Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | JOSÉ PIEDADE | ||
| Descritores: | RECURSO PER SALTUM DOENÇA MENTAL HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTATIVA CULPA IMPUTABILIDADE DIMINUIDA ESPECIAL CENSURABILIDADE PERÍCIA PSIQUIÁTRICA MEDIDA CONCRETA DA PENA CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES IMPROCEDÊNCIA | ||
| Data do Acordão: | 10/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário : | I- O conceito de censurabilidade veiculado no art.º 132 do CP (homicídio qualificado) não se restringe à avaliação da culpabilidade, em sentido restrito, comportando um juízo de reprovação das acções reveladoras de um especial e acrescido desprezo pela vida humana e indiferença pelos valores inerentes à sua proteção;
II- Circunstâncias há que se encontram indissociavelmente ligadas ao modo de execução do facto e ao desvalor da acção: v. g. “empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima” (al.ª d, do n.º 2); “utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum” (al.ª h); “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso* (al.ª i); III- Ponto é que a actuação do agente revele — independentemente da verificação ou não de qualquer das circunstâncias — aquela acrescida e especial censurabilidade e/ou perversidade, que se encontra na gênese da qualificação do crime. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam, em Conferência, os Juízes desta 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Santarém – JC Criminal – Juiz 3, processo supra-referido, em que é arguida AA, foi proferido Acórdão com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, e tendo em conta o disposto nos artigos, 47º, 70º, 71.º, do código penal, e 374º, do C.P.P., decide o tribunal coletivo julgar parcialmente procedente, por provada, nos termos expostos, a acusação do M.º P.º e, em consequência: A-) Condenar a Arguida AA pela pratica, em autoria material, 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2 al. a), todos do Código Penal na pena de cinco, (5), anos e seis, (6), meses de prisão, absolvendo-se a arguida do demais de que vinha acusada, (artigo 132.º, n.º 2, alínea j), do Código Penal); B-) Determinar que a pena da Arguida seja cumprida em internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena; C-) Condenar a Arguida AA no pagamento de taxa de justiça de três Unidades e meia de Conta, – artigos 513º e 514º, do C. P. P.); D-) Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização deduzido por BB contra a Arguida e, em consequência: 1 Condenar esta a pagar àquela a quantia de 3000 euros; 2 Condenar a Autora e a Demandada do pedido de indemnização no pagamento das custas da ação indemnizatória na proporção do decaimento; E) Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização deduzido por «Unidade Local De Saúde Do Médio Tejo, E.P.E.», contra a Arguida e em consequência: 1. Condenar a Arguida e Demandada a pagar a «Unidade Local De Saúde Do Médio Tejo, E.P.E.», a quantia total de 85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4 % ao ano desde a data da notificação para contestar o pedido até integral pagamento; 2. Não condenar a Arguida e Demandada a pagar as custas da ação indemnizatória, que «Unidade Local De Saúde Do Médio Tejo, E.P.E.», instaurou contra ela por a mesma estar isenta de custas, artigo 4.º, n.º 1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais. Na pena em que a Arguida foi condenada descontar-se-á o tempo de prisão preventiva que sofreu nos termos do artigo 80.º, do Código Penal. Determina-se que a arguida AA continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeita à medida de coação de prisão preventiva, substituída por internamento psiquiátrico preventivo”. * Deste Acórdão foi em representação da arguida/condenada AA, interposto recurso para este Supremo Tribunal, formulando-se as seguintes conclusões: “I-O presente recurso tem por objeto a matéria de direito – respeitantes à subsunção jurídica dos factos provados e à pena aplicada á arguida – do acórdão condenatório proferido. II- A Recorrente foi condenada na pena de cinco anos e seis meses de prisão, cumprida em internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada. III- Com todo o respeito, não nos parece que assim o devesse ter sido. IV- Da errada qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado na forma tentada. O douto Tribunal “a quo” integrou os factos praticados pela arguida de 4 a 19 dos factos provados, na prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º n.º 1 e 2 alínea a) do Código Penal. V- Sucede que em 12 da matéria de facto provada, o tribunal “a quo” deu igualmente como provado que a arguida sofre de perturbação psicótica não especificada permanente e de perturbações mentais de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicoativas, considerada à data dos factos com imputabilidade diminuída. VI-Diminuição da capacidade de avaliação essa que haverá de refletir um menor grau de culpa e, por isso, afasta o juízo de especial censurabilidade ou perversidade exigido pelos exemplos previstos no artigo n.º 2 do 132.º do Código Penal. VII- Errou, o douto tribunal “ a quo” na qualificação jurídica ao integrar os factos na previsão do tipo de crime de homicídio qualificado do artigo 132.º do Código Penal, que constitui um tipo de culpa agravado, por especial perversidade ou censurabilidade da conduta do agente, não ser compatível com o facto da culpa da arguida ser diminuída por força da perturbação psicótica não especificada permanente e perturbações mentais de comportamento, como resulta em 12 da matéria de facto provada, que afeta a sua capacidade de valoração e de determinação. VIII- A especial censurabilidade e imputabilidade diminuída não podem coexistir no mesmo caso, pelo que deve a factualidade descrita em 4 a 19 da matéria de facto considerada provada ser reconduzida ao tipo legal base do crime de homicídio. IX-A moldura penal que haverá de ser considerada na punição do crime de homicídio, na forma tentada, no caso concreto situa-se entre o mínimo de um mês e máximo de sete anos, um mês e dez dias de prisão. X- Provada a perturbação psicótica não especificada permanente e as perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicóticas, importa uma diminuição da culpa e, consequentemente, uma atenuação especial da pena nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 72.