Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | OLIVEIRA MENDES | ||
Descritores: | SUSPEIÇÃO IMPARCIALIDADE TRIBUNAL DA RELAÇÃO JUIZ RELATOR JUIZ ADJUNTO OFENDIDO AMIZADE | ||
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Data do Acordão: | 01/08/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / IMPEDIMENTOS, RECUSAS E ESCUSAS. | ||
Doutrina: | - Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 237. - Henriques Gaspar, “Código de Processo Penal” Comentado (Almedina-2014), 146/147. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 39.º, Nº1, 40.º, 41.º, N.º1, 43.º, N.ºS 1, 2 E 4. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA: -DE 96.07.10, PUBLICADO NA CJ, XXI, IV, 62. -*- ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -05/04/2000, PUBLICADO NA CJ (STJ), VIII, I, 244; -13/09/2006, PROCESSO N.º 3065/06. | ||
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Sumário : | I -O princípio norteador do instituto da suspeição é o de que a intervenção do juiz só corre risco de ser considerada suspeita, caso se verifique motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, imparcialidade referenciada em concreto ao processo em que o incidente de recusa ou escusa é suscitado, a qual pressupõe a ausência de qualquer preconceito, juízo ou convicção prévios em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão. II - A seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas. III - Por outro lado, não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo certo ser necessário que o motivo ou motivos ocorrentes sejam sérios e graves. IV - Uma das situações susceptível de gerar suspeita relevante decorre de circunstâncias ou contingências de relação (amizade ou inimizade) com algum dos interessados, as quais consoante a intensidade da relação existente, podem justificar a escusa com fundamento na afectação da imparcialidade objectiva. V - Tendo em consideração que a Juíza Desembargadora requerente trabalha habitualmente com um dos ofendidos, o qual é seu adjunto, é de concluir que a sua participação enquanto relatora do recurso é susceptível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. | ||
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Decisão Texto Integral: |
* Acordam no Supremo Tribunal de Justiça Em recurso penal a correr termos no Tribunal da Relação de Lisboa no qual figura como arguida AA, a Exma. Desembargadora relatora BB, suscitou incidente de escusa, nos termos dos artigos 43º, n.º 4, 44º e 45º, n.º 1 alínea a), do Código de Processo Penal[1], sob a alegação de que sua intervenção no processo pode ser considerada suspeita, com os seguintes fundamentos[2]: «Por sentença proferida em 3.2.2014 no âmbito desse processo n° 1969/10.2TDLSB que corria os seus termos no 3° juízo Criminal de Lisboa foi a arguida AA (advogada) condenada pela prática em autoria material e na forma consumada de três crimes de difamação agravada p. p no artº 180º/1, artº 184º e artº 132°/2 alínea l) todos do C.P na pena única de 240 dias de multa à taxa diária de 10 euros o que perfaz um total de 240 dias. A arguida, não se conformando com tal decisão, veio dela interpor recurso para a Relação de Lisboa, o qual me foi distribuído. Recorde-se que o objecto deste processo teve na sua origem a ver exactamente com um incidente de recusa de juiz que deu entrada em 18.11.2009 no Tribunal da Relação de Lisboa subscrito pela Advogada ora arguida (o qual viria a ser indeferido pela Relação de Lisboa por decisão proferida em 30.12.2009) em que se imputava ao Sr. Juiz Presidente da 5ª Vara Criminal de Lisboa, Dr. CC o exercício imparcial das suas funções de julgar (sendo esse colectivo integrado também para além do referido Presidente, pelos Srs Juízes Dr. DD e Dra EE), o que foi considerado ofensivo para o brio pessoal e profissional dos três magistrados que integravam a 5ª Vara Criminal de Lisboa. Dois dos ofendidos e vítimas directas destes crimes imputados à arguida, são pessoas do meu círculo profissional mais próximo, sendo que o ofendido Dr. Juiz CC (actualmente a exercer funções como Juiz Desembargador auxiliar na Relação de Évora), foi meu colega no Centro de Estudos Judiciários durante o período de formação que ambos recebemos naquela instituição no ano de 1989/1990 e mais recentemente, antes de