Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | CONTRATO DE EMPREITADA OBRAS NOVAS INDEMNIZAÇÃO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ÓNUS DE ALEGAÇÃO CAUSA DE PEDIR PRINCÍPIO DO PEDIDO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
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Data do Acordão: | 03/02/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - No caso de impugnação da decisão da matéria de facto em sede de revista, tendo por base a faculdade excepcional e restritamente contemplada pelos arts. 674.º, n.º 3, 2.ª parte, e 682.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, não procede a impugnação se a valoração probatória do acórdão recorrido tiver sido baseada em regras de livre apreciação crítica ou se não se tiver verificado desrespeito pelas normas legais de consideração da força probatória de meio de prova. II - No âmbito da celebração de um contrato de empreitada, verificando-se a realização de “obras novas” (com «autonomia em relação às previstas no contrato»: art. 1217.º, n.º 1, do CC), sendo da iniciativa do empreiteiro e autorizadas ou consentidas pelo dono da obra, haverá dever de compensação ou indemnização do empreiteiro, em função das circunstâncias, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa (arts. 473.º e ss. do CC), da gestão de negócios (arts. 474.º e ss.) ou da acessão imobiliária (arts. 1340.º e 1341.º do CC), sem aproveitamento do regime predisposto pelo art. 1214.º do CC. III - Uma vez fundamentada a acção por solicitação do empreiteiro no incumprimento de pagamento do preço de “obras extra” em relação às obras convencionadas no contrato de empreitada, não pode o tribunal conhecer e decidir de uma obrigação de compensação ao empreiteiro que desencadeou tais obras, uma vez considerado aplicável o regime de restituição do enriquecimento sem causa (art. 473.º, n.º 2, do CC), mesmo que a título subsidiário (art. 474.º do CC), se tal não se encontrada plasmado na causa de pedir formulada na acção (art. 5..º, n.º 1, do CPC). | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. Nº 918/12.8TBCBR.C2.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação …….., …... Secção
Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I) RELATÓRIO 1. «Goldcentro, Construções, Lda.» intentou acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra AA e cônjuge mulher, BB, tendo como pedido a condenação dos Réus no pagamento da quantia global de 127.086,68 €, bem como dos respectivos juros de mora vincendo até integral pagamento. Alegou, em síntese, o acordo com os Réus para, no exercício da sua atividade, executar as obras de construção-remodelação da fachada da frente e de trás, assim como outras “extra orçamento”, no imóvel urbano de que os Réus são proprietários e de outras; executou todas as obras extra, que descreve, a pedido dos RR., com material e mão-de-obra incluída, as quais ascendem ao preço de 160.842,83€, acrescido do IVA à taxa legal; os Réus procederam ao pagamento parcial de algumas dessas obras, pagando várias facturas, no total de 59.500€, com IVA incluído, devendo à autora a quantia de 111.300,12€, acrescido de IVA à taxa de 6%. Os Réus apresentaram articulado de Contestação/Reconvenção, pugnando pela improcedência da ação e pedindo a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 59.500,00 a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de € 13.410,00 por danos não patrimoniais. Alegaram, em síntese: a Autora, no decurso da intervenção, destruiu a traça arquitectónica original do imóvel, contrariando o desejo de preservação de todo o edifício nas suas estruturas de origem; a Autora sempre se recusou a fazer qualquer outro orçamento envolvendo as restantes obras; as obras foram realizadas segundo os desígnios da autora, sempre para tentar resolver problemas criados pela mesma que, assim, multiplicava serviços para a sua empresa; a acção demolidora da Autora inviabilizou a candidatura que os réus haviam feito em fevereiro de 2008 ao programa PRAUD e que estes recebessem uma comparticipação de 50% nas obras de restauro da casa. Em sede de Réplica, a Autora impugnou a factualidade apresentada pelos Réus na sua reconvenção e pugnou pela improcedência desta. Os Réus apresentaram Tréplica, na qual mantiveram a posição do anterior articulado.
