Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5217/17.6T8OER-A.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: CONFISSÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
REQUISITOS
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
CESSÃO DE CRÉDITOS
TERCEIRO
EXEQUENTE
CESSIONÁRIO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA, ORDENANDO-SE A BAIXA DOS AUTOS AO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Sumário :
I - A confissão extrajudicial só tem força probatória plena se for feita à parte contrária ou a quem a represente (n.º 2 do art. 358.º do CC). A parte contrária é o credor, aquele que é beneficiado pela realidade do facto confessado.

II - Tal força probatória não é afetada pela transmissão do crédito. Apresentando-se a exequente como credora, cessionária do credor perante quem foi produzida a confissão, tal confissão, invocada pela exequente perante a executada confitente, tem força probatória plena.

III - Julgada a revista procedente, mas tendo ficado por apreciar na apelação determinada questão (ilegitimidade substantiva da exequente, na qualidade de alegada cessionária do crédito exequendo), por a Relação a ter julgado prejudicada pelo desfecho da apelação, devem os autos baixar à Relação, pois à revista não se aplica o disposto no art. 665.º do CPC (cfr. art. 679.º do CPC).

Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. BERGANO CONSTRUÇÕES, LDA., veio, mediante embargos de executado, deduzir oposição à execução sumária para pagamento da quantia de € 845.281,37, que lhe moveu HEFESTO STC, S.A., e que tem por base duas escrituras públicas outorgadas por si e pela Caixa Económica Montepio Geral, em 29.02.2008 e 16.05.2012, pelas quais as partes celebraram entre si um contrato de abertura de crédito em conta corrente até ao montante de € 450.000,00 e respetiva alteração, bem como um contrato de cessão de créditos da Caixa Económica Montepio Geral para a sociedade M..., S.A., (de 30.12.2016) que, por sua vez, cedeu a sua posição contratual àquela exequente (em 24.02.2017).

Pediu que a oposição fosse julgada procedente e, em consequência:

«I. Ser julgada procedente a invocada inexistência e/ou inexequibilidade do título executivo, pela sua ilegalidade, invalidade ou ineficácia ou ilegitimidade da exequente, devendo a executada ser absolvida do pedido;

Subsidiariamente,

II. Serem julgados não provados os factos alegados pela exequente, absolvendo-se a executada do pedido.

III. Ser julgada nula ou inválida a cláusula penal que estabelece uma percentagem de 4% sobre o capital em dívida a título de indemnização a favor da credora pelo recurso a juízo ou, em caso de diferente entendimento, ser a mesma penalização sujeita a uma redução equitativa».

Fundamentou os embargos, essencialmente, em três ordens de argumentos:

1.º) Na inexistência e inexequibilidade de título legal válido e eficaz, o que deverá dar azo à absolvição da executada e à extinção da instância, porquanto

- os contratos outorgados têm como únicas partes contratantes a executada/embargante e a Caixa Económica Montepio Geral, pelo que a exequente não figura no título como credora;

- o contrato de cedência de créditos, alegadamente celebrado entre a Caixa Económica Montepio Geral e a sociedade M..., S.A., não se encontra assinado e não contém reconhecimentos, à revelia do art. 7.º do DL n.º 453/99, de 05.11., pelo que é nulo e ineficaz;

- a exequente, para comprovar a carteira de títulos alegadamente cedida, junta um documento indecifrável e impossível de discernir, o que impede que lhe seja atestada a natureza de título executivo;

- a sociedade M..., S.A., não está habilitada ou legalmente autorizada a ceder créditos no âmbito do regime da cessão de créditos para titularização, nem a adquirir créditos com esse escopo, nos termos dos arts. 2.º, n.º 1, e 3.º do DL n.º 453/99, de 05.11., pelo que o título executivo desta forma constituído é ilegal e inválido;

- ainda que tal documento não consubstanciasse uma autêntica cedência de créditos, mas uma mera cessão da posição contratual, a mesma seria ineficaz relativamente à executada, por não ter sido por si autorizada, nos termos do art. 424.º n.º 1 do CC;

- a executada não foi notificada da cessão de créditos, nos termos do art. 6.º do DL n.º 453/99, nem de algum modo a aceitou ou tomou conhecimento, pelo que é ineficaz, não lhe sendo oponível, o que descaracteriza a exequibilidade do título;

