Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
| Relator: | LOPES DA MOTA | ||
| Descritores: | HOMICÍDIO HOMICÍDIO QUALIFICADO ESPECIAL CENSURABILIDADE ESPECIAL PERVERSIDADE MOTIVO FÚTIL MOTIVO TORPE MEIO INSIDIOSO MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO ARMA DE CAÇA PREMEDITAÇÃO PENA DE PRISÃO | ||
| Data do Acordão: | 01/15/2019 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
| Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA / NULIDADE DA SENTENÇA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / PODERES DE COGNIÇÃO. DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO. | ||
| Doutrina: | - Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, p. 611-678; - Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005; - Eduardo Correia, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, edição da AAFDL, 1979, p. 21; - Fernanda Palma, O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, Revista do Ministério Público, 1983, Ano 4, Volume 15; - Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2.ª edição, 2008, p. 60 e ss., 83 e 84; - Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, 2012, p. 62; - Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, 2.ª edição, p. 37, 38, 39 83 e 84 ; Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, p. 232-357; - Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, Volume I, p. 134; - Magalhães Noronha, Direito Penal, Volume II, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 32 ; Código Penal, 1988, p. 32; - Manuel Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal, Volume II, Rei dos Livros, 2.ª edição, p. 47 ; Código Penal Anotado, 3.ª edição, II Volume, p. 27 e 28; - Maria Margarida da Silva Pereira, Direito Penal, II, Os Homicídios, p. 40 e 42; - Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Almedina, 2014, p. 512; - Nelson Hungria, Comentário ao Código Penal Brasileiro, Volume V, 6.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1981 p. 121 a 136 e 167 a 169; - Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, p. 13, 63 a 65. | ||
| Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 379.º, N.º 2, 402.º, 403.º, 410.º, N.º 2, 412.º, 432.º, N.º 1, ALÍNEA C) E 434.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 131.º E 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS I), E) E J). | ||
| Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 11-11-1996, PROCESSO N.º 152/97; - DE 14-05-1997, PROCESSO N.º 1050 /97; - DE 10-02-1998, PROCESSO N.º 478/98; - DE 23-02-2000, PROCESSO N.º 1187/99; - DE 07-07-2000, PROCESSO N.º 00P2843, IN WWW.DGSI.PT; - DE 20-02-2004, PROCESSO N.º 1127 /04; - DE 13-10-2004, PROCESSO N.º 05P224; - DE 10-03-2005, PROCESSO N.º 0TP224; - DE 18-10-2007, PROCESSO N.º 07P2586, IN WWW.DGSI.PT; - DE 02-04-2008, PROCESSO N.º 07P4730, IN WWW.DGSI.PT; - DE 27-05-2010, PROCESSO N.º 58/08.4/4GRD.C1.S1; - DE 09-09-2010, PROCESSO N.º 30/08.4.PEHRT; - DE 04-05-2011, PROCESSO N.º 1702/09.1JAPRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 30-11-2011, PROCESSO N.º 238/10.2JACBR.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 19-02-2014, PROCESSO N.º 168/11. 0GCCUB.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 05-07-2017, PROCESSO N.º 1074/16.8JAPRT.P1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 20-06-2018, PROCESSO N.º 3343/15.5JAPRT.G1.S2, IN WWW.DGSI.PT. | ||
| Sumário : | 1. Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência, o crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal (CP) constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração não exaustiva dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, relativos ao facto e ao agente, indiciadores daquele tipo de culpa agravado, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente. 2. A determinação da verificação da circunstância de o agente ser determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” (al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do CP) requer a ponderação de elementos de contextualização sociocultural da acção do arguido, para se poder concluir se esta foi determinada por um motivo gratuito, insignificante, sem qualquer importância, desprezível ou repugnante. 3. Estando provado que o arguido e a vítima mantinham um diferendo, com cerca de 20 anos, a propósito de umas obras realizadas pelo primeiro numa casa desta, pelas quais reclamava o pagamento da parte do preço não paga, invocando a vítima que as obras não foram concluídas, recusando o pagamento; que o arguido, cerca de uma ou duas semanas antes, foi a casa da vítima pedir-lhe o pagamento, tendo esta “fechado a porta na sua cara”, ficando o arguido na rua a resmungar sozinho, o que, não sendo meramente descritivo, contém uma conotação de desconsideração ou mesmo de ofensa; que, por vingança, que, por definição, se associa a uma atitude de desforra ou retaliação de quem se sente ofendido, o arguido tomou a resolução de matar, e que o arguido, oriundo de uma família humilde, seguiu um processo de socialização segundo regras e referências de valores tradicionais e característicos do meio rural, não se considera verificada aquela circunstância. 4. Na densificação do conceito de “meio insidioso” (al. i) do n.º 2 do artigo 132.º), releva a “insídia” própria do meio utilizado, em que a sua capacidade letal se encontra oculta, anulando antecipadamente ou especialmente dificultando, por erro ou engano, a possibilidade ou capacidade de reacção e defesa da vítima; meio insidioso é um meio que possui características análogas às do veneno, do ponto de vista do seu carácter enganador, traiçoeiro, dissimulado, sub-reptício ou oculto, não se incluindo no âmbito de previsão da norma os casos em que o agente tenha agido de surpresa, utilizando um instrumento letal (como um arma ou uma faca) em que, pela sua qualidade, natureza ou modo de utilização, aquelas características não se encontram presentes. 5. Mostrando-se apenas que o arguido utilizou uma arma caçadeira, aproveitando-se da circunstância de a vítima se encontrar sozinha, num lugar isolado, atingindo-a com um tiro disparado à distância aproximada de 20 metros, quando, no momento do disparo, esta se encontrava de costas, não se pode concluir que o agente utilizou um meio insidioso. 6. A matéria de facto provada não permite concluir que o arguido colocou a vítima numa situação de absoluta impossibilidade de resistir ou de fugir, sobretudo atenta a sua avançada idade, o que, a verificar-se, não relevando para efeitos da alínea i), só seria de considerar em função da previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 132.º do CP. 7. Estando demonstrado que o arguido formou a vontade de matar a vítima cerca de uma ou duas semanas antes, aguardando pela melhor oportunidade para levar a efeito a acção homicida; que, no dia em que executou a acção, dominado pela vontade de matar, que persistia, depois de se assegurar que esta se encontrava no local onde a atingiu e por onde passou mais de uma hora antes, foi buscar a arma caçadeira que tinha na sua residência, e que, depois de aguardar que a sua mulher se ausentasse, para que esta não dificultasse a sua acção, se dirigiu de novo ao local onde disparou sobre a vítima, causando-lhe a morte, deve concluir-se que agiu com especial perversidade ou censurabilidade em virtude da verificação da circunstância prevista na al. j) do n.º 2 do artigo 132.º, isto é, que agiu com reflexão sobre os meios empregados e que persistiu na intenção de matar por mais de 24 horas. 8. Tendo o crime de homicídio sido cometido com uma arma caçadeira e não sendo o simples uso e porte de arma elemento típico do crime nem ocorrendo agravação da pena por esta circunstância nos termos do artigo 132.º do CP, há lugar à agravação prevista no n.º 3 (por referência ao nº 4) do artigo 86.º da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações posteriores), pelo que, tendo em atenção o limite máximo de 25 anos (artigo 41.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal), a moldura abstracta da pena, é de 16 a 25 anos de prisão. Tomando em consideração o disposto no artigo 40.º e as circunstâncias relevantes nos termos do artigo 71.º do CP, mostra-se adequada e proporcional à gravidade dos factos a pena de 18 anos de prisão. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório 1. Por acórdão de 25 de Janeiro de 2018 proferido pelo tribunal colectivo do Juízo Central Cível e Criminal de ... foi o arguido AA, melhor identificado nos autos, condenado na pena de 19 anos de prisão, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado e agravado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea i) (verificando-se também as alíneas e) e j)), do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com ulteriores redacções). 2. Discordando da qualificação jurídica dos factos provados e da pena aplicada, que considera excessiva, recorre o arguido apresentando motivação que conclui nos seguintes termos (transcrição): “Da matéria dada como provada no douto acórdão que ora se poem em crise, não é possível subsumi-la ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos que enformam o n.º1 do artigo 132.º do C.P Do mesmo modo se entende não ser a matéria dada como provada no douto acórdão suficiente para preencher o conceito previsto na alinea e) do n.º 2 do artigo 132.º C.P. Do mesmo modo se entende não ser a matéria dada como provada no douto acórdão suficiente para preencher o conceito previsto na alinea i) do n.º 2 do artigo 132.º C.P. Do mesmo modo se entende não ser a matéria dada como provada no douto acórdão suficiente para preencher o conceito previsto na alinea j) do n.º 2 do artigo 132.º C.P. Entende-se também ter sido violado o disposto no 131 e 132.º n.º 1 e 2 alínea i); e) e j). por erro de interpretação, devendo ter sido isso sim aplicada a norma prevista no art.º 131.º. Termos em que: Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser o acórdão recorrido substituído por outro que: i) Absolva o ora recorrente da prática de um crime de homicídio qualificado, previstos e punido 132.º n.º 1 e 2 alínea i); e) e j), do Código Penal, por que o mesmo veio acusado; ii) Condene o ora recorrente, pela prática de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131.º, do Código Penal, Ou iii) Se assim não se entender, ajuste o quantum da pena, para o limite mínimo da moldura ao caso em concreto aplicável.” 3. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, o Senhor Procurador da República no tribunal recorrido defende a confirmação do acórdão condenatório, nos seus precisos termos, dizendo em conclusão (transcrição): “- A qualificação jurídica mostra-se perfeita, preenchendo a factualidade dada como provada o crime de homicídio qualificado, p. e p., pelos art.ºs. 131.º e 132.º, n.º 2, alíneas e), i) e j), do Código Penal, e no art.º 86.º, n.º 3, por referência ao n.º 4, da Lei das Armas; - A medida concreta da pena mostra-se adequada à medida da culpa e às exigências de prevenção geral e especial, em conformidade com o disposto nos artºs. 40.º, 50.º, 70.º e 71.