ambos termos sido promovidos à Relação em Setembro de 2012, foi meu colega nas Varas Criminais de Lisboa, integrando ele a 5ª Vara Criminal e eu a 3ª Vara Criminal. Por sua vez o Dr. Juiz DD, antes de ambos sermos promovidos à Relação de Lisboa em Setembro de 2012 foi meu colega nas Varas Criminais de Lisboa e desde Setembro de 2012 que tem trabalhado directamente comigo, sendo o meu colega Adjunto, nos projectos que tenho vindo a elaborar na 3ª secção Criminal desta Relação, propiciando-se assim um clima de maior convívio e diálogo por força dessas funções que ambos desempenhamos. Ponderando estes factos, que podem ser do conhecimento da generalidade das pessoas que trabalham no meio forense nesta comarca de Lisboa, bem como do público em geral, está criado um circunstancialismo em meu entender, que pode gerar na comunidade, objectiva e seriamente, pelo menos na sua aparência, desconfiança sobre a imparcialidade da requerente, enquanto entidade julgadora para decidir, no âmbito deste recurso interposto pela arguida. Ora de acordo com o n° 4 do artº 43° do C.P.P "o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2", nomeadamente quando "existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade". E em nosso entender, tal como supra vimos, estão criados no caso concreto, motivos suficientes para poder ser posta em causa pela comunidade jurídica e também pelo meio social nesta comarca a imparcialidade da requerente, enquanto entidade julgadora do recurso da arguida. Com efeito, tendo em conta nomeadamente o facto de neste Tribunal da Relação de Lisboa, eu e o Dr. DD termos de amiudamente falar e trocar impressões sobre matérias várias, e sendo ele o meu Adjunto neste Tribunal, tem, repete-se, propiciado assim um clima de convívio e relacionamento mais próximo, dentro deste Tribunal. Por tudo o acima exposto, a minha intervenção na decisão deste recurso, poderia ser considerada suspeita pela comunidade (apesar do esforço que por certo seria feito da minha parte para contrariar essa suspeita) o que poderia afectar a relação de confiança que se pretende que exista entre os cidadãos e os tribunais. Requer-se assim a Vª Exª que ao abrigo do arº 43°/1/4 e artº 45° /1/ a) do C.P.P se digne conceder-me escusa para intervir nestes autos de recurso». Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir. *** A lei adjectiva penal, no seu Título I, Capítulo VI, regula a problemática atinente à capacidade do juiz, tendo em vista, por um lado, a obtenção das máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição e, por outro lado, assegurar a confiança da comunidade relativamente à administração da justiça. Trata-se de questão, pois, que tem a ver com a composição concreta do tribunal e não com a sua competência tout court. Em todo o caso, convirá sublinhar que o que está em questão não é a capacidade genérica do julgador, a qual deve existir sempre para que aquele possa exercer a função que lhe é confiada, mas sim a capacidade específica, a qual aqui se consubstancia na inexistência de motivo particular e especial que iniba o juiz de exercer a respectiva função num determinado caso com imparcialidade. Com efeito, circunstâncias específicas existem que podem colidir com o comportamento isento e independente do julgador, pondo em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança das «partes» e do público em geral (comunidade), entendendo-se que nos casos em que tais circunstâncias ocorrem há que afastar o julgador substituindo-o por outro[3]. Tais circunstâncias tanto podem dar lugar à existência de impedimento como de suspeição. Vem-se entendendo que enquanto o impedimento afecta sempre a imparcialidade e a independência do juiz, a suspeição pode ou não afectar a sua imparcialidade e a sua independência. Como corolário de tal diversidade, decorre que no caso de impedimento ao julgador está sempre vedada a sua intervenção no processo (artigos 39º e 40º), enquanto no caso de suspeição, tudo dependerá das razões e fundamentos que lhe subjazem (artigo 43º). Por isso, no caso de impedimento deve o juiz declará-lo imediatamente no processo, sendo irrecorrível o respectivo despacho, sendo que no caso de suspeição poderá e deverá aquele requerer ao tribunal competente que o escuse de intervir no processo (artigos 41º, n.º1 e 43º, n.