2.º) Na ilegalidade ou redução equitativa da cláusula penal, porquanto:

- a exequente invoca a existência de uma sobretaxa de 4% sobre o capital, a título de cláusula penal indemnizatória em caso de incumprimento e recurso às vias judiciais para recuperação do crédito, que corresponde a uma cláusula pré-elaborada pelo banco, que a executada se limitou a subscrever e que não foi negociada ou esclarecida pelo banco, pelo que é nula, configurando, ainda, uma indemnização abusiva, desproporcional e desadequada, face aos danos conjeturados ou efetivos;

3.º) Na impugnação do montante em dívida reclamado, uma vez que a exequente não alega os cálculos que efetuou, não esclarecendo as datas de vencimento e da mora que considerou para o cômputo dos juros, nada dizendo, ainda, quanto ao capital ou capitais sobre os quais terão incidido as taxas.

2. A exequente contestou, defendendo a improcedência dos embargos e o prosseguimento da execução, alegando, em suma, que:

- o contrato de cessão de créditos é válido e foi realizado nos termos e sob a forma previstos no art. 7.º do DL n.º 453/99, de 05/11, e aprovado pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, sendo certo que a Hefesto, STC, S.A., é uma sociedade de titularização de créditos;

- a executada foi notificada da cessão, conforme carta que junta;

- a cláusula penal definida no contrato está de acordo com o estipulado no DL n.º 344/78, de 17.11, alterado pelos DL n.ºs 429/79, de 25.10, 83/86, de 06.05., e 204/87, de 16.05., em vigor na data da sua feitura, sendo legal;

- a executada coloca em causa o valor em dívida, sem qualquer justificação ou alegação válida, decorrendo o mesmo de simples cálculo aritmético, com referência ao capital em dívida de €459.780,75, com o cálculo da taxa juros de mora contratualizados acrescido da sobretaxa de 4%, desde a data do incumprimento em 2013/02/28 até à data da entrada da execução.

3. Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

4. Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que concluiu da seguinte forma: «julgam-se os embargos parcialmente procedentes, e reduz-se a quantia exequenda para quatrocentos e cincoenta mil euros – acrescida de juros de mora, à taxa supletiva comercial, desde 24-II-14 até integral pagamento. Custas na proporção dos respectivos decaimentos (CPC 527º)».

5. A embargante/executada apelou da referida sentença e em 14.9.2023 a Relação de Lisboa emitiu acórdão que culminou com o seguinte dispositivo:

“Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar totalmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, julgando-se procedentes os embargos de executado deduzidos por Bergano Construções, Lda., e declarando-se extinta a execução.

Custas da execução, dos embargos e do recurso pela exequente/embargada”.

6. A embargada/exequente interpôs revista desse acórdão, tendo formulado as seguintes conclusões:

“A) A exequente/embargada, ora recorrente, vem interpor recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que concluiu que “a exequente/embargada não fez prova da existência do crédito, alegadamente, confessado e que, por isso, ao contrário do sentenciado, não pode ter-se o mesmo como verificado”.

B) Tendo o Acórdão decidido “julgar totalmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, julgando-se procedentes os embargos de executado deduzidos por Bergano Construções, Lda., e declarando-se extinta a execução”.

C) Considera a ora recorrente que a decisão do Tribunal de Relação de Lisboa não foi acertada, essencialmente, por a executada ter confessado, por documento autêntico, a existência do crédito de, pelo menos, € 450.000,00, não cabendo, consequentemente, à ora recorrente demonstrar o contrário.

D) Seguem de seguida os fundamentos que demonstrarão que o Acórdão da Relação de Lisboa deverá ser revogado, substituindo-o por outro que repristine a sentença de 1ª instância.

E) Nas Alegações de Recurso, a executada propôs a adição dos seguintes factos como provados:

a) “No dia 01 de julho de 2013, o Montepio (primitivo credor) enviou correspondência à recorrente sobre o contrato de abertura de crédito em disputa nos autos, reclamando à data a quantia em dívida de € 47.899,58, conforme documento 6 junto com a contestação que se dá por transcrito.”

b) “A exequente não disponibilizou à embargante/recorrente, nem esta utilizou, a quantia de € 450.000,00.”