2. Foi proferido despacho saneador e realizada audiência final de discussão e julgamento. No decurso da tramitação, foi anulada a perícia efectuada nos autos por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação …. em 8/11/2016, conduzindo à anulação das alegações finais e da sentença, ordenando-se a realização de nova perícia e a conclusão da audiência.
3. O Juiz …. do Juízo Central Cível …… no Tribunal Judicial da Comarca ….. proferiu sentença em 15/2/2019, com o seguinte dispositivo: 4. A Autora e os Réus vieram então interpor recursos de apelação para o Tribunal da Relação …. (TR……). Foram identificadas como questões decidendas, quanto à apelação da Autora, a “1. Impugnação da matéria de facto – ponto 11 da matéria de facto dada como provada” e “2. Se ao valor das obras a que se refere o ponto 11, deve acrescer o valor do respetivo IVA”. No que respeita à apelação dos Réus, as questões sob escrutínio foram: “3. Nulidade da sentença”, “4. Impugnação da matéria de facto” e “5. Em caso de alteração da matéria de facto, se é de alterar a decisão recorrida”. Em acórdão proferido pelo TR….. em 26/11/2019, foi declarada improcedente a nulidade da sentença, foi julgada parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto – alterações dos pontos 2., 3. (corpo), 6., al. e), 9., 10., 11., 12., 13., 44., 52., 67., 77., dos factos provados, considerar os pontos 14., 62., 64., 65., 66., 78., 79., como factos não provados/eliminados, considerar/aditar os pontos 29. (modificado), 31., 36., 51., 67., 75. e 80. como factos provados –, revogada a decisão recorrida quanto ao pedido de condenação da Autora e mantida a decisão recorrida quanto ao pedido reconvencional dos Autores, concluindo-se com o seguinte dispositivo decisório: “1. Improcedente, a Apelação deduzida pela autora, 2. Parcialmente Procedente a Apelação deduzida pelos RR., na sequência do que: i) se revoga a decisão recorrida, julgando-se a ação improcedente e absolvendo os Réus do pedido; b) se confirma a decisão recorrida relativamente à improcedência da reconvenção.”
5. Inconformada, a Autora veio interpor recurso de revista para o STJ, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões: B. Fazendo, igualmente, um erro na apreciação das prova[s] e fixação dos factos materiais, em virtude de uma violação de lei do processo, já que se verifica a ofensa de disposições C. Começando por este segundo aspeto temos que... E. Tal violação consubstancia-se na valoração (ou falta dela) que foi feita: - Do depoimento de parte do A., - Da força dos documentos assinados pelos RR. e pagamento constantes dos documentos juntos aos autos, - Do resultado da peritagem efetuada. J. No que toca aos documentos assinados pelas partes e aos comprovativos de pagamento efetuados pelos RR. e juntos aos autos, fazem prova plena do que deles consta, não podendo dos mesmos retirar-se como provado algo diferente; K. Ora, dos documentos resulta o acordo (e não o consentimento) celebrado entre as partes, no que toca a algumas obras; L. Aliás, atenta tal situação e a não consideração da força probatória dos documentos, verifica-se uma contradição entre os factos provados nos pontos 12 e 52; M. O Tribunal recorrido não atendeu igualmente à força probatória do relatório pericial e do valor que dele consta, em termos de fixação de material e mão-de-obra, N. Pelo que desrespeitou as normas que regulam a força probatória destes meios de prova, concretamente o disposto nos artigos 607º n.os 4 e 5 e 463º n.º 1 do CPCivil. O. Entende a recorrente, como começou por alegar, que há, igualmente, no douto Acórdão uma violação da lei substantiva porquanto... 