Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SALVADOR DA COSTA | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO CLÁUSULA GERAL AMBIGUIDADE NULIDADE DE CLÁUSULA INEXISTÊNCIA JURÍDICA FURTO QUALIFICADO CASA DE HABITAÇÃO ÓNUS DA PROVA INDEMNIZAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ20080207047727 | ||
Data do Acordão: | 02/07/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | 1. Não está afectada de ambiguidade ou nulidade a cláusula geral incluída em contrato de seguro multi-riscos habitação reportada ao conceito de furto qualificado densificado pela expressão “apropriação ilegítima de coisa alheia através de destruição ou rompimento de obstáculos, escalamento ou utilização de outras vias que não as destinadas a servir de entrada ao local onde ela se encontre, ou emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes que tenha deixado vestígios materiais inequívoco ou sido constatado por inquérito policial”. 2. O modo como devia ser revelada a entrada na casa de residência da recorrente por via de chaves falsas, gazua ou instrumento semelhante, incluindo a averiguação em inquérito policial, não integra o conceito de condição impossível. 3. No quadro da sua liberdade contratual, nos limites da lei, podem as partes incluir nos contratos de seguro de coisas as cláusulas que entenderem, independentemente de as haverem decalcado total ou parcialmente de normas constantes da globalidade do ordenamento jurídico, incluindo o penal, pelo que a mencionada sob 1 não está afectada de inexistência jurídica. 4. Incumprido pela segurada o ónus de prova dos factos relativos à dinâmica da entrada de outrem na sua casa de residência para cometer o furto, nos termos da referida cláusula contratual, não pode impor à seguradora que a indemnize do dano derivado da perda de coisas objecto da subtracção fraudulenta | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I AA intentou, no dia 13 de Outubro de 2004, contra VV - Seguros, S.A., acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 49.924,32, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos. Fundou a sua pretensão no furto de objectos com o valor de € 49.924,32 da sua casa de residência, no dia 22 de Setembro de 2002, em contrato de seguro multi-riscos habitação celebrado com a ré e na recusa desta de lhe pagar aquele montante. A ré, na contestação, afirmou não haver vestígios de arrombamento, pôs em causa a ocorrência do sinistro, e pediu a condenação da autora com base na litigância de má fé no pagamento da indemnização no montante correspondente a vinte unidades de conta. A autora, na réplica, negou o afirmado pela ré relativamente ao sinistro e expressou imputar à ré a litigância de má fé. Realizado o julgamento, as partes alegaram de direito e, no dia 19 de Janeiro de 2007, foi proferida sentença, por via da qual a ré foi condenada a pagar à autora a quantia de € 130, acrescida de juros de mora, relativos à substituição da fechadura da porta da sua casa e no que se liquidasse relativamente às coisas que se provassem ter sido objecto de subtracção. Apelou a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 5 de Julho de 2007, revogou a referida sentença, absolvendo a apelante do pedido, sob o fundamento de a apelada não ter provado a entrada ilícita na sua casa de residência. Interpôs a apelada recurso de revista, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação: - é nula a cláusula que define o conceito de furto qualificado, por integrar uma condição impossível, nos termos dos artigos 12º, 15º e 20º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro; - é uma cláusula ambígua, por modificar um conceito previsto no Código Penal, em cuja interpretação, na dúvida, nos termos do artigo 11º 20º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, deve relevar o sentido mais favorável ao aderente; - à recorrente não podem ser impostos deveres de investigação criminal próprios das autoridades policiais e judiciais, mas tão só participar o sinistro e promover a abertura do inquérito, o que cumpriu; - ao admitir o uso de chave falsa sem mais definições, a recorrida tem de aceitar a aplicação do conceito legal previsto na alínea f) do artigo 202º do Código Penal; - a utilização de chave falsa, conforme conceito legal, permite a entrada em portas fechadas no trinco, sem deixar vestígios, sendo considerada chave falsa a verdadeira quando utilizada ilegitimamente; - é materialmente impossível que a utilização de uma chave falsa deixe vestígios materiais inequívocos ou que tal facto seja constatado em inquérito por autoridade policial; - as portas podem ser abertas por via de utilização