F) O Acórdão de que se recorre admitiu a adição do facto elencado em a) supra, como provado, por corresponder ao vertido no artigo 39º da Contestação da ora recorrente e, por isso mesmo, por esta confessado.

G) Nada há a dizer quanto ao aditamento desse facto como provado, todavia, há que clarificar e contextualizar: o documento nº 6 em questão, correspondente a uma carta de interpelação para pagamento enviada a 01 de julho de 2013, refere-se a valor vencido àquela data, não visando o valor total em dívida, visto a carta não ser resolutória.

H) Salvo resolução prévia, por incumprimento, o termo do prazo contratual seria a 29 de novembro de 2014, razão pela qual o valor constante dessa interpelação seja devido a título de juros e outros encargos, que entretanto se venceram, conforme previsto na escritura de “Alteração a Contrato de Abertura de Crédito” de 16 de maio de 2012.

I) Isso mesmo decorre do facto provado nº 3 que, pela sua pertinência, se transcreve:

3 – Em 16-V-12 “C.E.M.G” e embargante outorgaram a escritura de “ALTERAÇÃO A CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO” junta com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) CINCO – O capital efectivamente utilizado pela PARTE DEVEDORA (…) é, na presente data, de quatrocentos e cinquenta mil euros; (…). (…) a PARTE DEVEDORA obriga-se a amortizar integralmente o saldo devedor do presente contrato (…), apurado no termo do prazo contratual (29- II-14) (…)”.”

J) Os pontos OITO (nºs 9, 10 e 11) e NOVE da escritura de “Alteração a Contrato de Abertura de Crédito” de 16 de maio de 2012 – junto como documento nº 5 do requerimento executivo – mencionam exactamente os montantes que a executada estava contratualmente obrigada a pagar, para além do valor de crédito concedido.

K) Versam o seguinte os pontos supra elencados:

OITO. 9. Os juros passam a ser pagos anual e postecipadamente.

10. Conjuntamente com o pagamento dos juros, a PARTE DEVEDORA obriga-se a pagar, à CEMG, a importância correspondente a um por cento, calculada sobre o limite máximo contratado, a título de comissão de gestão, cujo valor mínimo será o indicado, em cada momento, no preçário da CEMG, disponibilizado pelas formas legalmente exigidas.

11. Na data das renovações do identificado contrato, a PARTE DEVEDORA obriga-se, ainda, a pagar à CEMG, a importância correspondente a zero vírgula quarenta e cinco por cento calculada sobre o limite máximo contratado, a título de comissão de renovação, cujos valores mínimos e máximos encontram-se indicados, em cada momento, no Preçário da CEMG, disponibilizado pelas formas legalmente exigidas.

NOVE. A PARTE DEVEDORA solicitou, e a CEMG aceitou, que durante o período de seis meses, o pagamento dos juros seja suspenso.” (sublinhados nossos)

L) Pelo que é completamente irrelevante para a presente discussão o aditamento, como provado, do facto elencado supra no artigo 5º, alínea a) – ao qual foi atribuído o nº 3A.

M) Bem mais relevante para a presente discussão é o teor da carta junta pela ora recorrente na sua Contestação como documento nº 7 e que integra os “Factos Provados” sob o nº 4, que se transcreve de seguida:

4 – Em 21-VIII-14 a “C.E.M.G.” enviou à ora embargante a carta junta a fls. 44v (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – referente à aprovação de “proposta de reestruturação dos contratos”.”

N) No “ponto” 6º da carta em discussão, é indicado o valor em dívida àquela data – 21 de agosto de 2014 – quando se indica: “Celebração simultânea de contrato promessa dação em pagamento, sujeito a registo na Conservatória Registo Predial, por montante equivalente à dívida actual: € 586.000,00”;

O) E, consequentemente, a proposta de reestruturação que se comunica no “ponto” 1º dessa carta: “Aumento limite crédito do contrato 003.30.100035-6 até € 660.000,00, com reutilização inicial até € 600.000,00;”

P) Ou seja, para além da CE Montepio Geral ter disponibilizado – entregue – à executada o valor de € 450.000,00, o valor em dívida, a 21 de agosto de 2014, cifrava-se em € 586.000,00, conforme facto dado por provado sob o nº 4.

