Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
193/20.0T8VCT.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
MEDIDA DE CONFIANÇA COM VISTA À FUTURA ADOÇÃO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
ADOÇÃO
REQUISITOS
FILIAÇÃO
SUBSIDIARIEDADE
PERIGO
PODERES DE COGNIÇÃO
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 11/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A aplicação da medida de confiança com vista à adoção pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objetiva de qualquer das situações previstas no n.º 1 do artigo 1978.º do CC.

II. Essas situações são, entre outras, as dos pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, colocarem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança (alínea d), e de os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança (alínea e).

III. No recurso de revista de decisão de aplicação da medida de confiança com vista à adopção o STJ não determina o seu sentido de “superior interesse da criança”, enquanto juízo de conveniência ou oportunidade, limitando-se a aferir da observância dos requisitos normativos que balizam o indicado juízo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. O Ministério Público intentou o presente processo de promoção e proteção respeitante às crianças AA e BB, nascidas, respetivamente, a .../.../2018 e .../.../2012, requerendo então a aplicação de uma medida de promoção e proteção provisória de acolhimento residencial das mesmas, o que foi acolhido por despacho proferido em .../01/2020.

Alegou, para tanto e em síntese, as condições precárias de vida dos menores com os progenitores, em más condições de higiene, sem água, as agressões entre progenitores, a violência exercida sobre as menores e o aliciamento sexual do progenitor a outra filha menor da progenitora.


2. Em .../01/2020 foi proferido despacho a decretar provisoriamente, de acordo com os artigos 35º, n.º 1, alínea f) e 37º da Lei n.º 147/99 de 01/09 (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, de ora em diante designada por LPCJP), a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial a vigorar por três meses, tendo sido declarada aberta a instrução.


3. Foi realizada conferência nos termos do artigo 112º da referida Lei 147/99 em 20/05/2020, tendo sido proferidos os seguintes despachos:

“A presente conferência foi convocada com vista à obtenção de um acordo de promoção e proteção relativa às menores AA e BB.

Uma vez que ao acordo de promoção e proteção é aplicável, com as necessárias aplicações, o disposto nos art.ºs 55.º e 56.º da Lei 147/99, de 1 de setembro (artº 113.º nº1), consigna-se que foi obtido acordo para a aplicação às menores da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial prevista no art.º 35.º, n.º 1, al. f), da Lei da Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, que se regerá pelas seguintes cláusulas:

a) Às menores AA e BB, é aplicada a medida de acolhimento residencial na Instituição “...”, sendo esta Casa a assegurar os cuidados de alimentação, higiene, educação e saúde das crianças, (art. 35.º, n. 1, al. f e 49.º da LPCJP).

b) A medida terá a duração de 06 (seis) meses e será acompanhada na sua execução pela técnica gestora do processo, Dra. CC.

c) Os progenitores comprometem-se a cumprir com todas as orientações que lhe forem transmitidas pela gestora do processo e pela instituição.

d) Os progenitores aceitam a intervenção do CAFAP. (…)

“Nos presentes autos de promoção e proteção relativos às menores AA e BB, nos termos do art.º 113.º, n.º 2, 3.º, 55.º, 56.º, 59.º, n.º 3, 35.º al. f), todos da Lei 147/99, 1 de setembro, homologo o acordo de promoção e proteção.

A medida ora aplicada pelo período de seis meses, será revista em igual período nos termos do artigo 62.º, 1, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.

Assim, os autos devem aguardar por cinco meses pela evolução da situação, período findo o qual, solicite à Segurança Social o envio de novo relatório social circunstanciado.

Notifique, registe e envie cópia da presente à Segurança Social e à Instituição “...””.


4. A medida de acolhimento residencial foi sendo sucessivamente revista e renovada e em 02/03/2022 foi proferido o seguinte despacho:

“Uma vez que ouvidos os progenitores, não foi possível chegar a consenso quanto à medida de promoção e proteção e projeto de vida para as crianças, notifique os progenitores e o MºPº para no prazo de 10 dias, querendo, alegarem por escrito e apresentarem prova art. 114º, 1 e 2 da LPCJP (…)”.


5. O Ministério Público e os progenitores deduziram alegações.


6. O primeiro, em súmula, mantendo a necessidade de aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adopção, requerendo também, entre o mais, a nomeação de curador e a determinação da cessação de contactos entre as menores e os progenitores, com a decretação da inibição do exercício das responsabilidades parentais.


7. Os segundos, além do mais, pretendendo que as menores passassem a residir com eles, “sendo implementadas medidas de apoio junto aos pais”.


8. Recebidas as alegações e apresentada prova pelos progenitores e pelo Ministério Público, foi designado debate judicial, com notificação das pessoas que deveriam comparecer.


9. Em 28/04/2022 foi proferido pelo Tribunal a quo despacho a indeferir a audição das menores AA e BB por entender que atenta a sua idade não poderiam contribuir para a definição do seu projeto de vida.


10. Interposto recurso dessa decisão, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu revogar a referida decisão, o que determinou a audição da menor BB ainda no decurso do debate judicial.


11. Posteriormente, foi proferida decisão nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Assim sendo, e face ao exposto, decidem os Juízes que constituem este Tribunal Coletivo, ao abrigo das disposições supra citadas, e de acordo com a promoção do Ministério Público, aplicar às crianças AA e BB, a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, a qual durará até ser decretada a sua adoção.

Tal medida será executada no “...”, sito em ....

Nos termos do 3 do art. 62º-A, da Lei de Proteção, nomeia-se curador provisório à menor o Diretor do referido CAT, que exercerá funções até ser decretada a adoção, exercendo ele as responsabilidades parentais por os pais biológicos ficarem inibidos do seu exercício artigo 1978º-A do CC e art. 62º-A, 3 da LPCJP.

Aciona-se de imediato o mecanismo previsto no referido art. 62º-A, 6 da LPCJP, pelo que não haverá lugar a visitas por parte da família biológica.

Notifique o MºP, os progenitores, as Ilustres Patronas oficiosas, destes e das crianças, nos termos do art. 122º-A e 124º da LPCJP, a Segurança Social (cfr. arts.33º, 2 e 39º, 2 da Lei 143/2015, de 8/9) e o “...”.

Sem custas, por as mesmas não serem devidas”.


12. Inconformados, apelaram os progenitores DD e EE.


13. O Tribunal da Relação admitiu e conheceu do recurso, tendo considerado que as questões a decidir eram as seguintes:

a - Saber se a sentença é nula nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615º do CPC;

b - Saber se deve determinar-se ao Tribunal de 1.ª instância que fundamente a matéria de facto, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados, ao abrigo do artigo 662º, n.º 2 alínea d) do CPC;

c - Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 25), 26) e 27) dos factos provados e se devem ser aditados novos factos;

d - Saber se se verificam ou não os pressupostos legais que justifiquem a medida de promoção e proteção que foi aplicada pelo tribunal a quo ou se deve ser determinada a entrega das menores aos cuidados dos progenitores.


14. As respostas do Tribunal recorrido às questões objecto do recurso de apelação foram as seguintes:

a) Nulidade da sentença

Em face do exposto e analisada a decisão recorrida entendemos não se verificar a invocada nulidade por falta de fundamentação.”

(…)

Ora, a decisão recorrida contém a enunciação/enumeração da factualidade considerada provada e não provada, e dela constam indicados os meios de prova que estiveram subjacentes à decisão; o tribunal a quo elencou os diversos elementos de prova em que se baseou e concluiu pela sua análise critica.

Assim, reiteramos, no caso concreto, entendemos não poder afirmar-se que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.”

b) Outra nulidade

E quanto à questão da necessidade de fundamentação da matéria de facto ao abrigo do disposto no artigo 662º, n.º 2 alínea d) do CPC:

“(…) a aplicabilidade da solução prevista no referido artigo 662º, n.º 2 alínea d) tem apenas aplicação às situações em que no recurso esteja em causa a modificabilidade da decisão de facto.

No caso concreto, os pontos da matéria de facto que os Recorrentes identificam como não se encontrando fundamentados na motivação exposta na sentença recorrida não foram por si impugnados, não vindo questionada no presente recurso a sua alteração.

De todo o modo dir-se-á que, ainda que o tribunal a quo não tenha discriminado os concretos meios de prova por referência a cada concreto facto julgado provado, tal não significa de per si que os pontos da matéria de facto em causa não encontrem fundamento na motivação exposta na sentença recorrida.