de objectos que, deslizando pela fechadura, movimentam o trinco sem deixar vestígio; - o não apuramento sobre se a entrada na residência ocorreu mediante chave falsa, gazua ou instrumento semelhante não permite concluir no sentido da incúria dos residentes e exoneração da responsabilidade da seguradora; - na dúvida quando ao modus operandi do furto qualificado, como ocorreu a entrada na residência, perante a certeza da sua ocorrência, face às alíneas a) e e) do nº 2 do artigo 204º do Código Penal, cabe à recorrida provar os factos que a desonerem da responsabilidade de indemnizar; - os seguros cobrem os sinistros, ainda que decorrentes de negligência, o que não ocorre no caso nem foi alegado em sede própria, pelo que a recorrida não está exonerada de responsabilidade; - ainda que assim fosse, cabia à recorrida provar a incúria que a desresponsabilizasse do pagamento, nos termos do artigo 342, nº 2, do Código Civil; - o conceito de furto qualificado indicado pela recorrida impõe às autoridades policiais um tipo de procedimento na condução e redacção dos inquéritos e relatórios; - tal procedimento penaliza os segurados por a documentação emitida pelas autoridades policiais, apesar de atestar e confirmar a verificação do furto, não o fazer nos moldes que a seguradora entende adequados; - ocorreu um furto qualificado na casa da residência da recorrente, está coberto pela apólice de seguro, e os danos devem ser objecto de indemnização, pelo que deve ser concedida revista. Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão de alegação: - as condições gerais do seguro multi-riscos habitação foram autorizadas pelo Insituto de Seguros de Portugal; - o conteúdo, âmbito e delimitações da garantia de furto qualificado está padronizado e é extensível a todas as seguradoras; - a sua amplitude é extensível a todo o acto cometido com destruição ou rompimento de obstáculos ou mediante escalamento ou utilização de outras vias não destinadas a servir de entrada natural ao local onde se encontrarem os bens cobertos ou mediante o emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes desde que a utilização destes meios tenha deixado vestígios materiais inequívocos ou que tenham sido constatados por inquérito policial; - o requisito comum para que haja enquadramento na garantia é que se verifique a destruição ou rompimento de obstáculos, mesmo no caso de utilização de chave falsa, gazua ou instrumento semelhante; - à falta de vestígios materiais inequívocos tem de ser constatado por inquérito policial; - há clausulado que garante situações de negligência, ma essa garantia têm em conta o interesse de terceiro, da vítima, do beneficiário e não o do próprio segurado; - quando em casos especiais se garante a negligência, está contratualmente afastada da cobertura a negligência grave ou grosseira, pelo que não pode proceder a generalização operada pela recorrente; - os seguros servem para providenciar o sinistrado dos danos sofridos, estimulando e reconhecendo os comportamentos diligentes e de cuidado, não dando cobertura a comportamentos de risco e irresponsáveis; - a condição de furto qualificado e de ser constatado por inquérito policial serve para controlar as situações menos claras; - dado o controle dispensado à actividade seguradora, que tem em conta a defesa do consumidor e dos segurados no seu conjunto, as regras pré-existentes legitimamente disciplinam e combatem acções de risco e fraudes; - o evento tem de conter os contornos definidos na apólice portadores da sua essencialidade caracterizadora; - o clausulado indica as provas que os segurados têm de apresentar em caso de sinistros; - a lei não proíbe que as seguradoras condicionem a regularização do furto qualificado na gestão do seu negócio, ao que nada foi objectado pelo Instituto de Seguros de Portugal; - não há dúvida interpretativa ou ambiguidade do clausulado e este não está em oposição ao Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro; - não é responsável porque a recorrente não logrou provar a forma de introdução na sua residência, se mediante emprego de chave falsa, gazua ou instrumento semelhante, nem afastou a hipótese de incúria dos residentes que tenham deixado a porta encostada ou aberta, e tinha o ónus de prova, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil; - a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, nos termos do artigo 516º do Código de Processo Civil. II É a seguinte a factualidade considerada provada no acórdão recorrido: 1. No dia 22 de Setembro de 2000, a autora e representantes da ré declararam por escrito, consubstanciado na apólice nº 00000000, celebrarem um contrato de seguro multi-riscos habitação, com início no mesmo dia, pelo prazo de um ano e seguintes, destinado a segurar a residência da primeira, sita na Avenida ..., nº.00, 7º. Direito, Amadora, no montante de 13 000 000$ e respectivos bens móveis – conteúdo – no valor de 15 000 000$, com as demais cláusulas constantes dos documentos de folhas 15 a 16 e 83 a 100. 