º do C.P., o que in casu não sucedeu, quanto à atenuação especial da pena XI-Considerando as circunstâncias que militam a favor e contra a arguida (art. 71.º do C.P.), uma pena situada perto do meio da moldura penal aplicável ao crime de homicídio na forma tentada, realizará, de forma suficiente, as finalidades da punição. XII- Considerando-se adequada ao caso concreto e à medida da culpa a aplicação de pena nunca superior a três anos e seis meses de prisão. XIII- Ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo” fez errada interpretação dos artigos 20.º, 72.º, 131.º e 132.º todos do Código Penal”. * Em resposta ao recurso, em 1.ª Instância, o M.º P.º pronunciou-se pela sua total improcedência. * Neste Tribunal, o M.º P.º pronunciou-se pela parcial procedência do recurso “alterando-se o crime praticado para o de homicídio simples na forma tentada”. * Em consequência do decidido no Acórdão de que se pretende recorrer, são os seguintes os factos provados: “factos provados não conclusivos. da acusação. 1. A arguida AA é filha biológica da ofendida BB. 2. A arguida foi adotada por CC e DD. 3. Contudo, desde o ano de 2020 ou 2021 que a arguida voltou a contactar com a Assistente, sua mãe biológica, com a qual mantinha uma relação conflituosa. 4. No dia 12 de março de 2024 a arguida resolveu dirigir-se a casa da Assistente sita na Rua 1, em Almeirim, com o intuito de pôr termo à vida da ofendida. 5.Para tanto, a arguida muniu-se de um x-ato, de cor vermelha, com lâmina seccionável de 10 centímetros de comprimento e dirigiu-se apeada a casa da ofendida. 6. Chegada ao local, a arguida abriu o portão com recurso à chave que tinha na sua posse, entrou na divisão da casa que constituiu cozinha e sala onde se encontrava a sua mãe, deitada numa cama articulada. 7. Ao ver a ofendida ali deitada a Arguida dirigiu-lhe palavras não concretamente apuradas. 8. Após, a arguida pegou e abriu o x-ato que transportava consigo, e aproveitando o facto de a ofendida se encontrar deitada na cama articulada, aproximou-se da mesma e, ato contínuo, encostou a lâmina do x-ato ao pescoço da ofendida e desferiu-lhe dois golpes ao nível do pescoço, na região carotidiana e da jugular, percorrendo as duas partes laterais do pescoço. 9. Em seguida, a arguida levou o x-ato consigo e abandonou o local de imediato, deitando o x-ato no caixote do lixo, sito na Rua 2, em Almeirim. 10. Como consequência direta da conduta da arguida, a ofendida sofreu dores, ferimentos na região cervical, designadamente: - uma cicatriz rosada no pescoço com vestígios de pontos, oblíqua ínfero anteriormente pelo terço médio da face anterolateral da região cervical, com a porção terminal ultrapassando ligeiramente o bordo anterior do esternocleido mastoideu esquerdo (ao nível da qual se sente pulsar a artéria carótida comum), medindo cerca de 5 cm; - cicatriz rosada transversal com vestígios de crosta na porção terminal direita, no terço superior da região cervical anterior, à direita da linha média, ao nível ao nível da porção superior da cartilagem tiroideia, medindo 2 cm. 11. A Assistente foi ajudada por EE, que aí se encontrava e pela VMER no local, tendo sido depois transportada para o Hospital de Santarém. 12. A arguida sofre de perturbação psicótica não especificada permanente e de perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicoativas, foi considerada com imputabilidade diminuída na altura dos factos, sendo elevada a probabilidade de repetição de factos típicos, semelhantes, permitindo os tratamentos existentes a obtenção de remissão sintomática quando realizados de forma continuada. 13. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que ao desferir dois golpes com uma lâmina de x-ato no pescoço da ofendida, atingia zona do corpo onde sabia que se alojava órgão vital (artéria carótida), vaso importante do sistema cardiovascular e que qualquer ferimento poderia causar lesões irreversíveis e atentatórias da vida desta, o que quis e apenas não logrou alcançar por circunstâncias alheias à sua vontade. 14. Sabia que o objeto utilizado, pelas suas potencialidades e características, era meio adequado para tirar a vida da ofendida. 15. Na verdade, tal resultado apenas não se concretizou devido à rápida intervenção EE e à assistência do INEM e que prontamente acorreram ao local, o que foi alheio à vontade da arguida. 16. A arguida utilizou o x-ato com a intenção de tirar a vida à ofendida, aproveitando-se do momento em que esta se encontrava deitada no divã e com a capacidade de defesa diminuída. 17. Ao dirigir-se a casa da ofendida, munida de uma lâmina que ocultou no bolso do casaco, a arguida agiu de forma refletida, procurando o confronto com a ofendida e criando desta forma a oportunidade para golpeá-la sem que esta esperasse, persistindo no propósito de lhe tirar a vida. 18. A arguida estava ciente dos laços de parentesco que a uniam à ofendida, o que, mesmo assim, não a demoveu de atuar. 19. Mais sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal. Da ausência de antecedentes criminais. 20. Os certificados de registo criminal da Arguida datados de 10/1/2025 junto aos autos com as referências citius ......21 e ......22 não inserem qualquer condenação sua. Da situação pessoal social económica e familiar da Arguida. 21. A Arguida AA vivia em Março de 2024 e, desde o início de 2023, com o companheiro FF, de 53 anos e com o filho deste, de 16 anos, numa habitação arrendada em Almeirim. 22. O relacionamento perdurava há cerca de um ano, tendo ambos iniciado coabitação após a arguida ter permanecido no agregado materno constituído pela mãe biológica a Assistente BB, o companheiro desta e um amigo num contexto relacional de acentuada conflitualidade. 23. Atendendo à proximidade entre a habitação onde viviam e a morada da mãe biológica da arguida, o companheiro da Arguida AA optou por mudar de residência cerca de três meses após a sua prisão/internamento preventivo. 