(…)

Assim, analisada a motivação da decisão recorrida, e ainda que não conste da mesma a fundamentação indicada separadamente em relação a cada um dos factos provados, entendemos ser de concluir que inexiste o vício apontado pelos Recorrentes.”

c) Da modificabilidade da decisão de facto:

c-1) No que toca aos factos provados 25, 26 e 27

Inexiste, por isso, fundamento para alterar os pontos 25), 26) e 27) dos factos provados.

c-2) Quanto aos factos que se pedia fossem aditados

“decide-se aditar dois novos pontos à matéria de facto que serão os pontos 57) e 58) e terão a seguinte redação:

“57) Ambos os progenitores trabalham, auferindo rendimentos.

58) A menor BB manifesta que quer voltar para casa”.

d) Da verificação dos pressupostos que justifiquem a aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adopção

“(…) ponderando todos os princípios orientadores acima mencionados e tendo em conta o superior interesse das crianças, entendemos também que o projeto de vida que se nos afigura mais adequado para as crianças é o da confiança a instituição com vista à futura adoção.

Pelo exposto, enquadrando-se o caso concreto na situação prevista nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 1978º do CC, mostram-se preenchidos os pressupostos legais para se poder decretar a medida de confiança a instituição com vista à futura adoção, não merecendo a decisão recorrida reparo, e impondo-se a improcedência do recurso.”


16. Não se conformando com o acórdão proferido que manteve a decisão da 1ª instância, sem fundamentação essencialmente diversa e sem voto de vencido, dela vieram os recorrentes (pais) interpor recurso de revista excepcional.

Apresentam as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos que decide que se afigura mais adequado para as crianças é o da confiança a instituição com vista à futura adoção, impondo-se a improcedência do recurso.”

2. Não concordam os progenitores nem podem concordar com a posição firmada em acórdão, motivo pelo qual recorrem.

3. Há erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas e princípios aplicáveis ao caso constantes dos artigos 1978.º, n.º1, alíneas d) e e) do Código Civil e 34.º, 35º e 38.º -A da LPCJP, atenta a relevância jurídica da questão e por estarem em causa interesses de particular relevância social.

4. Atendendo à situação factual, e às consequências impactantes e irreversíveis da decisão trata-se de uma questão com grande relevância jurídica e os interesses em apreço revestem particular relevância social, devendo, assim, considerar-se verificados os requisitos constantes das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do C.P.C.

5. Tal relevância jurídica implica que esteja em causa uma questão de manifesta importância, que é o caso, com efeitos incontornáveis e grande repercussão na vida dos intervenientes, que reclama uma melhor aplicação do Direito. 

6. Quanto ao critério vertido na alínea b) tem sido decidido que o “pressuposto de admissibilidade da al. b) do n.º 1 do art. 672.º do CPC fica preenchido quando a resolução do pleito pode interagir com comportamentos sociais relevantes, como é o caso da adoção – cfr. Acórdão do STJ, de 15-02-2018, Processo n.º 17/14.8T8FAR.E1.S1.

7. Estão, assim, preenchidos os pressupostos formais exigidos para o conhecimento e apreciação do presente recurso como revista excecional.

8. A medida de confiança a instituição com vista à adoção é o último reduto de proteção das crianças atenta a violência que tal implica: cortar totalmente os laços com os progenitores.

9. A aplicação da medida de confiança com vista à adoção – art. 35º, alínea g) da LPCJP - pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objetiva de qualquer das situações previstas no n.º 1 do artigo 1978.º do CC, nomeadamente, se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança (alínea d).

10. Atenta a prova de facto constante dos autos, parece-nos longe a necessidade absoluta desta medida.

11. À cabeça dos princípios orientadores elencados no art.º 4.º da LPCJP surge-nos “o interesse superior da criança”, como critério básico e fulcral a nortear qualquer decisão relativamente as crianças ou jovens. A intervenção deve, pois, “atender prioritariamente, aos interesses e direitos da criança, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas.

12. No mesmo sentido, a Convenção sobre os Direitos da Criança (Nova Iorque, 26- 01-1990, ratificada pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90) art.º 3.º n.º1.)

13. Outro critério orientador patente no artigo 4º LPCJP é a proporcionalidade da medida.

14. Deve ser ainda respeitado o primado da continuidade das relações psicológicas profundas, ou seja, a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante (alínea g).

15. Ora entende-se que a medida aplicada, viola todos os princípios orientadores citados, desde logo porque não estamos perante qualquer uma das situações elencadas no artigo 1978º do código civil.

16. A aplicação da medida de confiança a instituição com vista à adoção – art. 35º, alínea g) da LPCJP - pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objetiva das situações que enuncia.

17. Estamos no caso concreto perante qualquer uma destas situações? Entendemos que não. E muito menos no que tange à progenitora.

18. Atualmente conforme se demonstrou, ambos os progenitores trabalham.

19. Está em causa o superior interesse das crianças, no caso em que uma das menores, a que foi ouvida, relata e demonstra inequivocamente uma vontade sagaz de voltar para casa.

20. É adequada a adoção de medidas que promovam o apoio no desenvolvimento das capacidades parentais.

21. Os pais gostam e manifestaram ao longo do processo interesse pelas filhas, sendo o afeto e o amor retribuído pelas mesmas.

22. Partir para adoção sem ser dada a oportunidade das crianças voltarem para casa com mediadas de apoio à família é uma violência atroz, salvo opinião contrária, desnecessária e desproporcional.

23. Não se encontra preenchida a situação tipificada na alínea d) quando os pais, por ação ou omissão, ou manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, põem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança, não sendo igualmente aplicável ao caso a alínea e).”

Culmina pedindo:

A) Deverá ser o presente recurso admitido;

B) Deverá ser revogado o acórdão proferido que determina a medida de confiança a instituição das menores com vista à adoção por errada interpretação da alínea d) do nº 1 do artigo 1978º do código civil, sendo substituído por decisão que determine a entrega das menores aos cuidados dos progenitores.”


17. Foram apresentadas contra-alegações, onde se defende que o recurso não deve ser admitido por não estarem demonstrados os seus pressupostos legais.


18. O recurso foi admitido como revista excepcional no tribunal recorrido, decidindo-se:

“Verificando-se os requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista excecional remeta os presentes autos à formação do Supremo Tribunal de Justiça para apreciação dos demais pressupostos (artigo 672º do Código de Processo Civil).”


19. Recebidos os autos no STJ e verificando-se que a decisão proferida, em relação à qual vem questionada uma violação objectiva da lei - 1978.º, n.º1, alíneas d) e e) do Código Civil – ainda que no caso se trate de processo de jurisdição voluntária, e a decisão visada se assuma como aquela que melhor protege os superiores interesses da criança – admitindo-se, por isso, que tenha sido adoptada ao abrigo do art.º 988.º do CPC e se admita como mais provável que não comporte recurso de revista –  não se pode deixar de admitir a dificuldade da sustentação inequívoca desta interpretação, pelo que se opta, por maior segurança e dado os interesses envolvidos no processo, por atestar a existência de dupla conformidade decisória e preenchimento dos requisitos gerais de admissão da revista – valor, legitimidade, em tempo, e decisão recorrível – remetendo-se os autos à formação a que alude o art.º 672.º, a fim de esta poder decidir se a revista pode ser admitida pela via excepcional.


20. A formação, por acórdão de 13-10-2022, admitiu a revista excepcional, o que determina a necessidade de conhecimento do seu objecto, tendo sido colhidos os vistos legais.


Cumpre analisar e decidir.


II. Fundamentação

De facto

21. Factos considerados provados (a negrito com os dois factos aditados pelo TRG):

1. AA e BB nasceram, respetivamente, a .../.../2018 e .../.../2012 e são filhas de EE e de DD – certidões de nascimento juntas com o requerimento inicial.

2. Em .../01/2020 foi decretada a medida provisória de promoção e proteção de acolhimento residencial a favor das crianças BB e AA, tendo as mesmas sido integradas no Centro de Acolhimento Temporário “...”, em 22/01/2020.

3. No dia 20/5/2020 foi celebrado acordo de promoção e proteção que aplicou às crianças a medida de acolhimento residencial no ..., por seis meses, com intervenção do CAFAP.

4. A progenitora DD tem mais duas filhas de anteriores relações: a FF e a GG; a FF nasceu quando a D. DD tinha 16 anos de idade e é fruto de um relacionamento entre a D. DD e o seu cunhado, ex-marido da sua irmã HH; esta filha cresceu aos cuidados da avó materna e da sua irmã, tendo a D. DD abandonado a casa da mãe para ir viver com o pai da filha GG aos 19 anos de idade; a FF tem contactos esporádicos com a mãe;

5. A filha GG viveu com a D. DD e com o pai até que esta conheceu o Sr. EE, altura em que passou a viver com este, tendo a GG permanecido aos cuidados dos avós paternos;

6. Após a morte do avô paterno, em maio de 2019, a GG foi viver para casa da D. DD e do Sr. EE, numa altura que contava com 16 anos de idade.

