Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1715/23.0T8CVL.C1.S2
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
Apenso:
Data do Acordão: 07/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL
Sumário :
I. A relevância jurídica prevista no art. 672.º, nº 1, a), do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa assumir uma dimensão paradigmática para casos futuros.

II. É o caso da determinação das consequências jurídicas associadas a uma situação em que uma trabalhadora é nomeada para um cargo de direção, por deliberação do Conselho de Administração de uma entidade pública empresarial, embora sem redução a escrito do contrato de comissão de serviço para isso exigido.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1715/23.0T8CVL.C1.S1 (revista excecional)

Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1.1. Autora/recorrente: AA.

1.2. Ré/recorrida: Unidade Local de Saúde da Cova da Beira, EPE.


X X X


2. Na presente ação com processo comum, a autora pediu, essencialmente: i) a declaração de que na ré desempenha funções de Diretora de serviço, desde 06.11.2015, correspondentes a cargo de direção intermédia de 2º grau; ii) a condenação da R. a pagar-lhe as diferenças salariais a tal título devidas.

Alegou, em síntese:

– Em 06.11.de 2015, a Autora foi nomeada pela Ré, por deliberação do Conselho de Administração, ... do Serviço de Comunicação, Marketing e Eventos, situação que mantém até à presente data.

– O serviço de Comunicação, Marketing e Eventos está consignado no artigo 49º, alínea a), do Regulamento Interno de 2015 da R., encontrando-se na dependência direta do Conselho de Administração.

3. A ação foi julgada improcedente na 1ª Instância.

Interposto recurso de apelação, a decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra (TRC).

4. A autora veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a), do CPC1, tendo a recorrida contra-alegado.

5. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, sendo que foi decidido convolá-lo em revista comum ou ordinária, quanto à específica questão do alegado abuso de direito da R.

6. Está em causa determinar se o recurso de revista excecional deve ser admitido no tocante à questão de saber se a autora – nomeada ... do Serviço de Comunicação, Marketing e Eventos, por deliberação do Conselho de Administração da ré – tem direito ao pagamento das diferenças salariais referentes ao exercício das funções de Diretora de Serviço, apesar de não ter sido reduzido a escrito o contrato de comissão de serviço exigido para tal nomeação.

E decidindo.


II.


7. Com interesse para a decisão, nas instâncias foram dados como provados os seguintes factos:

1. A Ré é uma entidade pública empresarial que explora o Centro Hospitalar da Cova da Beira (…).

(…)

4. Em 1 de fevereiro de 2000 a Autora celebrou com a Ré, então designada Centro Hospitalar Cova da Beira, EPE, um contrato de trabalho a termo certo com a categoria de técnica superior estagiária.

5. Em 1 de fevereiro de 2002, a Autora celebrou com a Ré um contrato de prestação de serviços de Relações Públicas que vigorou até 1 de setembro do mesmo ano.

6. Em 2 de setembro de 2002 a Autora celebrou com a Ré um contrato a termo certo por 3 meses renovável por iguais períodos como Técnica Superior de 2ª classe, área de Relações Públicas, situação que vigorou até 31 de dezembro desse ano.

7. Em 1 de janeiro de 2003, a Autora celebrou com a Ré, um contrato individual de trabalho a termo certo por um período de 6 meses para o exercício de funções de Técnica Superior de 2º classe, área de Relações Públicas que vigorou até 30 de junho desse ano.

8. Em 1 de julho de 2003, a Autora celebrou com a Ré um contrato individual de trabalho por tempo indeterminado, na categoria de Técnica Superior de 2ª classe, da carreira geral.

9. Em 12 de fevereiro de 2015, a Autora foi nomeada pela Ré, por deliberação do Conselho de Administração, ... do Gabinete de Comunicação, Marketing e Eventos.

10. Funções que exerceu até 5 de novembro de 2015.

11. Em 6 de novembro de 2015, a Autora foi nomeada pela Ré, por deliberação do Conselho de Administração, ... do Serviço de Comunicação, Marketing e Eventos, situação que mantém até à presente data.

12. Em 6 de novembro de 2015, a Autora celebrou ainda com a Ré um acordo de isenção de horário.

13. Acordo esse que na sua cláusula 3ª estatui que “O trabalhador, pela prestação da sua atividade em regime de isenção tem direito a uma retribuição especial correspondente a 248,82€ a ser paga com periodicidade mensal, (…) a partir de 6 de novembro de 2015 e, enquanto exercer as funções de direção de serviço, sendo que esta retribuição deixará de ser remunerada ao segundo outorgante imediatamente após a cessação das funções de direção de serviço”.