24. No presente reside em Alpiarça, que dista cerca de sete quilómetros da morada da Assistente, com dois filhos, a mais nova de quatro anos de idade que imigrou para Portugal proveniente do Brasil cerca de uma semana depois 12/3/2024, tendo o progenitor a guarda total dos descendentes. 25. O companheiro da arguida refere que esta mantinha um comportamento adequado no contexto familiar, embora descreva que cerca de uma semana antes de 12/3/2024, AA manifestou comportamentos estranhos, como seja acendia lume fora da habitação e dizia ser índia, e falava de forma desorganizada e incoerente. 26. A Arguida AA tem uma história de vida traumática, sendo proveniente de um enquadramento de origem disfuncional, tendo sido institucionalizada no âmbito de processo de promoção e proteção aos 18 meses por negligência familiar, referindo pai com psicose e mãe com uso de substâncias. 27. A Arguida depois ficou ao cuidado de uns tios, regressando novamente ao cuidado dos pais onde permaneceu até aos seis anos num contexto desestruturado até ser novamente institucionalizada. 28. Aos sete anos a Arguida viria a ser adotada por um casal sem filhos, começando a manifestar alterações comportamentais, sendo depois institucionalizada por várias vezes, instituições das quais fugia, não mantendo anteriormente contacto com os pais adotivos, apenas com a avó adotiva. 29. A Arguida tem história de consumo de substâncias psicoativas (haxixe) a partir dos dez anos e de cocaína a partir dos catorze anos de idade, referindo também consumo de crack. 30. Iniciou acompanhamento em consulta de pedopsiquiatria aos 13 anos de forma irregular no Hospital de Vila Franca de Xira devido a labilidade emocional e comportamentos de oposição. 31. Aos 17 anos a arguida suspendeu por iniciativa própria a terapêutica farmacológica prescrita, altura em que engravidou, de forma não planeada e durante uma das fugas institucionais, tendo uma filha de três anos, atualmente aos cuidados da avó adotiva, GG. 32. A arguida AA teve internamento em psiquiatria em 2019 devido a sintomatologia de alterações de conteúdo do pensamento concomitantes com consumos de psicotrópicos, tendo sido encaminhada após alta clínica para acompanhamento em ambulatório, abandonando depois o tratamento injetável e o seguimento em consulta. 33. A arguida evidencia comprometida a consciência crítica face à sua doença o que poderá aumentar com a residência em meio livre face à necessidade de intervenção médica e psicofarmacológica, à semelhança do sucedido anteriormente. 34. Em Abril de 2024 e, há cerca de um ano, a arguida mantinha-se desempregada e sem rotinas estruturadas, tendo algumas experiências profissionais em áreas indiferenciadas iniciadas aos 18 anos como operadora de caixa num supermercado, ajudante de cozinha, empregada de balcão e auxiliar de lar, tendo como habilitações o oitavo ano de escolaridade completado aos 16 anos de idade. 35. A subsistência anterior do agregado era assegurada na totalidade pelos rendimentos do companheiro que desenvolvia atividade laboral na área da construção civil como pedreiro, no valor médio mensal de 1300 EUR, assumindo o pagamento de todas as despesas domésticas, nomeadamente a renda de casa no valor mensal de 350 EUR. 36 A arguida era beneficiária do Rendimento Social de inserção que, segundo o companheiro, era gerido pela mãe biológica a Assistente, sendo esta uma situação causadora de conflito entre ambas. 37. A arguida AA apresenta vulnerabilidades pessoais que se repercutem em acentuadas dificuldades em autorregular as suas emoções e comportamentos e que decorre da patologia psiquiátrica e das vivências traumáticas da sua trajetória, o que exige o escrupuloso cumprimento de terapêutica psicofarmacológica. 38. O abandono anterior do acompanhamento psiquiátrico e medicamentoso há vários meses a par do consumo concomitante de substâncias psicoativas e as dificuldades do meio livre em assegurar essa supervisão coloca, por ora, muitas reservas quanto à adesão a um tratamento num contexto não institucional e contentor. 39. O companheiro de AA mostra-se disponível para lhe prestar todo o apoio e para a acolher em termos habitacionais assim como assegurar todas as suas necessidades de subsistência no regresso ao meio livre, embora reconheça algumas dificuldades em supervisionar as suas rotinas durante o seu horário de trabalho assim como a importância de a arguida manter uma ocupação diária. 40. A arguida AA deu entrada no Estabelecimento Prisional de Tires em 13/03/2024 à ordem do presente processo judicial, tendo sido transferida em 17/06/2024 para a clínica de psiquiatria do Hospital Prisional S. João de Deus em Caxias onde se mantém internada preventivamente. 41. A arguida no contexto prisional tem apresentado um comportamento globalmente consonante com as normas vigentes embora registe um incidente disciplinar, datado de 07/01/2025, por incumprimento de regras, ainda em fase de averiguações. 41. Acompanhada nos serviços clínicos, AA adere à terapêutica psicofarmacológica prescrita direcionada para o seu quadro de sintomatologia psicótica, registando episódios autolesivos. 42. A arguida em internamento recebeu duas visitas do companheiro e três visitas da avó adotiva, numa delas acompanhada pela sua filha aquando do seu aniversário, estabelecendo contactos telefónicos regulares com essas figuras e com a mãe biológica/Assistente. 43. A Arguida apresenta um humor predominantemente disfórico e uma atitude apelativa no decurso da entrevista realizada, a arguida refere um impacto negativo decorrente da atual privação da liberdade sobretudo pela interrupção do seu quotidiano anterior e afastamento do convívio com o companheiro e com a filha, rememorando de forma emocionada vivências negativas no contexto de origem. Dos Pedidos de indemnização civis. 