9°) Todas as obras referidas de 3° a 8o foram executadas entre o mês de Setembro de 2009 e 5 de Agosto de 2010, relativamente às quais a autora foi obtendo o consentimento dos RR., 10°) Os RR. aceitaram pagar o preço dos materiais constantes dos documentos de fls. 1382 e 1387, 11°) E o seu custo, contabilizando o material que foi fornecido pela autora e mão d obras ascendeu à quantia de 108.652,37€, mais IVA. 12°) Os RR. procederam a vários pagamentos por conta dessas obras, efetuando entregas num total de 68.5506. Q. Esta factualidade reporta-nos ao contrato de empreitada, ao disposto nos artigos 1211º e 883° do C. Civil. R. Na verdade, se o preço não estiver fixado por entidade pública e as partes não o determinarem, nem convencionarem, vale como preço aquele que é praticado, habitualmente, neste caso, pelo empreiteiro, S. Aliás, esse Venerando Tribunal tem entendido que: ..."Na empreitada o preço pode consistir numa quantia em numerário previamente fixado, ou pode ser convencionado qualquer outro modo para a sua fixação, desde que possibilite a sua determinação " (Acórdão do STJ, de 1982.07.20, BMJ, 319, página 273). T. Considerando igualmente que: ..."Há empreitada sempre que o objeto do respetivo contrato seja a realização de uma obra e ainda que o preço não esteja indicado com precisão"... (STJ 15-3-1974, in BMJ, 235°, 269). U. O contrato de empreitada caracteriza-se pelo facto de o empreiteiro se comprometer a um resultado, sem subordinação à direção do dono da obra, atuando segundo a própria vontade ajustado e sujeito à fiscalização do dono da obra. V. Na situação "sub judice" os recorridos consentiram na realização da obra, aceitaram parte dela porque a pagaram e, diariamente, conforme resulta do ponto 75 da matéria provada, a recorrida mulher ia à obra o que implica a sua fiscalização. W. Portanto, estão reunidas as condições para que se considere a existência do contrato de empreitada ou a aplicação das regras aplicáveis ao contrato de empreitada. X. Ainda que assim não se entendesse, e se considerasse a existência da obra nova, atendendo à matéria considerada provada, pugnamos pela existência de um novo contrato de empreitada, Y. Sendo que há jurisprudência que defende tal tipo de solução, como por exemplo, o Acórdão da Relação do Porto de 25/5/1995 que decidiu ..." Tratando-se de obras novas existe um novo contrato de empreitada a que se aplicam, em principio, as regras gerais do negócio, não havendo, assim, nenhuma subordinação necessária ao preço estipulado nem necessidade de documento escrito para a fixação do novo preço"... Z. Portanto o douto Acórdão violou o disposto nos artigos 1211º e 883° do C. Civil.”
6. Os Réus contra-alegaram, sustentando a confirmação do acórdão recorrido nos seus exactos termos e a improcedência da revista.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO Vistas as Conclusões da Recorrente, que delimitam o objecto submetido à apreciação em último grau de revista (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1, CPC), identificam-se as seguintes questões para decisão quanto à bondade do acórdão recorrido: — impugnação da decisão sobre a matéria de facto tendo por base a alegada violação das regras de direito probatório material nas modalidades previstas no art. 674º, 3, 2.ª parte, do CPC (com fundamento no art. 682º, 2, 2ª parte, CPC); — errada interpretação e aplicação da lei no que toca ao regime jurídico do contrato de empreitada. Foram preliminarmente dados como provados por acordo os seguintes factos:
“A) A A. é uma sociedade comercial que se dedica à construção civil. C) Foi acordado entre a A. e os RR que o pagamento das obras a executar pela A seria efetuado conforme o andamento e avanço das mesmas.”