Q) Pelo que não poderia – como bem decidiu – o Tribunal da Relação de Lisboa ter dar como provado o elencado no artigo 5º, alínea b) supra.

R) Aliás, se por hipótese o Tribunal da Relação o fizesse, seria colocar em contradição esse “novo” facto provado com o facto provado sob o nº 3.

S) Conforme bem versa o Acórdão do TRLisboa, a “escritura pública constitui um documento autêntico cujo valor probatório é fixado pelo art. 371º, nº 1, do CC, que atribui força probatória plena aos factos nela referidos como praticados pela autoridade ou oficial público, assim como aos factos que nela são atestados como base nas percepções da entidade documentadora.”

T) E, entre diversa doutrina/jurisprudência indicada pelo Acórdão do TRLisboa, ensina o Acórdão do STJ de 15.04.2014, disponível em www.dgsi.pt: “a força probatória plena do documento só vai até onde alcançam as percepções do notário – existência da declaração – mas já não à veracidade do conteúdo da mesma. Esse facto pode ser impugnado por qualquer das partes sem necessidade de arguição da falsidade do documento, uma vez que o mesmo faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas mas já não quanto ao rigoroso sentido, sinceridade, veracidade ou validade das declarações emitidas pelas partes.”

U) Veracidade essa que nunca foi impugnada, contestada ou, de alguma forma, colocada em questão pela executada.

V) Continuando a acompanhar a douta jurisprudência integrante do Acórdão do TRLisboa: “Sucede que se tem entendido, de forma também pacífica (cfr. acórdão do STJ de 17.12.2015 e da RC de 24.04.2018, ambos em www.dgsi.pt), que a declaração de que numa determinada data se é devedor de uma concreta quantia, prestada perante o credor e o notário e constante de uma escritura pública, não pode ser desconsiderada ao ponto de o mutuário ser pura e simplesmente dispensado da demonstração da sua inveracidade. (…) Ora uma declaração feita por uma parte à contraparte, que envolva o reconhecimento de um facto que lhe seja desfavorável e favoreça a parte contrária, é qualificada como declaração confessória, nos termos e para os efeitos dos arts. 352.º e 358.º, n.2, do CC.

W) Conforme nos ensina o Prof. Adriano Vaz Serra, “o motivo por que a confissão faz prova contra o confitente está em que, segundo uma regra de experiência, quem reconhece a verdade de um facto em si desfavorável é porque sabe ele ser verdadeiro” – Provas (Direito Probatório Material), BMJ nº 110, pág. 211.

X) Ora, nos presentes autos estamos exactamente perante uma declaração por parte da devedora ao seu credor de um facto que lhe é desfavorável e que favorece o credor, conforme facto dado como provado sob o nº 3:

3 – Em 16-V-12 “C.E.M.G” e embargante outorgaram a escritura de “ALTERAÇÃO A CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO” junta com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) CINCO – O capital efectivamente utilizado pela PARTE DEVEDORA (…) é, na presente data, de quatrocentos e cinquenta mil euros; (…). (…) a PARTE DEVEDORA obriga-se a amortizar integralmente o saldo devedor do presente contrato (…), apurado no termo do prazo contratual (29- II-14) (…)”.” (sublinhado nosso).

Y) A devedora efectivamente utilizou, até ao dia 16 de maio de 2012, o valor de € 450.000,00, comprometendo-se a amortizar esse valor, ou seja, a pagá-lo, integralmente até ao dia 29 de fevereiro de 2014.

Z) Dito por outras palavras: a devedora confessou, por documento autêntico, que havia utilizado, pelo menos, € 450.000,00 disponibilizados pela CE Montepio Geral e que se obrigava a regularizar esse valor até ao dia 29 de fevereiro de 2014.

AA) Considerando que a executada nunca pagou esse valor à exequente (nem, antes, à cedente CE Montepio Geral), quer seja os € 450.000,00 que confessou ter utilizado, quer outro, esteve muito bem o tribunal da 1ª instância a julgar como provado o facto nº 3 e, consequentemente, a julgar esse valor como estando em dívida desde o dia 29 de fevereiro de 2014.