44. Os atos médicos que na sequência da agressão da Arguida foram dispensados ao Assistente pela «Unidade Local De Saúde Do Médio Tejo, E.P.E.», importaram na quantia de 85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos), que ainda não foi paga. 45. A Assistente em consequência das lesões que sofreu teve dores e subsequente depressão”. * Qualificação jurídica “a). Da subsunção jurídica dos factos. A Arguida AA vem acusada da prática, em autoria material, 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2 al. a) e j), todos do Código Penal. Relativamente ao crime de homicídio dispõe o artigo 131º, do Código Penal, “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”. O crime de homicídio pressupõe uma conduta dirigida ao resultado que é a morte de alguém e, o crime de homicídio descrito no artigo 131º, acima citado, constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida. (…) Deste tipo legal fundamental dos crimes contra a vida descrito no artigo 131°, a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo para tanto acrescer, ao tipo-base, circunstâncias que o qualificam por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade. Da conjugação dos artigos 131° e 132º com o disposto no artigo 13° resulta que os tipos subjectivos do ilícito de homicídio simples e do homicídio qualificado exigem o dolo em qualquer das suas modalidades, ou seja, dolo direto, necessário ou eventual. O dolo é direto quando o agente age "representando um facto que preenche um tipo de crime" e "actuar com intenção de o realizar", conforme deflui do nº 1 do artigo 14.° do Código Penal. O tipo objetivo do crime de homicídio simples é de fácil compreensão normativa e de ostensiva intuição leiga: matar uma pessoa significa tira-lhe a vida e reporta-se a pessoas já nascidas. É um crime de dano e de resultado. Ao nível subjetivo, exige-se o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades. Por outro lado, nos termos do artigo 22.º, do Código Penal: “1. Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer sem que este chegue a consumar-se. 2. São actos de execução: a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) Os que foram idóneos a produzir o resultado típico; ou c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.” Estatuindo, por seu turno, o artigo 23º, do Código Penal: “1. Salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão. 2. A tentativa é punível com a pena aplicada ao crime consumado especialmente atenuada. 3. A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime.” A tentativa do cometimento de homicídio é sempre punível por força do disposto no acima citado artigo 23º, n.º 1, do Código Penal. Por sua vez dispõe o artigo 132.º do Código Penal sob a epigrafe homicídio qualificado: “1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;… j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.” Conforme decidiu o douto acórdão do STJ de 6/1/2010, in www.dgsi.pt “I - A qualificação do homicídio assenta num especial tipo de culpa, num tipo de culpa agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável. II - No n.º 2 do art. 132.º indiciam-se circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, elementos indiciadores da ocorrência de culpa relevante, cuja verificação, atenta a sua natureza indiciária, não implica, obviamente, a qualificação automática do homicídio, isto é, sem mais. Qualificação que, por outro lado, atenta a natureza exemplificativa das referidas circunstâncias, o que claramente resulta da lei, concretamente da expressão entre outras, pode decorrer da verificação de outras situações valorativamente análogas às descritas no texto legal, sendo certo, porém, que a ausência de qualquer das circunstâncias previstas nas als. a) a m) do n.º 2 do art. 132.º, constitui indício da inexistência de especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, indica que o caso se deve subsumir no art. 131.º (homicídio simples). III - As circunstâncias em questão são, assim, não só um indício, mas também uma referência; circunstâncias que, não fazendo parte do tipo objectivo de ilícito, se devem ter por verificadas a partir da situação tal qual ela foi representada pelo agente, perguntando se a situação, tal qual foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. IV - A circunstância qualificativa prevista na parte final da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP – motivo fútil – destina-se a tutelar situações em que o agente se determine por mesquinhez, frivolidade ou insignificância, ou seja, por motivo gratuito. V - No caso em que o arguido formou o propósito de tirar a vida à ofendida por não se haver conformado com o rompimento da relação de namoro existente entre ambos há que afastar liminarmente a verificação da circunstância qualificativa motivo fútil. VI - Por outro lado, apenas se provou que o arguido, na sequência do termo da referida relação de namoro, o que sucedeu no dia 20-07-2008, por não se conformar com isso, formou o propósito de tirar a vida à vítima, evento que veio a ocorrer na manhã do dia 22-07-2008, o que significa que se desconhece o momento em que o arguido formou a intenção de matar, pelo que também há que afastar a verificação da circunstância qualificativa da premeditação, ou seja, da circunstância prevista na parte final da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP. VII - A circunstância da frieza de ânimo traduz-se numa actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto. VIII - O quadro factual provado revela que o arguido é portador de anomalia psíquica, caracterizada por fases depressivas, com debilidade mental ligeira e alterações comportamentais, que se expressam através de agitação motora e agressividade, apresenta fragilidades a nível afectivo e emocional e já tentou suicidar-se duas vezes (a última das quais na sequência dos factos delituosos objecto dos autos), do que decorre que, embora imputável, o arguido é portador de anomalia que de algum modo afecta a sua capacidade de entender e de se determinar, circunstância que não pode deixar de influir no juízo de culpa sobre o seu comportamento delituoso, neutralizando a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, de forma a considerar-se por não verificada a ocorrência de frieza de ânimo, a significar que o crime efectivamente cometido é o do art. 131.º do CP.” Volvendo ao caso concreto decorre do exposto e dos factos descritos e dados como provados em 1.- a 19.- considerando os elementos objetivos e subjetivos do tipo que estes integram os elementos essenciais da prática, em autoria material, pela Arguida AA, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2 al. a), todos do Código Penal, e não também qualificado pela alínea j), do n.º 2, do artigo 132.