Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MÁRIO BELO MORGADO | ||
Descritores: | JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO INFRAÇÃO DISCIPLINAR DEVERES LABORAIS DEVER DE RESPEITO DEVER DE LEALDADE DEVER DE ZELO DANO | ||
Data do Acordão: | 04/19/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Sumário : | I- O dever de lealdade inclui um dever de honestidade, que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual. II- Dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, em regra assume especial significado a violação do dever laboral de lealdade,. III- nscrever em parede das instalações interiores da empresa empregadora a expressão “abaixo as cunhas” viola, grave e culposamente, os deveres laborais de respeito, de lealdade e de conservar e bem utilizar os bens afetos à atividade laboral. IV- Tendo em conta a imagem global dos factos, incluindo todas as suas circunstância e consequências, conclui-se – à luz de critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade – que com a sua conduta o A. tornou prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral. | ||
Decisão Texto Integral: | Revista n.o 23135/20.9T8LSB-A.L1.S1 MBM/JG/RP Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça I. 1. AA intentou ação especial de impugnação de despedimento contra RTP – Radio e Televisão de Portugal, que foi julgada improcedente na 1.a instância (sendo declarada a licitude do despedimento). 2. Interposto recurso de facto e de direito pelo A., o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), embora alterando significativamente a factualidade provada, negou provimento à apelação e confirmou a decisão recorrida. 3. O A. interpôs recurso de revista, o qual foi admitido, por se ter entendido que a valoração jurídica levada a cabo nas duas decisões é essencialmente distinta, tendo em conta a importante diversidade dos quadros factuais considerados. 4. A R. contra-alegou. 5. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser concedida a revista, em parecer a que as partes não responderam. 6. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.o, n.o 2, in fine, do CPC1), em face das conclusões da alegação de recurso, as questões a decidir2 são as seguintes: i) se a condenação assenta em prova testemunhal “incongruente e contraditória”, tendo sido infringido o princípio da presunção da inocência, previsto no art. 32.o, n.o 2, da CRP; ii) se existe justa causa de despedimento. E decidindo. II. 7. A matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido é a seguinte:3 1. Durante o mês de janeiro de 2020, nas instalações da Ré, apareceram escritos feitos com um spray com o seguinte teor: “abaixo as cunhas”. (redação do TRL4) 2. (...) (Eliminado pelo TRL5) 3. (...) (Eliminado pelo TRL6) 4. Em 03/01/2020, foi encontrado o escrito referido em 1 nos elevadores n.o 6 e no 9. (redação do TRL7) 5. E ainda na parede do 2.o piso, situada junto à saída do elevador n.o 9. 6. Em 04/01/2020, foi encontrado o escrito referido em 1 no WC masculino 2A-08. (redação do TRL8) 7. Em 11/01/2020, foi encontrado o escrito referido em 1 no WC masculino 2A-08. (redação do TRL9) 8. Em 13/01/2020, foi encontrado o escrito referido em 1 no elevador n.o 7. (redação do TRL10) 9. Em 14/01/2020, foi encontrado o escrito referido em 1 na parede do hall do elevador n.o 9, no piso 2. (redação do TRL11) 10. Bem como no hall das escadas do piso 1A 11. E ainda numa das paredes das escadas que ligam os serviços clínico ao refeitório. 12. Em 15/01/2020, na zona de acesso ao bar (ao lado do parque), foi encontrada uma pintura feita com spray. (redação do TRL12) 13. Em 15 /01/2020, foi encontrado o escrito referido em 1 no elevador n.o 8. (redação do TRL13) 14. Em 27/01/2020, voltou a ser encontrado o escrito referido em 1, que dizia “abaixo as cunhas”, na parede da antecâmara da porta .A-CF-.., tendo sido necessário desligar o elevador n.o 9. (redação do TRL14) 15. Bem como no WC 2A-08 (redação do TRL15) 16. Em 27/01/2020, cerca das 21 horas, quando já tinha iniciado a inscrição da expressão - “abaixo as cunhas” - na parede que fica junto do WC situado no piso - 1D, ou seja, no patamar intermédio das escadas que ligam a zona dos serviços clínicos ao refeitório, o A. foi surpreendido pelo Senhor BB, que saiu daquele WC e o viu a guardar a lata de spray. (redação do TRL16) 17. Questionado sobre o que se passava, o A. não respondeu, desceu de imediato as escadas, guardou a lata de tinta na mala e ficou aposta na parede apenas “abaix”. 