São os seguintes os factos dados como provados, com a redacção que lhes foi dada depois da reapreciação da matéria de facto provada e não provada:
“1º) A A. deu início à realização das obras referidas em B) em 29.8.2009. 2º) A A. executou obras no mesmo imóvel que não constavam no orçamento referido em B). 3º) A nível de rés-do-chão a A. executou o seguinte: d) Demolição da casa de banho existente debaixo das escadas na área comercial; n) Execução de redes de esgotos de duas casas de banho, cozinha até ao coletor público; o) Colocação de redes de água nas zonas sanitárias e cozinha; q) Aplicação de pedra (Lioz) com os produtos necessários em todas as escadarias e patamares; r) Colocação de teto das escadas ao nível do rés-do-chão em placas de pladur, projetores embutidos e sua pintura final em tinta acetinada (fornecida pelo cliente). 4º) A nível do primeiro andar do imóvel a A. executou as seguintes obras extra orçamento, na casa de banho: c) Construção de uma parede em alvenaria do lado esquerdo de quem entra e no topo do wc; d) Recolocar paredes, bem como todo o seu revestimento em material cerâmico e pavimentos (revestimento fornecido pelo cliente, azulejo e mosaico); 5º) A nível do primeiro andar do imóvel a A. executou as seguintes obras extra orçamento, na cozinha nova: d) Recolocar todas as paredes da cozinha e sua despensa que substituiu a casa de banho; i) Pilares, vigas em betão armado, tarugos e paredes em alvenaria de tijolo; j) Revestimento em material cerâmico; l) Construção parcial do teto em placa de betão armado e vigotas de préesforçado; m) Colocação de rede de água. m) Colocação de porta nova na entrada do wc e no quarto do fundo do lado direito; n) Colocação das mesmas louças na casa de banho do 2º andar. 7º) A nível de fachada posterior a A. executou as seguintes obras extra orçamento b) Demolição de uma chaminé existente e que se encontrava no exterior do edifício; c) Construção de nova chaminé embutida dentro da parede de fachada; h) Colocação de forras nas ombreiras e peitoris em pedra vidrado polido; i) Colocação de uma janela em alumínio lacado a branco. 8º) Para lá de todas as obras extra alegadas anteriormente a A. ainda realizou as seguintes: (…) 21º) A estrutura em madeira da casa estava funcional. (…) (…) 29º) Em 11.12.2009 o réu constatou que o wc do primeiro andar não tinha qualquer piso, que as vigas e toda a estrutura em madeira que suportava o piso tinha desparecido, sem o consentimento e conhecimento prévios por parte do réu. 31º) Na sequência da intervenção da autora esta retirou também os tetos em madeira dos dois corredores, do quarto do 1º andar, do hall do segundo andar, do wc do segundo andar e do hall do wc do segundo andar e demoliu o piso em madeira do wc do primeiro andar. 36º) A autora cortou e retirou todas as pedras antigas existentes nas janelas da fachada posterior do edifício. (…) 43º) O telhado tinha sofrido obras de reparação e reconstrução antes da intervenção da autora. 44º) A autora desmontou toda a metade sul do telhado. (…) 47º) Os RR recusaram-se a efetuar mais pagamentos. 48º) Tendo a autora abandonado a obra. (…) 59º) Na instalação dos projetores a A. não utilizou caixas de derivação. 60º) A A. deixou um lance das escadas do quintal mergulhado no entulho. 60º[-A]) … comprometeu-se a fortalecer as escadas do quintal … 61º) No r/ch a tampa do compartimento com os contadores da água foi colocada ao contrário. 62º) A A. fez um rasgo na parede exterior em pedra e colocada uma manga vermelha. 63º) Foi feita uma candidatura ao programa Praud em 26/2/2008, aprovado em 9/5/2008, da qual a proprietária desistiu em 6/8/2010. (…) 67º) A atuação da autora, relativamente ao modo como decorreram as obras e o facto de ter abandonado a obra e de ter apresentado queixa contra os Réus na CMC, causou grandes incómodos aos réus. (…) 77º) Os RR. e acordaram com a A., na parte de trás, a colocação de beirado à portuguesa. (…)
3.1. Da violação das regras de direito probatório material na impugnação da decisão sobre a matéria de facto Vistas as Conclusões do Recorrente e, ainda que sumárias e escassamente fundadas à luz do exigível pelo art. 639º, 1, do CPC, apreendido o objecto recursivo, a «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado determinado meio de prova» (art. 674º, 3, 2ª parte, CPC) por parte do acórdão recorrido estaria consubstanciada na “valoração (ou falta dela) que foi feita: - Do depoimento de parte do A., - Da força dos documentos assinados pelos RR. e pagamento constantes dos documentos juntos aos autos, - Do resultado da peritagem efetuada” (cfr. Conclusão E).