2. Consta das condições gerais 1.4 ser o objecto do seguro os bens móveis ou imóveis expressamente designados nas condições particulares, entendendo-se por bens móveis o conjunto dos objectos de uso pessoal e uso doméstico afectos à habitação do segurado, bem como as benfeitorias e quaisquer outros bens descritos nas condições particulares, pertencentes à pessoa segurada. 3. E o sinistro ser qualquer acontecimento de carácter fortuito, súbito e imprevisto, susceptível de fazer funcionar as garantias do contrato, e como lesão material a ofensa que afecta qualquer coisa móvel, imóvel ou animal, provocando directamente um dano, e dano patrimonial o prejuízo que, sendo susceptível de avaliação pecuniária, pode ser reparado ou indemnizado. 4. Nos termos da cláusula 2.4.1., Secção I das Condições Gerais do Contrato, a ré garantia despesas ou danos sofridos nos bens seguros em consequência directa de perdas ou danos resultantes de roubo ou furto qualificado, quer o evento se tenha consumado, quer se tenha verificado a simples tentativa. 5. E da cláusula 1.4., para efeito do contrato, entende-se por furto qualificado o acto de apropriação ilegítima, para si ou para outrem, com intenção criminosa, de coisa alheia, cometido com destruição ou rompimento de obstáculos, ou mediante escalamento ou utilização de outras vias que não as destinadas a servir de entrada ao local onde se encontrem os bens seguros, ou mediante o emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes, desde que a utilização de qualquer destes meios tenha deixado vestígios materiais inequívocos ou sido constatada por inquérito policial. 6. No dia 3 de Outubro de 2003, entre as 16 horas e as 21 horas, pessoa, ou pessoas, cuja identidade não se apurou, introduziram-se - de modo que também não foi apurado - na residência da autora referida sob 1 e apropriaram-se ou danificaram os bens, tal como se mostra descrito nas relações juntas a folhas 30 a 31, 40 a 43 e 44 a 45, que pertenciam à autora, e alguns deles também ao seu marido - não se tendo logrado apurar o valor dos mesmos. 7. No dia 3 de Outubro de 2003, a autora apresentou queixa na Esquadra da Polícia de Segurança Publica da Reboleira por furto na sua residência ocorrido nesse mesmo dia, conforme documentos de folhas 18 e 20 a 25, e, pelas 21 horas e 15 minutos, dois agentes daquela Polícia deslocaram-se à sua residência, tendo elaborado o respectivo auto de notícia, registado sob o NUIPC 1067/03.5PCAMD. 8. A brigada de investigação da Polícia de Segurança Pública, especializada em inspecções lofoscópicas, esteve na residência da autora na manhã do dia 4 de Outubro de 2003 e, concluídos os procedimentos de investigação no local, os agentes informaram-na de que poderia proceder à remoção do lixo, arrumação do imóvel e substituição da fechadura, e, nesse mesmo dia, a autora procedeu à substituição do segredo da fechadura da porta de entrada da sua residência, no que despendeu o montante de € 130,00. 9. No dia 4 de Outubro de 2003, a autora comunicou à ré que se tinha verificado um assalto à sua residência e que tinham desaparecido diversos bens, e, por fax enviado no dia 6 de Outubro de 2003, comunicou-lhe que a sua residência “tinha sido assaltada” e elencou os objectos em falta, com o respectivo valor estimado, conforme documento de folhas. 30 a 32. 10. A ré vistoriou a residência da autora no dia 9 de Outubro de 2003, e, por carta datada de 13 de Outubro de 2003, esta comunicou àquela uma descrição pormenorizada dos objectos em falta elencados no fax referido sob 7 e acrescentou outros, com o respectivo valor estimado, conforme documento de folhas 40 a 43, e, por fax enviado a 17 de Outubro de 2003, a autora comunicou à ré uma descrição pormenorizada de alguns objectos referidos na aludida carta, conforme documento de folhas 44 a 46. 11. Por carta datada de 28 de Outubro de 2003, a ré comunicou à autora que iria encerrar o processo, sem direito a qualquer indemnização, dado não existirem quaisquer vestígios que confirmem a ocorrência de sinistro válido, conforme definido nas Condições Gerais da apólice. Além disso, e ainda com base na informação dos peritos, seria extremamente difícil, para não dizer impossível, que o “sinistro” ocorresse, nos moldes em que V.ª Exa. o participou”. 