal para dirimir todo o presente litígio, conforme é jurisprudência unânime e pacífica do Tribunal Conflitos do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 19/12/2012 -proa 020/12, o Acórdão de 16/12014 -proc.027/2014 e o Acórdão de 18/6/2014 - proc. 03/14 (todos in www.dgsi.pt): BB - Sem transigir e só por mera cautela sempre se dirá que a douta decisão, se não fosse revogada por incompetência absoluta do Tribunal, sempre teria de o ser porque, de novo, omitiu pronúncia sobre a matéria a alegada nas conclusões BB a EE das alegações do recurso da sentença de 1ª Instância, e porque fez errada interpretação e aplicação da lei. CC - O douto Acórdão não se pronunciou sobre a violação das regras do CONTRATO DE FACTORING - que é Factoring COM RECURSO - da norma do art 3º do Dec-lei 171/95, e dos arts. 601° do Código Civil e art. 47° do CIRE, pelo que, também, neste particular omitiu pronúncia, o que determina a nulidade da decisão recorrida nos termos do art. 615°n°1alínead)do CPC. DD - E ao condenar o Município a pagar a Caixa AA, SA as facturas que o Município não reteve por força da resolução sancionatória dos contratos de empreitada violou as normas que antecedem. Com efeito, EE - Como resulta do Preâmbulo da Lei 53/2004 de 18/3, a insolvência visa o pagamento de créditos, em condições de igualdade para todos os credores, quanto ao prejuízo decorrente de o património do devedor não ser suficiente. FF - Caso o Município aqui recorrente não pagasse à massa insolvente da BB, teria infringido o art. 47° do Cl RE. GG - Tendo o contrato de factoring sido celebrado entre a sociedade anónima aqui recorrida COM RECURSO, o Município é TERCEIRO DEVEDOR, nos termos do art. 3º do Dec-lei 171/95, HH - Ao assim não considerar, o douto Acórdão recorrido errou ao aplicar ao caso as regras da cessão de crédito previstas no CC (arts. 583° e 585° e 587° °), sem ter em conta que o factoring dos autos é COM RECURSO, pelo que foi a BB que deu garantias e assumiu a responsabilidade peio pagamento do financiamento, tendo designadamente, para o efeito, assinado em branco uma livrança que a recorrida poderia preencher quando e como entendesse. II - Nos termos do art. 3º do Dec-lei 171/95 o recorrente é TERCEIRO DEVEDOR, não tendo havido modificação subjectiva do contrato. JJ - Se houvesse modificação subjectiva do contrato, estar-se-ia obviamente a violar as regras da contratação pública. LL - Ao considerar que a insolvência da BB não era oponível à recorrida, a sentença recorrida está a defraudar o princípio da igualdade dos credores do insolvente e violou normas jurídicas basilares como as do art. 601° do CC e art. 47° do CIRE e interpretou e aplicou incorrectamente a lei. CONSEQUENTEMENTE, Deve, nestes termos e nos mais de direito, ser o presente recurso julgado procedente, revogando-se o douto Acórdão recorrido, na parte em que julga competente a Comarca de Setúbal para dirimir a parte do pleito que não respeita às facturas retida pelo Município por causa da resolução sancionatória dos contratos de empreitada de obras públicas e, em consequência, condena a autarquia a pagar à sociedade anónima recorrida tais facturas, Substituindo-se por outro que declare a incompetência absoluta da comarca de Setúbal para julgar a causa e absolva o município da instância». Na sua contra-alegação pugnou a recorrida pela confirmação do acórdão recorrido. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II. Fundamentos: De facto: Após decisão da impugnação sobre a matéria de facto resultaram provados os seguintes factos: 1 - Em 03 de Fevereiro de 2011 a Caixa AA celebrou, com a Sociedade BB - Engenharia, S.A., um Contrato de Factoring no valor mínimo anual de €1.700.000,00, ao qual, foi atribuído o nº … e cuja cópia está junta a fls. 7 a 11 e que aqui se dá por inteiramente reproduzido. 2 - O referido contrato teve por objecto a aquisição, por cessão de créditos comerciais a curto prazo, derivados da venda de mercadorias ou da prestação de serviços da Sociedade BB - Engenharia, S.A. a terceiros, considerados devedores, designadamente, a cobrança dos créditos devidos pelos Município de … àquela sociedade atentas as facturas emitidas sobre este Município. 3 - O Município de …, foi notificado da celebração do “contrato” antedito e para todos os pagamentos serem emitidos a favor de Caixa AA – Instituição Financeira de Crédito, S. A. 4 - Na sequência da notificação a que acima se alude a R. remeteu à “BB, S.A.” a carta cuja cópia está junta a fls. 15, onde além do mais acusa a recepção da notificação antedita e refere ter tomado a nota devida. 5 e 7- O Réu passou a proceder ao pagamento à A. dos valores devidos à “BB, S.A.”, deixando de o fazer regularmente a partir de Março de 2011, tendo apenas pago, a partir dessa data, o valor atinente à factura elencada em m) do Ponto 6). 6 - Entretanto foram emitidas as seguintes facturas: a) - Factura n.º HG-00… emitida em 09/03/2011 e vencida em 09/04/2011 no valor de €1.356,80; b) - Factura n.