3.1.1. O depoimento de parte da Autora é aqui invocado no que respeita à impugnação do facto provado 2. (v. Conclusão F, com referência à pág. 20 do acórdão recorrido) e respeita à coincidência do sustentado pelos Réus quanto à “ausência de pedido ou solicitação prévia da parte destes” na realização das “obras extra” que se discutem nos autos. Segundo a Recorrente, tendo sido o “representante legal” da Autora inquirido sobre “uma parte específica da matéria, concretamente a construção do telhado”, “o depoimento parcial e limitado (…) não pode produzir prova de confissão plena quanto a toda a matéria”; logo, na perspectiva recursiva, o acórdão recorrido “violou a força e as consequências da confissão do depoimento de parte”. O depoimento de parte como meio de obtenção de confissão judicial tem o seu regime previsto nos arts. 452º e ss do CPC (em contraponto ao mecanismo das “declarações de parte”, nos pressupostos delineados pelo art. 466º do CPC), visto em articulação com o regime geral da prova por confissão (arts. 352º e ss do CCiv.); seja, em primeira linha, sobre factos desfavoráveis, seja sobre factos que interessem à decisão da causa. Para que ocorra confissão (judicial, por essa via do depoimento) e se realize força probatória plena contra o confitente – de acordo com o art. 358º, 1, do CCiv. – é imprescindível que o depoimento se faça com a correspondente assentada, não bastando para esse efeito o simples facto de a audiência ser gravada (art. 463º, 1, CPC: «O depoimento é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória.»; nos termos do seus n.os 2 e 3). Neste âmbito, por um lado, sendo “confissão judicial não escrita”, esta é apreciada livremente pelo tribunal (art. 358º, 4, CCiv.); por outro lado, «o reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente» (art. 361º do CCiv.). Daqui resulta que o depoimento do representante orgânico da Autora – mobilizado a págs. 20-21 do acórdão recorrido – foi valorado no domínio da livre apreciação segundo o prudente critério do julgador, e não vinculado à força probatória plena de uma confissão judicial escrita, assumindo, sem valor confessório, um valor probatório relacional no contexto das demais provas[2], como se verifica na sindicação muito completa e exaustiva do facto provado 2. – que desembocou na sua modificação em relação ao assente pela 1.ª instância –, a respeito da averiguação da solicitação pelos Réus das obras “extra orçamento”, a págs. 14-31 (arts. 607º, 5, 662º, 1, CPC). Estamos, por isso, no domínio da irrecorribilidade determinado pelo art. 662º, 4, do CPC, e afastados da sindicação excepcional do art. 674º, 3, do CPC. Visto o acórdão recorrido na parcela relevante – págs. 37 e ss –, encontram-se na mira as facturas emitidas pela Autora, os cheques subscritos pelos Réus para pagamento e o “documento por si [Autora] elaborado e junto aos autos (Doc. 18 junto a fls. 1411)”, A sindicação da força probatória plena, alegada pelo Recorrente quanto ao aludido “acordo entre as partes”, implicaria convocar em primeira linha o art. 376º do CCiv. Posto isto, vejamos a motivação dos factos que foram objeto da impugnação do Recorrente. Sendo certo que, como acentuou ADRIANO VAZ SERRA no seu clássico escrito sobre estas matérias, a eficácia probatória dos documentos particulares “diz respeito somente à materialidade das declarações nele feitas ou dos factos neles referidos, não aos efeitos jurídicos que essas declarações ou factos possam produzir”[5]. Ora, vista essa motivação quanto aos factos provados 12. e 52. por um lado: “Constata-se, contudo que, do elenco dos cheques por si contabilizados, se encontrarão também os cheques igualmente destinados ao pagamento das obras orçamentadas. Somados os valores que os Apelantes indicam corresponder