BB) De acordo com o disposto no art. 358º, n.º2 do CC: “A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.

CC) O que significa, conforme muito bem lembrou a 1ª instância na sua sentença, “que é aplicável a regra do artigo 347º: “A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinada na lei”.

DD) Pelo que recaía sobre a executada o ónus de demonstrar não ser verdadeira a utilização de € 450.000,00 a 16 de maio de 2012.

EE) Tentou, em vão, a executada provar que não havia utilizado o valor de € 450.000,00, através de declarações de parte do seu gerente, Sr. AA.

FF) O gerente da executada foi muito pouco convincente a demonstrar que a empresa que geria não havia recebido o valor que confessou ter recebido por documento de 16 de maio de 2012, acabando por confirmar exactamente o contrário do que pretendia: que, efectivamente, utilizou crédito concedido pela cedente.

GG) A esse propósito, consta da decisão do tribunal de 1ª instância que:

Nas suas declarações de Parte, o gerente da embargante, AA optou por não querer esclarecer a dúvida – declarando (de forma bastante inverosímil) não saber quanto do crédito é que utilizou (talvez ‘200.000 a 250.000€’), quanto é que foi gasto no total da obra (‘700 e tal mil euros’) e qual a origem do dinheiro que pagou a construção, e quanto é que pagou ao ‘Montepio’ (alegando que a embargante nunca teve acesso aos extractos mensais).

HH) Se o gerente da devedora admite, em audiência de julgamento, “de forma bastante inverosímil”, que utilizou cerca de “€ 200.000,00 a € 250.000,00” – o “homem médio” facilmente admitirá, como muito provável, que o valor real utilizado tenha sido o dobro deste.

II) Impor à exequente o ónus de provar que a declaração constante da escritura pública de 16 de maio de 2012 é verdadeira – ou seja, a prova de que a executada havia utilizado/recebido os € 450.000,00 – seria esvaziar por completo de conteúdo a força da declaração/confissão desta de que já recebeu esse valor, tornando mesmo inútil tal declaração, para mais lavrada em documento autêntico – forma mais solene que a praticada na feitura de um simples documento particular – pelo qual tem igualmente força probatória plena e material a confissão extrajudicial de facto desfavorável ao confitente em favor da parte contrária.

JJ) Não pode a ora recorrente concordar com o teor do exposto pelo TRLisboa a partir do ponto 4.5 em diante, quando expõe que “Na verdade, ambas as partes contratantes limitaram-se a declarar que o capital, efectivamente, utilizado era, naquela data, de € 450.000,00, mas tal não significa que a parte devedora reconhecesse que tal capital se encontrava, integral ou parcialmente, em dívida (até porque o contrato previa amortizações do saldo devedor da conta corrente) e, muito menos, que a quantia, declaradamente, utilizada se encontrasse, ainda, em dívida à data das alegadas cessões/transmissões de crédito ou da instauração da execução”.

KK) Concluindo o Acórdão que a “escritura pública em causa não faz prova plena da disponibilização/entrega da quantia de € 450.000,00, pelo que ónus da prova da entrega dessa quantia cabia à exequente/embargada”.

LL) Não se pode concordar com esta interpretação do Acórdão, porque houve, de facto, uma confissão de dívida por parte da executada, mesmo que essas exactas palavras não constem na escritura pública de 16 de maio de 2012.

MM) Aliás, não é por coincidência que a escritura pública de 16 de maio de 2012 identifica a executada como PARTE DEVEDORA.

NN) Se a credora disponibilizou o montante de € 450.000,00 à executada devedora – que a utilizou – e esta confessou ter utilizado esse valor – então teremos, necessariamente, de concluir que estamos perante uma confissão de dívida.

OO) Cabendo à executada devedora demonstrar que pagou esse valor – total ou parcialmente – na data do seu vencimento, o que nunca aconteceu.

PP) Para reforçar a fundamentação desta posição, indica o Acórdão a quo que a CE Montepio Geral declarou estar em dívida, em julho de 2013, o valor de € 47.899,58, conforme facto provado aditado sob o nº 3A.