º HG-00… emitida em 01/04/2011 e vencida em 01/05/2011 no valor de €199,00; c) - Factura n.º HG-00… emitida em 06/05/2011 e vencida em 06/07/2011 no valor de €16.659,06; d) - Factura n.º HG-00… emitida em 31/05/2011 e vencida em 31/07/2011 no valor de €70.694,86; e) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 29/06/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €7.957,82; f) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 29/06/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €19.144,77; g) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 01/08/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €13.765,53; h) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 01/08/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €41.448,04; i) - Factura n.º HL-C-00… emitida em 01/08/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €22.696,11; j) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €7.010,74; k) - Factura n.º HG-C-0008 emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €3.834,76; l) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €22.913,09; m) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €3.362,60; n) - Factura n.º HC-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €5.196,79; o) - Factura n.º HL-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de € no valor de €36.908,65; p) - Factura n.º HL-C-00… emitida em 22/09/2011 e vencida em 22/11/2011 no valor de €83.318,32; q) - Factura n.º HC-C-00… emitida em 26/09/2011 e vencida em 26/11/2011 no valor de €1.904,72; r) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 26/09/2011 e vencida em 26/11/2011 no valor de €5.454,48; s) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 26/09/2011 e vencida em 26/11/2011 no valor de €1.463,33; t) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 26/09/2011 e vencida em 26/11/2011 no valor de €22.296,80; u) - Factura n.º HC-00… emitida em 05/05/2011 e vencida em 04/07/2011 no valor de €4.305,00. 8 - A Autora, em 11 de Outubro de 2012 enviou carta ao R., interpelando-o para no prazo de 10 (dez) dias a contar da recepção da mesma, proceder ao pagamento da quantia de € 391.891,27 (trezentos e noventa e um mil e oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos). 9 - O Réu pagou ao Administrador da Insolvência da BB as seguintes facturas: a) - Factura n.º HG-00… emitida em 09/03/2011 e vencida em 09/04/2011 no valor de €1.356,80; b) - Factura n.º HG-00… emitida em 01/04/2011 e vencida em 01/05/2011 no valor de €199,00; c) - Factura n.º HG-00… emitida em 06/05/2011 e vencida em 06/07/2011 no valor de €16.659,06; d) - Factura n.º HG-00… emitida em 31/05/2011 e vencida em 31/07/2011 no valor de €70.694,86; e) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 29/06/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €7.957,82; f)- Factura n.º HG-C-00… emitida em 29/06/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €19.144,77; g) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 01/08/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €13.765,53; h) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 01/08/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €41.448,04; i)- Factura n.º HL-C-00… emitida em 01/08/2011 e vencida em 29/08/2011 no valor de €22.696,11; j) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €7.010,74; l) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de €22.913,09; o) - Factura n.º HL-C-00… emitida em 31/08/2011 e vencida em 31/10/2011 no valor de € no valor de €36.908,65; (pelo valor terá havido lapso na identificação da factura entre HL-C-00… e HL-C-0…) p) - Factura n.º HL-C-00… emitida em 22/09/2011 e vencida em 22/11/2011 no valor de €83.318,32; r) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 26/09/2011 e vencida em 26/11/2011 no valor de €5.454,48; s) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 26/09/2011 e vencida em 26/11/2011 no valor de €1.463,33; t) - Factura n.º HG-C-00… emitida em 26/09/2011 e vencida em 26/11/2011 no valor de €22.296,80; 10 - Na sequência de diversos procedimentos concursais, foram adjudicadas à BB, SA, entre Setembro de 2010 e Fevereiro de 2011, diversas obras públicas (Requalificação da EM 5…, Requalificação Urbana dos Bairros da …, … e … e Requalificação dos Eixos Estruturantes), que o Município ia realizar no concelho, com financiamento europeu. 11 - A BB, SA deixou ao abandono, em Outubro de 2011, as obras objecto da adjudicação, o que determinou que o R. resolvesse os contratos de empreitada em curso, porque corria o risco de perder os financiamentos já aprovados, e também, no que se refere às obras de requalificação da EM 5… (único acesso ao sítio arqueológico de M…, a um bairro residencial e a unidades de restauração), a estrada ficou quase intransitável, em estado de maior degradação, do que existia à data do início da obra. 12 - Em 5/12/2011, foi proferida sentença pelo Tribunal de Comércio de Lisboa, a declarar insolvente BB - Engenharia, SA., a qual foi devidamente publicitada pelo “ citius”. 