14. Desde então a Ré liquidou o valor acima referido 12 vezes por ano.

15. A Autora tem autonomia técnica, mas responde perante o Conselho de Administração da Ré, com quem define a política global de comunicação da instituição de saúde e seus instrumentos.

16. Assim, de acordo com as funções atribuídas, a Autora é responsável pela imagem institucional, planeia, dinamiza e supervisiona todas as ações de Comunicação, Marketing e Eventos (Congressos, meetings, celebração de efemérides, Etc).

17. É “Speaker” e chefe de protocolo da instituição.

18. É responsável pela assessoria de imprensa, pelos serviços de relações públicas, pelas relações externas, pela comunicação interna e pelas campanhas de promoção/informação e publicidade.

19. Planeia, coordena e executa trabalhos de design gráfico, escrita e multimédia onde se incluem as publicações da instituição como as newsletters.

20. Dirige uma equipa multidisciplinar, dá formação e estágio a alunos de diversos alunos em diferentes níveis de ensino nas diversas áreas de comunicação.

21. É avaliadora do SIADAP.

22. Assegura a ligação entre a Ré e os organismos e entidades público-privadas, representa o serviço ou a Ré em grupos de trabalho, reuniões ou eventos de âmbito nacional e internacional.

23. Planeia e organiza visitas de pessoas externas (imprensa, profissionais, estudantes, representantes de instituições, associações e fornecedores, etc.) ao hospital, visando a projeção e divulgação de uma imagem positiva do mesmo.

24. É administradora e gestora de conteúdos do sítio web institucional da Ré, intranet e de todas áreas sociais da Ré.

25. É coordenadora de segurança e porta-voz da Ré nos planos de emergência internos e externos da Ré, seja na Unidade de Saúde da ..., seja no Hospital do ... e Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental.

26. A Ré atribui aos seus funcionários, sejam eles trabalhadores em funções públicas ou não, as categorias profissionais previstas no art.º 88.º, 1, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP - Lei n.º 35/2014, de 20 de junho), correspondentes às carreiras gerais da Função Pública: Técnico Superior, Assistente Técnico e Assistente Operacional.

27. A Autora nunca foi retribuída como diretora de serviço, desde a sua nomeação em 6 de novembro de 2015 e,

28. Continua, desde essa data e até ao presente, a ser retribuída de acordo com a categoria de Técnica Superior de 2ª classe da Carreira Geral (Tabela de remuneração Única do Sistema de Remunerações da Administração Pública)

(…)

33. Nem a publicação de aviso público pelo Réu, nem a manifestação individual de interesse pela Autora existiram quanto ao exercício para o cargo de Diretora de Serviço.

34. O Réu não promoveu nem abriu qualquer procedimento público de recrutamento para o cargo de diretora de serviços de que a Autora se arroga titular.

35. O Réu não promoveu qualquer procedimento concursal para o cargo de Diretor de Serviços que a Autora diz exercer.

36. O Réu não promoveu internamente a divulgação de vaga para o cargo de Diretor de Serviço da sobredita equipa multidisciplinar, sequer por meio de circular.

37. Nem externamente, através de meios de comunicação social.

(…)


III.


8. Nos termos e para os efeitos do art. 672.º, n.º 1, a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:

“Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).

– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).

– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).

“Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).

– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).

“Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02-02-2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).

9. Não são líquidas as consequências jurídicas associadas a situações do tipo da que nos autos se encontra em discussão, em que uma trabalhadora é nomeada para um cargo de direção, por deliberação do Conselho de Administração de uma entidade pública empresarial, embora sem redução a escrito do contrato de comissão de serviço para isso exigido.

Trata-se de um caso com indiscutível dimensão paradigmática, pelo que é patente que a intervenção do STJ é suscetível de se traduzir numa melhor aplicação do direito, reforçando a segurança, certeza e previsibilidade na sua interpretação e aplicação, dessa forma se contribuindo para minimizar – numa matéria de grande relevância prática e jurídica – indesejáveis contradições entre decisões judiciais.

Acresce que, relativamente a outra questão integrante do objeto do processo, também referente à determinação das implicações remuneratórias associadas à relação jurídica em causa, foi admitido recurso de revista nos termos gerais, sendo indiscutível a pertinência de uma real e conjunta abordagem de todas as questões suscitadas pelo litígio objeto.


IV.


10. Nestes termos, acorda-se em admitir o recurso de revista excecional em apreço, relativamente à questão enunciada em supra nº 6.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 14.07.2025

Mário Belo Morgado, relator

Júlio Manuel Vieira Gomes

José Eduardo Sapateiro

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1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