18. A conduta supra descrita levou a que a R. tivesse de proceder a paragens de elevadores, e à pintura de paredes. 19. No dia 4 e ... de ... de 2020 o A. esteve de folga. 20. No registo disciplinar do A. existem três sanções disciplinares registadas aplicadas em ..., ... e ...; 21. Desde a sua admissão o A. permanece com a categoria de jornalista redator com o grau de desenvolvimento I; 22. Ao longo dos anos o A. fez, em número, ano, mês, intervenientes, quantidade não apurada, nem especificidade apurada, alguns trabalhos de editouoticiários, repórter, animação de cabine com locução, coordenador de debates e entrevistas, repórter de eventos nacionais e internacionais, cobertura jornalística de eventos, enviado ao estrangeiro em eventos da ..., autor de um programa “rostos da ...” que veio a tornar-se num livro o qual não foi comercializado, produtor executivo de um programa monte da virgem, no centro de produção do ..., com o nome as “dez” durante dois anos concretamente não apurados, e entrou na RTP com experiencia em jornalismo no jornal de noticias e no primeiro de .... 23. O A. é uma pessoa doente e esteve de baixa médica durante longos períodos, e, além de outros, de ... a 2019. 24. Em ..., uma médica, Dra CC, propôs alterações no trabalho do A. na R. por forma a aliviar a sua situação de saúde e stress emocional. 25. A doença do A. conduziu-o a diversas situações de urgência hospitalar, e quando deixou de trabalhar a sua saúde piorou, tendo-se com o despedimento notado um agravamento do seu estado de saúde. III. a) – Se a condenação assenta em prova testemunhal “incongruente e contraditória”, tendo sido infringido o princípio da presunção da inocência, previsto no art. 32.o, n.o 2, da CRP. 8. Como se sabe, ao STJ está à partida vedado alterar o decidido pelo Tribunal da Relação no plano dos factos (cfr. art. 662.o, n.o 4, do CPC17). Com efeito, “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (art. 674o, no 3, do mesmo diploma), ou, em geral qualquer erro de direito no plano da fixação dos factos materiais da causa. Ao Supremo Tribunal está, pois, vedado conhecer da matéria suscitada pelo recorrente quanto à apreciação da prova testemunhal, sendo certo que manifestamente improcede a invocada infração ao princípio da presunção da inocência, que é a única alegação que neste âmbito se situa no plano das regras e princípios jurídicos. 9. Com efeito. Esta Secção Social já se pronunciou sobre a incidência do princípio da presunção de inocência no procedimento disciplinar laboral, nos seguintes termos: – O procedimento disciplinar laboral, pese embora a sua natureza privada e o facto de ser levado a cabo por um dos sujeitos de uma relação jurídica obrigacional (que visa realizar fins próprios/privados) e que culmina sempre num “ato de parte”, poderá considerar-se um processo (em sentido amplo) de natureza sancionatória, enquanto conjunto ordenado de atos dirigido à eventual aplicação de uma sanção, sendo-lhe, por isso, extensíveis os direitos de audiência e de defesa, constantes do art. 32.o, n. o 2 da CRP. (Ac. do STJ de 04.07.2018, Proc. n.o 235/16.4T8VLG.P1.S1). – O princípio da presunção de inocência, consagrado no n.o 2 do artigo 32.o da Constituição da República Portuguesa, tendo a sua projeção plena no âmbito do apuramento da responsabilidade criminal, a efetuar em procedimento que se caracteriza por não ser um processo de partes e do qual está afastada a imposição ao arguido de qualquer ónus probatório, não vigora, com o mesmo alcance, em processos sancionatórios emergentes do incumprimento de deveres inseridos em relações jurídicas de carácter obrigacional, relativamente aos quais, a lei fundamental (n.o 10 do referido artigo 32.o) apenas exige que sejam assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa (Ac. de ........2008, Proc. n.o 