13 - Em reunião de 12.12.2011 o R. aprovou a proposta de resolução do contrato de empreitada celebrado com a BB -Engenharia, SA. De direito: À luz da síntese conclusiva formulada pelo recorrente, delimitadora do objecto do recurso, salvo questão de conhecimento oficioso, importa apreciar neste recurso: - se o acórdão recorrido é nulo nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alíneas b) e c) do Código de Processo Civil; -se os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer do presente litígio; - e, concluindo-se pela sua competência, se os pagamentos efectuados pelo recorrente Município de … foram liberatórios. 1. Argui o réu Município de …, aqui recorrente, a nulidade do acórdão recorrido por carecer de fundamentação, traduzida na falta de indicação da norma legal em que se baseou para concluir pela competência do Tribunal Judicial de Setúbal para conhecer, em parte, da presente acção e por conter contradição entre os respectivos fundamentos e a decisão, uma vez que reconheceu que aos contratos que celebrou com a sociedade BB - Engenharia, SA, têm aplicação as normas de direito público insertas no Código dos Contratos Públicos e concluiu terem os tribunais judiciais competência material para conhecer do litígio quanto a uma parte das factura cujo pagamento a autora reclamou. É pacífico o entendimento de que não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta ou não convincente para que se verifique o vício de falta de fundamentação. Só a absoluta falta de fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada. O acórdão recorrido contém desenvolvida indicação das razões de facto e de direito em que se baseou a decisão nele proferida, podendo afirmar-se, sem necessidade de outras explanações, que não ocorre a invocada falta de fundamentação. Também não sofre de qualquer vício de estrutura susceptível de configurar a alegada oposição entre os seus fundamentos e a decisão. Esta surge, na verdade, como a consequência lógica daquela. Não pode confundir-se um alegado vício de estrutura lógica da decisão com o erro de julgamento, que se traduz na inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão. No caso, o que o recorrente apelida de oposição entre os fundamentos e o segmento decisório do acórdão recorrido na parte em que atribui competência aos tribunais judiciais constitui questão de mérito. Não se verificam, assim, as nulidades suscitadas. 2. A competência material defere-se a diferentes espécies ou categorias de tribunais consoante a natureza das questões de Direito a apreciar. Tem por fundamento o designado princípio da especialização, à luz do qual o legislador constitucional e o legislador ordinário reservaram o conhecimento de determinadas matérias a certa categoria de tribunais. Com efeito, a Constituição da República Portuguesa atribui aos tribunais judiciais competência para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas por lei a outras ordens judiciais (artigo 211º nº 1). Do mesmo modo, o artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (aprovada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), em vigor à data da propositura da acção, consagra a competência residual ou não discriminada destes tribunais. A esta afirmação de competência genérica, de que resulta a competência residual dos tribunais judiciais para todas as causas não atribuídas legalmente a outra categoria de tribunais, contrapõe-se, no que ora releva, a competência dos tribunais administrativos e fiscais, a qual se circunscreve às causas que lhe são especialmente atribuídas. Na verdade, o artigo 212º nº 3 da Constituição consagrou uma cláusula geral positiva de atribuição de competência a esta última categoria de tribunais, conferindo à jurisdição administrativa e fiscal competência para a apreciação dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Na lei ordinária dispõe, identicamente, o artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Ficais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, (com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 4/2003, de 19 de Fevereiro, n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro, n.º 1/2008, de 14 de Janeiro, n.º 2/2008, de 14 de Janeiro, n.º 26/2008, de 27 de Junho e Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31 de Julho). No caso, o Tribunal da Relação, seguindo jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, considerou, em tese geral, dever atribuir-se aos tribunais administrativos a competência para dirimir as questões decorrentes de contratos de factoring quando o crédito cedido decorre de um contrato administrativo, nomeadamente, de um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre uma sociedade comercial e uma autarquia. Contudo, debruçando-se sobre o caso concreto, entendeu que a questão da competência material para apreciar a pretensão da autora teria de ser perspectivada em duas vertentes: a relativa à matéria das facturas que o réu entendeu reter no âmbito da resolução do contrato de empreitada celebrado com a sociedade BB e a respeitante às demais facturas. Assim, observou que: «No que respeita às referidas três facturas cujo pagamento o Réu entendeu reter, dado que invoca, para o seu não pagamento, a resolução do contrato de empreitada de obra pública e os direitos que daí lhe advêm para a retenção das ditas facturas, matéria evidentemente do foro administrativo, são os Tribunais Administrativos os competentes quanto a essa matéria. (Art.