12. Correu termos no Departamento de Investigação e Acção Penal, junto do Tribunal de Instrução Criminal, o inquérito registado com o nº. 1067/03.5 PCAMD (06), em que foi denunciante a autora, contra desconhecidos, tendo sido proferido despacho de arquivamento em 15 de Outubro de 2003. III A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não direito a exigir da recorrida o valor que dela reivindica. Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e da recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática: - natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida; - está ou não a cláusula relativa ao furto qualificado afectada de ambiguidade? - está ou não a mencionada cláusula afectada de nulidade? - está ou não o dano da recorrente coberto pelo referido contrato? Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões. 1. Comecemos pela questão da natureza e dos efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida. O contrato de seguro é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante o pagamento, por outra, de determinado prémio, a indemnizá-la ou a terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo evento de risco. É um contrato consensual, porque se realiza por via do simples acordo das partes, e formal, porque a sua validade depende de redução a escrito consubstanciado na apólice a que se reporta o artigo 426º, proémio, do Código Comercial. É essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice, e, nas partes omissas, pelo disposto no Código Comercial (artigo 427º do Código Comercial). O seguro contra riscos pode ser feito sobre a totalidade conjunta de objectos ou totalidade individual de cada objecto, sobre parte da cada objecto, conjunta ou separadamente, sobre o lucro esperado ou sobre os frutos pendentes (artigo 432º do Código Comercial). As declarações negociais da recorrente e da recorrida constantes de II 1 a 3 integram um contrato de seguro de dano em coisas próprias, celebrado no dia 22 de Setembro de 2000, em que a última figura como seguradora e a primeira como tomadora do seguro. O objecto mediato do referido contrato de seguro é o dano até ao montante de € 139 663,41, sendo € 64 843, 72 relativo à própria casa de residência e € 74 819, 68 concernentes às coisas móveis integrantes do respectivo recheio. A garantia decorrente do mencionado contrato abrange as despesas ou danos sofridos nos bens seguros em consequência directa de perdas ou danos resultantes de roubo ou furto qualificado, consumado ou tentado. As obrigações decorrentes do mencionado contrato de seguro foram para a recorrente a de pagar o prémio convencionado, e para a recorrida a de indemnizar a primeira pelo dano convencionado, verificados os respectivos pressupostos de tempo, modo e lugar. Dir-se-á, em suma, dever a recorrida indemnizar a recorrente no caso de verificação do furto qualificado de bens móveis que se encontrassem no interior da casa de residência da última, a esta pertencentes, afectos à sua habitação e uso pessoal. 2. Prossigamos com a subquestão de saber se a cláusula relativa ao furto qualificado está ou não afectada de ambiguidade. Ignora-se quando foi adoptada para integrar os contratos de seguro do tipo do que está aqui em causa a mencionada cláusula. Confrontar-se-á com a lei relativa às cláusulas contratuais gerais que estava em vigor aquando da celebração do contrato de seguro em causa, ou seja, o Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei nº 220/95, de 31 de Agosto, e 249/99, de 7 de Julho. As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam (artigo 10º). As cláusulas contratuais ambíguas têm o sentido que lhes daria um contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real, e, na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente (artigo 11º). Vejamos então, a partir dos factos provados e das considerações de ordem jurídica que antecedem se ocorre ou não o mencionado vício de ambiguidade relativamente à mencionada cláusula. Há acordo das partes no que concerne ao teor das declarações negociais expressas no clausulado geral e particular do contrato de seguro em causa, mas não o há quanto ao seu sentido, a que a recorrente imputa a ambiguidade. Não obstante a limitação legal de sindicância da matéria de facto fixada pela Relação, pode este Tribunal operá-la, por estar em causa a determinação do sentido juridicamente relevante de declarações negociais segundo o critério estabelecido nos artigos 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1, do Código Civil (artigos 722º, n.º 2, e 729º, n.