7. A GG dormia sozinha num quarto até que o filho do Sr. EE, II, regressou da ... em agosto de 2019; nessa altura, este passou a ocupar esse quarto e a GG foi dormir para o quarto da AA e da BB.

8. Desde maio de 2019 que este agregado familiar estava a ser acompanhado pela CPCJ ..., por via de sinalização anónima que dava conta que o agregado familiar enfrentava grandes dificuldades económicas, não dispondo de água, contando com o apoio dos vizinhos para assegurar a alimentação; além disso era dado conta que a progenitora gritava muito com a BB, a quem chamava de “burra, palhaça e cabra” e agredia o marido à frente das filhas e que a GG faltava muito às aulas”, o que veio a ser confirmado pela JJ, filha do Sr. EE.

9. As técnicas da CPCJ realizaram visita domiciliária à residência e confirmaram as más condições de higiene e a falta de organização da habitação.

10. Em contexto de atendimento, os progenitores confirmaram que não tinham água há duas semanas por falta de pagamento.

11. Em agosto de 2019, a CPCJ deliberou pela medida de apoio junto dos progenitores quanto às crianças BB e AA, e medida de apoio junto da progenitora no que respeitava à GG.

12. No dia 6/1/20, a Direção do Agrupamento de Escolas de ... informou que a GG tinha partilhado com a psicóloga da escola que o padrasto andava a aliciá-la sexualmente; a jovem manifestou o desejo de não voltar a casa e nesse dia foi integrada, de acordo com a sua vontade, no Lar ....

13. O Sr. EE insistia com frequência com a D. DD e com a GG para tomar banho com esta, o que aconteceu pelo menos uma vez.

14. Por vezes, a D. DD ia adormecer a AA para o quarto das crianças, ficava lá a dormir e mandava a filha GG dormir com o padrasto; nessas alturas, ele tocava nas suas pernas e tentava alcançar a zona genital da GG.

15. A D. DD nunca valorizou estes seus comportamentos, nunca reconheceu o perigo em que colocava a filha GG e depois de confrontada com as denúncias da filha, quer quando chamada à escola e por duas vezes neste tribunal, referiu não acreditar na filha e se alguma coisa aconteceu “foi culpa da GG”, tendo referido à técnica gestora que a filha provocava o marido “pela maneira como se vestia”; a D. DD nunca levou a cabo qualquer ação no sentido de proteger de alguma forma as suas filhas menores destes comportamentos.

16. O progenitor tem mais quatro filhos do primeiro casamento, JJ, KK, LL e II.

17. Quando a filha JJ tinha 10 anos de idade, o pai tentou tirar-lhe as meias calças quando esta estava a dormir; nessa altura conseguiu fugir, saiu da cama e foi chamar a mãe.

18. Um dia, quando a filha KK tinha 16 anos de idade, estava a dormir no chão da sala e acordou quando o pai passou a mão pelas suas pernas e aproximou-a da parte genital; nessa altura começou a chorar e ele foi para o quarto, mas mais tarde voltou a tentar; de manhã contou à irmã e aos amigos da escola e foi colocada numa casa de acolhimento em ... no âmbito do processo de promoção e proteção nº 3564/06.... do ... Juízo.

19. No âmbito do mesmo processo, aos filhos LL e II foi aplicada a medida de acolhimento em instituição, tendo integrado a ....

20. No âmbito do processo de inquérito nº 166/20.... que correu termos no DIAP ... foi, em 13.01.2021, proferida decisão de suspensão provisória do processo pela prática, por EE, em autoria material e na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º2 do Código Penal, por referência ao artigo 171.º, n.º3, al. b), do mesmo diploma legal e três crimes de abuso de menores dependentes agravado, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º1 e 177.º, 1, al a) do Código Penal, na pessoa da enteada GG.

21. O referido processo foi arquivado nos termos do art. 282º do CPP no dia 18/2/22, por se ter constatado que o arguido cumpriu com todas as injunções impostas e por não se ter registado o cometimento pelo arguido de qualquer infração da mesma natureza.

22. O progenitor não realiza contactos telefónicos para se inteirar do bem-estar das filhas AA e BB e apenas realiza visitas pontuais, nos dias festivos. Nessas visitas mantém uma postura de distanciamento que apresentou desde o início da institucionalização das filhas.

23. Não dialoga com as crianças, nem demonstra qualquer reação ou emoção quando na presença destas, é distante e inexpressivo.

24. De acordo com a avaliação do CAFAP, apesar de não existirem lacunas ao nível da prestação dos cuidados básicos às crianças, foi possível aferir que “parecem existir lacunas na capacidade de garantir a segurança física, nomeadamente ao nível da supervisão e monitorização do comportamento, bem como em relação à proteção face a contactos, objetos, circunstâncias ou substâncias que ameacem a segurança das crianças. Em relação à segurança afetiva, e considerando a imaturidade e labilidade emocional dos progenitores, registam-se dificuldades significativas quer na capacidade de interpretar comportamentos e estados emocionais das crianças, quer na responsividade aos mesmos e à possível perturbação emocional, inibindo a capacidade de proporcionar conforto e cuidado. Os progenitores parecem igualmente exibir dificuldades na capacidade de estimulação desenvolvimental das crianças, não valorizando a procura de experiências que impliquem o desenvolvimento físico e psicológico, social, cognitivo, emocional ou académico. Quanto à orientação e estabelecimento de limites, em ambos os progenitores identificam-se dificuldades na capacidade de estabelecer regras, tarefas ou limites adequados às crianças e mesmo em compreender a sua relevância”.

25. Em casa, a BB era vítima de agressões por parte da mãe, que lhe batia, se a menina fizesse alguma asneira ou pela situação mais simples, com a colher de pau no corpo, na boca, dava-lhe pontapés, pisava-a nas costas e batia-lhe com as mãos ou vassoura no corpo; de forma muito agressiva e em voz alta e irritada dizia que a afogava na banheira e chamava-lhe nomes como “filha da puta”, “cabrita, cabra”, “és uma vaca”, “uma burra”, “uma porca” e se a menina não parasse de chorar a mãe batia-lhe ainda com as mãos, com a colher de pau nas mãos, nas pernas, nas costas. De castigo colocava-a no quarto escuro até a menina parar de chorar.

26. A progenitora não era cuidadosa com a higiene da casa e das meninas e podia acontecer de a BB ir dormir com a mesma roupa do dia; a casa estava desorganizada e com falta de higiene.

27. Enquanto viveu em casa da D. DD, era a GG quem, a maior parte das vezes, tratava das irmãs, dava banho, dava de comer à AA e ajudava a BB a fazer os TPC.

28. No dia em que as crianças foram integradas no ..., a promessa de que iriam ver a GG foi um elemento facilitador no momento da retirada. A BB verbalizou que era a GG que cuidava dela e que a ajudava a fazer os TPC da escola. Confidenciou às técnicas que gostava muito da GG, mas que a mãe a proibira de dizer o nome da irmã. Durante o transporte, a menina disse espontaneamente que a mãe lhe batia, fazendo questão de o reforçar.

29. Na primeira visita que realizou às filhas, a progenitora instruiu a BB para não aceitar mais a visita da GG e que elas estavam no ... por causa daquela.

30. No âmbito do processo de inquérito n.º 3416/20.... que correu termos no DIAP ... foi, em 15/9/21, proferida decisão de suspensão provisória do processo pela prática, por DD, em autoria material e na forma consumada de um crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152-A, n.º1, a) do Código Penal, na pessoa da sua filha BB, tendo sido impostas as injunções de frequentar um curso ministrado pela DGRSP, tendo em vista adquirir competências no âmbito da parentalidade e da prevenção de comportamentos agressores e o cumprimento integral do acordo de promoção e proteção celebrado a favor das menores.

31. O referido processo foi arquivado nos termos do art. 282º, nº 3 do CPP no dia 7/6/22, por se ter constatado que a arguida cumpriu com todas as injunções impostas e por não se ter registado o cometimento pela arguida de qualquer infração da mesma natureza.