718/08). Como concludentemente refere o Exmo Procurador-Geral Adjunto, no seu Parecer: “Dúvidas não temos que o recorrente não tem a qualidade de arguido nos presentes autos, da mesma forma que também parece inexistirem dúvidas quanto ao facto de nos encontrarmos no âmbito de um processo de natureza cível. É verdade que tem sido entendimento dominante que ao procedimento disciplinar, porque tem uma natureza sancionatória, devem ser aplicadas as garantias previstas em processo penal [acrescentando-se, em nota de rodapé: De resto, veja-se a este respeito, e nomeadamente: - o acórdão do TC 338/2010, a propósito da inconstitucionalidade do art 356.o, n.o 1, do CT, consultável no link: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100338.html - o acórdão do TEDH de 02.10.2012, caso Matos Dinis v. Portugal, proc. 61213/08, em relação às garantias do art. 6.o CEDH, acessível no link: https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-114165]. Esta aplicação tem, de qualquer modo, que ser realizada com as devidas e necessárias adaptações, já que o procedimento disciplinar desenvolve-se no âmbito de uma relação laboral, ocorrendo no decurso do desenvolvimento de um contrato de natureza cível. Mas, se o procedimento disciplinar é que permite fundamentar e justificar o despedimento com justa causa do trabalhador, já a validade desse despedimento é apreciada e verificada numa ação cível, seja sob a forma de ação emergente de contrato individual do trabalho, sob a forma de processo declarativo comum, seja através de uma ação especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, conforme se verifica do disposto nos arts. 48.o, n.o 3, e 98.o-C, n.o 1, do CPT . Tais formas processuais possuem tramitação própria definida pelo Código do Processo do Trabalho, sendo ainda, no caso, e em termos subsidiários, aplicável a legislação processual comum civil, bem como os princípios gerais do direito processual comum civil, nos termos estipulados no art. 1.o, n.o 2, alíneas c) e e), do CPT. Retomando o caso em apreço, impõe-se, pois, referir as normas para apreciação da prova produzida nas decisões proferidas neste processo são as que constam no Código do Processo do Trabalho, com recurso subsidiário ao Código do Processo Civil e aos princípios gerais do direito processual do trabalho e do processual comum civil - não se enquadrando nelas o princípio da presunção de inocência do réu, nem o princípio in «dubio pro reo». Sublinhe-se, ainda, que, mesmo no âmbito processual penal, este Supremo Tribunal tendo entendido que a violação do princípio «in dubio pro reo» pode recair no âmbito do erro notório na apreciação da prova, mas a apreciação só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida decorrer, e de uma forma manifesta, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido3. O que não é, manifestamente, o caso.” 10. Efetivamente, nada nos autos indicia/sugere que o procedimento disciplinar que culminou com o despedimento do recorrente não tenha sido um “processo justo”, procedimento que, aliás, no plano dos factos, sofreu ampla análise e modificação na Relação. Vale por dizer que nada permite afirmar que tenha tido lugar qualquer inversão do ónus da prova, em detrimento do recorrente, ou uma situação de “non liquet” em matéria probatória (cfr. sobre esta matéria, relativamente aos procedimento disciplinares de natureza pública, Ac. do STA de ........2005, https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/0333-2005-83056075, e Ac. do TCA do Norte de ........2018, http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/c272809e33cc461c8025839900392b57?OpenDocument). 11. A decisão do TRL proferida quanto à matéria de facto encontra-se cabalmente fundamentada. O recorrente poderá discordar das conclusões a que se chegou, ou até da argumentação utilizada, mas é evidente que a mesma não padece de qualquer omissão de pronúncia, ao contrário daquilo que, lateralmente, é afirmado nas alegações do recurso de revista. As questões a resolver, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, que nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.o, n.o 3, do CPC. Improcede, pois, a questão em apreço. b) – Se existe justa causa de despedimento. 