º Código Penal. Efetivamente se é indiscutível o preenchimento da alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal, dado a ofendida do comportamento da Arguida ser a sua mãe biológica, o que revela especial censurabilidade e perversidade na atuação da Arguida, já no que toca a frieza de animo na atuação da Arguida tal não ocorre atento o facto de a Arguida sofrer de perturbação psicótica não especificada permanente e de perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicoativas, foi considerada com imputabilidade diminuída, o que afasta a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, de forma a considerar-se por não verificada a ocorrência de frieza de ânimo. Em face da inexistência de causas de exclusão da ilicitude da culpa a conduta provada da Arguida integra a prática por esta, em autoria material, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2 al. a), todos do Código Penal” * Medida da pena “O crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2 al. a), todos do Código Penal praticado pelo Arguido é punível em abstrato com pena de prisão de dois (2) anos e quatro(4) meses e vinte e quatro dias (24), de prisão a dezasseis anos (16) e oito, (8), meses. (…) No caso concreto, em face do teor do relatório pericial de psiquiatria forense, que atesta que a arguida sofre de perturbação psicótica não especificada permanente e de perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicoativas, foi considerada com imputabilidade diminuída, sendo elevado o risco de voltar a ter comportamentos típicos como o que teve, entendemos que, essa deterioração das capacidades cognitivas da arguida, apesar de não a incapacitarem de compreender a ilicitude da sua conduta, a verdade é que diminuem a sua culpa, na medida em que, são suscetíveis de diminuir a sua capacidade para se autodeterminar, o que constitui fundamento para considerar a sua imputabilidade diminuída. Com efeito, como refere o acórdão do STJ de 27-01-2010 (Proc. n.º 401/07.JELSB.L1.S1 - 5.ª Secção), a “imputabilidade diminuída pressupõe e exige a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato bio-psicológico) que afecte o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo)”. A imputabilidade diminuída era reconhecida como existindo nas situações em que o agente está fortemente limitado na sua capacidade de avaliação da ilicitude do ato e de determinação de acordo com essa avaliação, sem que tal capacidade esteja completamente eliminada. A diminuição dessa capacidade era suscetível de determinaria a diminuição da culpa, o que por sua vez obrigaria à atenuação da pena. Esta conceção da imputabilidade diminuída, fundada na diminuição da culpa, não tem, porém, correspondência na lei penal vigente, como tem sido entendimento da jurisprudência consolidada dos nossos tribunais superiores [nesse sentido, veja-se por todos, o acórdão do STJ de 19.06.2019, Proc. 291/17.8JAAVR.P1.S1 (relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto de Matos) e jurisprudência nele citada]. Com efeito, a figura da «imputabilidade diminuída» não se encontra, enquanto tal, prevista no Código Penal, cujo artigo 20.º, n.º 2, em vez disso, estabelece que pode ser declarada a inimputabilidade do arguido nas situações e condições especificadas neste preceito. Deste modo, como refere Maia Gonçalves [in Código Penal Português Anotado e Comentado, 15.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 113]: «Se o agente não for declarado inimputável, por ainda ter capacidade para avaliar a ilicitude do facto e para se determinar de acordo com essa avaliação, não sensivelmente diminuída, mas em todo o caso de algum modo diminuída, não diz o Código se essa imputabilidade diminuída deve ou não obrigatoriamente conduzir a uma pena atenuada. E parece que o não deverá, devendo cada caso aqui ser apreciado dentro das determinantes gerais dos fins e da medida da pena.». Decorre do exposto que a imputabilidade diminuída leva à ponderação da possibilidade de, com flexibilidade, atender aos critérios gerais de culpa e de prevenção na decisão sobre a determinação da medida da pena (artigo 71.º do CP), podendo-se optar por uma pena atenuada, agravada ou, sendo caso disso, por uma pena especialmente atenuada (artigo 72.º do CP), ou, ainda, verificados os respetivos pressupostos, pela aplicação de uma pena relativamente indeterminada sempre que a avaliação conjunta dos factos praticados e da personalidade do agente revelar uma acentuada inclinação para o crime, que no momento da condenação ainda persista (artigo 83.º do CP) (nesse sentido, veja-se o acórdão do STJ de 15-02-2023, Proc. 799/21.0JAPDL.S1 e jurisprudência e doutrina aí citadas). Conforme também se considera no acórdão do STJ de 27-05-2010 (Proc. n.º 6/09.4JAGRD.C1.S1 – 3.ª Secção), a imputabilidade diminuída deve, na determinação da medida da pena, entrar, conjuntamente com todas as demais circunstâncias, na ponderação global a que se refere o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, ou inclusivamente na avaliação do circunstancialismo que fundamenta a atenuação especial. No caso dos autos, resulta da factualidade provada com base no exame psiquiátrico medico legal realizado a circunstância que aponta no sentido da especial perigosidade da arguida, o que não conduz a uma atenuação especial da pena nem, apesar disso ao aumento da pena. Importa, pois, apurar agora em concreto qual a pena a aplicar a Arguida. Para tal atender-se-á aos mencionados critérios legais de determinação da pena, previstos no artigo 71.º, do Código Penal, e designadamente, as exigências de prevenção geral medianamente elevadas dada a frequência da pratica deste crime no nosso pais, e as exigências de prevenção especial medianas atenta a primo delinquência da Arguida por um lado e o risco elevado de pratica de factos tipos criminais, ao grau de intensidade do ilícito, considerando a respetiva natureza, baixo, ao dolo da Arguida na modalidade de dolo direto, (artigo 14, n.