32. No relatório de Perícia de Avaliação Psicológica e Forense elaborado pelo ... relativamente à D. DD, consta que esta “verbalizou que não acredita no relato da sua filha GG e que acha que esta mentiu em relação ao seu marido, que nunca lhe terá feito mal. Disse, não obstante, que pretende acompanhar as suas filhas, mudar horários de trabalho para passar as noites com as filhas e supervisioná-las mais. Explicou também que já foi aconselhada (pela sua advogada) a afastar-se do Sr. EE, para conseguir recuperar a guarda das suas filhas mais rapidamente, mas não ter conseguido fazê-lo durante muito tempo por não conseguir autonomizar-se (a nível habitacional, mas também a nível emocional, alegando precisar do seu marido para tomar boas decisões e organizar a sua vida). Por tudo isto, parece-nos que a Sra. DD, apesar de verbalizar não acreditar nas acusações de abuso sexual contra o seu marido, mantém um discurso paradoxal quanto à sua intenção de proteger as filhas, supervisionando os contactos com o pai, sugerindo algumas desconfianças que a própria não consegue verbalizar, mas que poderão representar um risco real para as filhas. Para além disso, evitou em todos os momentos refletir ou considerar o potencial impacto deste processo judicial no bem-estar das suas filhas, quer na GG quer das filhas menores, centrando-se mais na sua não culpa e desresponsabilizando-se enquanto mãe, do que na sua capacidade de compreensão do risco potencial para as crianças e na sua proteção”. Conclui-se ainda que: “As dificuldades de regulação comportamental e emocional, a elevada labilidade emocional, a reduzida empatia, a falta de autonomia e a elevada dependência emocional do Sr. EE que apresenta, quando associadas a situações de crise, de maior exigência ou de stress elevado, poderão resultar na adoção de estratégias educativas desadequadas, potencialmente abusivas ou maltratantes para as crianças”.

33. Em relação ao progenitor, menciona-se no relatório do ... que este “negou ter tido interações sexuais com a menor GG, mas explicou ter-lhe sido aplicada uma medida judicial que implicava o pagamento de um valor monetário à GG, estar obrigado à frequência de um programa terapêutico na Universidade ... e estar sujeito a controlos regulares de taxa de alcoolémia. Quando confrontado com esta condenação/responsabilização judicial e a sua negação dos factos, o examinando preferiu não se pronunciar, dizendo apenas que o abuso sexual de menores é “grave e existe” (…) Descreve-se como um “bom pai, que dá o que elas precisam e lhes dá educação, dá carinho”. (…) (…) Nega representar qualquer perigo para as filhas ou precisar de mudar de alguma forma (…) o Sr. EE revelou alguma imaturidade afetiva e psicossocial e um nível de desenvolvimento moral mais abaixo do que seria de esperar para a sua faixa etária (…) A imaturidade psicossocial do examinando revela-se, também, no modo como defende ser capaz, com a Sr. DD, de voltar a cuidar das suas filhas menores, não considerando as suspeitas que foram levantadas relativamente a ambos os progenitores, e a si, em particular, e verbalizando não precisarem de mudar ou melhorar as suas competências pessoais. (…) apresenta expectativas relativamente ao comportamento das crianças que são pouco adequadas e pouco realistas, legitimando o uso da punição física em função da autoridade que, na sua perspetiva, os progenitores representam ou da normalidade que atribui a estes comportamentos”. Como conclusão, a referida perícia refere que “O Sr. EE apresenta características de personalidade e de funcionamento psicológico que poderão comprometer o exercício das suas competências parentais. A sua elevada imaturidade afetiva e psicossocial, a desresponsabilização face aos processos judiciais em que está envolvido e ao seu impacto nas crianças e as suas crenças legitimadoras da punição física poderão, em alguns momentos, comprometer a adoção de estratégias educativas adequadas. Por outro lado, a relação de vinculação estabelecida com as crianças parece pobre e enfraquecida (o que pode decorrer do período de institucionalização das crianças). Ainda que o examinando refira que deseja que as crianças regressem ao agregado familiar, a sua incorreta perceção das dificuldades do casal ao nível das suas competências pessoais e da necessidade de apoio e de mudança, são também fatores a considerar. Por último, a desresponsabilização pessoal e negação das queixas de abuso sexual, não obstante a medida judicial que o próprio afirmou ter-lhe sido aplicada, são fatores de risco para um exercício adequado das suas funções parentais”.

34. A progenitora exerceu funções de auxiliar no Lar ... durante sete meses, e o contrato de trabalho foi denunciado por a D. DD ter comportamentos desadequados junto da população idosa.

35. Pela diretora desse Lar foi dito que a “D. DD não tem a perceção de como tratar uma pessoa vulnerável. É impaciente e não tem noção dos limites”; que apesar de ter tido apoio constante dos vários colaboradores do Lar para a orientar e transmitir os conhecimentos para cuidar dos utentes, “D. DD revelou não ter capacidade de “insight” nem de aprendizagem”; foi ainda referido que a D. DD era desajustada no seu discurso, expunha a sua vida pessoal e referia-se à filha GG de forma inadequada; a entidade patronal denunciou o contrato uma vez que a “D. DD não oferecia qualquer segurança para cuidar dos utentes vulneráveis”.

36. A D. DD saiu de casa em janeiro de 2021 e arrendou a casa de uma amiga; quando essa amiga percebeu que a D. DD partilhava a casa com uma Srª MM, conhecida pelos seus consumos excessivos de álcool, a D. DD teve de abandonar a casa e nessa altura foi viver com a referida MM e com o marido desta.

37. A 19 de Março de 2021, a D. DD contactou ..., informando que estava de novo a residir com o Sr. EE e que não fazia sentido a separação, pois nada estava comprovado em relação às acusações de que o marido era alvo.

38. Em 26/3/21, a equipa do ... foi contactada pela referida Srª MM que acusou a D. DD de se ter envolvido com o seu marido.

39. A progenitora, NN, estabelece contactos telefónicos com a filha BB entre 4 a 6 vezes por semana, mas mantém com a filha um discurso ambivalente, ora questionando-a acerca das suas rotinas diárias, ora partilhando com ela as suas quezilas com o progenitor, incompatibilidades com familiares e amigos, questões relacionadas com o seu trabalho.

40. A criança solicitou à mãe que durante a semana realizasse videochamadas à semelhança do que observa dos contactos que alguns familiares das crianças acolhidas realizam. No entanto, apesar deste pedido por parte da filha, estes contactos em videochamada só são realizados caso a mãe não esteja presente na visita de fim de semana.

41. Nos contactos telefónicos efetuados a D. DD só muito pontualmente solicitou o contacto com a AA.

42. A progenitora visitas as crianças uma vez por semana, durante uma hora, mas durante o convívio está constantemente a olhar para o relógio, nunca tendo pedido para prolongar a visita, ao contrário do que sucede com a generalidade dos outros progenitores.

43. O progenitor apesar de negar os seus hábitos etílicos, no passado dia 01.02.2022, pelas 18h24m, deslocou-se ao Hospital ... referindo dor torácica; efetuado exame de álcool no sangue, revelou uma taxa de alcoolémia de 1,91.

44. No dia 8.4.22, o progenitor deslocou-se novamente ao serviço de urgência do Hospital, referindo dor pleurítica, mas abandonou aquele serviço por lhe terem dito que estava alcoolizado.

45. A progenitora foi tendo contactos com a criança ao longo do tempo, durante percurso do transporte escolar, muitas vezes através do telefone da vigilante desse transporte.

46. A mãe da BB foi-lhe transmitindo novidades sobre o processo e quando soube que a menor seria ouvida em sede de debate judicial conseguiu entrar em contacto com a filha fora do ... e transmitiu-lhe essa informação, que tudo se resolveria e que regressaria a casa em breve.

47. Nesse dia, a BB chegou ao ... transtornada, com manifestações de oposição e muito ansiosa.

48. Os progenitores vivem em casa que possuiu condições básicas, com quarto para as filhas, tendo ainda cozinha, sala e quintal.

49. Recentemente, a progenitora acompanhou a AA a uma consulta de especialidade e adquiriu os óculos de que esta necessitava.

50. No último ano letivo, a progenitora comprou para a BB todo o material escolar.

51. Em 2021, os progenitores prepararam a primeira comunhão da BB, fazendo uma festa com os familiares.

52. No dia 14/4/22, OO e marido, PP, padrinhos de batismo da AA, enviaram email ao processo para “pedir a custódia” das menores AA e BB, por terem sido “informados que ambas vão ser dadas para adoção”.

53. Os referidos padrinhos da AA estão emigrados na ... há nove anos, residem em casa própria com 4 filhos menores, um de 15 anos, gémeos de 6 anos e uma menina de 5 anos de idade; PP trabalha na Enercon e a D. OO está, de momento, desempregada.

54. Estes padrinhos conheceram os progenitores das crianças há cerca de 10/12 anos, quando a D. DD e a D. OO estavam a frequentar um curso. Desde que as crianças nasceram, incluindo o dia do batizado da AA, estiveram presencialmente com as mesmas cerca de 4 vezes, por altura em que estes vêm passar as férias de Verão a Portugal.