º, do Código Penal. Pelo exposto, deve o acórdão recorrido ser confirmado.” 4. Respondem também os assistentes BB e CC, defendendo igualmente a confirmação do acórdão recorrido, dizendo em conclusão (transcrição): “1 – O douto acórdão recorrido não é merecedor de qualquer reparo, pelo que deve manter-se na íntegra. 2 – A factualidade dado como provada, foi objecto do devido enquadramento jurídico, crime de homicídio qualificado e agravado, p. e p. pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.º 2, als. e), i) e j) do C.P., e art.º 86.º, n.º 3 por referencia ao n.º 4, da Lei das Armas. 3 – É correcta a dosimetria da pena aplicada, 19 anos de prisão. 4 – Adequada à gravidade dos factos praticados e às exigências de prevenção geral e especial. Termos em que: Nos melhores de direito aplicável e com o sempre mui douto suprimento de V/EXAS., considerando o recurso improcedente por não provado, e confirmando o douto acórdão recorrido, farão como é habitual a costumada Justiça.” 5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos: “I. Por acórdão proferido em 25.01.2018 e depositado em 30.01.2018, pelo Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo Central Criminal de ..., vem o arguido AA, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio qualificado e agravado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 131º, 132º / 1 e 2, al. i), (verificando-se também as alíneas e) e j), todos do CP (versão de 2007) e art. 86º, n º 3, da Lei n º 5 / 2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 19 anos de prisão. I-A. Inconformado com o julgado dele foi interposto recurso, agora remetido a este Alto Tribunal, que indubitavelmente é o competente para proceder á apreciação de meritis. O arguido conclui nos termos de págs. 908-909, sendo claro que o recurso tem como objectivo o reexame de matéria de direito. I-B. O MP na 1ª instância, ofereceu resposta, cf. págs. 917-922, em que face à pretensão do recorrente de enquadrar os factos provados num crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.º do CP, ou caso se mantenha a qualificação jurídico-penal que vem perfilhada pelo Tribunal Colectivo, que a pena seja reduzida ao mínimo legal, anota com inteira propriedade, aliás que, os textos doutrinais e as citações jurisprudenciais apresentadas pelo recorrente na sua motivação (algumas delas, aliás, citadas na fundamentação do acórdão recorrido) se aplicadas ao caso sub judicio apenas servem para coonestar a decisão que se pretende impugnar. Não tendo qualquer dúvida quanto ao correcto enquadramento jurídico-penal dos factos provados e à adequação da pena de prisão decretada, o MP concluiu a sua resposta, propugnando pela improcedência do recurso. II. Como se sabe, as conclusões extraídas pelo recorrente balizam o objecto do recurso sem prejuízo dos poderes de cognição ex officio da instância apelada. Temos assim, que in casu vem suscitada, como acima se referiu a questão do suposto erro de qualificação jurídico-penal dos factos que se mostram fixados e bem assim, a determinação da medida da pena. Salvo o devido respeito pela tentativa de demonstrar, vista a factualidade que se mostra fixada, que o presente homicídio qualificado e agravado nos termos dos normativos supra consignados, perfectibiliza o crime de homicídio p. e p. pelo art. 131.º do CP, tal é empresa claramente votada ao insucesso, configurando o caso «sub judicio» um caso paradigmático do tipo legal pela qual vem condenado o recorrente. Não precisando o caso de grandes considerações, para além das que já se mostram tecidas no acórdão e na resposta do MP, sempre diremos que, desde logo a circunstância (que operou como qualificativa) do n º 2 alínea i): «utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso» não pode deixar de ter-se por verificada. Na verdade a surpresa, a espera ou emboscada são exemplo de situações em que doutrina e a jurisprudência se mostram concordantes, como integrantes de tal conceito. De resto, o facto do recorrente se aproximar pelas costas da vítima DD e disparar a 20 metros de distância, tornando, impossível a defesa da vítima, não permite qualquer dúvida. Mutatis mutandis o mesmo se diga quanto á verificação das circunstâncias previstas nas alíneas e) «ser determinado [...] por qualquer motivo torpe ou fútil» e j) «agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas» (estas operando, apenas na determinação da medida da pena). Sobre o conceito de «motivo fútil» é como se sabe abundante a jurisprudência (vindo até, citada pelo recorrente) mas já densificado como aquele que é «notoriamente desproporcionado ou desadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado» revelando, ao demais, uma grave insensibilidade moral. Por seu turno, a circunstância da alínea j) do n º 2 do art.132º do CP, tem sido jurisprudencialmente definida como agir" de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida» um comportamento traduzido «na firmeza , tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa" Ac. STJ de 06.04.2006 (362 / 06-5). Indiscutivelmente que tais circunstâncias se verificam revestindo a actuação do agente uma forma especialmente desvaliosa, revelando concomitantemente uma personalidade particularmente avessa ao respeito pelos mais elementares bens jurídicos e fundamentalmente o mais importante dentre eles: a vida humana. E como, in claris non fit explicatio por aqui nos quedaremos sobre este ponto. Também sobre a determinação da medida da pena aplicada, não vemos que assista qualquer razão ao recorrente. Com efeito a medida da moldura penal abstracta do crime cometido, homicídio qualificado e agravado, vai de 16 a 25 anos de prisão. A pena há-de ser determinada, tendo como limite a culpa, dentro duma «moldura de prevenção», que tem como limite mínimo o «quantum» que ainda satisfaz as necessidades de prevenção geral (muito elevadas na região, como é sabido em relação a este tipo de crimes) actuando as necessidades de prevenção especial, assaz impressivas dada a personalidade revelada na comissão do crime, no sentido da elevação da pena concreta. Neste conspecto, ao fixar a pena em dezanove (19) nos de prisão, não se nos afigura que o Tribunal Colectivo tenha violado os critérios legais de determinação da pena- CP 71º, que de modo algum pode ser tida como desnecessária, desproporcional ou desadequada. Somos assim de parecer, que o recurso deve ser julgado improcedente.” 6. Notificado nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido não apresentou resposta a este parecer. 7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentação 8. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro). 9. Das conclusões da motivação, extrai-se que o recorrente: a) Pretende que o acórdão recorrido seja substituído por outro que o absolva da prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo artigo 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas i), e) e j), do Código Penal, por que foi acusado, condenando-o pela prática de um crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal; ou b) Se assim não se entender, que seja ajustado o quantum da pena, para o limite mínimo da moldura ao caso concreto aplicável. Estas, pois, as questões colocadas pelo recorrente, as quais dizem respeito a matéria de direito relativamente a um acórdão do tribunal colectivo da 1.ª instância que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, sendo, pois, este Supremo Tribunal o competente para conhecer e decidir o recurso (artigo 432.º, n.º 1, al. c), e 434.º do CPP). 10. O tribunal recorrido julgou provados os seguintes factos: “A) Factos provados. Da discussão da causa resultaram provados, com relevo (e só os que o assumiam) os seguintes factos: 1. O arguido mantinha um diferendo com DD decorrente de umas obras realizadas por si numa casa daquele há cerca de 20 anos atrás, reclamando o arguido o pagamento da parte do preço não paga e invocando a vítima que as obras não foram concluídas, recusando o pagamento. 2. O montante do preço não pago, na altura, ascendia a 60 contos. 3. Em virtude de tal diferendo, uma ou duas semanas antes de 18 de Dezembro de 2016, o arguido foi a casa da vítima pedir-lhe o pagamento. 4. No entanto, DD fechou-lhe a porta na cara, ficando o arguido na rua a resmungar sozinho. 5. Então, nessa sequência, por vingança, o arguido tomou a resolução de matar DD. 6. O arguido tem duas residências, sendo que uma é em..., onde habitualmente reside com a sua esposa, e a outra é no ..., a qual é usada como apoio às actividades agrícolas, isto é, quando têm que proceder a alguma dessas actividades, dormem na referida casa, cuja morada está supra indicada. 7. Na noite de 17 para 18 de Dezembro de 2016, o arguido e a esposa pernoitaram nesta residência. 8. Entre as 9h00 e as 10h00m desse dia 18 de Dezembro de 2016, o arguido deslocou-se, no seu veículo Opel Corsa, cor castanha, para a zona das ..., onde se cruzou com EE, que andava à caça, tendo referido a este que tinha visto “levantar uma lebre” nesse local. 9. Algum tempo depois, o arguido abandonou o local e no trajecto verificou que o DD tinha o seu tractor de cor azul, de matrícula ...-RQ, estacionado junto à sua propriedade, conhecida como ..., constatando que o mesmo andava ali, sozinho, a fazer trabalhos agrícolas, nomeadamente limpeza de oliveiras. 10. Então, foi à sua residência em ... e, após ter esperado que a mulher FF saísse em direcção a ..., o que veio a suceder por volta das 11h15m, o arguido muniu-se de uma arma caçadeira calibre 12, de canos justapostos basculantes, da marca ..., com o n.º de série P2833, de sua propriedade, e foi ao encontro da vítima, sabendo que a mesma estava sozinha. 11. Chegado ao lugar da ... onde a vítima se encontrava, por volta das 11h40m, conduzindo seu veículo Opel Corsa, saiu deste e empunhou a arma caçadeira atrás descrita municiada com pelo menos um cartucho calibre 12 carregado com chumbo. 12. Após, aproximou-se e, a uma distância de cerca de 20 metros, e estando a vítima de costas, disparou um tiro na direcção daquela ligeiramente da esquerda para a direita e de trás para a frente, atingindo-a na região posterior do tórax, nos flancos e no braço esquerdo. 13. Ao disparar daquela maneira, o arguido causou à vítima múltiplas feridas perfurantes, circulares, a maior com 3mm de diâmetro e a menor com 1mm, com área de contusão envolvente de diâmetro médio de 5mm, dispersa por toda a superfície posterior do tórax com maior intensidade do lado esquerdo e ainda múltiplas feridas perfurantes na zona abdominal, circulares, a maior com 3mm de diâmetro e a menor com 1mm, com área de contusão envolvente de diâmetro médio de 5mm, dispersas por toda a superfície do flanco esquerdo, e ainda no membro superior esquerdo múltiplas feridas perfurantes, circulares, a maior com 3mm de diâmetro e a menor com 2mm, com área de contusão envolvente de diâmetro médio de 5mm, localizadas na região postero-interna do braço. 