º 1, do código penal), as não muito gravosas consequências do ilícito e à situação social, económica, profissional e familiar da Arguida que se provou, depondo a favor do Arguido o facto de não ter antecedentes criminais da mesma natureza. Atendendo aos referidos elementos de ilicitude e culpabilidade entendemos justo cominar a Arguida uma pena abaixo do limite médio da moldura penal abstrata aplicável, concretamente a pena de cinco, (5), anos e seis, (6), meses de prisão. c). Do internamento. Dispõe o artigo 104.º do Código Penal sobe a epigrafe Anomalia psíquica anterior. “1 - Quando o agente não for declarado inimputável e for condenado em prisão, mas se mostrar que, por virtude de anomalia psíquica de que sofria já ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime, o tribunal ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena. 2 - O internamento previsto no número anterior não impede a concessão de liberdade condicional nos termos do artigo 61.º, nem a colocação do delinquente em estabelecimento comum, pelo tempo de privação da liberdade que lhe faltar cumprir, logo que cessar a causa determinante do internamento.” Conforme se provou a Arguida sofre de perturbação psicótica não especificada permanente e de perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicoativas, foi considerada com imputabilidade diminuída na altura dos factos, sendo elevada a probabilidade de repetição de factos típicos, semelhantes, permitindo os tratamentos existentes a obtenção de remissão sintomática quando realizados de forma continuada. Mais se provou que a Arguida AA apresenta vulnerabilidades pessoais que se repercutem em acentuadas dificuldades em autorregular as suas emoções e comportamentos e que decorre da patologia psiquiátrica e das vivências traumáticas da sua trajetória, o que exige o escrupuloso cumprimento de terapêutica psicofarmacológica. O abandono anterior do acompanhamento psiquiátrico e medicamentoso há vários meses a par do consumo concomitante de substâncias psicoativas e as dificuldades do meio livre em assegurar essa supervisão coloca, por ora, muitas reservas quanto à adesão a um tratamento num contexto não institucional e contentor. É assim patente a necessidade da Arguida cumprir escrupulosamente a terapêutica psicofarmacológica que necessita o que atentas as dificuldades do meio livre em assegurar essa supervisão coloca, por ora, muitas reservas quanto à adesão a um tratamento num contexto não institucional e contentor e por outro aconselha a que tal tratamento tenha lugar não em estabelecimento prisional mas em instituição adequada a lidar com a patologia da Arguida, ou seja, tudo aconselha o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, o que assim infra se decidirá”. * * * Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir. * * Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que no recurso da arguida/condenada AA se pretende suscitar as seguintes questões: — Qualificação jurídica dos factos; — Atenuação especial da pena; — Medida concreta da pena * Em síntese, está provado o seguinte: — A AA é filha biológica da BB e foi adotada pelo CC e DD; — Desde 2020 ou 2021 voltou a contactar com a mãe biológica com quem “mantinha uma relação conflituosa”; — Em 12/03/24 dirigiu-se a casa da mãe biológica, com “um x-ato, de cor vermelha, com lâmina seccionável de 10 centímetros de comprimento”, entrou, e na sala onde a mãe estava deitada em uma cama articulada, e após palavras não apuradas, “abriu o x-ato que transportava consigo, e aproveitando o facto de a ofendida se encontrar deitada na cama articulada” e “encostou a lâmina do x-ato ao pescoço da ofendida e desferiu-lhe dois golpes ao nível do pescoço, na região carotidiana e da jugular, percorrendo as duas partes laterais do pescoço”; — Em seguida, abandonou o local e deitou o x-ato num caixote do lixo; — Ao dirigir-se a casa da vítima, munida do x-ato “que ocultou no bolso do casaco”, “agiu de forma refletida, procurando o confronto” com a vítima e “criando desta forma a oportunidade para golpeá-la sem que esta esperasse”, ciente de que era a sua mãe biológica, “aproveitando-se do momento em que esta se encontrava deitada no divã e com a capacidade de defesa diminuída”; — “agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que ao desferir dois golpes com uma lâmina de x-ato no pescoço da ofendida, atingia zona do corpo onde sabia que se alojava órgão vital (artéria carótida), vaso importante do sistema cardiovascular e que qualquer ferimento poderia causar lesões irreversíveis e atentatórias da vida desta, o que quis e apenas não logrou alcançar”, devido à rápida intervenção de “EE e à assistência do INEM e que prontamente acorreram ao local, o que foi alheio à vontade da arguida”; — sofre de perturbação psicótica não especificada permanente e de perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicoativas, foi considerada com imputabilidade diminuída na altura dos factos, sendo elevada a probabilidade de repetição de factos típicos, semelhantes, permitindo os tratamentos existentes a obtenção de remissão sintomática quando realizados de forma continuada; — Vivia “com o companheiro FF, de 53 anos e com o filho deste, de 16 anos, numa habitação arrendada em Almeirim”. * No recurso, começa-se por anunciar respeitar à “subsunção jurídica dos factos provados e à pena aplicada”. Quanto à qualificação jurídica, alega-se que foi dado como provado que a recorrente “sofre de perturbação psicótica não especificada permanente e de perturbações mentais de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicoativas, considerada à data dos factos com imputabilidade diminuída”, e essa “diminuição da capacidade de avaliação”, “haverá de refletir um menor grau de culpa e, por isso, afasta o juízo de especial censurabilidade ou perversidade exigido pelos exemplos previstos no artigo n.º 2 do 132.