55. A BB diz conhecer os padrinhos da AA, mas recorda-se apenas de ter estado com eles uma vez.

56. A avó materna e a irmã da progenitora, HH, não demonstraram disponibilidade para acolher as crianças, nem para apoiar a D. DD casa fosse necessário.

57. Ambos os progenitores trabalham, auferindo rendimentos (aditado pelo TRG)

58. A menor BB manifesta que quer voltar para casa” (aditado pelo TRG).


22. Factos considerados não provados:

- o progenitor tem visitado as filhas todos os fins de semana;

- os progenitores acompanham sempre as crianças a todas as especialidades médicas quando lhe é dado conhecimento prévio das consultas.


De Direito

23. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

A questão suscitada no recurso é, assim, a seguinte:

a) Saber se o tribunal recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas e princípios aplicáveis ao caso constantes dos artigos 1978.º, n.º1, alíneas d) e e) do Código Civil e 34.º, 35º e 38.º -A da LPCJP.

24. Para sustentar o erro na interpretação e aplicação das invocadas normas e princípios dizem os recorrentes:

“9. A aplicação da medida de confiança com vista à adoção – art. 35º, alínea g) da LPCJP - pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objetiva de qualquer das situações previstas no n.º 1 do artigo 1978.º do CC, nomeadamente, se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança (alínea d).

10. Atenta a prova de facto constante dos autos, parece-nos longe a necessidade absoluta desta medida.

11. À cabeça dos princípios orientadores elencados no art.º 4.º da LPCJP surge-nos “o interesse superior da criança”, como critério básico e fulcral a nortear qualquer decisão relativamente as crianças ou jovens. A intervenção deve, pois, “atender prioritariamente, aos interesses e direitos da criança, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas.

12. No mesmo sentido, a Convenção sobre os Direitos da Criança (Nova Iorque, 26- 01-1990, ratificada pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90) art.º 3.º n.º1.)

13. Outro critério orientador patente no artigo 4º LPCJP é a proporcionalidade da medida.

14. Deve ser ainda respeitado o primado da continuidade das relações psicológicas profundas, ou seja, a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante (alínea g).

15. Ora entende-se que a medida aplicada, viola todos os princípios orientadores citados, desde logo porque não estamos perante qualquer uma das situações elencadas no artigo 1978º do código civil.

16. A aplicação da medida de confiança a instituição com vista à adoção – art. 35º, alínea g) da LPCJP - pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objetiva das situações que enuncia.” (…)

atentos os factos provados não se estaria, no caso, concreto perante qualquer uma destas situações.

25. Por sua vez o tribunal recorrido entendeu em sentido diverso e justificou a aplicação da lei ao caso concreto, depois de efectuar o enquadramento normativo da situação, à luz do direito constitucional e interno e ainda das normas internacionais relevantes, com a seguinte – longa e detalhada – fundamentação:

“Tendo por base tais considerandos, a primeira nota que se nos impõe é que, em face dos factos provados, se conclui que os mesmos revelam que os progenitores efetivamente puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento da BB (à data em que foi para o “...” com sete anos de idade e atualmente com nove) e da AA (que à data ainda não tinha dois anos de idade e atualmente com quatro) e que, não obstante o período de tempo decorrido desde a aplicação provisoriamente da medida de acolhimento residencial junto do “...”, revelam também que se mantém a incapacidade estrutural dos progenitores para cuidarem das filhas, proporcionando-lhes um ambiente familiar equilibrado e o projeto de vida que merecem, tendo em vista o seu integral desenvolvimento.

Tal como consta da decisão recorrida a medida provisória de acolhimento (decretada no dia .../01/2020 e depois mantida pelo acordo de promoção e proteção de 20/05/2020), teve por base a consideração que estas duas crianças se encontravam numa situação de risco, por existir “forte suspeita de que os progenitores não revelavam competências parentais para salvaguardar as necessidades básicas das filhas e, mais grave, colocavam em risco a sua segurança física e emocional, não só pelos alegados maus tratos físicos e agressões verbais perpetrados pela progenitora em relação à BB, como também pelo alegado aliciamento sexual por parte do progenitor em relação à sua enteada GG e, ainda, às filhas JJ e KK”.

Tais suspeitas resultam confirmadas pelos factos que ficaram provados nos autos dos quais decorre, quanto aos maus tratos, que a BB era vítima de agressões por parte da mãe, que lhe batia, se a menina fizesse alguma asneira ou pela situação mais simples, com a colher de pau no corpo, na boca, dava-lhe pontapés, pisava-a nas costas e batia-lhe com as mãos ou vassoura no corpo; de forma muito agressiva e em voz alta e irritada dizia que a afogava na banheira e chamava-lhe nomes como “filha da puta”, “cabrita, cabra”, “és uma vaca”, “uma burra”, “uma porca” e se a menina não parasse de chorar a mãe batia-lhe ainda com as mãos, com a colher de pau nas mãos, nas pernas, nas costas. De castigo colocava-a no quarto escuro até a menina parar de chorar. Que a progenitora não era cuidadosa com a higiene da casa e das meninas e podia acontecer de a BB ir dormir com a mesma roupa do dia; a casa estava desorganizada e com falta de higiene e que enquanto viveu em casa da mãe, era a GG quem, a maior parte das vezes, tratava das irmãs, dava banho, dava de comer à AA e ajudava a BB a fazer os TPC [pontos 25), 26) e 27)] dos factos provados.

Mas também, no que se refere aos atos de abuso sexual praticados pelo progenitor, não só em relação à enteada GG, como às próprias filhas JJ e KK, sendo que em relação à filha JJ, e tal como é salientado pelo Tribunal a quo, esta contava à data dos factos com apenas 10 anos de idade, ou seja, uma idade próxima à da BB que irá fazer dez anos no próximo dia 14 de setembro).

Resulta, assim, da matéria de facto que no dia 06/01/2020, a Direção do Agrupamento de Escolas de ... informou que a GG tinha partilhado com a psicóloga da escola que o padrasto andava a aliciá-la sexualmente e que a jovem manifestou o desejo de não voltar a casa, tendo sido nesse dia integrada, de acordo com a sua vontade, no Lar ... (ponto 12 dos factos provados).

Que o Recorrente insistia com frequência com a D. DD e com a GG para tomar banho com esta, o que aconteceu pelo menos uma vez e que por vezes, a D. DD ia adormecer a AA para o quarto das crianças, ficava lá a dormir e mandava a filha GG dormir com o padrasto e nessas alturas, ele tocava nas suas pernas e tentava alcançar a zona genital da GG (pontos 13 e 14 dos factos provados).

Mais se mostra provado que quando a filha do Recorrente JJ tinha 10 anos de idade, o pai tentou tirar-lhe as meias calças quando esta estava a dormir; nessa altura conseguiu fugir, saiu da cama e foi chamar a mãe (ponto 17 dos factos provados) e que um dia, quando a filha KK tinha 16 anos de idade, estava a dormir no chão da sala e acordou quando o pai passou a mão pelas suas pernas e aproximou-a da parte genital; nessa altura começou a chorar e ele foi para o quarto, mas mais tarde voltou a tentar; de manhã contou à irmã e aos amigos da escola e foi colocada numa casa de acolhimento em ... no âmbito do processo de promoção e proteção nº 3564/06.... do ... Juízo (ponto 18 dos factos provados).

Por outro lado, ao longo deste período de mais de dois anos em que as crianças se encontram acolhidas no “...” a factualidade apurada também não revela que os Recorrentes tenham demonstrado grande capacidade (ou investimento) de mudança.

Pelo contrário, o progenitor não realiza contactos telefónicos para se inteirar do bem-estar das filhas AA e BB e apenas realiza visitas pontuais, nos dias festivos e nessas visitas mantém uma postura de distanciamento que apresentou desde o início da institucionalização das filhas (ponto 22 dos factos provados), não dialoga com as crianças, nem demonstra qualquer reação ou emoção quando na presença destas, é distante e inexpressivo (ponto 23 dos factos provados).

No relatório de Perícia de Avaliação Psicológica e Forense elaborado pelo ... consta ainda que “a desresponsabilização pessoal e a negação das queixas de abuso sexual, não obstante a medida judicial que o próprio afirmou ter-lhe sido aplicada, são fatores de risco para um exercício adequado das suas funções parentais” (sublinhado nosso), sendo certo que conforme já referimos os atos resultaram provados.