º 2, do Código de Processo Civil). A regra nos negócios jurídicos em geral é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante. A excepção ocorre nos casos em que não seja razoável imputar ao declarante aquele sentido declarativo ou o declaratário conheça a vontade real do declarante (artigo 236º, nº 2, do Código Civil). O sentido decisivo da declaração negocial é o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente e capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações negociais em causa foram produzidas. No que concerne aos negócios jurídicos formais, como ocorre no caso vertente, há, porém, o limite de a declaração não poder valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do Código Civil). Assim, o sentido hipotético da declaração que prevalece no quadro objectivo da respectiva interpretação, como corolário da solenidade do negócio, tem que ter um mínimo de literalidade no texto do documento que o envolve. Estamos no caso vertente perante um negócio jurídico oneroso e formal, pelo que o critério interpretativo segundo a impressão de um declaratário normal colocado na posição do real declaratário está limitado por um mínimo literal constante do texto das condições gerais e particulares do contrato consubstanciado na respectiva apólice. Na interpretação da vontade dos outorgantes podem relevar várias circunstâncias, designadamente os termos da apólice e da lei aplicável, as prévias negociações entre as partes, a qualidade profissional destas, a terminologia técnico-jurídica utilizada no sector e a conduta de execução do contrato. As declarações negociais ambíguas são aquelas que envolvem mais do que um sentido, ou seja, as que são significativamente imprecisas. A cláusula contratual em causa expressa por um lado, entender-se por furto qualificado o acto de apropriação ilegítima, para si ou para outrem, com intenção criminosa, de coisa alheia. E, por outro, que a apropriação deve ser cometida com destruição ou rompimento de obstáculos, ou mediante escalamento ou utilização de outras vias que não as destinadas a servir de entrada ao local onde se encontrem os bens seguros. E, finalmente, mediante o emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes, desde que a sua utilização tenha deixado vestígios materiais inequívocos ou sido constatada por inquérito policial. Assim, o conceito de furto qualificado constante da mencionada cláusula contratual envolve a apropriação ilegítima de coisa alheia através dos seguintes meios: - destruição ou rompimento de obstáculos, escalamento ou utilização de outras vias que não as destinadas a servir de entrada ao local onde ela se encontre; - emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes que tenha deixado vestígios materiais inequívoco ou sido constatado por inquérito policial. Perante o referido quadro declarativo, ao invés do que é alegado pela recorrente, não ocorre a duplicidade de sentido ou ambiguidade da cláusula contratual geral em causa. Com efeito, um declaratário normal, colocado na posição da recorrente como aderente real, ou mesmo da recorrida como proponente real, dela extrairia o único sentido que comporta, ou seja, aquele que lhe foi atribuído no acórdão recorrido. A conclusão é, por isso, no sentido de que a mencionada cláusula não está afectada de ambiguidade. 3. Atentemos agora sobre se a referida cláusula está ou não afectada de nulidade. A recorrente deriva a sua conclusão sobre a nulidade, além do mais, da circunstância de se não conformar com aquilo que se prescreve na lei penal a propósito do crime de furto qualificado. Conforme já se referiu, ignora-se quando a mencionada cláusula foi adoptada para integrar os contratos de seguro do tipo que está aqui em causa. Confrontar-se-á, por isso, com as normas da lei penal que se referem ao furto qualificado vigentes ao tempo da celebração do contrato de seguro em análise. A recorrente invocou a nulidade da cláusula que define o conceito de furto qualificado por integrar uma condição impossível ou ambígua por modificar um conceito previsto no Código Penal, com base no disposto nos artigos 11º, 12º, 15º e 20º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro. Prescreve a lei penal ser furto qualificado o que incidir sobre coisa móvel alheia penetrando em habitação por arrombamento, escalamento ou chaves falsas (artigo 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal). Além disso, expressa, nas alíneas d) a f) do artigo 202º do Código Penal, ser: - o arrombamento o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependentes; - o escalamento a introdução em casa ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada ou passagem; - as chaves falsas as imitadas, contrafeitas ou alteradas, as verdadeiras quando, fortuita