º do Código Penal”. Defende-se que “a especial censurabilidade e imputabilidade diminuída não podem coexistir no mesmo caso”, pelo que a matéria de facto provada deve “ser reconduzida ao tipo legal base do crime de homicídio”. Nessa sequência alegatória, e tendo presente a moldura abstracta do crime de homicídio simples, na forma tentada, “mínimo de um mês e máximo de sete anos, um mês e dez dias de prisão”, defende-se a atenuação especial da pena, “provada a perturbação psicótica não especificada permanente e as perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicóticas”, que “importa uma diminuição da culpa”. Passando-se à pena concreta, pretende-se “uma pena situada perto do meio da moldura penal aplicável”, “nunca superior a três anos e seis meses de prisão”. * Qualificação jurídica Na decisão recorrida, considera-se “indiscutível o preenchimento da alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal, dado a ofendida do comportamento da Arguida (sic) ser a sua mãe biológica, o que revela especial censurabilidade e perversidade na atuação da” recorrente. Afasta-se, porém, a frieza de ânimo “atento o facto de a Arguida sofrer de perturbação psicótica não especificada permanente e de perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicoativas, foi considerada com imputabilidade diminuída, o que afasta a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida”. Conclui-se integrar a conduta da recorrente a prática de 1 crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, al.ª a), 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2 al. a), do CP (se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade (…) sendo susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (…) entre outras, a circunstância de o agente ser descendente da vítima). No recurso, com a argumentação supra sintetizada, defende-se que “a especial censurabilidade e imputabilidade diminuída não podem coexistir no mesmo caso”. No parecer do M.º P.º junto deste Tribunal, adere-se à “desqualificação do homicídio em consequência da imputabilidade diminuída reconhecendo-se, em suma, que, uma vez que o homicídio qualificado pressupõe um tipo especial agravado de culpa e constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, o agente avaliar a sua ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação, a diminuição sensível dessa capacidade de avaliação ou de determinação por causa de uma determinada anomalia psíquica impede a formulação de um juízo de especial censura acerca da culpa do agente”. * Vejamos: Indo ao fundamental, é unânime o entendimento de que a razão da agravação, prevista no art. 132º do CP (por contraposição ao homicídio simples), reside na acrescida e especial censurabilidade e/ou perversidade revelada pela actuação do agente, de que as circunstâncias descritas no nº 2 do referido art. 132º do CP constituem indícios meramente enunciativos (não taxativos); isto é, pode qualquer destas ocorrer, e não revelar a especial censurabilidade ou perversidade de que deriva a agravação do crime e – no prisma oposto – pode estar-se perante a prática de um homicídio qualificado, devido à especial censurabilidade ou perversidade da sua prática, apesar de se não verificar nenhuma das elencadas circunstâncias. Já não é unânime o entendimento de que a especial censurabilidade e/ou perversidade revelada na actuação do agente se reporte, exclusivamente, à sua culpa, e não também à ilicitude. O conceito de censurabilidade veiculado no art.º 132 do CP não se restringe à avaliação da culpabilidade, em sentido restrito, comportando um juízo de reprovação das acções reveladoras de um especial e acrescido desprezo pela vida humana e indiferença pelos valores inerentes à sua proteção. Veja-se Teresa Serra, “Homicídio qualificado tipo de culpa e medida da pena” (Livraria Almedina Coimbra, p. 62 e ss.): “não pode, todavia, subscrever-se a afirmação de que as circunstâncias referidas no n.º 2 do art.º 132 constituem, dado o seu funcionamento não automático e sua não taxatividade, elementos da culpa. Uma análise, ainda que breve das mencionadas circunstâncias, evidencia, pelo menos no que a parte delas respeita, um mais acentuado desvalor da conduta que implica um maior grau de ilicitude”. Escreve aquela autora que “a verificação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 2 do art.º 132, seja ela relativa ao facto ou ao agente, significando um aumento da ilicitude ou da culpa, só constitui um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade do agente que fundamenta a moldura penal agravada do homicídio qualificado”. E, efectivamente, circunstâncias há que se encontram indissociavelmente ligadas ao modo de execução do facto e ao desvalor da acção: v. g. “empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima” (al.ª d); “utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum” (al.ª h); “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso* (al.ª i). Ponto é que a actuação do agente revele — independentemente da verificação ou não de qualquer das circunstâncias — aquela acrescida e especial censurabilidade e/ou perversidade, que se encontra na gênese da qualificação do crime. No caso, da matéria provada resulta que a recorrente foi a casa da mãe biológica (com quem voltou a contactar em 2020 ou 2021), munida de um “x-ato” (estilete), com uma lâmina de 10 centímetros de comprimento, entrou na sala onde a mãe estava deitada numa cama articulada, e aproveitando o facto da vítima se encontrar deitada numa cama articulada, desferiu-lhe dois golpes ao nível do pescoço, na região carotidiana e da jugular, “percorrendo as duas partes laterais do pescoço”, atingindo locais vitais do corpo humano, aptos a produzir a morte, segundo o relatório pericial, “se tivessem sido mais profundos”. Esta actuação tem de ser caracterizada — à partida — como revelando uma especial censurabilidade e repreensibilidade, e demonstrativa de uma especial perversidade e periculosidade. Analisando agora o caso sob o prisma da imputabilidade, temos que imputar é atribuir alguma coisa a alguém. Na terminologia Penal, imputabilidade é a possibilidade de se atribuir a uma pessoa a prática de um acto ilícito, tipificado como crime, e de a responsabilizar penalmente pela sua prática. Essa responsabilização penal pressupõe que o agente tenha capacidade para avaliar o mal que pratica e se determinar de acordo com essa avaliação. Dito por outras palavras, é necessário que o agente disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir de acordo com essa avaliação. Na perícia psiquiátrica a recorrente não foi declarada inimputável. Referindo-se uma “perturbação da personalidade”, considera-se que “não releva para a avaliação médico-legal de imputabilidade, já que não interfere para uma alteração de consciência de significação ou para, no caso