Quanto à progenitora, mesmo depois de conhecedora das denúncias efetuadas pela filha GG e pelas suas enteadas, nunca valorizou os comportamentos do marido, e nunca reconheceu o perigo em que colocava a filha GG ou, eventualmente as filhas menores BB e AA, e quando chamada à escola e por duas vezes neste tribunal, referiu não acreditar na filha e se alguma coisa aconteceu “foi culpa da GG”, tendo referido à técnica gestora que a filha provocava o marido “pela maneira como se vestia”, nunca levando a cabo qualquer ação no sentido de proteger de alguma forma as suas filhas menores destes comportamentos (ponto 15 dos factos provados). Saliente-se, aliás, que era a própria Recorrente que mandava a filha GG, então com 16 anos e a residir com ela e o Recorrente apenas desde maio de 2019, dormir com o padrasto (ponto 14 dos factos provados).

É certo que, em janeiro de 2021 (v. ponto 36 dos factos provados) se registou uma tentativa de sair de casa (parecendo estar consciente, ou pelo menos ter sido orientada nesse sentido, de que essa constituiria a possibilidade de voltar a ter as filhas consigo) mas a 19 de março de 2021 informou o “...” que estava de novo a residir com o Recorrente, e que não fazia sentido a separação (ponto 37 dos factos provados), não resultando dos autos qualquer outra ação no sentido de proteger as suas filhas menores.

Ao que acresce que, apesar do progenitor negar ter hábitos etílicos, deslocou-se ao Hospital ... no dia 01/02/2022 e, após exame, revelou uma taxa de alcoolemia de 1,91 e no dia 08/04/2022 deslocou-se novamente ao serviço de urgência do Hospital, que abandonou, por lhe terem dito que estava alcoolizado (pontos 43 e 44 dos factos provados).

Todo o quadro fáctico que temos descrito é, infelizmente, demasiado expressivo no sentido de transmitir que as menores se encontram numa situação de perigo, criada pelo comportamento dos seus pais (que em 2020 levou à intervenção do Estado, no sentido de providenciar pelo seu temporário acolhimento no “...”) e que afasta definitivamente que possa ser equacionada, e ainda menos, deferida, a pretensão dos Recorrentes de, sem mais, se determinar a entrega das menores ao seu cuidado.

E daí que se imponha a aplicação de uma medida de promoção e proteção.

In casu, o Tribunal a quo concluiu que a medida que melhor se adequa ao caso concreto é a da confiança com vista a futura adoção das duas crianças, considerando preenchidos os pressupostos gerais e específicos da sua aplicação.

Importa, então, indagar se os factos apurados permitem concluir que a medida em causa é a que melhor tutela os direitos e interesses das menores BB e AA, sem esquecer que, de entre as medidas de promoção e proteção previstas no artigo 35º da LPCJP, esta é a que maior e mais expressivo impacto tem na vida e no futuro das crianças, não só porque determina a inibição do exercício das responsabilidades parentais por parte dos pais (cfr. artigo 1978º-A do CC), e a cessação dos laços afetivos eventualmente existentes entre as crianças e a família biológica, pois põe fim às visitas dos elementos que a compõem, salvo quanto a irmãos, cujos contactos podem ser autorizados, em casos devidamente fundamentados e desde que tal seja reclamado pelo superior interesse do adotando (cfr. artigo 62º-A, n.ºs 6 e 7 da LPCJP), como, em princípio, perdura, sem lugar a revisão, até ser decretada a adoção, salvo o caso excecional de se vir a revelar manifestamente inviável a sua execução, designadamente por a criança atingir a idade limite para a adoção sem que o projeto adotivo se tenha concretizado (cfr. nºs 1 e 2 do referido artigo 62º-A).

Privar um progenitor do seu filho é sempre uma medida que se revela ou pode revelar, dolorosa, e essa privação (considerando que a prevalência da família é também um dos princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção das crianças e dos jovens em perigo, que se consubstancia na prevalência que devem ser dadas às medidas que os integrem em família, sobretudo na sua família a biológica) só poderá ser justificada pelos reais interesses das crianças, ou seja, só quando o interesse superior das mesmas assim o ditar.

Mas tal princípio (da prevalência da família biológica) pressupõe não só a existência dessa família mas, e sobretudo, que nela exista um ambiente familiar propício a permitir a integração e o crescimento das crianças no seu seio, e que os pais disponham de condições, não só ao nível económico, mas particularmente ao nível afetivo e ao nível psicológico para delas conseguirem tratar e cuidar e de lhes proporcionar um crescimento/desenvolvimento harmonioso; é que, como já vimos, o interesse superior da criança revela-se no direito do menor ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

Vejamos então os factos concretos.

Desde o acolhimento no “...” que o progenitor não realiza contactos telefónicos para se inteirar do bem-estar das filhas AA e BB e apenas realiza visitas pontuais, nos dias festivos e nessas visitas mantém uma postura de distanciamento que apresentou desde o início da institucionalização das filhas; não dialoga com as crianças, nem demonstra qualquer reação ou emoção quando na presença destas, é distante e inexpressivo.

Em relação ao progenitor, menciona-se no relatório de perícia de Avaliação Psicológica e Forense elaborado pelo ... (ponto 33 dos factos provados) que este “(…) Descreve-se como um “bom pai, que dá o que elas precisam e lhes dá educação, dá carinho”. (…) Nega representar qualquer perigo para as filhas ou precisar de mudar de alguma forma (…)revelou alguma imaturidade afetiva e psicossocial e um nível de desenvolvimento moral mais abaixo do que seria de esperar para a sua faixa etária (…) A imaturidade psicossocial do examinando revela-se, também, no modo como defende ser capaz, com a Sr. DD, de voltar a cuidar das suas filhas menores, não considerando as suspeitas que foram levantadas relativamente a ambos os progenitores, e a si, em particular, e verbalizando não precisarem de mudar ou melhorar as suas competências pessoais. (…) apresenta expectativas relativamente ao comportamento das crianças que são pouco adequadas e pouco realistas, legitimando o uso da punição física em função da autoridade que, na sua perspetiva, os progenitores representam ou da normalidade que atribui a estes comportamentos”.

Como conclusão, a referida perícia refere que “O Sr. EE apresenta características de personalidade e de funcionamento psicológico que poderão comprometer o exercício das suas competências parentais. A sua elevada imaturidade afetiva e psicossocial, a desresponsabilização face aos processos judiciais em que está envolvido e ao seu impacto nas crianças e as suas crenças legitimadoras da punição física poderão, em alguns momentos, comprometer a adoção de estratégias educativas adequadas. Por outro lado, a relação de vinculação estabelecida com as crianças parece pobre e enfraquecida (o que pode decorrer do período de institucionalização das crianças). Ainda que o examinando refira que deseja que as crianças regressem ao agregado familiar, a sua incorreta perceção das dificuldades do casal ao nível das suas competências pessoais e da necessidade de apoio e de mudança, são também fatores a considerar. Por último, a desresponsabilização pessoal e negação das queixas de abuso sexual, não obstante a medida judicial que o próprio afirmou ter-lhe sido aplicada, são fatores de risco para um exercício adequado das suas funções parentais”.

A matéria de facto que resulta apurada nos autos permite concluir que a participação do progenitor na formação e desenvolvimento das menores tem-se, no fundo, resumido, a visitas muito pontuais, nos dias festivos e mesmo nessas visitas mantém uma postura de distanciamento, não existe diálogo com as crianças, não demonstra qualquer reação ou emoção quando na sua presença e é distante e inexpressivo; revela-se, por isso, incapaz de interagir com elas e de estabelecer vínculos de afetividade. A sua participação no processo de desenvolvimento das suas filhas tem-se mostrado praticamente inexistente.

Para além desta ausência de investimento e de criação de vínculos afetivos, a matéria de facto apurada revela ainda todo um leque de factos que permite concluir que o progenitor também não dispõe de capacidade, designadamente ao nível psicológico (veja-se o referido relatório de perícia) mas também emocional, para exercer as suas responsabilidades parentais em relação às suas filhas.

Também de acordo com a avaliação do CAFAP (ponto 24 dos factos provados), apesar de não existirem lacunas ao nível da prestação dos cuidados básicos às crianças, foi possível aferir que “parecem existir lacunas na capacidade de garantir a segurança física, nomeadamente ao nível da supervisão e monitorização do comportamento, bem como em relação à proteção face a contactos, objetos, circunstâncias ou substâncias que ameacem a segurança das crianças. Em relação à segurança afetiva, e considerando a imaturidade e labilidade emocional dos progenitores, registam-se dificuldades significativas quer na capacidade de interpretar comportamentos e estados emocionais das crianças, quer na responsividade aos mesmos e à possível perturbação emocional, inibindo a capacidade de proporcionar conforto e cuidado. Os progenitores parecem igualmente exibir dificuldades na capacidade de estimulação desenvolvimental das crianças, não valorizando a procura de experiências que impliquem o desenvolvimento físico e psicológico, social, cognitivo, emocional ou académico. Quanto à orientação e estabelecimento de limites, em ambos os progenitores identificam-se dificuldades na capacidade de estabelecer regras, tarefas ou limites adequados às crianças e mesmo em compreender a sua relevância”.