QQ) Contudo, conforme já supra se esclareceu nos artigos 7º a 12º, esse valor respeitava somente a valor vencido àquela data decorrente de juros e comissões contratualizadas.

RR) Num mero “exercício académico”, mesmo admitindo o TRLisboa que a cláusula 5ª da escritura de 14 de maio de 2012 pudesse constituir uma confissão extrajudicial de dívida, haveria o entendimento que a ora recorrente é um terceiro para efeitos do nº 2 do artigo 358º do CC e, por isso, face ao disposto no nº 4 desse mesmo artigo, esta confissão seria sempre apreciada livremente pelo tribunal.

SS) Não pode a ora recorrente discordar mais desse entendimento.

TT) A “parte contrária” referida no artigo 358º, nº 2 do CC corresponde, naturalmente, ao credor, pois este é que é o destinatário da declaração confessória.

UU) Não podendo a posição de credor ser individualizada, imutavelmente, na pessoa/entidade que, à circunstância da assinatura da confissão – hora e local – assumia essa posição.

VV) “Credor” será sempre, neste caso, a pessoa/entidade a quem aproveita e beneficia o reconhecimento da confissão de dívida: seja a CE Montepio Geral em 2012 ou a Hefesto STC, S.A. em 2023.

WW) Nem de outra forma poderia ser: a título de exemplo, caso a executada se tivesse fundido na empresa “X”, seria contra a empresa “X” que o credor exerceria o seu direito, continuando a declaração de confissão a ser válida e eficaz.

XX) De igual modo, se a CE Montepio Geral se tivesse fundido na entidade bancária “Y”, não ficaria precludido o direito da entidade bancária “Y” demandar judicialmente a executada, podendo tirar o proveito que aprouvesse da declaração de confissão.

YY) Isso mesmo resulta conforme ensina o Acórdão do TRPorto de 16.12.2009, disponível em www.dgsi.pt: A confissão é, segundo o disposto no art. 352º, o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. Por outro lado, a confissão constante de documento particular configura uma confissão extrajudicial que, em conformidade com o disposto no art. 358º nº 2, apenas tem força probatória plena quando for feita à parte contrária ou a quem a represente, sendo apreciada livremente pelo tribunal quando feita a terceiro (cfr. nº 4 da mesma disposição legal). Ou seja, a força probatória da plena da declaração confessória (reconhecimento de um facto desfavorável) apenas vigora entre o declarante e a pessoa a quem a declaração é dirigida (ou seu representante) e a quem aproveita e beneficia o reconhecimento daquele facto. (Sublinhado e negrito nossos)

ZZ) Ora, fruto das cessões de créditos operadas, a ora recorrente Hefesto STC, S.A. é a actual credora da executada, tendo assumido a posição do credor originário CE Montepio Geral, em sua substituição, conforme facto dado com provado sob o nº 5: “5 - Mostra-se junto com o requerimento executivo, e a fls 20 a 30 e 124v a 136, um “CONTRATO DE VENDA DE CRÉDITOS” entre ‘C.E.M.G.’ e ‘M..., S.A.’ datado de 30-XII-16 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – e uma “Notificaçao da Cessão da Posição Contratual” datada de 24-II-17 e celebrada entre ‘C.E.M.G.’, ‘M..., S.A.’ e ora embargada.”

AAA) Tendo a sentença de 1ª instância determinado que “Não se vislumbra qualquer vício no contrato 5, pois, ainda que não fosse aplicável o DL 453/99, sempre a transmissão seria válida, à luz das regras gerais de Direito (CC 577º a 588º) – valendo a citação (na presente execução) como notificação da cessão.

BBB) Face ao exposto, dúvidas não subsistem de que a ora recorrente é “parte contrária”, nos termos do referido no artigo 358º, nº 2 do CC, visto ser a actual credora da declaração confessória proferida pela devedora.

A recorrente terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente, revogando-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e substituindo-se por outro que repristinasse a sentença da 1.ª instância.