14. Nas imediações andavam caçadores que acorreram ao local de onde provinha o disparo e o grito que ouviram, tendo verificado, para além da presença do tractor azul da vítima estacionado junto à estrada, que DD se encontrava, no meio das oliveiras, prostrado de barriga para baixo e a gemer. 15. Acto contínuo, um dos caçadores ligou para o 112, solicitando socorro, tendo o INEM chegado ao local cerca de 10 minutos depois. 16. Os elementos do INEM, depois de observarem o estado da vítima, transportaram-na de imediato para o Centro Saúde de Mogadouro, onde a mesma veio a falecer pelas 12h38m em consequência dos ferimentos sofridos. 17. As lesões acima descritas foram causa directa, necessária e adequada da morte da vítima, a qual sobreveio após algum tempo de agonia. 18. Ao actuar da forma descrita o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de tirar a vida a DD. 19. Actuou movido pelo desejo de vingança derivado da recusa da vítima em pagar-lhe a quantia por si reclamada nos termos supra descritos. 20. Fê-lo, de modo pensado e com antecedência, aguardando pela melhor oportunidade, pelo que quando o viu sozinho nos termos supra referidos decidiu executar a resolução já tomada de matar DD, só não o tendo feito de imediato porque a mulher o aguardava em casa, tanto assim que logo que esta saiu o arguido dirigiu-se de imediato ao local onde havia avistado a vítima. 21. Ao disparar àquela distância e quando a vítima se encontrava de costas, o arguido bem sabia que DD estava impossibilitado de se defender sem hipótese de fuga, porque era um lugar ermo e face à sua idade avançada de 80 anos, que o arguido bem conhecia. 22. Bem sabia que o disparo com a arma de fogo referida sobre DD e da forma como foi efectuado era meio idóneo para lhe tirar a vida, o que pretendeu, e tanto assim que, não obstante a rápida intervenção dos caçadores e do INEM, não foi possível evitar que a morte sobreviesse. 23. Tinha consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 24. O arguido é oriundo de uma família humilde, tenho o seu processo de socialização decorrido segundo regras e uma referência de valores tradicionais e característicos do meio rural. 25. Desde muito jovem procurou autonomizar-se, pautando a sua trajectória de vida na actividade empreendedora demonstrada com ocupações laborais regulares, desfrutando de uma situação económica equilibrada e de inserção/aceitação comunitária. 26. Em meio prisional tem mantido um comportamento e interacção adequados, envolvendo-se em aprendizagens para melhoria das competências e aptidões. 27. Com o objectivo de melhorar as suas competências e qualificações, o arguido foi integrado no curso de Educação e Formação de Adultos, EFA B2, que lhe conferirá a equivalência ao 6.º ano de escolaridade, estando também a colaborar em obras de beneficiação e ampliação do estabelecimento prisional. 28. No EP de ..., tem beneficiado de apoio familiar, essencialmente da esposa que o visita regularmente conforme a sua disponibilidade laboral. 29. Sempre evidenciou um percurso de vida centrado na actividade laboral e familiar, não obstante alguns episódios de conflituosidade nas relações familiares/conjugais movidas, em determinados momentos, pela ingestão abusiva de álcool. 30. O arguido não se arrependeu. 31. Foi condenado no processo n.º 42/10.8GCTMC - T J ..., na pena de 80 dias de multa à taxa de 7,00€ por crime de Condução de Veiculo em Estado de Embriaguez.” 11. A decisão em matéria de direito encontra-se fundamentada nos seguintes termos: 11.1. Quanto à qualificação jurídica dos factos e à determinação da moldura da pena: “1.1. Vem o arguido acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. p. pelos artigos 131.º e 132.º/2-e), i) e j) do Código Penal, agravado pela utilização de arma de fogo, nos termos do artigo 86.º/3 da Lei 5/2006 de 23/2 (e ulteriores redacções). Tendo por valor tutelado a vida humana, dispõe o art. 131.º referido que, como é sabido, contém o tipo base do crime de homicídio, “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”. São, pois, elementos constitutivos deste tipo de crime: - que o agente mate outra pessoa; - o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em uma qualquer das modalidades previstas no art. 14.º do C. Penal. No caso em apreço, o arguido, com o propósito de tirar a vida ao ofendido (portanto, resolvido a matá-lo; há dolo directo, enquanto conhecimento e vontade de realizar o tipo legal; art. 14.º/1 C. Penal) disparou contra ele, com uma arma de fogo, atingindo-o com um disparo na parte posterior do tórax (incluindo a parte abdominal), causando-lhe de forma directa, necessária e adequada a morte, pelo que dúvidas não há acerca do preenchimento dos elementos típicos do crime de homicídio. 1.2. Vejamos agora se o crime é qualificado. O art. 132.º/1 C. Penal pune com prisão de 12 a 25 anos o homicídio praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente. Tais circunstâncias, como é entendimento dominante, porque se referem à culpa, não são de funcionamento automático nem são taxativas no sentido de poder haver circunstâncias não elencadas no nº 2 que integrem o tipo de culpa qualificador (cfr o corpo do n° 2: “entre outras”) - desde que subsumíveis ao critério de agravação subjacente á figura do homicídio qualificado. Subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa, um maior desvalor ético-jurídico que terá sempre de ser demonstrado em concreto. Por isso, a qualificação do homicídio supõe a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas». A primeira circunstância apontada na acusação é da al. e), no segmento e “motivo torpe ou fútil”. Conforme escreve o Prof. Figueiredo Dias, motivo torpe ou fútil é aquele que, à luz das concepções éticas e morais ancoradas na sociedade, se deve considerar pesadamente baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como profundo desprezo pelo valor da vida humana. Outra coisa não vem entendendo a jurisprudência, para quem é motivo fútil aquele que “não é ou nem sequer chega a ser motivo”. Na formulação lapidar do Supremo Tribunal de Justiça “a circunstância qualificativa prevista na parte final da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP - motivo fútil - destina-se a tutelar situações em que o agente se determine por mesquinhez, frivolidade ou insignificância, ou seja, por motivo gratuito”. Face a estas formulações e considerando que a alegada dívida, para além de não ser certa, datava de há mais de 20 anos e ascendia a cerca de 60 contos, e que a recusa do seu pagamento motivou o desprezível desejo de vingança do arguido, cremos que a sua actuação se revela de uma absoluta desproporcionalidade, bem podendo dizer-se que o motivo é simultaneamente fútil e torpe. Vem depois imputada a circunstância prevista na al. i) in fine, que rege sobre o caso de o agente “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso”. Seguindo o Prof. Figueiredo Dias temos que por meio insidioso deve entender-se todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assume características idênticas à do veneno ou seja, todo o meio que actue de forma enganadora, traiçoeira, dissimulada, oculta ou sub-reptícia que tornam praticamente impossível a defesa da vítima, aqui se incluindo, v.g., a utilização de arma de fogo à traição, uma cilada ou emboscada. Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a natureza do meio ou instrumento utilizado e por outro, há que averiguar das circunstâncias acompanhantes, isto é, o naturalístico conjunto de circunstâncias em que aquele concreto meio ou instrumento foi utilizado, e, assim, designadamente, a distância a que o agressor se encontrava da vítima (com especial relevância para a curta distância, a situação em que esta se encontrava (com possibilidade de resistência, de defesa), a zona do corpo atingida, o momento e local, a actuação com dissimulação, engano, de forma sub-reptícia. No caso concreto, temos que o arguido, munido de uma arma de fogo, a uma curta distância de cerca de 20 metros, sobretudo quando a vítima se encontrava de costas, disparou atingindo toda a zona posterior do tórax e abdominal e fê-lo num lugar ermo, pelo que colocou a vítima numa situação de absoluta impossibilidade de resistir ou de fugir, sobretudo atenta a idade avançada daquela. Verdadeiramente, tratou-se de uma execução. Verifica-se ainda que actuou depois de ponderação sobre a melhor oportunidade para levar a cabo o propósito já tomado pelo menos uma semana antes de tirar a vida a DD e, na manutenção desse propósito, aproveitou que a vítima se encontrasse sozinha num lugar ermo, pelo que cremos também se verificar a circunstância da al. j), na vertente de “reflexão sobre os meios empregados”, que se entende como “a selecção de meios de actuação que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam a vulnerabilidade da concretização do desígnio criminoso”. O preenchimento das três referidas circunstâncias padrão constituem indício da especial perversidade do agente e não há razões para afastar tal efeito indício, pelo contrário. Cremos que dessas circunstâncias a que mais essencialmente qualifica o homicídio no caso concreto é a do meio insidioso, porque pelas costas, sendo que as outras qualificativas só serão ponderadas na determinação da medida concreta da pena (assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-1-2012, Processo 306/10.0JAPRT.P1.S1,dgsi). Cometeu, assim, o crime de homicídio qualificado na forma consumada. 2. Como referido na acusação, deve aplicar-se a agravação prevista no n.º 3 (por referência ao nº 4) do art. 86.º da Lei das Armas, pois que o crime de homicídio foi cometido com uma arma de fogo da classe B.1 (cfr. arts. 3.º/4-a) e 86.º/1-c) da Lei das Armas, na redacção da Lei 12/2011 de 27/4), por duas razões: Primeiro, porque, como se viu, a punição do homicídio qualificado assenta num tipo de culpa agravado - “especial censurabilidade ou perversidade” - de que os exemplo-padrão são indícios de funcionamento não automático, além de não serem esgotantes, pelo que nunca se poderá dizer que o simples uso ou porte de arma é elemento típico do homicídio qualificado, nem que ocorre agravação da pena em função desse uso ou porte. Segundo, porque, no caso concreto, a punição deriva de várias circunstâncias.” 