Esta avaliação refere-se também à progenitora.

No referido relatório de Perícia de Avaliação Psicológica e Forense elaborado pelo ..., relativamente à progenitora (ponto 32 dos factos provados), consta ainda que esta “verbalizou que não acredita no relato da sua filha GG e que acha que esta mentiu em relação ao seu marido, que nunca lhe terá feito mal. Disse, não obstante, que pretende acompanhar as suas filhas, mudar horários de trabalho para passar as noites com as filhas e supervisioná-las mais. Explicou também que já foi aconselhada (pela sua advogada) a afastar-se do Sr. EE, para conseguir recuperar a guarda das suas filhas mais rapidamente, mas não ter conseguido fazê-lo durante muito tempo por não conseguir autonomizar-se (a nível habitacional, mas também a nível emocional, alegando precisar do seu marido para tomar boas decisões e organizar a sua vida). Por tudo isto, parece-nos que a Sra. DD, apesar de verbalizar não acreditar nas acusações de abuso sexual contra o seu marido, mantém um discurso paradoxal quanto à sua intenção de proteger as filhas, supervisionando os contactos com o pai, sugerindo algumas desconfianças que a própria não consegue verbalizar, mas que poderão representar um risco real para as filhas. Para além disso, evitou em todos os momentos refletir ou considerar o potencial impacto deste processo judicial no bem-estar das suas filhas, quer na GG quer das filhas menores, centrando-se mais na sua não culpa e desresponsabilizando-se enquanto mãe, do que na sua capacidade de compreensão do risco potencial para as crianças e na sua proteção”. Conclui-se ainda que: “As dificuldades de regulação comportamental e emocional, a elevada labilidade emocional, a reduzida empatia, a falta de autonomia e a elevada dependência emocional do Sr. EE que apresenta, quando associadas a situações de crise, de maior exigência ou de stress elevado, poderão resultar na adoção de estratégias educativas desadequadas, potencialmente abusivas ou maltratantes para as crianças” (sublinhado nosso).

Da dependência emocional que a Recorrente apresenta relativamente ao Recorrente decorre ainda a sua incapacidade de ficar separada do mesmo e a tentativa frustrada que fez para sair de casa, onde regressou ao fim de apenas dois meses, mas também a desvalorização dos comportamentos do mesmo, priorizando estar junto dele, mesmo em detrimento da segurança e proteção das suas filhas, mantendo um discurso paradoxal quanto à sua intenção de proteger as filhas, sugerindo algumas desconfianças que a própria não consegue verbalizar, e que poderão representar um risco real para as filhas, considerando os comportamentos daquele que resultaram provados.

Desde que as menores foram para o “...” que a progenitora estabelece contactos telefónicos com a filha BB entre 4 a 6 vezes por semana, mas mantendo com esta um discurso ambivalente, ora questionando-a acerca das suas rotinas diárias, ora partilhando com ela as suas quezilas com o progenitor, incompatibilidades com familiares e amigos, questões relacionadas com o seu trabalho (ponto 39 dos factos provados); a criança solicitou à mãe que durante a semana realizasse videochamadas à semelhança do que observa dos contactos que alguns familiares das crianças acolhidas realizam; no entanto, apesar deste pedido por parte da filha, estes contactos em videochamada só são realizados caso a mãe não esteja presente na visita de fim de semana (ponto 40 dos factos provados) e nos contactos telefónicos efetuados só muito pontualmente solicitou o contacto com a AA (ponto 41 dos factos provados).

A progenitora visitas as crianças uma vez por semana, durante uma hora, mas durante o convívio está constantemente a olhar para o relógio, nunca tendo pedido para prolongar a visita, ao contrário do que sucede com a generalidade dos outros progenitores (ponto 42 dos factos provados); ainda assim, foi tendo contactos com a menor BB ao longo do tempo, durante percurso do transporte escolar, muitas vezes através do telefone da vigilante desse transporte (ponto 45 dos factos provados) e foi-lhe transmitindo novidades sobre o processo; quando soube que a menor seria ouvida em sede de debate judicial conseguiu entrar em contacto com a filha fora do ... e transmitiu-lhe essa informação, que tudo se resolveria e que regressaria a casa em breve e nesse dia a BB chegou ao “...” transtornada, com manifestações de oposição e muito ansiosa (pontos 46 e 47 dos factos provados).

Recentemente, a progenitora acompanhou a AA a uma consulta de especialidade e adquiriu os óculos de que esta necessitava, no último ano letivo, comprou para a BB todo o material escolar e em 2021, os progenitores prepararam a primeira comunhão da BB, fazendo uma festa com os familiares.

Acresce que, tal como consta da decisão recorrida, “eventualmente fruto de uma educação desajustada ou por fatores próprios da sua personalidade a vida desta progenitora foi pautada desde cedo por uma grande instabilidade. Além da AA e da BB, a D. DD tem mais duas filhas de anteriores relações: a FF e a GG; a FF nasceu quando a D. DD tinha 16 anos de idade e é fruto de um relacionamento entre a D. DD e o seu cunhado, ex-marido da sua irmã HH; esta filha cresceu aos cuidados da avó materna e da sua irmã, tendo a D. DD abandonado a casa da mãe para ir viver com o pai da filha GG aos 19 anos de idade. Com esta filha mantém contactos esporádicos. Por seu turno, a filha GG viveu com a D. DD e com o pai até que esta conheceu o Sr. EE, e na altura em que passou a viver com este, tendo a GG ficado entregue aos cuidados dos avós paternos”.

Se relativamente à progenitora a sua participação na vida das filhas é maior do que a do progenitor, a verdade é que também se traduz nos contactos telefónicos durante a semana e na visita de uma hora ao fim de semana, que poderia prolongar, mas que nunca pediu para prolongar (ao contrário do que sucede com a generalidade dos outros progenitores).

E não podemos esquecer que, tendo tido a iniciativa de sair de casa, tendo em vista a possibilidade de vir a ter as filhas consigo, e sabendo dessa possibilidade (resulta do relatório da perícia que explicou até ter sido aconselhada nesse sentido), regressou ao fim ao fim de apenas dois meses, priorizando dessa forma a sua relação com o Recorrente, relativamente a quem apresenta elevada dependência emocional, em detrimento do investimento na proteção das filhas e na criação de um projeto de vida para as mesmas.

Mas, para além disso, a perícia de Avaliação Psicológica permite concluir que a mesma não dispõe de capacidade quer ao nível psicológico, quer ao nível se estabilidade emocional, para exercer as suas responsabilidades parentais em relação às suas filhas: as dificuldades de regulação comportamental e emocional, a elevada labilidade emocional, a reduzida empatia, a falta de autonomia e a elevada dependência emocional do Sr. EE que apresenta, quando associadas a situações de crise, de maior exigência ou de stress elevado, poderão resultar na adoção de estratégias educativas desadequadas, potencialmente abusivas ou maltratantes para as crianças.

Entendemos, por isso, tal como foi entendido em 1ª Instância, que os progenitores não dispõem de condições para poderem ter consigo as suas filhas BB e AA de modo a proporcionar-lhes o desenvolvimento futuro harmonioso a que as mesmas têm direito e que merecem.

Os progenitores não reúnem competências para exercer a parentalidade de forma funcional e ajustada às necessidades das crianças, sendo, aliás, manifesta a ausência de investimento e de criação de vínculos relativamente ao progenitor (para além do risco que constituem os seus comportamentos que resultam dos factos provados) e o desinvestimento também por parte da progenitora ao priorizar o seu relacionamento e ao não valorizar os comportamentos (que resultaram provados) do Recorrente, não demonstrando qualquer iniciativa de proteger não só a filha GG (entretanto já maior de idade) mas também as menores BB e AA, antes voltando a residir com aquele por entender não fazer sentido a separação.

Ora, tal como consta da decisão recorrida, estas crianças merecem um projeto de vida que tenha em perspetiva o seu direito a um integral desenvolvimento físico, intelectual, moral, afetivo e social.

Importa, pois, definir um projeto de vida para as mesmas, sendo que estas têm direito a crescer e a desenvolver-se num ambiente afetivo envolvente e protetor.

In casu, inexiste qualquer outra alternativa familiar: a avó materna e a irmã da progenitora não demonstraram disponibilidade para acolher as crianças, nem para a apoiar caso fosse necessário, e no que concerne à restante família biológica alargada nada se pode concluir a esse propósito.