a obras orçamentadas obtemos um valor de 13.100 €, valor este que, além do mais, a autora admite ter recebido, como se pode constatar do documento por si elaborado e junto aos autos (Doc. 18 junto a fls. 1411). Assim sendo, e subtraindo este valor ao valor dos pagamentos totais efetuados pelos Apelantes (81.650€), atingiremos o valor de 68.550 € pago por conta das obras “extra orçamento”. Assim sendo, e subtraindo este valor ao valor dos pagamentos totais efetuados pelos Apelantes (81.650€), atingiremos o valor de 68.550 € pago por conta das obras “extra orçamento”.”; por outro lado: “Ora, reconhecendo os Apelantes, no quadro de pagamentos que apresentam na impugnação que deduzem à matéria do ponto 12, que dos vários pagamentos que efetuaram 13.100 € se destinaram ao pagamento das obras orçamentadas (valor de 13.100,30 €, na tese da A.), poderemos ter por provado que os RR. terão procedido a entregas por conta dos trabalhos “extra orçamento” no valor de 68.550,00 €. Quanto ao valor das faturas pagas pelos Réus, os Apelantes remetem para os cheques juntos aos autos, sendo que os próprios peritos, no cálculo do valor estimado das obras tiverem em consideração o valor dos materiais pagos pelos Réus, sendo de deferir, nesta parte, a pretensão dos Apelantes.” –, verifica-se tão-só, quanto à consideração probatória dos documentos alegados para efeitos do apuramento das quantias pagas pelos Réus como contrapartida das obras efectuadas, uma apreciação sem desconformidade legal de força probatória e feita em regime de prova livre e “não tarifada”, se e enquanto tal insindicável de acordo com os arts. 674º, 3, e 662º, 4, do CPC.
Assim, improcede a revista no que respeita às Conclusões B a N. No entanto, o acórdão recorrido da Relação …., confrontado com a modificação dos factos provados 2., 9 e 10., chegou a enquadramento jurídico diverso e conclusão decisória que inverteu a condenação dos Réus. Assim discorreu (com os pontos por nós agrupados): “A atuação da Autora iniciou-se na sequência da celebração de um contrato de empreitada entre a autora e os Réus para a execução dos trabalhos orçamentados e elencados no Doc. 1 junto com a P.I., a executar num prédio dos Réus, obras estas orçamentadas no valor de 13.000,00 €, mais IVA. Contudo, não só a autora não executou na sua totalidade as obras orçamentadas, como veio a executar uma série de obras “extra”, a que atribui unilateralmente o valor de 160.842.83 €, pedindo a condenação dos Réus no pagamento da quantia de 117.972,12 €, correspondente à diferença entre o valor de 59.500 € que os Réus já lhe teriam entregado por conta de tais “trabalhos extra” e o seu custo global. Tal conflito remete-nos para o regime das alterações e obras novas no âmbito do contrato de empreitada, e que se acham reguladas nos artigos 1214º e 1217º do Código Civil (CC). Como salientam Pedro Albuquerque e Miguel Assis Raimundo [Direito das Obrigações, Contratos em Especial – Contrato de Empreitada”, Vol. II, Almedina 2012, pp. 341-342.], suscitando o processo de execução de uma obra, nos moldes de um plano previamente estabelecido, desafios particulares, gerados, quer pela normal existência de discrepâncias entre as estimativas e a realidade, quer pela desigualdade de preparação técnica entre o empreiteiro e o dono da obra, quer ainda, pela atribuição ao dono da obra de uma, também normal, possibilidade de mudar de ideias sobre o plano, a generalidade dos Direitos possui uma regulamentação específica para as alterações ao plano convencionado na empreitada. Segundo tais autores, a simples remissão para as regras gerais (artigo 406º/1) tornaria rígido um contrato que se pretende flexível, pois o resultado visado deve, acima de tudo, satisfazer o interesse, as necessidades do dono da obra. O Código