º 4º, n.º1, e) e f) do ETAF). Quanto às restantes facturas, o que está em questão, no âmbito deste processo, é o saber se o Réu devia ter pago à ora Autora, enquanto Factor de um contrato de factoring em que a empresa BB foi Aderente, o valor correspondente a essas facturas, atinentes a tranches do preço de uma empreitada de obras públicas que o Réu celebrou com a empresa BB, que estavam incluídas no âmbito desse contrato de factoring, ou se pelo contrário, o pagamento do valor dessas facturas deve ser efectuado ao administrador da insolvência da Empresa BB, entretanto declarada insolvente. Embora não se possa negar que o pagamento do valor correspondente a tranches do preço do contrato de empreitada de obras públicas, é, indubitavelmente, matéria contratual administrativa, uma vez que o preço da empreitada é matéria essencial desse contrato, o que se dirime nestes autos está para além do âmbito desse contrato e das suas vicissitudes, pois não se discutindo se esse valor é devido à BB – porque existe consenso entre as partes que o valor destas facturas é devido pelo Réu à Empresa BB, tanto assim que o Réu pagou tais facturas ao Administrador da Insolvência da BB – aqui só se aprecia se esses valores deveriam ter sido pagos à ora Autora, por via de um contrato de factoring, de cariz eminentemente de direito privado, a que o Réu terá ficado vinculado por via da notificação que foi efectuada para o efeito (…) Contrato este que tem perfeita autonomia relativamente ao contrato de empreitada de obras públicas. Do que se deve retirar que o objecto do presente litígio, quanto às facturas pagas ao Administrador da Insolvência da BB, se subsume ao cumprimento das obrigações do Réu advenientes da celebração de um contrato de factoring pela sua credora BB, a que o Réu terá ficado vinculado, ou seja, ao cumprimento das obrigações decorrentes de um contrato de direito privado». Com base neste entendimento, o Tribunal da Relação concluiu serem os tribunais judiciais materialmente competentes para, neste segmento, dirimir o litígio. E, apreciando a questão de mérito, decidiu que o pagamento efectuado pelo réu ao administrador da insolvência da sociedade BB não foi liberatório, condenando-o, consequentemente, a pagar à autora o valor das ditas facturas. Não concordamos, neste particular, com o entendimento seguido no acórdão recorrido. Vejamos. Como é sabido, a competência dos tribunais fixa-se no momento da propositura da acção e afere-se em função dos termos em que esta é instaurada, quer quanto aos seus elementos objectivos, quer quanto aos seus elementos subjectivos. É a estrutura material da causa apresentada que fixa o tema decisivo para efeitos de atribuição da competência material, o que significa que é pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum” que se determina a competência material, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação quanto ao mérito do pedido formulado (quid decisum). A determinação do tribunal materialmente competente para conhecer de determinada pretensão deduzida em juízo deve partir do teor dessa pretensão e dos fundamentos que lhe estão subjacentes, independentemente do juízo de prognose que possa ser feito acerca da sua viabilidade (vide, Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91, bem como, entre outros, os Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 04/07/2006, proc. 11/2006, de 09-06-2010, proc. 05/10, acessíveis em www.dgsi.pt/jsta). Insurge-se o recorrente Município de … contra o acórdão sob censura com fundamento em que todas as facturas emitidas pela BB - Engenharia, SA, são resultantes de contratos de empreitada de obras públicas, muito embora o seu pagamento seja aqui peticionado pela autora Caixa AA, SA, com fundamento no contrato de factoring celebrado entre ambas, pelo que a competência material deve ser totalmente deferida aos tribunais administrativos. E tem razão. Sob a epígrafe “âmbito da jurisdição”, estabelece o artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que: «1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (...) e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que, pelo menos, uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público; (…)». No caso em análise, resultou provado que, na sequência de diversos procedimentos concursais, foram adjudicadas à BB - Engenharia, SA, entre Setembro de 2010 