º 4). Tal diversidade conduziu a que o legislador optasse também por técnicas diferentes no que concerne à previsão dos impedimentos e das suspeições. Quanto aos primeiros optou pela sua enumeração taxativa (artigos 39º, n.º 1 e 40º), enquanto relativamente às segundas optou pela consagração de uma fórmula ampla, abrangente dos motivos que sejam «adequados» a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (n.º 1 do artigo 43º), acrescida da previsão de situação (exemplificativa) susceptível de constituir suspeição (n.º 2 do artigo 43º). Com efeito, preceitua o n.º 1 do artigo 43º, que a intervenção do juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, estabelecendo o n.º 2 que pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º[4]. No caso vertente a questão a decidir é de suspeição. Como já ficou dito, a Exma. Desembargadora relatora, entende que a apreciação que terá de fazer sobre os factos que são objecto do processo em que é arguida AA poderá gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, visto que nele figuram como ofendidos dois colegas juízes, concretamente, CC e DD, com os quais tem mantido relações profissionais estreitas, especialmente com o colega DD, o qual consigo trabalha na 3ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, sendo seu adjunto, circunstância que tem propiciado um clima de relacionamento e de convívio que é susceptível de afectar a relação de confiança que deve existir entre os cidadãos e o tribunal, posto que pode suscitar suspeitas sobre a sua imparcialidade. Vejamos se assim é ou não. Da exposição feita a propósito do regime jurídico dos impedimentos, recusas e escusas decorre que o princípio norteador do instituto da suspeição é o de que a intervenção do juiz só corre risco de ser considerada suspeita, caso se verifique motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, imparcialidade referenciada em concreto ao processo em que o incidente de recusa ou escusa é suscitado, a qual pressupõe a ausência de qualquer preconceito, juízo ou convicção prévios em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão. A imparcialidade pode ser vista sob duas vertentes: - subjectiva, consubstanciando-se na posição pessoal do juiz perante a causa, caracterizada pela inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou de prejudicar qualquer das partes; - objectiva, traduzindo-se na ausência de circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tem um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afectando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais[5]. É notório que a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas. Efectivamente, não basta o mero convencimento subjectivo por parte do Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil ou do próprio juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência de suspeição[6]. Por outro lado, como a própria lei impõe, não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo certo ser necessário que o motivo ou motivos ocorrentes sejam sérios e graves. A lei não define nem caracteriza a seriedade e a gravidade dos motivos, pelo que será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas[7]. Em todo o caso, certo é que o preceito do artigo 43º, n.º1, não se contenta com um «qualquer motivo», ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado (sério e grave), o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção[8]. Uma das situações susceptível de gerar suspeita relevante, como refere Henriques Gaspar[9], decorre de circunstâncias ou contingências de relação (amizade ou inimizade) com algum dos interessados, as quais consoante a intensidade da relação existente, podem justificar a escusa com fundamento na afectação da imparcialidade objectiva. Tendo em consideração que a Juíza Desembargadora requerente trabalha habitualmente com um dos ofendidos, designadamente, com o Juiz Desembargador DD, o qual é seu adjunto, é de concluir que a sua participação enquanto relatora do recurso interposto naquele processo é susceptível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. * Termos em que se acorda deferir o pedido de escusa. Sem tributação. * Oliveira Mendes (relator) ------------ [1] - Serão deste diploma legal todos os demais preceitos a citar sem menção de referência. |