Civil sujeita as alterações ao plano convencionado (em sentido lado) a diferentes regimes consoante as obras constituam “alterações” ao objeto do contrato (em sentido estrito) ou trabalhos extracontratuais – “alterações posteriores à entrega” e “obras novas”, apontando como critério diferenciador entre alterações e obras novas, a circunstância de estas possuírem autonomia em relação às previstas no contrato – nº 1 do artigo 1217º. O artigo 1217º estabelece um regime específico para as alterações posteriores à entrega e para as obras novas, devendo distinguir-se consoante são (i) da iniciativa do empreiteiro ou (ii) do dono da obra. Se for o dono da obra a exigi-las, não fica o empreiteiro vinculado à sua realização. Quando estas alterações sejam da iniciativa do empreiteiro, poderá o dono da obra recusá-las. Em tal caso, pode exigir a sua eliminação (se possível) e uma indemnização pelos prejuízos causados, a ser arbitrada nos termos gerais (artigo 1217º, nº 2). Todavia, o dono da obra pode aceitar estas alterações. Neste caso, tem a doutrina entendido dever o empreiteiro ser compensado, consoante a situação em concreto: por via do enriquecimento sem causa (arts. 473º e ss), da gestão de negócios (arts. 474º e ss), ou da acessão industrial imobiliária (arts. 1340º e 1343º).”;
(ii) “As obras que fizeram parte do contrato de empreitada celebrado entre a Autora e os Réus e a que se reporta o Orçamento datado de 09-08-2009 (Doc.1 junto com a P.I.) respeitavam, única e exclusivamente, à “Remodelação das fachadas da frente e de trás do edifício nº 20”, orçamentadas no valor de 13.000,00 € mais IVA. A exigência da forma escrita assenta na constatação de que, “no caso de alterações ao projeto da obra, são mais fáceis os expedientes do empreiteiro lesivos dos interesses do dono da obra do que no momento do contrato originário: o empreiteiro que procura obter a conclusão do contrato pode mostrar-se pouco exigente nesta fase e, uma vez celebrado o contrato, recorrer a tais expedientes” [ADRIANO VAZ SERRA, “Empreitada”, BMJ nº 145, Abril 1965, p.95-96.]. Se o dono da obra, apesar de na obra terem sido executados trabalhos extracontratuais ou introduzidas alterações depois da entrega, aceitar a obra e retirar vantagens da atividade extracontratual do empreiteiro, deverá compensar a contraparte nos termos do enriquecimento sem causa, ou noutros termos que couberem [ADRIANO VAZ SERRA, Empreitada”, p. 127. Segundo PEDRO ROMANO MARTINEZ, a compensação basear-se-á, consoante os casos, nas regras de um contrato de empreitada, ou nos institutos da gestão de negócios (arts. 464º ss.), da acessão (arts. 1340º e 1341º) ou do enriquecimento sem causa (arts. 437º ss), sendo de aplicar as regras do contrato de empreitada, no caso de o comitente estar disposto a receber a obra nova, podendo considerar-se que há aceitação da proposta de um novo contrato de empreitada, apresentada pelo empreiteiro: Contrato de Empreitada, Almedina, p. 147-148.]. No artigo 8º do anteprojeto de Vaz Serra propunha-se que se o dono da obra aceitar ou aprovar os trabalhos e deles tirar proveito, “fica obrigado, para com o empreiteiro, de harmonia com os princípios do enriquecimento em causa”. Esta segunda parte foi eliminada porque, segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “se em certos casos pode justificar-se esta solução, já não se legitima noutros; tudo depende da figura jurídica que tiver ocorrido. Pode, por ex., ter havido uma gestão de negócios por parte do empreiteiro, a que se devam aplicar as disposições dos artigos 464º e seguintes. Pode ter havido uma acessão de boa-fé ou de má-fé a que sejam aplicáveis as disposições dos artigos 1340º ou 1341º. Pode a aceitação da obra corresponder à aceitação de uma proposta contratual. E pode