11.2. Quanto à determinação da medida concreta da pena: “3. Fixada a responsabilidade penal do arguido, cumpre agora determinar a medida concreta da pena, sendo que os factores não foram alterados pela Revisão de 2017 ao Código Penal. Para tanto há que atender à culpa do agente (suporte e limite axiológico de toda a pena), às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra ou a seu favor (artigo 71º Código Penal). Como é sabido, o nosso Direito Penal tem uma concepção funcional e relativa da pena, que não encontra justificação em si mesma, mas sempre por referência à protecção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, sendo por isso estas as finalidades da punição. Posto isto. São prementes as exigências de prevenção geral (positiva, de integração), dado que o crime de homicídio põe em causa o bem jurídico vida sem o qual nada faz sentido, sendo por isso de todos os crimes previstos no nosso Código Penal o mais gravemente punido nesta vertente qualificada. Tais exigências demandam firmeza na punição pelo que o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico (abaixo do qual se colocaria em causa a crença da comunidade na efectiva protecção/tutela dos bens jurídicos) se situa num nível muito elevado. A culpa assume um grau muito intenso (dolo directo) e persistente, pelo que o ponto máximo da moldura consentido pela culpa situa-se num grau muito elevado. Dentro dessa moldura, militam contra o arguido: - com acentuado peso, porque correspondente á necessidade de socialização do arguido, temos a sua personalidade reveladora de acentuada indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, não reconhecendo o mal do crime cometido pelo qual não se arrependeu; - o comportamento posterior aos factos, designadamente a sua tentativa de enganar o Tribunal, ainda que para isso tivesse de implicar terceiros (a mulher), a fim de se eximir, por completo, à sua responsabilidade; - o grau de ilicitude muito elevado, atento o concurso de circunstâncias qualificativas, não se entrando, porém, em conta com o modo de execução (à traição, pois esta foi a circunstância eleita para qualificar o homicídio). A seu favor: - A ausência de antecedentes criminais relevantes - embora não se possa sobrevalorizar este elemento porque não cometer crimes é um dever geral de todos os cidadãos, e o certo é que o arguido já sofreu uma condenação. - Os hábitos de trabalho. - Integração familiar. Entende-se que a idade (o arguido não tem uma idade avançada) é factor neutro. Tudo ponderado, é justa a pena de prisão de 19 anos.” Quanto à qualificação jurídica dos factos e à moldura da pena 12. Defende o recorrente que não se verificam as circunstâncias correspondentes aos exemplos-padrão das alíneas e), i) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, pelo que os factos provados se reconduzem ao preenchimento da previsão típica do crime de homicídio simples do artigo 131.º do Código Penal. 12.1. Alega, em síntese, que as circunstâncias enumeradas no n.º 2 do artigo 132.º não são de funcionamento automático, sendo sempre necessária a formulação de um juízo que permita concluir que, no caso, tais circunstâncias revelam especial censurabilidade ou perversidade, assim se justificando a qualificação do homicídio por um especial tipo de culpa. Invoca neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 4.5.2011 e de 13.7.2005, bem como o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, que refere a este propósito: «... no n.º 2 do art. 132.º é enumerado um conjunto de circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade referida. Tais circunstâncias não são taxativas, nem implicam por si só a qualificação do crime; isto é, pode o juiz considerar como homicídio qualificado a conduta do agente que não se acompanhasse de qualquer das circunstâncias descritas, mas sim de outras, e pode, por outro lado, deixar de operar tal qualificação apesar da existência clara de uma ou mais dessas circunstâncias». 12.2. Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência, o crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projectada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente (assim, entre outros, os acórdãos de 5.7.2017, Proc. 1074/16.8JAPRT.P1, rel. Cons. Rosa Tching, de 19.2.2014, Proc. 168/11. 0GCCUB.S1, rel. Cons. Santos Cabral, de 2.4.2008, Proc. 07P4730, rel. Cons. Raul Borges, de 18.10.2007, Proc. 07P2586, rel. Cons. Santos Carvalho, e de 20.06.2018, Proc. 3343/15.5JAPRT.G1.S2, rel. Cons. Vinício Ribeiro, em www.dgsi.pt, bem como os trabalhos preparatórios – Eduardo Correia, autor do Anteprojecto, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, edição da AAFDL, 1979, p. 21 – e a jurisprudência e doutrina naqueles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Fernanda Palma, O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, Revista do Ministério Público, 1983, ano 4, vol. 15, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008). Exige-se, pois, que o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo susceptível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio. A propósito dos conceitos indeterminados de “especial censurabilidade e perversidade”, escreveu-se no acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586, cit.), citando Teresa Serra (loc. cit., p. 63-65): «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete». E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit.): «Refere Silva Dias (loc. cit.) que a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício, e não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. (...) O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível. Nas palavras de Margarida Silva Pereira ["Os Homicídios" pág. 40] a caracterização do art. 132° do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso à analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 132.º do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. (...) O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação». 12.3. A alegação do recorrente reflecte, pois, o pensamento legislativo presente na concepção do tipo de crime de homicídio qualificado da previsão do artigo 132.º, havendo, assim, que verificar se, no caso, se revelam as circunstâncias dadas como provadas, em que se fundamenta a condenação por este tipo de crime. 13. Nos termos da alínea e), parte final do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil”. 13.1. Considera-se no acórdão recorrido: “A primeira circunstância apontada na acusação é da al. e), no segmento e “motivo torpe ou fútil”. Conforme escreve o Prof. Figueiredo Dias, motivo torpe ou fútil é aquele que, à luz das concepções éticas e morais ancoradas na sociedade, se deve considerar pesadamente baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como profundo desprezo pelo valor da vida humana. Outra coisa não vem entendendo a jurisprudência, para quem é motivo fútil aquele que “não é ou nem sequer chega a ser motivo”. Na formulação lapidar do Supremo Tribunal de Justiça “a circunstância qualificativa prevista na parte final da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP - motivo fútil - destina-se a tutelar situações em que o agente se determine por mesquinhez, frivolidade ou insignificância, ou seja, por motivo gratuito”. Face a estas formulações e considerando que a alegada dívida, para além de não ser certa, datava de há mais de 20 anos e ascendia a cerca de 60 contos, e que a recusa do seu pagamento motivou o desprezível desejo de vingança do arguido, cremos que a sua actuação se revela de uma absoluta desproporcionalidade, bem podendo dizer-se que o motivo é simultaneamente fútil e torpe”. 13.2. Em discordância, alega o recorrente: “Na significação corrente, típica da esfera do homem médio o termo, motivo torpe ou fútil é aquele “que tem pouca ou nenhuma importância, nulo ou vão”. De egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral, fala Nélson Hungria, citado por Leal-Henriques e Simas Santos, enquanto Bettiol entende haver motivo fútil quando se estabeleça uma “desproporção manifesta” entre a gravidade do facto e o motivo que impeliu à acção, resumindo, uma situação de “insensibilidade moral”. E como diz o insigne professor Figueiredo Dias, motivo “torpe ou fútil” «significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado repugnante, baixo ou gratuito». No domínio da jurisprudência firmada do STJ, tem sido entendimento constante que motivo fútil “é o notoriamente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homem médio, em relação ao crime praticado”; para além da desproporcionalidade, deve acrescer a insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais elevada na brutal malvadez do agente, ou se traduz em motivos subjectivos ou antecedentes psicológicos que, pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a acção. «Motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo “frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida”, o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática. Esta dita desproporcionalidade ocorrerá sempre, com maior ou menor relevo, entre um homicídio e a razão que o haja motivado, qualquer que ele seja, alguma coisa mais deverá acrescer, em ordem a avivar a dita desproporcionalidade, e esse aditável algo terá que ver com índices subjectivos expressos ou inferíveis do conjunto da factualidade apurada ou detectáveis na sua antecedência psicológica, e que, por sua insignificância patente ou por sua evidente frivolidade, incompatíveis se mostrem e inconciliáveis se alcancem com a actuação homicida. O vector fulcral que identifica o “motivo fútil” não é pois tanto o que passe por dizer-se que, sendo ele de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dele e por ela se envolva». O motivo fútil na origem da actuação criminosa, mais não será do que uma actuação despropositada do agente, sem sentido á luz do senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação do facto, que se acoita num egoísmo mesquinho e insignificante do agente. Ora in casu, se bem que censurável a conduta, em nosso entender, da actuação criminosa e da factualidade dada por assente não parece ser subsumível a este especial quesito do quase nem existir motivo. Pois apesar de tudo a actuação resulta da frustração do pagamento de uma quantia resultante do trabalho do arguido, sendo certo que nestes meios rurais o trabalho realizado e não pago, ganha foros de ofensa ultrajante, pois para além da frustração do crédito apresenta-se também como violação da honra e do respeito devidos. No que toca á especial censurabilidade ou perversidade do agente e Conforme o expendido no acórdão do STJ de 04/05/2011; proc. 1702/09.1japrt.s1, “A especial perversidade releva de um egoísmo abominável, assentando a decisão de matar em grande reprovação, deixando-se o agente motivar por factores desproporcionados, aumentando a intolerância colectiva ante o facto; a especial censurabilidade denota que o agente se não deixou vencer por factores que o deviam levar a abster-se de actuar, traduzindo um profundo desrespeito ante padrões axiológico-normativos preestabelecidos – Ac. deste STJ, de 18-09-2006, Proc. n.º 062679”. Neste particular e in casu, não se afigura que a da matéria provada resulte esta demonstração em concreto.” 