Concordamos, por isso, com o Tribunal a quo quando refere que “[A] AA tem atualmente 4 anos, foi acolhida no ... com 2 anos de idade e pouca vinculação afetiva tem com ao pais. Não tem memória dos anos passados em casa. O caso da BB é diferente. Acolhida no ... com 7 anos, conta agora com 9 e tem vinculação afetiva à mãe e recordações difusas do que era viver com os pais. A BB criou expectativas de voltar para uma mãe e um pai que existem no seu imaginário de criança, mas que, infelizmente, não corresponde à realidade. Cremos que esta menina, descrita por todos os que a conhecem e têm lidado com ela nos últimos anos, como meiga, afável e carente, está apta ao acolhimento numa nova família. O mesmo se passa com a sua irmã AA.

Por tudo o que foi exposto, resulta à saciedade que o projeto de vida que melhor defende os superiores interesses das crianças AA e BB é, efetivamente, o encaminhamento para a adoção, na medida em que os progenitores não reúnem as condições para proporcionar a estas um adequado desenvolvimento.

Note-se, mais uma vez, que a progenitora, consciente de que a separação do marido seria benéfica para a recuperação das filhas, foi viver para casa de uma amiga, mas pouco tempo depois regressou a casa do progenitor. (…) Ou seja, apesar de não duvidarmos que esta mãe nutre algum afeto pelas filhas, ao longo de dois anos não conseguiu criar as condições necessárias para que as mesmas saíssem da casa de acolhimento e regressassem a casa.

Esta decisão poderá apenas pecar por tardia, o que em parte se deve ao facto de ao longo do processo de promoção e proteção terem sido alimentadas expectativas de que a progenitora poderia melhorar a sua situação, quer a nível emocional, social, afetivo, nomeadamente, autonomizando-se do progenitor, o que era imperativo pelas já apontadas razões”.

Não se questiona, evidentemente, o interesse que os progenitores, e em particular a mãe, possa ter pelas menores como mãe, e nem que lhe irá custar perder os laços com as filhas.

Porém, embora os direitos e interesses dos pais possam e devam ser tidos em consideração, é o superior interesse das crianças que tem primazia e “[E]ntre o interesse dos progenitores e o direito da AA e da BB em viver no seio de um agregado familiar equilibrado, seguro, que lhes dê garantias de estabilidade emocional e de um são e ajustado desenvolvimento, de terem uns pais que sejam sempre presentes e de terem desses adultos os cuidados, carinho e afeto próprios de pais, sem dúvida que tem preponderância este interesse das crianças, com prejuízo para o dos pais biológicos no caso em concreto”.

Assim, ponderando todos os princípios orientadores acima mencionados e tendo em conta o superior interesse das crianças, entendemos também que o projeto de vida que se nos afigura mais adequado para as crianças é o da confiança a instituição com vista à futura adoção.

Pelo exposto, enquadrando-se o caso concreto na situação prevista nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 1978º do CC, mostram-se preenchidos os pressupostos legais para se poder decretar a medida de confiança a instituição com vista à futura adoção, não merecendo a decisão recorrida reparo, e impondo-se a improcedência do recurso.”

26. Na decisão recorrida faz-se assim uma análise minuciosa da situação de facto provada – com base na qual o tribunal aplica as normas jurídicas – decisão que se afigura não estar envolta na alegada ilegalidade invocadas, por ali se ter ponderado:

1) o superior interesse das crianças versus o direito dos progenitores, numa preponderância do primeiro por estar em causa o seu destino e a sua vida;

2) se ter terem dado aos progenitores oportunidades relevantes e efectivas para evitar este desfecho, sempre penoso, para eles e para a criança;

3) de a solução encontrada ser proporcional ao sacrifício impostos aos progenitores, em face do benefício que dela resultará para as crianças;

4) a decisão resultar de uma objectiva consideração de factos provados que demonstram, à evidência, estarem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação.

27. Com os factos provados no presente processo não se antevê outra solução jurídica, não se identificando nenhuma das ilegalidades indicadas, sendo assim de confirmar a decisão recorrida, com os fundamentos que a sustentam e que aqui se dão por reproduzidos, em similar fundamentação deste acórdão, e não se afigurando necessário repetir os argumentos apresentados pelo tribunal, autoexplicativos e claros, não obstante os recorrentes não se conformarem com eles, como o demonstra a interposição do presente recurso, mas sem que daí lhe advenha necessariamente o reconhecimento de terem razão, à luz da lei e do quadro normativo aplicável, sempre voltado para o superior interesse da criança, cuja aferição é mais do que normativa, um assumo de conveniência e oportunidade, em cuja decisão o sistema confia nas instâncias, retirando ao STJ o poder de definir o seu sentido de “superior interesse” senão na medida da sua vertente normativa.


28. A orientação aqui adoptada está em linha com a jurisprudência do STJ, nomeadamente com o decidido no Ac. do STJ relativo ao processo 1629/15.8T8FIG-C.C1.S1, de 17-11-2021[1].

Neste aresto faz-se uma explicitação do sentido e limites dos poderes do STJ em processos de jurisdição voluntária, como os relativos à regulação das responsabilidades parentais.

Aí se diz:

“48. Entre os casos típicos de decisões tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade estão aquelas em que sejam ou em que devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de um menor ou da vida dos seus progenitores para que seja tomada uma decisão sobre o regime de residência alternada [10 - Cf. acórdãos do STJ de 17 de Maio de 2018 — processo n.º 1729/15.4T8BRR.L1.S1 — e de 6 de Junho de 2019 — processo n.º 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1.] ou sobre o regime de visitas dos pais [11 - Cf. acórdão do STJ de 18 de Março de 2021 — processo n.º 4797/15.5T8BRG-E.G1.S1 —, em que expressamente se diz: “… julgamos não se oferecerem dúvidas quanto a uma decisão concreta, sobre o montante da pensão de alimentos, a guarda e o regime de visitas, como componentes da regulação das responsabilidades parentais, uma vez obtida a prova, ser presidida por critérios de conveniência e oportunidade no sentido de tomar a criança como centro dessa conveniência e oportunidade. Não há regras de determinação legal vinculativa quanto ao modo de estabelecer o montante de uma pensão de alimentos, um regime de visitas ou uma guarda e, por isso, a decisão a proferir molda-se sobre princípios de ampla disponibilidade que, como antes referimos, por essa razão, apenas são sindicáveis até ao Tribunal da Relação. art.º 988º, n.º 2 do Código Processo Civil”.].

49. Como se diz, com particular relevo para o presente caso, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 2021, proferido apenso D do presente processo, “[a]tendendo ao teor das alegações da recorrente, podemos concluir que o objecto do seu recurso não se centra exclusivamente num processo de interpretação e aplicação da lei. Bem pelo contrário, a recorrente faz apelo à ponderação das circunstâncias concretas da vivência da menor e à conduta do progenitor e das filhas mais velhas, para concluir que o progenitor deliberadamente e de acordo com um plano delineado em conjunto com as suas filhas maiores de idade, procura afastar a menor CC da sua mãe, o que colocará em causa o superior interesse da jovem, tendo em conta, especialmente, a importância de a mesma manter contacto com ambos os progenitores e as consequências nefastas para o seu desenvolvimento decorrentes da suspensão dos contactos com a progenitora.

Assim, quer na fundamentação do acórdão recorrido, quer nas alegações da recorrente, a apreciação do caso é claramente casuística, incidindo sobre a situação de facto em que se encontra a menor e os seus progenitores, o que configura uma valoração puramente factual e não uma valoração jurídica”.

50. O facto de se alegar que foi violado um conjunto de disposições legais, sem especificar as razões de facto e de direito por que teriam sido violadas, não significa que sejam suscitadas questões de legalidade e, em todo o caso, nunca transformaria questões de conveniência ou de oportunidade em questões de legalidade [12 - Cf. acórdão do STJ de 16 de Novembro de 2017 — processo n.º 212/15.2T8BRG-A.G1.S2 —, em cujo sumário se escreve: “… se, em concreto, o recorrente se limitar a invocar preceitos pretensamente violados sem substanciar em que consiste essa violação […], […] o STJ encontra-se impedido de sindicar tais juízos (cfr. art. 988.º, n.º 2, do CPC)”].”

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é negada a revista.

As custas são da responsabilidade dos Recorrentes (artigo 527º do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.

Lisboa, 29 de Novembro de 2022

Fátima Gomes (Relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira

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[1] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8844e7e0176e68e480258790005bdef7?OpenDocument&Highlight=0,modelo,de,utilidade.