7. A embargante/executada contra-alegou e ampliou o objeto do recurso, formulando as seguintes conclusões:

“1.ª Com relevo para atestar a não prova da existência do crédito, a douta decisão recorrida aditou à matéria de facto provada um parágrafo 3ª que se reedita:

[…]

A Caixa Económica Montepio Geral remeteu à embargante a carta cuja cópia foi junta com a contestação como documento n.º 6, cujo teor se dá por reproduzido, datada de 01.07.2013, na qual, por referência ao contrato n.º 003-30-100035-6, refere que “o contrato em referência foi afeto ao Montepio Recuperação de Crédito, ACE.

Todavia, não desejamos instaurar, desde já, a competente ação judicial sem tentar, uma vez mais, a regularização extrajudicial. Aguardamos, por isso, que até ao dia 15/07/2013 V. Exa. proceda à regularização da dívida que, à data da emissão desta carta, ascende a 47.899,58 euros. Conforme previsto no Preçário, serão cobradas despesas acrescidas do imposto do selo, no montante de 260,00 euros, relativos à correspondente desafetação (…)”.

[…]

2.ª A recorrente, sem pôr em crise a enunciada circunstância, pretende agora justificá-la numa nova contextualização e discorre que o valor inscrito na carta limitava-se a uma interpelação do montante vencido à data da missiva 01/07/2013, dela não constando o valor total em dívida, uma vez que a carta não era resolutória e o contrato só atingiria o seu termo em 29 de novembro de 2014.

3.ª Tal explicação é absolutamente nova na instância, uma vez que a recorrente na causa de pedir e mesmo quando juntou o documento, foi totalmente omissa quanto a alguma data para o terminus do contrato, pelo que, deparamo-nos com factos novos que nunca foram sujeitos a contraditório e a debate.

4.ª Sucede, que este novel pretenso facto não é válido, pois que diversamente, o contrato terminara em 28 de fevereiro do ano de 2013 e não em 29 de novembro do ano 2014.

5.ª É o que resulta do teor da escritura de RETIFICAÇÃO de 22/06/2012, na qual foi anulado o prazo redigido na escritura de alteração de 16/05/2012, repondo-se os prazos convencionados no contrato primitivo, três anos, mais dois.

6.ª Em resultado, tendo o contrato inicial sido celebrado e entrado em vigor em 29/02/2008, atingiu seu termo em 28/02/2013.

7.ª O que vale por dizer, que a novel contextualização pensada pela recorrente, de que a carta de 01/07/2013 interpelava tão só ao pagamento de 47.899,58 euros por se ater ao valor vencido e não ao seu todo porque o contrato ainda não terminara, não tem fundamento de facto.

8.ª Em 01/07/2013, a recorrente estava em condições de aferir o quantum em dívida, o que fez e unilateralmente e fixou em € 47.899,58.

9.ª E sempre o argumento da recorrente seria contratualmente desconexo, pois no âmbito de um crédito sob a forma de conta corrente, o pagamento deve ser assegurado no final, até lá, o pulsar do contrato é feito com movimentações a débito e a crédito, da livre disponibilidade do cliente até ao limite do capital contratualizado, não havendo no seu curso valores em dívida vencidos!

10.ª Também uma outra carta convocada pela recorrente, datada de 21/08/2014 com vista a convencer que o valor afinal era de € 586 000,00, é incongruente com a sua afirmação anterior segundo a qual o contrato estaria válido até ao seguinte dia 29/11/2014.

11.ª Não obstante esta carta, como a recorrida em sede de resposta aos documentos frisou, é inusitada, quando nem sequer identifica um destinatário da missiva e a recorrida não o conhece.

12.ª Sem esquecer que o seu substrato, atém-se a uma mera declaração unilateral sem documentos de suporte, criada para a lide, sem bondade probatória e que não contribui para alterar o sentido da decisão recorrida.

13.ª A demanda enquadra-se e assenta sobre um genuíno contrato de abertura de crédito, sob a forma de conta corrente e não um contrato de mútuo.

14.ª Muito menos se vislumbra alguma confissão de dívida, pois que, se assim se tratasse o documento além do mais especificaria “Mútuo com reconhecimento e confissão da dívida” ou “Reconhecimento e confissão da dívida”.

15.ª E o único documento que contém a expressão “confissão de dívida”, é a primitiva escritura, em que ainda não existia qualquer movimentação de capital, pelo que, nenhuma dívida havia para confessar, muito menos o seu montante.