verificar-se apenas um enriquecimento sem causa a que devam ser aplicadas, diretamente, as disposições dos artigos 473º e seguintes, sem necessidade de preceito especial que as determine. O que importava que a lei dissesse, para evitar que o dono da obra ficasse sujeito a despesas e encargos com que não contava, é que este tinha sempre o direito de recusar a obra e de pedir uma indemnização. Aceitando-a sem pedir a eliminação das alterações ou da obra nova, ou sendo impossível a sua eliminação, há que procurar, para cada caso, conforme as circunstâncias de facto, o regime que lhe couber” [Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora – 1986, p.813, nota 4.]. No caso em apreço, encontra-se demonstrado que as obras “extra contrato” foram executadas por iniciativa do empreiteiro e que os Réus nelas foram consentindo, fazendo pagamentos por conta das mesmas, num total de 68.550,00 € e suportando em materiais a quantia de 12.597,50 €. No dia 5 de agosto de 2010 o gerente da autora pediu aos Réus o pagamento de mais 10.000,00 €, que os réus se recusaram a pagar e a autora abandonou a obra nesse mesmo dia (e foi apresentar queixa contra os Réus por ilegalidade das obras junto da CMC). Assim sendo, em nosso entender, a autora teria direito, quando muito, não ao preço unilateralmente por si fixado e que aqui se encontra em cobrança mas, única e eventualmente, a uma compensação por enriquecimento sem causa. E dizemos que, eventualmente, teria direito a uma compensação por enriquecimento sem causa, porquanto, tal compensação sempre se encontraria dependente da aceitação da obra, aceitação que nem sequer se encontra demonstrada: De qualquer modo, ainda que considerássemos que, apesar de a autora ter abandonado a obra, os Réus a tenham aceitado no estado em que se encontrava, e uma vez não ter ficado demonstrado que tais obras tenham sido realizadas “a solicitação dos réus”, a autora teria direito a uma compensação por enriquecimento sem causa.
Neste contexto, consideramos que a Relação analisou com a necessária profundidade a questão aberta pela impugnação da Recorrente, sendo dada resposta negativa, com adequada e consistente argumentação em prol da subsunção da matéria de facto ao direito aplicável. Assim, encontrando-se o acórdão recorrido suficientemente fundamentado – em particular, quanto à articulação do regime dos arts. 1214º a 1217º e à aplicação dos arts. 473º e 479º respeitantes ao regime do enriquecimento sem causa –, depois da nevrálgica alteração da matéria de facto, promovida pela Relação no exercício da competência prevista no art. 662º, 1, do CPC – em relação ao provado pela 1.ª instância –, adere-se ao transcrito para os devidos efeitos de confirmação, de acordo com o previsto pelo art. 663º, 5, 2ª parte, ex vi art. 679º, do CPC. Deve apenas acrescentar-se que, estando a pretensão da Autora/Recorrente retirada da disciplina legal da empreitada, não se pode aplicar o regime do art. 1211º do CCiv., com remissão para o art. 883º do mesmo CCiv., tal como se pretende. A obrigação eventual de ser ressarcido de eventuais “obras novas” consentidas pelos Réus estaria contemplada pelo art. 473º, 2, no contexto de subsidiariedade imposta pelo art. 474º do CCiv[6], e não foi alegada com tal abrigo, nem sequer a esse título subsidiário[7].
Improcedem, nesta linha, as Conclusões P a Z com a que Recorrente finalizou as suas alegações de recurso.
III. DECISÃO
Em conformidade, acorda-se em negar provimento à revista.
Custas pela Recorrente.
STJ/Lisboa, 2 de Março de 2021
Ricardo Costa (Relator)
Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este Colectivo.
António Barateiro Martins
Ana Paula Boularot
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)
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