concreto, diminuição de capacidade de avaliação, não integrando o conceito de anomalia psíquica grave, contudo, a presença deste tipo de alterações psicopatológicas, concomitantes com a presença de outros diagnósticos, nomeadamente quadros psicóticos, torna-se especialmente relevante na aferição da perigosidade uma vez que pode levar a manifestações mais exuberantes dos quadros psiquiátricos primários”. A anteceder, escreve-se que “os actos descritos tanto podem resultar directamente de uma agudização do seu quadro clínico, como de um comportamento deliberado ou, no mínimo, consciente, e assim envolvendo a responsabilidade criminal por querer ou pelo menos conhecer, o resultado da sua acção”. Conclui-se que “não podendo ser esquecido que sobre efectivamente de uma patologia psiquiátrica grave — perturbação psicótica não especificada com sintomas positivos ativos — estamos em crer que, não tanto a capacidade de avaliação, mas a capacidade de determinação, estaria sensivelmente diminuída tendo em conta a presença de ideação delirante de envolveria a progenitora”. Com base nesta perícia psiquiátrica — nos termos do art. 163º do CPP “o juízo inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do Julgador” — na decisão a recorrente foi considerada com uma “imputabilidade diminuída na altura dos factos”. Refira-se que no Código Penal esse conceito não existe, estando apenas prevista, nos art.ºs 19 e 20 a inimputabilidade derivada da idade (os menores de 16 anos), ou de uma anomalia psíquica (circunstancial ou permanente). É, no entanto, aceite pela Jurisprudência (apoiada no saber psiquiátrico, veiculado nas perícias legais), como representando uma diminuição da capacidade para avaliar o mal que praticou e/ou se determinar de acordo com essa avaliação. No caso, dessa perícia resulta que se não encontrava afectada, a capacidade de avaliação, isto é, a capacidade para representar a situação e consciencializar a sua gravidade e periculosidade, mas apenas a capacidade de se determinar, de agir de acordo com essa avaliação. Neste enquadramento, a especial censurabilidade (entendida pela forma acima referenciada) e perversidade prevista no art.º 132 do CP como determinante da qualificação do crime de homicídio, pode coexistir com uma imputabilidade diminuída que afecte não a capacidade de avaliação do mal que pratica, mas apenas diminui a capacidade de se determinar de acordo essa avaliação. Diga-se que, ao contrário do defendido pelo M.º P.º nesta Instância, a razão de ser da agravação não se circunscreve ao facto de se tratar da ascendente biológica, fundamenta-se — isso sim — na concreta e (julgamos que demonstrada) especial censurabilidade e perversidade daquela actuação quanto à mãe biológica, de que a al.ª a), do n.º 2, do art.º 132 do CP constitui um simples índice (sendo unânime esse entendimento). Em conclusão, embora com estes diferentes fundamentos, a qualificação do crime de homicídio, na forma tentada, dever ser mantida, e o recurso improcedente, neste segmento. * Pretendida atenuação especial da pena Tal como resulta do acima sintetizado, pretende-se, também, a atenuação especial da pena, “provada a perturbação psicótica não especificada permanente e as perturbações mentais e de comportamento devidas ao uso múltiplo de drogas e de outras substâncias psicóticas”, que “importa uma diminuição da culpa”. A atenuação especial da moldura abstracta da pena vem prevista no art.º 72 do CP, para além do mais, e no que para aqui interessa “quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente, ou a necessidade da pena”. No caso, a ilicitude da actuação da recorrente mostra-se evidente, e já foi objecto de caracterização. A necessidade de aplicação da pena, ainda que a cumprir “em internamento destinado a inimputáveis”, mostra-se também evidente perante a gravidade da conduta e a especial perigosidade revelada na mesma. Quanto à culpa, a sua diminuição representada pela redução da capacidade de se determinar de acordo com a avaliação do mal do crime e da perigosidade da actuação, não pode conduzir — tal como entendido na decisão recorrida — a uma atenuação especial da pena, considerada a gravidade global dos factos e respectivo grau de ilicitude. Nem o recurso — que se centra na desqualificação do crime — fornece, aliás, argumentos válidos a esse respeito, limitando-se a, com a mesma motivação, pretender, também, essa atenuação especial. Improcede o recurso também neste segmento. * Medida da pena Tal como já referido, pretende-se “uma pena situada perto do meio da moldura penal aplicável”, “nunca superior a três anos e seis meses de prisão”. A argumentação é quase nula a este respeito, partindo-se sempre da premissa da desqualificação do crime. Tendo presente a moldura abstracta aplicável — entre 2 anos, 4 meses e 24 dias de prisão e 16 anos e 8 meses de prisão —, considerando, por um lado, o grau de ilicitude dos factos (referenciado pelo modo e circunstâncias da sua execução e gravidade das suas consequências na vítima); as consideravelmente elevadas exigências preventivas especiais (derivadas do seu percurso de vida, com “consumo de substâncias psicoativas (haxixe) a partir dos dez anos e de cocaína a partir dos catorze anos de idade, referindo também consumo de crack” e “elevada probabilidade de repetição dos factos típicos”); e gerais (representadas a necessidade de manter a validade das normas que protegem o bem jurídico máximo: a vida humana); e por outro, como atenuante, a redução da culpa representada pela diminuição da capacidade de se determinar de acordo a avaliação do mal da conduta (a imputabilidade diminuída), a pena de 5 anos e 6 meses de prisão a cumprir “em internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena” (considerando a perigosidade manifestada), não requer qualquer diminuição. Em conclusão, e por estas razões, o recurso mostra-se totalmente improcedente. * Nos termos relatados, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso, interposto para este Supremo Tribunal, em representação da recorrente AA. Mantém-se o Acórdão recorrido. * Custas pela recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 5 UC’s. * Lisboa, 09/10/25 José Piedade (Relator) Jorge Gonçalves Celso Manata |