13.3. Para efeitos de preenchimento deste exemplo-padrão, da matéria de facto provada releva a circunstância de o arguido e a vítima manterem um diferendo, com cerca de 20 anos, a propósito de umas obras realizadas pelo primeiro numa casa deste, pelas quais o arguido reclamava o pagamento da parte do preço não paga, que ascendia a 60 contos (ponto2), invocando a vítima que as obras não foram concluídas, recusando o pagamento (ponto 1), e de, em virtude de tal diferendo, o arguido, cerca de uma ou duas semanas antes, ter ido a casa da vítima pedir-lhe o pagamento, tendo esta “fechado a porta na sua cara”, ficando o arguido na rua a resmungar sozinho, na sequência do que, por vingança, tomou a resolução de matar DD (pontos 3, 4 e 5). O arguido, que é oriundo de uma família humilde, tendo o seu processo de socialização decorrido segundo regras e uma referência de valores tradicionais e característicos do meio rural (ponto 24), actuou movido pelo desejo de vingança derivado da recusa da vítima em pagar-lhe a quantia por si reclamada (como se esclarece no ponto 19). A apreciação e valoração dos factos requer a necessária ponderação destes elementos de contextualização sociocultural da acção do arguido, para, como vem sendo unanimemente entendido pela doutrina e pela jurisprudência (cfr., nomeadamente, os acórdãos deste Tribunal citados), se poder concluir se esta foi determinada por um motivo gratuito, insignificante, sem qualquer importância, desprezível ou repugnante. Como sublinham Figueiredo Dias e Nuno Brandão (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., 2012, p. 62), na linha da jurisprudência dominante, sendo este exemplo-padrão «estruturado com apelo a elementos estritamente subjectivos, relacionados com especial motivação do agente», «qualquer motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito». 13.4. Como se extrai dos factos provados, a decisão de matar não resultou exclusivamente do facto de a vítima “ter fechado a porta na cara” do arguido, expressão que, não sendo meramente descritiva, contém uma conotação de rejeição, de desconsideração, ou mesmo de ofensa, aspectos que, não estando esclarecidos, poderão associar-se à ideia de “vingança”, que levou o arguido a agir. Ideia que, por definição, se associa a uma atitude de desforra ou retaliação de quem se sente ofendido pela atitude de outrem. Uma acção de vingança motivada exclusivamente por aquele facto poderia, por mais valor que se atribuísse às concepções morais que regem as relações entre os membros da comunidade local, ser considerada como determinada por motivo fútil, no sentido que lhe vem sendo conferido. Esta atitude, porém, não pode isolar-se do contexto do diferendo que opunha o arguido e a vítima, com cerca de 20 anos, a propósito dos trabalhos que aquele havia realizado na casa desta e do litígio relativo ao cumprimento do contrato e ao pagamento da dívida, nos termos acima referidos. Esta questão assumia particular e elevada importância nas relações entre ambos, não podendo ser ignorada. Como esclarece a matéria de facto provada, o desejo de vingança, que levou à prática do acto homicida (ponto 19 da matéria de facto), foi “derivado da recusa da vítima em pagar a quantia reclamada”. Pelo que, na consideração destas concretas circunstâncias, se mostra fundado concluir pela não verificação do exemplo-padrão previsto na alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. 14. De acordo com o disposto na alínea i) do n.º 2 do mesmo preceito, é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso. 14.1. Considera-se a este propósito no acórdão recorrido: “Vem depois imputada a circunstância prevista na al. i) in fine, que rege sobre o caso de o agente “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso. Seguindo o Prof. Figueiredo Dias temos que por meio insidioso deve entender-se todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assume características idênticas à do veneno ou seja, todo o meio que actue de forma enganadora, traiçoeira, dissimulada, oculta ou sub-reptícia que tornam praticamente impossível a defesa da vítima, aqui se incluindo, v.g., a utilização de arma de fogo à traição, uma cilada ou emboscada. Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a natureza do meio ou instrumento utilizado e por outro, há que averiguar das circunstâncias acompanhantes, isto é, o naturalístico conjunto de circunstâncias em que aquele concreto meio ou instrumento foi utilizado, e, assim, designadamente, a distância a que o agressor se encontrava da vítima (com especial relevância para a curta distância), a situação em que esta se encontrava (com possibilidade de resistência, de defesa), a zona do corpo atingida, o momento e local, a actuação com dissimulação, engano, de forma sub-reptícia. No caso concreto, temos que o arguido, munido de uma arma de fogo, a uma curta distância de cerca de 20 metros, sobretudo quando a vítima se encontrava de costas, disparou atingindo toda a zona posterior do tórax e abdominal e fê-lo num lugar ermo, pelo que colocou a vítima numa situação de absoluta impossibilidade de resistir ou de fugir, sobretudo atenta a idade avançada daquela. Verdadeiramente, tratou-se de uma execução”. 14.2. Em discordância com o decidido, alega o recorrente que: “Quando no douto acórdão se aponta para a circunstância, que refere a utilização de veneno ou outro meio insidioso, chamamos, neste particular à colação o que foi vertido no Ac. do STJ, de 23-02-2000, Proc. n.º 1187/99 - 3, que definiu meio insidioso como sendo “…o que se apresenta como enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para com a vítima, constituindo para ela uma surpresa ou colocando-a numa situação de vulnerabilidade ou desprotecção em termos de a defesa se tornar difícil”... Na doutrina, o conceito aparece recortado com clareza inultrapassável, quando o Prof. Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do CP, tomo I, pág. 37, escreve que a lei, na sua definição, não prescinde de duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal dos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado, e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes, resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Continuando na senda do acórdão supra citado, transcreve-se a seguinte passagem …”Uma arma de agressão – uma espingarda caçadeira indocumentada, sem licença de uso e porte, não adquirida num estabelecimento da especialidade, mediante autorização prévia para o efeito do Comando-Geral da PSP – usada à queima-roupa, a cerca de 1 metro de distância da vítima, revela-se sem dúvida um meio perigoso de agressão. Porém, de frequente uso na prática do homicídio como é, não preenche a agravativa do crime, por não ser portadora de efeito mortífero mais gravoso do que as usadas naquela prática…”, ora não pode deixar de se reconhecer nítidas semelhanças com o caso sub judice. Também aqui não se entende poder a matéria dada como provada, ser subsumível ao conceito. Não será o simples uso da arma, que revelará, no sentido da especial censurabilidade ou perversidade do agente.” 14.3. Para efeitos da verificação deste exemplo-padrão, releva da matéria de facto provada que o arguido foi à sua residência, em ..., muniu-se da arma, foi ao encontro da vítima, sabendo que esta estava sozinha (ponto 10) e, chegado ao lugar da ..., onde a vítima se encontrava, conduzindo seu veículo Opel Corsa, saiu deste, empunhou a arma municiada com pelo menos um cartucho calibre 12 carregado com chumbo (ponto 11), aproximou-se e, a uma distância de cerca de 20 metros, estando a vítima de costas, disparou um tiro na direcção desta, ligeiramente da esquerda para a direita e de trás para a frente, atingindo-a na região posterior do tórax, nos flancos e no braço esquerdo (ponto 12). Ao disparar a essa distância e quando a vítima se encontrava de costas – não se esclarecendo se, por esta circunstância, foi apanhada de surpresa e se o arguido especialmente a elegeu para efectuar o disparo –, o arguido bem sabia que DD estava impossibilitado de se defender sem hipótese de fuga, porque era um lugar ermo e face à sua idade avançada de 80 anos, que o arguido bem conhecia (ponto 21). 14.4. Na enumeração do n.º 2 do artigo 132.º, distingue-se a utilização de “meio particularmente perigoso”, que consta da alínea h), da utilização de “veneno ou qualquer outro meio insidioso”, que está prevista na alínea i). No primeiro caso está em causa a utilização “de um instrumento, método ou processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de crime de perigo comum), criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de bens jurídicos importantes”, “sendo exigível que eles sejam “particularmente perigosos”, isto é, que seja “desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior ao normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou instrumentos contundentes (…) ” sendo “indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se, da natureza e meio utilizado (…) resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade”, “sob pena de, de outra forma, (…) se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso” Figueiredo Dias e Nuno Brandão (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., 2012, p. 67-68). No segundo caso inclui-se a utilização de “meio insidioso”, categoria que compreende o uso do veneno ou instrumento “particularmente perigoso” (fora do caso da alínea h)), sublinhando-se que a possibilidade de qualificação da circunstância há-de derivar do facto “de os meios utilizados tornarem «especialmente difícil a defesa da vítima ou arrastarem consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos» (...), (…) o que serve também para compreender que «insidioso será todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno – do ponto de vista do seu carácter enganador, traiçoeiro, sub-reptício, dissimulado ou oculto, «elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida» (Ac. do STJ de 15-02-2002)” (id., loc. cit., p. 69-70). Está em causa o “meio” utilizado para matar – “veneno ou qualquer outro meio insidioso”. 14.5. A este propósito pode ler-se no acórdão de 7.7.2000, Proc. 00P2843 (rel. Cons. Pires Salpico, em www.dgsi.pt): “Dos ensinamentos da moderna doutrina dos mais ilustres penalistas, parece poder concluir-se que "meios insidiosos" são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta, e cujo poder mortífero se encontra oculto, surpreendendo a vítima, tornando-se extremamente difícil ou impossível a defesa”. E considerou-se no acórdão de 4.5.2011, processo n.º 1702/09.1JAPRT.P1.S1 (rel. Cons. Armindo Monteiro, em www.dgsi.pt), o seguinte: “O vocábulo “ insídia “, e a propósito do uso de meio insidioso, tem o alcance de pérfido, dissimulado. O conceito recebeu, para integração, nem sempre fácil e nem sequer de agora, o contributo da doutrina, chamando Nelson Hungria meio insidioso àquele meio dissimulado na sua influência maléfica, meio fraudulento ou sub-reptício por si mesmo, que inclui traição, ataque súbito, sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso, emboscada, enquanto espera da vítima em lugar por onde vai passar e dissimulação, que é ocultação da intenção hostil para acometer a vítima - cfr. Comentário ao Código Penal Brasileiro, vol. V, 167 a 169. Teresa Serra, aponta que o meio insidioso compreende não apenas os meios especialmente perigosos, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de forma mais eficaz dada a situação de vulnerabilidade, de desprotecção da vítima em relação ao agressor – Homicídio Qualificado, 13. Meio insidioso será, para Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 38, 39, aquele cuja forma de actuação sobre a vítima ofereça características semelhantes ao veneno, do ponto de vista do seu carácter enganoso, sub-reptício, dissimulado ou oculto; o meio insidioso é equiparado ao veneno. Na insídia o agente aproveitou uma distracção da vítima para actuar, age, enganando-a, cria uma situação que a coloca em posição de não resistir como em circunstâncias normais sucederia, escreve Maria Margarida da Silva Pereira, in Direito Penal; II, Os Homicídios, pág. 42, para quem a traição sempre sugeriu agravação do homicídio, se bem que esta é a tónica dominante nessa tipologia sobretudo sendo o agente pessoa “discernida“. A dissimulação é a ocultação da intenção hostil para com a vítima, surgindo à falsa fé, quando não se perfila qualquer propósito de ofender; a insídia repousa mais no meio usado; a dissimulação mais no modo como é usado, esclarece Magalhães Noronha, Código Penal, 1988, pág. 32. No recuado ano de 1923, Luís Osório, in Notas ao Código Penal Português, Vol. I, pág. 134, a propósito da definição de traição, comentando a agravante 11.