12. A “questão fundamental” que constitui o objeto processual da revista consiste em determinar se ocorre justa causa de despedimento, questão que se desdobra nas subquestões correspondentes aos três requisitos – ou, dito de outra forma, elementos constitutivos (cfr. art. 342o, no 1, do Código Civil) – deste conceito [cfr. arts. 128o, 330.o, n.o 1, e 351.o, do Código do Trabalho (CT)]. A saber: i) uma infração disciplinar, ou seja, um comportamento ilícito e culposo do trabalhador;18 ii) a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação de trabalho19 (e, conexamente, a proporcionalidade do despedimento); iii) a existência de um nexo de causalidade entre o dito comportamento e esta impossibilidade. O direito do empregador ao despedimento pressupõe a verificação cumulativa dos três requisitos, os quais, em termos de precedência lógico-jurídica, se estruturam pela ordem indicada. Como sinaliza António Meneses Cordeiro20, “se se atentar nos diversos termos do artigo 351o/2, logo se verifica que eles têm diversos graus de indeterminação”, o que “tem dois aspetos ou implicações: “(a) o da própria justa causa em si, que aparece ora mais concreta, ora mais vaga, no texto da alínea que a contenha; (b) o das relações dessa justa causa com a ideia básica do no 1; quanto mais indeterminada for a justa causa, mais necessário é recorrer à definição geral dada pela lei, para apurar a sua concretização.” 13. In casu, o Tribunal de 1a instância considerou o despedimento é ilícito, por violação dos deveres de respeito e lealdade, por se ter provado que «o A. escreveu nas paredes da sua entidade empregadora “abaixo as cunhas” (...) por diversas vezes.» Enfatizando o número de episódios perpetrados pelo A. e o seu caracter reiterado ao longo do tempo, sustenta o Tribunal de 1a Instância: “Não se pode deixar de crer que não é razoável o comportamento do A., e a gravidade do mesmo resulta do carácter reiterado com que tal sucedia não tendo sido um ato que ocorreu por um mero dia ou dois de diferença (...)”. 14. Alterando a matéria de facto, a Relação entendeu que apenas podia ser imputada ao Autor a inscrição na parede que teve lugar no dia 27.01.2020, ou seja, um único comportamento.
Não obstante, considerando ter o recorrente violado ainda o dever de conservar e bem utilizar as instalações por ele próprio utilizadas para prestar a sua atividade [art. 128.o, n.o 1, g), do Código do Trabalho], o TRL manteve a decisão recorrida, ponderando, nomeadamente: “Cumpre, desde já, salientar que se concorda com as considerações de direito, jurisprudenciais e doutrinais aduzidas na sentença recorrida. Mas será que as alterações acima introduzidas em termos factuais contendem com a decisão a que a sentença aportou? É evidente que a factualidade dada como assente acaba por não ter a extensão reputada na decisão ora recorrida. (....) É certo que não se pode ter como assente que foi o Autor que realizou todas as inscrições em causa. Todavia, resulta da matéria provada em 16 se infere que realizou esta última. Tal matéria, só por si, afigura-se-nos perfeitamente suficiente para fazer a Ré perder a confiança no Autor nos termos necessários à manutenção de uma saudável relação laboral. É que a confiança ou se tem ou não tem. A factualidade apurada , a nosso ver, assume moldes suscetíveis de levar a Ré a perder definitivamente a confiança no Autor e até , o que em termos de confiança , a nosso ver, funciona de forma distinta daquela que se deve aplicar em sede de matéria a dar como assente , a intuir e extrapolar ter sido ele sozinho ( ou até em companhia de outrem ) o autor material de todas as indubitavelmente censuráveis inscrições [ sendo que nesse particular se concorda com as afirmações a tal título produzidas na sentença recorrida] que aqui se mostram em causa.” 15. Desde já se adianta que a decisão se nos afigura acertada. Entre outras obrigações, o trabalhador deve guardar lealdade ao empregador, sendo que, como v.g. julgou o Ac. desta Secção Social (como todos os que se citarem sem menção em contrário) de 05.06.2013, Proc. no 192/10.0TTVNF.P1S1, “o dever de lealdade tem uma dimensão ampla, que abrange, para além do cumprimento do contrato, de acordo com a boa-fé, um especto pessoal e um especto organizacional, (...)”