e Fevereiro de 2011, diversas empreitadas de obras públicas que o Município ia realizar no concelho com financiamento europeu – Requalificação da EM 5…, Requalificação Urbana dos Bairros da …, … e … e Requalificação dos Eixos Estruturantes – (ponto 10 dos factos provados). E ainda que a mesma sociedade deixou ao abandono, em Outubro de 2011, as obras objecto da adjudicação, o que determinou que o réu resolvesse os contratos de empreitada em curso porque corria o risco de perder os financiamentos já aprovados e também porque, no que se refere às obras de requalificação da EM 5… (único acesso ao sítio arqueológico de M…, a um bairro residencial e a unidades de restauração), a estrada ficou quase intransitável, em estado de maior degradação do que aquele que se verificava à data do início da obra (ponto 11 dos factos provados). Desta facticidade decorre que o crédito da BB - Engenharia, SA., sobre o réu, transmitido à autora por efeito do contrato de factoring entre ambas celebrado, tem na sua génese diversos procedimentos concursais, que culminaram com a adjudicação à dita sociedade de diversas empreitadas de obras públicas pelo réu Município de …, respeitando todas as facturas, cujo pagamento é peticionado pela autora nesta acção, à execução dos respectivos contratos, os quais se regem por normas de direito público, caindo, por conseguinte, o litígio a dirimir no âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais. Argumenta a autora que a causa de pedir se funda exclusivamente no contrato de factoring, o que impede a afirmação da incompetência material dos tribunais judiciais, visto tal contrato ser, inequivocamente, da competência destes tribunais. Mas só aparentemente tem razão. O contrato de factoring, cujo regime jurídico resulta do DL nº 171/95, de 18 de Julho, baseia-se estruturalmente na cessão de créditos prevista no artigo 577º do Código Civil e pode ser definido como uma forma de financiamento do aderente, mediante a transmissão ao factor de créditos provenientes da sua actividade, tendo este como contrapartida uma remuneração (Pedro Romano Martinez, Contratos Comerciais, pág. 69). Este contrato não constitui um negócio jurídico isolado e abstracto. Tem por objecto a transmissão de uma obrigação de pagamento fundada numa anterior relação negocial, que lhe é causal, sendo-lhe aplicável o estatuído no artigo 585º do mesmo código. São, por conseguinte, oponíveis ao factor, adquirente do crédito todos os meios de defesa que seria lícito ao devedor (terceiro em relação a esse contrato) invocar contra o aderente (cedente), ainda que aquele os ignorasse, salvo os provenientes de facto posterior ao conhecimento da cessão pelo primeiro. Embora a causa de pedir se baseie, essencialmente, no contrato de factoring, este contrato tem sempre um outro negócio por trás dele, o negócio constitutivo do direito de crédito cedido, sendo permitido ao devedor, que lhe é alheio, arguir contra o factor (cessionário) todos os meios de defesa que poderia invocar contra o aderente (cedente) relativamente a este negócio como se a transmissão do crédito não se tivesse operado. A causa de pedir tem subjacentes os contratos de direito público em que interveio o réu Município de …, autarquia local com competência para adjudicar empreitadas de obras públicas e não pode dissociar-se destes, devendo olhar-se para a relação material controvertida com este alcance. Não pode cindir-se a competência material para conhecer do litígio consoante o devedor – aderente (cedente) – tenha ou não deduzido oposição com base nos meios de defesa que podia opor relativamente ao negócio donde emerge o direito de crédito e atribuir-se a mesma, no primeiro caso, aos tribunais administrativos e fiscais e, no segundo caso, aos tribunais judiciais. Ambas as situações caiem na previsão do artigo 4º nº 1 alíneas e) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e se inscrevem na competência material dos tribunais administrativos. Consequentemente, carecem os tribunais judiciais de competência em razão da matéria para conhecer da acção também quanto às facturas elencada no ponto 9 dos factos provados. Esta conclusão prejudica o conhecimento da última questão suscitada, ou seja, saber se foi liberatório o pagamento das facturas efectuado pelo réu ao administrador da insolvência da sociedade BB - Engenheiros, SA, (artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil). A infracção da regra de competência material determina a incompetência absoluta do tribunal, excepção dilatória que conduz à absolvição do réu da instância (artigos 96º al. a), 576º nº 2 e 577º al. a) do Código de Processo Civil). Decisão: Termos em que se concede a revista e se julgam os tribunais judiciais materialmente incompetentes para conhecer da presente acção, na sua globalidade, absolvendo-se o réu Município de … da instância. Custas pela recorrida. Lisboa, 2 de Março de 2017 Fernanda Isabel Pereira (Relatora) Olindo Geraldes Nunes Ribeiro |