ou sub-repticiamente, estiverem fora do poder de quem tiver o direito de as usar, as gazuas ou quaisquer instrumentos que possam servir para abrir fechaduras ou outros dispositivos de segurança. Por seu turno, consta da mencionada cláusula geral, por um lado, entender-se por furto qualificado o acto de apropriação ilegítima, para si ou para outrem, com intenção criminosa, de coisa alheia. Assim, para efeitos do contrato de seguro, a apropriação deve ser cometida com: - destruição ou rompimento de obstáculos, ou mediante escalamento ou utilização de outras vias que não as destinadas a servir de entrada ao local onde se encontrem os bens seguros; ou - emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes, desde que a sua utilização tenha deixado vestígios materiais inequívocos ou sido constatada por inquérito policial. Estamos, no que concerne à concretização do furto qualificado, perante uma cláusula contratual geral elaborada sem prévia negociação individual que a recorrida subscreveu e a recorrente aceitou, pelo que se lhe aplica o disposto no Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro. As cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma não nulas nos termos nele previstos, e são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé (artigos 12º e 15º). Nas relações com os consumidores finais e, genericamente, se não forem entre empresários ou entidades equiparadas, aplicam-se as proibições das secções anteriores e as constantes desta secção (artigo 20º). No nosso ordenamento jurídico, embora a liberdade contratual releve dos princípios constitucionais da igualdade e da liberdade a que se reportam os artigos 13º, 61º e 62º da Constituição, está, naturalmente, sujeita a alguns limites. A lei ordinária consagra uma das vertentes do princípio da liberdade contratual no artigo 405º, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou neles incluir as cláusulas que lhes aprouver (artigo 405º, n.º 1, do Código Civil). O referido normativo traça logo no começo a medida da limitação do princípio da liberdade contratual, em termos de a própria fixação do conteúdo contratual estar sujeita a restrições impostas pelas exigências da boa fé, da justiça real, da parte social ou economicamente mais fraca, da moral pública e dos bons costumes. Mas, em princípio, nada obsta a que as partes insiram no clausulado particular do contrato de seguro as declarações negociais que entenderem, desde que não contrariem o disposto em lei imperativa. O que releva no caso vertente, porque estamos perante um contrato estritamente formal, é a interpretação das respectivas cláusulas à luz das normas substantivas que regem sobre a matéria. A recorrente afirmou, a título de justificação da nulidade que invocou, a desconformidade da mencionada cláusula com normas penais incriminadoras do tipo de furto qualificado. As partes, a propósito da entrada na casa por via de emprego de chave falsa, de gazua ou de instrumentos semelhantes convencionaram que deviam ter deixado vestígios materiais inequívocos. A lei penal não exige para que se verifique o crime de furto qualificado que a mencionada acção de entrada na casa de referência por via da abertura portas ou outras estruturas com os referidos instrumentos tenham deixado vestígios materiais inequívocos, o que é natural, porque essas circunstâncias relevam essencialmente para efeitos de prova dos factos constitutivos do crime de furto qualificado. Conforme a recorrente alegou, a abertura de uma porta através da fechadura, por exemplo por via de chaves falsas, tal como a lei penal as caracteriza para efeito de qualificação do crime de furto, pode não deixar vestígios materiais. Referiu a recorrente, por isso, envolver a mencionada cláusula uma condição impossível. A condição é o acontecimento futuro e incerto a que as partes subordinam a produção de efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução, e, se for impossível, física ou legalmente, é nula, se for suspensiva e inexistente se for resolutiva (artigos 270º e 271, nº 2, do Código Civil). A condição é materialmente impossível se for desconforme com a própria natureza das coisas e jurídica se contrária à própria lei. Na cláusula contratual geral em causa, as partes convencionaram que, para efeitos de definição do sinistro, a referida entrada por algum dos mencionados meios, se não deixasse esse tipo de vestígios, fosse averiguada em inquérito policial. O modo como devia ser revelada a entrada na casa de residência da recorrente por via de chaves falsas, gazua ou instrumento semelhante não se integra no conceito de condição a que a lei se reporta, pelo que não faz