ª do CP de 1886, considera que nesta nem a vítima chega a lembrar-se da defesa, não dá pelo ataque senão no momento da sua realização; a surpresa exige uma tal rapidez no ataque que a vítima nem sequer tem tempo para se defender. O Ac. deste STJ, de 23.2.2000, Rec.º n.º 1187/99-3.º Sec., definiu meio insidioso de uma forma paradigmática, amplamente compreensiva, abrangente, como sendo o que se apresenta como enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para com a vítima, constituindo para ela uma surpresa ou colocando-a numa situação de vulnerabilidade ou desprotecção em termos de a defesa se tornar difícil. E a jurisprudência deste STJ mantém-se fiel ao conceito, tratado teoricamente de modo uniforme, mas de nem sempre fácil apreensão no real, acentuando que a traição como meio insidioso deve ser definida como sendo o ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante antes de perceber o gesto criminoso. Neste sentido cfr. os Acs. de 13.10.2004, Rec.º n.º 05P224, de 14.5.97, P.º n.º 1050 /97, 11/11 /96, P.º n.º 152/97, 20.2.2004, P.º n.º 1127 /04 e , mais recentemente, os de 27.5.2010, in P.º n.º 58/08.4/4GRD.C1.S1 e 9.9.2010, P.º n.º 30/08.4.PEHRT, dominando nestes dois últimos a tónica de meio dissimulado, tornando mais “precária, ténue“ , uma reacção defensiva e de prevenção contra o potencial agressor. A definição de meio particularmente perigoso, enquanto qualificativa adoptada no acórdão recorrido – al.h) do n.º 2 do art.º 132.º do CP envolve em si uma ideia diferenciada de meios perigosos e muito perigosos de agressão, já que tem inscrita um “plus“ de agressividade, que os meios comuns, normais, de agressão não comportam. Os meios de agressão hão-de ser particularmente perigosos, portadores de uma letalidade acrescida, de um poder mortífero ante o qual a possibilidade de defesa é mais reduzida ou mesmo inexistente, por isso a exigência da particular perigosidade. Na doutrina, o conceito aparece recortado com clareza inultrapassável, quando o Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 37, escreve que a lei, na sua definição, não prescinde de duas coisas: “ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal dos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.” A particular perigosidade não está ligada, não resulta nem do porte ilegal da arma, por indocumentada, do seu carácter proibido ou mesmo uso à queima-roupa, escreveu-se nos Acs. de 10.3.2005, P.º n.º 0TP224 e de 13.10.2004, P.º n.º 05P224. Cfr., ainda, os Acs. de 10.2.98 , P.º 478/98 e de 14 .5.97, P.º n.º 1050/97. E assim a arma de agressão, uma espingarda caçadeira indocumentada, sem licença de uso e porte, não adquirida num estabelecimento da especialidade, mediante autorização prévia para o efeito do Comando-Geral da PSP, usada, é certo, à queima-roupa, a cerca de um metro de distância da vítima, sem dúvida meio perigoso de agressão, porém, de frequente uso na prática do homicídio como é, não preenche a agravativa invocada, por não ser portadora de efeito mortífero mais gravoso do que as usadas por regra naquela prática”. 14.6. Afirmou-se no acórdão de 30.11.2011, no Proc. 238/10.2JACBR.S1 (rel. Cons. Raul Borges, em www.dgsi.pt), com exaustiva indicação e citação de jurisprudência deste Tribunal): “Como se colhe dos acórdãos de 15-05-2002, processo n.º 1214/02-3.ª e de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3.ª, a noção de meio insidioso, embora tenha recebido contributos úteis da doutrina e jurisprudência, não é unívoca, girando sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da acção. Por outras palavras, poderá dizer-se que a subsunção não pode ficar-se por uma interpretação que se quede pela consideração apenas do meio utilizado, da forma como é executado o facto, atendendo à natureza do instrumento, mas antes tendo em consideração uma visão mais abrangente, completa, em que entra a imagem global do facto, o que é dizer no caso, apreciar os factos na sua globalidade, analisar a conduta no seu conjunto, avaliar a atitude do agente, o que será avaliado em função das específicas nuances do evento e do pleno das circunstâncias enformadoras do concreto sucesso submetido a juízo. Há que avaliar a conduta global do recorrente com vista a perscrutar uma especial censurabilidade da sua culpa, que o faça distinguir dos casos vulgares - acórdãos de 03-04-1991, CJ1991, tomo 2, pág. 15 e BMJ n.º 406, pág. 314; de 18-10-1991, processo n.º 42116, BMJ n.º 410, pág. 367. (…) Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a “natureza do meio/instrumento /arma, que é utilizado”, e por outro, averiguar as “circunstâncias acompanhantes”, isto é, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto concreto de circunstâncias em que aquela concreta arma/meio/instrumento de agressão, no caso de bens eminentemente pessoais, foi utilizada: a distância a que o agressor se encontrava da vítima (a curta distância, com disparo à queima roupa, ou não), a situação em que esta se encontrava (prevenida ou desprevenida, desprotegida, descuidada, indefesa, com possibilidade de resistência ao agressor ou não), a zona do corpo atingida, o momento e o local escolhido para a agressão, com actuação em espaço fechado, ou aberto, com ou sem espera, com ou sem emboscada, com ou sem estratagema, com ou sem traição, com ou sem perfídia, disfarce, surpresa, dissimulação, engano, abuso de confiança, ou distracção da vítima, ou não, de forma sub-reptícia, ou não, de forma imprevista ou não, com ataque súbito, inesperado, sorrateiro, ou não, com ou sem possibilidade de a vítima oferecer resistência, enfim, todo o conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes/determinantes do evento letal, ou quase letal, no traço de um desenho panorâmico, de uma imagem multifacetada, de supervisão, de síntese, a final, de um retrato vivencial, de uma fotografia, guardadora de eventos ocorridos, condensada, definida, a juzante, com todos os contornos e pormenores, independentemente dos retoques, e que mais do que a natureza da arma ou instrumento utilizado, indiciam o meio utilizado naquele analisado concreto agir, como particularmente perigoso ou insidioso. Daí que, a análise da jurisprudência não se possa ficar apenas pelo que é dito a propósito da (ir)relevância configuradora do instrumento utilizado, de per si, desligado do contexto da, por vezes, complexa, acção em que determinado meio é empregado. Como resulta das Actas das Sessões Parte Especial, 21/26, no seio da Comissão Revisora do Código Penal, a propósito desta circunstância, então prevista na alínea e) do n.º 2 do artigo 138.º do Anteprojecto da Parte Especial, foi proposto pelo Dr. Fernando Lopes que deveriam aditar-se ao adjectivo “insidioso” os adjectivos “traiçoeiro” ou “desleal”, com o fundamento de que mereciam a mesma previsão. O Autor do Anteprojecto, Professor Eduardo Correia, em resposta, referiu que a proposta podia retirar elasticidade à estrutura da circunstância pelo que não era aconselhável, na sequência do que a Comissão se pronunciou contra tal proposta, tendo concluído que o sentido da expressão “meio insidioso” contém em si o sentido da expressão “meio insidioso traiçoeiro ou desleal”. Atendendo ao modo de execução do facto, rectius, quanto ao instrumento utilizado na agressão, a doutrina e a jurisprudência afastam, de forma uniforme, a qualificação de “meio particularmente perigoso”, circunstância integrante do exemplo padrão previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, quando está em causa o uso de armas de fogo ou outras. Já quanto à qualificação do instrumento utilizado como integrando a expressão de “meio insidioso”, há diferenças no enquadramento. No sentido de que a arma ou outro instrumento utilizado na prática do crime não constitui só por si um meio insidioso, pronunciou-se este Supremo Tribunal por várias vezes (…). Noutros casos não se atende apenas à natureza do meio utilizado” (…). 14.7. A este propósito referem Miguez Garcia e Castela Rio (Código Penal, Almedina, 2014, p. 512): “Na alínea i) está em causa toda e qualquer substância que possa dar a morte (…). O veneno é o paradigma do meio insidioso; com o emprego de veneno, a vítima, por regra, é apanhada desprevenida, nem sequer se apercebe que está a ser objecto de um atentado, o que torna quase impossível que se defenda (…). O conceito de meio insidioso abrange a espera, a emboscada, o disfarce, a surpresa, a traição, a aleivosia, o excesso de poder, o abuso de confiança ou qualquer fraude (Ac. STJ de 11/7/87, BMJ 368, p. 312; STJ 11/12/1991, BMJ 412, p. 183). (…) Quando a lei fala em meio insidioso não quer necessariamente abarcar os instrumentos habituais de agressão (o pau, o ferro, a faca, a pistola, etc.), ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir tanto às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma elevada carga de perfídia, como aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossível a defesa da vítima (Ac. STJ de 13/10/1993, BMJ 430, p. 248; e STJ 11/01/1995, BMJ 443, p. 55).” 14.8. O conceito de “meio insidioso”, de conteúdo de não fácil determinação, tem sido, como acima se viu (supra, 14.5), preenchido por inspiração no Código Penal brasileiro. Referem Leal Henriques e Simas Santos (Código Penal, vol.2, Rei dos Livros, 2.ª ed.), p. 47): “meio insidioso é o meio dissimulado na sua influência maléfica. É o meio fraudulento ou subreptício por si mesmo, como, por exemplo (além do veneno), as armadilhas e os chamados venenos físicos (vidro moído, limadura metálica, germes patogénicos, etc.)”. Citando Nelson Hungria, acrescentam: “são meios insidiosos a traição («ataque súbito e sorrateiro, atingida a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso); a emboscada («dissimulada espera da vítima em lugar por onde terá de passar»); e a simulação («ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa. O criminoso age com falsas mostras de amizade, ou de tal modo que a vítima, iludida, não tem motivo para desconfiar do ataque e é apanhada desatenta e indefesa)”. A “grande amplitude” da expressão, que compreende os “meios aleivosos, traiçoeiros e desleais”, “não abarca”, porém, alertam estes autores, “desde logo, as formas comuns de agressão. Assim, as armas vulgares utilizadas (pistola, pedra, pau…) não chegam para qualificar o meio como insidioso, só merecendo essa qualificação os instrumentos incomuns de agressão que deixam à vítima uma margem de defesa reduzida (v.g. faca de ponta e mola, gadanha, machado, etc.)”