. Efetivamente, “o dever de lealdade (...) tem um alcance normativo que (...) [impõe] ao trabalhador que aja, nas relações com o empregador, com franqueza, honestidade e probidade, em consonância, aliás, com a boa fé que deve presidir à execução do contrato, nomeadamente, vedando-lhe comportamentos que determinem situações de perigo para o empregador ou para a organização da empresa, por um lado, e, por outro, impondo-lhe que tome as atitudes necessárias quando constate uma ameaça de prejuízo”.21 Vale por dizer que aqui se inclui um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual22, como é o caso de, às escondidas, andar a pintar as paredes das instalações da empresa empregadora com expressões desrespeitosas. Precisando a delimitação deste dever na sua tríplice dimensão (obrigacional, pessoal e organizacional), refere Maria do Rosário Palma Ramalho:23 “(...) Em sentido amplo, (...) [o dever de lealdade] é o dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato. (...) [A] primeira dimensão (...) corresponde a uma exigência geral em matéria de cumprimento dos contratos. (...) O elemento da pessoalidade explica que (...) seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento (...) que justifica, por exemplo, o relevo de condutas extralaborais (...), bem como o relevo da perda de confiança pessoal (...). (...) [P]ara além da lealdade (...) ao empregador, enquanto contraparte (...), releva também a sua lealdade à empresa ou organização do empregador. Nesta (...) dimensão (...), o grau de intensidade do dever de lealdade e as consequências do seu incumprimento dependem do tipo de funções do trabalhador e da natureza do seu vínculo de trabalho, em concreto.” 16. Os deveres laborais que no caso vertente se mostram violados assumem indiscutível relevância, nomeadamente no tocante à infração do dever de lealdade, dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho. Daí que, segundo António Meneses Cordeiro,24 “estando em jogo a questão da confiança, a concretização da causa é mais estrita: a decisão fica menos dependente do apelo a outros fatores circundantes, uma vez que se torna, por via direta, segura a presença de uma impossibilidade de prosseguir na relação laboral considerada”. Embora da quebra de confiança não decorra sempre – direta, segura e automaticamente – a impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho, é inegável que a demonstração deste elemento fica consideravelmente facilitada nos casos em que a quebra de confiança se revela objetivamente fundada na infração do dever de lealdade. Grave e culposamente, o A. violou os deveres laborais de lealdade, respeito e de conservar os bens por ele utilizadas para prestar a sua atividade. Com efeito: – A conduta do trabalhador não configura um mero ato irrefletido, praticado num momento de exaltação, tratando-se, ao invés, de um ato premeditado, que exigiu que o mesmo se munisse previamente de uma lata de tinta e escolhesse um local adequado para escrever sem ser visto (no patamar intermédio das escadas que ligam a zona dos serviços clínicos ao refeitório). – A expressão que se propunha escrever (“abaixo as cunhas”) é grave e suscetível de criar danos reputacionais numa empresa como a RTP (a gestão é estatal impendendo sobre a RTP especiais deveres de transparência e credibilidade). – Os factos são suscetíveis de enquadramento no tipo legal do crime de dano. – Os factos provados não revelam que haja interiorização do desvalor da conduta, o que poderia contribuir para restaurar a relação de confiança entre as partes, ou, pelo menos, para mitigar a sua quebra. Tendo em conta a imagem global dos factos, incluindo todas as suas circunstância e consequências (cfr. art. 351.o, n.o 3, do CT), sem olvidar que o registo disciplinar do A. atesta um percurso profissional algo turbulento (três sanções disciplinares registadas em ..., ... e ... – facto provado no 20), concluímos – à luz de critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade – que com a sua conduta o A. tornou prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral (arts. 330.o, n.o 1, e 351.o, n.o 1 e 2, do mesmo diploma). Vale por dizer que se configura justa causa de despedimento, improcedendo, pois, a revista. IV. 17. Nestes termos, negando a revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido. Custas pelo A. Lisboa, 19 de abril de 2023 Mário Belo Morgado (Relator) Júlio Manuel Vieira Gomes Ramalho Pinto