sentido a qualificação de impossível. Acresce que, quanto a tal revelação, as partes convencionarem, para o caso de não resultarem vestígios materiais, o apuramento da utilização de algum dos mencionados instrumentos em inquérito policial, o que excluía a argumentação da recorrente da impossibilidade de verificação. E quanto à desconformidade da mencionada cláusula com o que se prescreve na lei penal a propósito do furto qualificado, não tem apoio legal a argumentação da recorrente, visto que, no quadro da sua liberdade contratual, nos limites da lei, as partes incluem nos contratos de seguro de coisas as cláusulas que entenderem, independentemente de as haverem decalcado de normas constantes da globalidade do ordenamento jurídico. A conclusão é, por isso, no sentido de que não estamos perante uma cláusula contratual impossível, nula ou inexistente. 4. Vejamos agora se o contrato de seguro causa é ou não susceptível de cobrir o dano invocado pela recorrente. Conforme acima se referiu, a recorrida vinculou-se, no confronto da recorrente, a indemnizá-la por virtude dos danos resultantes de furto de coisas qualificado na forma consumada ou tentada. Mas convencionaram, para esse efeito, que o furto qualificado envolvia a subtracção de coisas da recorrente com intenção criminosa por via destruição ou rompimento de obstáculos, de escalamento ou utilização de outras vias que não as destinadas a servir de entrada ao local onde se encontrem os bens seguros, ou mediante o emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes, desde que a utilização de qualquer destes meios tenha deixado vestígios materiais inequívocos ou tenha sido constatada por inquérito policial. A ignorância do meio utilizado para a entrada no interior da residência da recorrente não pode irrelevar para a definição da responsabilidade da recorrida decorrente do contrato de seguro em que outorgou. É certo que o objecto da garantia do contrato de seguro são, além do mais, bens móveis integrantes do recheio da casa de residência da recorrente e o risco é a eventualidade do prejuízo decorrente da sua subtracção fraudulenta. Todavia, a responsabilidade assumida contratualmente pela recorrida no confronto da recorrente depende da dinâmica do acesso à casa em que os bens subtraídos ou danificados se encontravam. Não foi apurado em inquérito policial o modo como a pessoa ou pessoas entraram na casa de residência da recorrente nem se para o efeito utilizaram algum dos mencionados instrumentos. Os factos provados apenas revelam que em determinado dia de Outubro de 2003, pessoa ou pessoas entraram na casa de residência da recorrente onde se apropriaram de bens e danificaram outros da titularidade dela e do seu cônjuge. O ónus de prova dos referidos factos, porque condicionavam a existência do seu direito de indemnização no confronto da recorrida, incumbia à recorrente (artigo 342º, nº 1, do Código Civil). A dúvida sobre os referidos factos deve, por isso, ser resolvida contra a recorrente, porque não cumpriu o mencionado ónus de prova (artigo 516º do Código de Processo Civil). A conclusão é, por isso, no sentido de que a recorrente não tem o direito de exigir da recorrida a indemnização que, com base no mencionado contrato de seguro, lhe veio pedir judicialmente. 4. Finalmente, a síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei. A recorrente e a recorrida, aquela na posição de tomadora e esta na posição de seguradora, celebraram um contrato de seguro denominado multi-riscos com cobertura de danos em coisas derivados de furto qualificado. Não é ambígua, nula ou inexistente por ser condição impossível a cláusula contratual geral caracterizadora do crime de furto qualificado por via dos elementos destruição ou rompimento de obstáculos, escalamento ou utilização de outras vias que não as destinadas a servir de entrada ao local onde se encontrem os bens seguros ou mediante o emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes, desde que a utilização de qualquer destes meios tenha deixado vestígios materiais inequívocos ou tenha sido constatada por inquérito policial. A recorrente incumpriu o seu ónus de prova dos factos relativos à dinâmica da entrada do agente ou dos agentes na sua casa de residência, pelo que a dúvida sobre esses factos tem de ser resolvida contra ela. Não tem, por isso, o direito de exigir da recorrida a indemnização convencionada no contrato de seguro. Improcede, por isso, o recurso. Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). IV Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas. Lisboa, 7 de Fevereiro de 2008. Salvado da Costa (relator) Ferreira de Sousa Armindo Luis |