. Tendo em conta que o Código Penal brasileiro, diferentemente do que sucede na lei penal portuguesa, estabelece distinção, para efeitos de qualificação, entre o homicídio cometido por “meio insidioso” e o cometido “mediante dissimulação” (artigo 121.º, § 2.º, III – emprego de “meio insidioso” – e IV – “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”), nele não se confundem o uso de “meio dissimulado”, entendido como “meio insidioso” de cometer o crime, e o crime cometido “mediante dissimulação”. Pelo que, na sua interpretação, se vem entendendo que o meio insidioso é um meio dissimulado quando há a prática de sabotagem, exemplificando Magalhães Noronha que isso sucede quando “se se dissimula a boca de um poço, para que a vítima nele se precipite; se se misturam a alimentos limalhas ou fragmentos de vidro; ou se se usam substâncias mortais que não são propriamente veneno” (Direito Penal, vol. 2, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 32), e que, por sua vez, se verifica que o crime é cometido “mediante dissimulação” quando há “ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa”, isto é, quando a vítima não tem motivo para desconfiar dos desígnios do homicida (Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, vol. V, arts. 121 a 136. 6.ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 169). Assim, nota-se, no primeiro caso, que corresponde ao inciso III do § 2.º do artigo 121.º do CP brasileiro, está em causa o meio utilizado, que anula ou dificulta a possibilidade de defesa em relação à forma como é visado o resultado morte; o segundo, que se compreende no inciso IV da mesma disposição legal, refere-se ao modo de execução, que anula ou dificulta a possibilidade de defesa em relação à pessoa que age contra a vítima. 14.9. O que vem de se expor, conferindo maior nitidez ao sentido e alcance da previsão normativa da alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, permite afirmar que, na densificação do conteúdo do conceito de “meio insidioso”, tendo em consideração as concretas circunstâncias do facto, se deverá incluir a insídia própria do meio utilizado, em que a capacidade letal deste, não necessariamente limitada às características do instrumento, se encontra oculta, anulando antecipadamente ou especialmente dificultando, por erro ou engano, a possibilidade ou capacidade de reacção e defesa da vítima. Meio insidioso será, pois, como salientam Figueiredo Dias e Nuno Brandão (loc. cit.), um meio que possua características análogas à do veneno, do ponto de vista do seu carácter enganador, traiçoeiro, dissimulado, sub-reptício ou oculto, não se incluindo no âmbito de previsão da norma os casos em que o agente tenha agido de surpresa, utilizando um instrumento letal (como um arma ou uma faca) em que, pela sua qualidade, natureza ou modo de utilização, estas características não se encontram presentes. Neste caso, para além de, como se referiu (supra, 14.3), os factos provados não evidenciarem suficientemente o factor surpresa e a insídia que, no sentido anteriormente apontado, lhe deve ser inerente, nem a sua eleição pelo arguido em vista do resultado pretendido, o que apenas se mostra é que o arguido utilizou uma arma caçadeira, aproveitando-se da circunstância de a vítima se encontrar sozinha, num lugar isolado, atingindo-a com um tiro disparado à distância aproximada de 20 metros, quando esta se encontrava de costas. Para além disso, a matéria de facto provada não permite concluir que o arguido colocou a vítima numa situação de absoluta impossibilidade de resistir ou de fugir, sobretudo atenta a idade avançada, o que, a verificar-se, não relevando para efeitos da alínea i), só seria de considerar em função da previsão da alínea c) do n.º 2 do mencionado artigo 132.º do Código Penal, o que não é o caso. Assim sendo, sem prejuízo da consideração destes elementos da matéria de facto no âmbito da determinação da pena, justifica-se a conclusão de que não foi utilizado um “meio insidioso”, pelo que não ocorre a circunstância a que se refere a alínea i) do n.º 2 deste preceito. 15. O acórdão recorrido julgou ainda verificada a circunstância prevista na alínea j) do n.º 2 artigo 132.º, segundo a qual é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas. 15.1. Resulta dos factos provados que o arguido, uma ou duas semanas antes de 18 de Dezembro de 2016, foi a casa da vítima pedir-lhe o pagamento da quantia que esta alegadamente lhe devia (pontos 2 e 3), que esta lhe fechou a porta na cara, ficando ele na rua a resmungar sozinho (ponto 4), que, nessa sequência, por vingança, tomou a resolução de matar (ponto 5), que, no dia 18 de Dezembro de 2016, depois de ter pernoitado com a mulher na sua residência em ..., deslocou-se à zona das ..., entre as 9h00 e as 10h00, localizou a vítima que andava ocupada em trabalhos agrícolas, nomeadamente na limpeza de oliveiras, regressou à residência, esperou que a sua mulher saísse de casa, pelas 11h15m, muniu-se da arma caçadeira, voltou ao local onde a vítima se encontrava, onde chegou pelas 11h40m, e, então, aproximou-se desta e fez um disparo, a cerca de 20 metros, que a atingiu, estando ela de costas, e lhe produziu os ferimentos que foram causa da sua morte (pontos 7 a 10). Mais se esclarece (ponto 20) que o fez de modo pensado e com antecedência, aguardando pela melhor oportunidade, pelo que, quando o viu sozinho, decidiu executar a resolução já tomada de matar DD, só não o tendo feito de imediato porque a mulher o aguardava em casa, tanto assim que logo que esta saiu o arguido dirigiu-se de imediato ao local onde havia avistado a vítima. 15.2. Perante esta factualidade, conclui o acórdão recorrido: “Verifica-se ainda que actuou depois de ponderação sobre a melhor oportunidade para levar a cabo o propósito já tomado pelo menos uma semana antes de tirar a vida a DD e, na manutenção desse propósito, aproveitou que a vítima se encontrasse sozinha num lugar ermo, pelo que cremos também se verificar a circunstância da al. j), na vertente de “reflexão sobre os meios empregados”, que se entende como “a selecção de meios de actuação que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam a vulnerabilidade da concretização do desígnio criminoso”. 15.3. Discorda, porém, o arguido, dizendo: “Como é sabido, o exemplo-padrão reporta-se à alínea. j) do n.º 2 do art.º 132.º C.P, que contempla 3 vertentes: frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregues e protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. “…A reflexão sobre os meios empregados ou a persistência na intenção constituem, por seu lado, refracções da insensibilidade que está presente na frieza de ânimo e manifestam-se numa acção do agente do facto que foi pensada, reflectida, ponderada, e em que se revela tenacidade de propósito”… ac stj de 15/11/2003. As circunstâncias agravantes mencionadas, encontram-se em estreita ligação com o processo de formação da resolução criminosa e tradicionalmente contemplam a chamada premeditação. Acompanha-se o citado acórdão do STJ de 15/11/2003, em que foi relator o conselheiro Francisco Caetano, quando nele se escreve …”Se a reflexão sobre os meios é comummente definida como o amadurecimento temporal sobre o modo de praticar o crime, como a congeminação serena e perdurante, no campo da consciência, da ideação de matar e dos meios a utilizar, a frieza de ânimo tem sido definida pela jurisprudência do STJ como o agir de forma calculada, planeada quanto ao local e ao momento, com imperturbada calma, revelando-se indiferença e desprezo pela vida, firmeza, tenacidade, sangue frio, um lento, reflexivo e cauteloso processo na preparação e na execução do crime, de forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e pela vida humana”…. Ora no âmbito dos autos em crise e salvo melhor opinião, de toda a prova produzida, não se alcança como seja possível retirar a conclusão de que o ora arguido ponderou pelo menos durante uma semana, nem tampouco, que o mesmo arguido tenha escolhido o lugar e a hora para levar a cabo o acto. Pois ao contrário do que se aponta no ponto 9 da fundamentação nenhum dos elementos de prova indica que o arguido quando se deslocou da zona das calçadas e nesse trajecto tenha passado na zona da vela, o que afirmam as testemunhas quando questionadas é que os locais são nos antípodas um do outro, tendo por referência a aldeia de Meirinhos. Pelo que se entende não ser reconduzível á figura jurídica em causa a factualidade dada como provada no acórdão, logo os factos também neste âmbito não poderão conduzir á qualificação do crime.” 15.4. Retomando o que se disse no acórdão de 5.7.2017 (Proc. 1074/16.8JAPRT.P1) sobre o exemplo-padrão da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal: “Contempla este exemplo-padrão, sob o denominador comum da premeditação, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Trata-se de circunstâncias agravativas relacionadas com o processo de formação da resolução criminosa. Segundo Fernando Silva (Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 60 e segs.), «A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo». «Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha». A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime, surge, assim, materializada em três situações: A frieza de ânimo, que, na expressão do Acórdão de 06.01.2010 (proc. 38/08.2JAAVR.C1.S1- 3ª Secção - relator Cons. Oliveira Mendes), se traduz «na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto» (neste mesmo sentido, cfr. Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84 e entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 17.04.2013 (proc. nº 237/11.7JASTB.L1.S1-3ª Secção- Relator Raul Borges); de 13.11.2013 ( proc. Nº 2032/11.4JAPRT.P1.S1-3ª Secção- Relator Cons. Maia Costa); de 19.02.2014 ( proc nº 168/11.0GCCUB.S1-3ª Secção- Relator Cons. Santos Cabral) e de 12.03.2015 ( proc. nº 405/13.7JABRG.G1.S1-5ª Secção- Relator Cons. Francisco Caetano). A reflexão sobre os meios empregados, segundo Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos (Código Penal Anotado, 3ª ed., II vol., págs 27 e 28), consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito. Traduz-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar, significando, no dizer do Acórdão do STJ, de 14.05.2009 (proc. 389/06.8GAACN.C1.S1 - 3ª Secção - relator Cons. Armindo Monteiro), «um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar, a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação de matar e dos meios a usar». A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduzida na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato (Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, 2ª ed., págs. 83 e 84 e Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84) ”. 