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1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎ 2. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.o, 663.o, n.o 2, e 679o, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.o, n.o 3, do mesmo diploma.↩︎ 3. Transcrição expurgada dos factos destituídos de relevância para a decisão do recurso de revista↩︎ 4. Redação da sentença da 1a instância: “Durante o mês de janeiro de 2020, o A., por diversas vezes e em diferentes locais das 5. instalações da Ré, escreveu, utilizando para o efeito um spray, “abaixo as cunhas.”↩︎ 6. Redação da sentença da 1a instância: “Em algumas situações, ainda que em menor número do que as referidas no artigo anterior, acabou por escrever apenas algumas letras dessa expressão ou por fazer somente alguns riscos.”↩︎ 7. Redação da sentença da 1a instância: “As situações ocorreram no próprio dia, ou na véspera, posto que foram detetadas por vezes apenas no dia seguinte de manhã, não se apurando a que horas foram escritas.”↩︎ 8. Redação da sentença da 1a instância: “Foi assim encontrado tal escrito no dia 03/01/2020, no elevador n.o 6 e no elevador n.o 9”↩︎ 9. Redação da sentença da 1a instância: “E no dia 04/01/2020, no WC masculino 2A-08”↩︎ 10. Redação da sentença da 1a instância: “No dia 11/01/2020, no WC masculino 2A-08.”↩︎ 11. Redação da sentença da 1a instância: “No dia 13/01/2020, no elevador n.o 7.”↩︎ 12. Redação da sentença da 1a instância: “No dia 14/01/2020, na parede do hall do elevador n.o 9, no piso 2A,”↩︎ 13. Redação da sentença da 1a instância: “Foi ainda encontrado no dia 15/01/2020, na zona de acesso ao bar (ao lado do parque), desta vez uma pintura.”↩︎ 14. Redação da sentença da 1a instância: “Tendo o A. feito uma nova inscrição igual à referida no n.o 1, no elevador n.o 8.”↩︎ 15. Redação da sentença da 1a instância: “No dia 27/01/2020, voltou a ser encontrado o escrito do A. que dizia “abaixo as cunhas” na parede da antecâmara da porta .A-CF-.., tendo sido necessário desligar o elevador n.o 9;”↩︎ 16. Redação da sentença da 1a instância: “Bem como, uma vez mais, no WC 2A-08.”↩︎ 17. Redação da sentença da 1a instância: “Um pouco mais tarde, nesse mesmo dia, quando já tinha iniciado a inscrição desta 18. expressão - “abaixo as cunhas” - na parede que fica junto do WC situado no piso - 1D, ou seja, no patamar intermédio das escadas que ligam a zona dos serviços clínicos ao refeitório, o A. foi surpreendido pelo Senhor BB, que saiu daquele WC e viu o A. a fazer tal inscrição.”↩︎ 19. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎ 20. Segundo Claus-Wilhelm Canaris, a ilicitude (consistente na violação de um direito subjetivo de outrem ou da violação de uma norma jurídica destinada a proteger interesses jurídicos alheios) diz-nos o porquê e em que circunstâncias o lesado recebe a proteção do ordenamento jurídico, enquanto a culpa o porquê e em que circunstâncias ao agente é imposto o ónus de suportar o prejuízo sofrido por terceiro (citado por Felipe Teixeira Neto, in A ILICITUDE ENQUANTO PRESSUPOSTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DELITUAL: UM EXAME EM PERSPECTIVA COMPARADA (LUSO-BRASILEIRA) – https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/ 2017/6/2017_06_1163_1190.pdf).↩︎ 21. Quanto à densificação do requisito “impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”, cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pp. 738 – 739, e Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4a edição, p. 821.↩︎ 22. Direito do Trabalho, II, Almedina, 2019, págs. 960 – 961.↩︎ 23. Ac. de 22.04.2009, Proc. 09S0153.↩︎ 24. Cfr. Ac. de 14.07.2022, Proc. 150/21.0T8AVR.P1.S1.↩︎ 25. Ob. Cit., II, p. 379 e ss.↩︎ 26. Ibidem, p. 966.↩︎ |