15.5. Perante o exposto, dada a matéria de facto provada, torna-se evidente que não assiste razão ao recorrente. Por um lado, funda os seus argumentos na base de uma diferente apreciação da matéria de facto, que, a seu ver, deveria conduzir a conclusão diversa. O que, como anteriormente se disse, se encontra subtraído à apreciação deste tribunal, por o recurso ser limitado ao reexame da matéria de direito (artigo 434.º do CPP). Por outro, daquela matéria de facto provada resulta claramente demonstrado que o arguido formou a sua vontade de matar a vítima cerca de uma ou duas semanas antes, e, que, no dia em que executou a acção homicida, dominado pela vontade de matar, que persistia, depois de se assegurar que esta se encontrava no local onde a atingiu e por onde passou mais de uma hora antes, foi buscar a arma caçadeira que tinha na sua residência e, depois de aguardar que a sua mulher se ausentasse, dirigiu-se de novo ao local onde disparou sobre a vítima, causando-lhe a morte. Agiu, pois, o arguido com persistência na intenção de matar por mais de 24 horas e com exacta reflexão sobre o meio utilizado, que escolheu, pelo que dúvidas não se suscitam quanto à verificação da circunstância prevista na alínea j) do artigo 132.º do Código Penal, sendo, por este motivo, como se decidiu no acórdão recorrido, especialmente censurável a sua actuação. 16. Considerou-se no acórdão recorrido que há lugar à agravação prevista no n.º 3 (por referência ao nº 4) do artigo 86.º da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações posteriores), pois que o crime de homicídio foi cometido com uma arma de fogo e o simples uso e porte de arma não constitui elemento típico do crime nem ocorre agravação da pena por esta circunstância nos termos do artigo 132.º do Código Penal. Dispõe o artigo 86.º, n.º 3, da lei das Armas que “As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. Esclarecendo o n.º 4 que, “Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.” Como é jurisprudência deste Tribunal, o n.º 3 do artigo 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada; a agravação não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação (assim, os acórdãos de 13.4.2016, Proc. 294/14.4PAMTJ.L1.S1, e de 6.4.2017, Proc. 1183/15.0JAPRT. P1.S, www.dgsi.pt). Não sendo o uso de arma elemento do crime de homicídio, e não levando, no caso, ao preenchimento do tipo qualificado do art.132.º, não há, pois, fundamento para afastar a agravação prevista neste preceito. Pelo que, sendo o crime de homicídio qualificado punível com pena de 12 a 25 anos de prisão, a moldura abstracta da pena aplicável, tendo em atenção o limite máximo de 25 anos (artigo 41.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal), é de 16 a 25 anos de prisão. Quanto à determinação da medida da pena 17. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena. A determinação da medida da pena vem fundamentada nos termos que constam do ponto 11.2 (supra). 18. Entende o recorrente que a pena é excessiva, pelo que, mantendo-se a punição pelo crime de homicídio qualificado, deve esta ser reduzida ao seu limite mínimo, de 16 anos de prisão. Alega o seguinte: “Dos factos provados, constata-se que o recorrente é primário e tem conduta disciplinada no estabelecimento prisional onde se encontra de preso. Tendo mesmo iniciado a frequência de um curso de formação de adultos, colaborando também nas obras de ampliação do estabelecimento prisional. Refira-se aliás que na própria sentença se faz referência no qual mantém comportamento adequado, nas palavras do douto acórdão de que se recorre. Ademais refira-se que ao contrário do expendido na sentença, o relatório social realizado no meio social do Arguido e junto daqueles que de toda uma vida o conhecem, reporta que o arguido revela a capacidade de autocrítica. Bem como militam a favor do arguido e no nosso modesto entender foram pouco relevadas o facto de este ter um percurso de vida ao longo dos seus 63 anos, que se pautou por um comportamento em comunidade enquadrado dentro das regras prescritas pelas normas de direito. Pelo que existe, no nosso modesto entendimento, violação dos princípios da necessidade, proporcionalidade das penas e proibição do excesso, com o que cumulativamente foram violados os art.º 40.º, 70.º e 71.º, do CP; porquanto em nosso entender o quantum da pena deveria estar no limite mínimo da moldura penal aplicável, ou seja os 16 anos de prisão”. 19. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Estabelece o artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (n.º 1) e que, na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as circunstâncias enumeradas no n.º 2: Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A restrição (ou privação temporária) do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao genericamente designado princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º). 20. A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal). A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de actuar de acordo com o direito, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). Na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, de enumeração não taxativa, devem ser levados em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, incluídas no denominado “tipo complexivo total” (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 234) e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto – nomeadamente, nos termos do n.º 2, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm a ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto (alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves), o comportamento anterior e posterior ao crime (alínea e), com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto (alínea f)). O comportamento do agente (circunstâncias das alíneas e) e f)) adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357). 21. Em justificação da sua pretensão de ver reduzida a pena, invoca o arguido, em síntese, a boa conduta anterior ao crime (ausência de antecedentes criminais), ao longo de 63 anos de vida, o bom comportamento no estabelecimento prisional, onde frequenta um curso de formação de adultos e colabora nas obras de ampliação do estabelecimento, e capacidade de autocrítica. O acórdão condenatório considera prementes as exigências de prevenção geral, dado o bem jurídico ofendido – o que, saliente-se, se reflecte na moldura abstracta da pena estabelecida pelo legislador –, e o dolo directo e persistente, “pelo que o ponto máximo da moldura consentido pela culpa situa-se num grau muito elevado”, bem como, contra o arguido, com “acentuado peso”, “a personalidade reveladora de acentuada indiferença perante o dever jurídico-penal, não reconhecendo o mal do crime pelo qual não se arrependeu”, o comportamento posterior aos factos, designadamente a “tentativa de se eximir à sua responsabilidade”, e o “grau de ilicitude muito elevado atento o concurso de circunstâncias qualificativas, não se entrando em conta com o modo de execução (à traição, pois foi esta a circunstância eleita para qualificar o homicídio) ”. A favor do arguido considerou a ausência de antecedentes criminais, os hábitos de trabalho e a integração familiar, tendo valorado a idade como factor neutro, por não ser uma idade avançada. 22. Da matéria de facto provada, que compreende todos estes factores, excepto o que diz respeito à “tentativa de se eximir à sua responsabilidade”, resulta que o arguido procurou, “desde muito jovem”, “autonomizar-se, pautando a sua trajectória de vida na actividade empreendedora demonstrada com ocupações laborais regulares, desfrutando de uma situação económica equilibrada e de inserção/aceitação comunitária” e que “sempre evidenciou um percurso de vida centrado na actividade laboral e familiar, não obstante alguns episódios de conflituosidade nas relações familiares/conjugais movidas, em determinados momentos, pela ingestão abusiva de álcool”. Como anteriormente se esclareceu, o crime de homicídio resulta qualificado pela circunstância prevista na alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal – reflexão sobre os meios empregados e persistência na intenção de matar por mais de 24 horas. Sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal), não pode, pois, a persistência ser de novo considerada para efeitos do artigo 71.º do Código Penal, mas apenas o tempo de duração dessa persistência, que foi de uma ou duas semanas. Não podem também ser consideradas as qualificativas previstas nas alíneas e) – motivo torpe ou fútil – e na alínea i) – utilização de meio insidioso – do n.º 2 do artigo 132.º, que se julgam não verificadas (supra, 13, 14 e 15). Funcionam, porém, como circunstâncias de agravação da culpa, o modo como o arguido tirou a vida à vítima, disparando contra esta, pelas costas, um tiro de arma de fogo, a cerca de 20 metros, em concretização de uma intensa e determinada resolução criminosa, o facto de esta ser uma pessoa idosa, com 80 anos de idade, e o facto de esta ter sido atacada num lugar ermo, estando sozinha, o que era do conhecimento do arguido, dificultando a prestação de auxílio, os ferimentos causados (ponto 13 da matéria de facto) e o tempo que decorreu entre o momento da agressão e o momento da morte (cerca de uma hora – pontos 11, 16 e 17), bem como o motivo que determinou o arguido à prática do facto (vingança). A favor do arguido militam o facto de não ter antecedentes criminais de relevo e as suas condições pessoais, em que releva o apoio familiar, não se mostrando presentes relevantes necessidades de prevenção especial de reintegração. Assim, na ponderação de todos estes factores, tendo em conta, em particular, que não ocorrem as circunstâncias de agravação das alíneas e) e i) do n.º 2 do artigo 132.º do CPP, susceptíveis de revelar especial perversidade ou censurabilidade, que foram consideradas no acórdão recorrido, julga-se justificada uma correcção da pena aplicada, no sentido da sua diminuição. Pelo exposto, sendo o crime punível com pena de 16 a 25 anos de prisão, fixa-se em 18 anos a pena de prisão, por, nesta medida, se considerar adequada e proporcional à gravidade dos factos praticados, em função da culpa e das exigências de prevenção que esta visa satisfazer. Assim se julgando parcialmente procedente o recurso. Quanto a custas 23. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. Não havendo decaimento, não há lugar a pagamento. III. Decisão 24. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência: a) Alterar o acórdão recorrido, condenando o arguido AA pela prática de um crime de homicídio qualificado e agravado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea j), do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações posteriores), e fixando em 18 anos a pena de prisão aplicada. b) Manter, no mais, a decisão recorrida. Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Janeiro de 2019.
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