16.ª Nos termos do ajustado, a dívida seria apurada no termo do prazo contratual.

17.ª Tudo visto e em conclusão, do teor dos documentos, da natureza do contrato, com permanente oscilação de saldos e, da previsão do apuramento de um saldo a apurar no fim do contrato, extrai-se também a inexistência de qualquer confissão de valor por parte da recorrida.

18.ª A prova da dívida e seu quantitativo, era ónus da recorrente, não se compreendendo algum especial escolho, quando tem origem num contrato celebrado com uma instituição financeira que, presumivelmente, tem ou deve ter, todos os elementos para de forma cristalina e simples cooperar para a descoberta da verdade e, que segundo a sua alegada qualidade de credor, afinal lhe aproveitaria.

19.ª Invocar a recorrente, que foi a recorrida que, em vão, não hauriu a prova de coisa contrária, roça a má-fé.

20.ª É que aquela bem sabe, que desde a primeira intervenção nos autos, desde a petição de embargos e em requerimentos sucessivos de 23/04/2018; 05/07/2018; 23/11.2018; 05/12/2018; 23/04/2019; 10/05/2019 e em audiência de 26/09/2022, foi a recorrida que insistiu pela junção de documentos para prova das operações e definição de eventuais valores em dívida e justa composição do litígio.

21.ª Documentos esses que, face ao contratualizado, eram condição indispensável à realização das operações, pelo que, não podiam deixar de existir e a recorrente nada para o efeito juntou.

22.ª A verificar-se alguma confissão, hipótese que se especula pois que jamais ocorreu entre as partes, a mesma teria sempre e só efeitos à parte contrária ou quem a representava, o banco, a Caixa Montepio Geral, como dispõe o art.º 358.º n.º 2 do CC.

23.ª E nunca a terceiros alheios ao documento, no caso perante a recorrente.

24.ª Aquela confissão, em eventuais casos de fusão de entidades, não se desliga da parte beneficiária e incorpora e passa a integrar a nova entidade, que não assumiria a qualidade de terceiro.

Da ampliação do objeto do recurso

25.ª O contrato em 5 dos factos provados, documento primeiro anexo ao requerimento executivo, tem por proémio “Contrato de Venda de Créditos” e consiste na alienação pela Caixa Económica Montepio Geral, à adquirente M..., S.A...

26.ª Quando o Meritíssimo juiz da primeira instância sufragou, que com base naquele contrato a notificação da cessão à recorrida operou no âmbito da ação executiva por via da citação, incorreu em erro de julgamento, porquanto, o Montepio não poderia comunicar à recorrida com a entrada de uma ação pela exequente Hefesto em novembro de 2017, um crédito que havia cedido a uma entidade M..., S.A. em 24/02/2017.

27.ª Em termos contratuais a cedência de créditos em 24/02/2017 *à M..., S.A. é ilegal e inválida à luz do Dec. Lei 453/99 de 05 de novembro.

28.ª Por assim ser, a relação jurídica subjacente à demanda promovida pela recorrente, não se atém à notificação de uma cessão de créditos mas numa: “Cessão da posição contratual”.

29.ª E esta reconhecidamente estará na dependência de consentimento do devedor, de harmonia com o disposto no art.º 424.º n.º 1 do Cód. Civil, o que a recorrente não alegou, muito menos provou, pois o consentimento nunca foi prestado.

Termos em que e nos mais de direito que, como habitual. doutamente será suprido, deve o recurso interposto pela recorrente, ser julgado improcedente ou procedente a ampliação do objeto do recurso, mantendo-se o sentido decisório da decisão impugnada e assim se fazendo, Justiça”.

8. O relator rejeitou o documento junto pela recorrida, por não ser admissível à luz do disposto no art.º 680.º n.º 1 do CPC.

9. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A revista tem por objeto a seguinte questão: prova do crédito exequendo. A recorrida, em ampliação do objeto do recurso, pretende que se aprecie a alegada ilegitimidade substantiva da exequente, na qualidade de cessionária do crédito exequendo.

2.1. As instâncias (com aditamento introduzido pela Relação) deram como provada a seguinte

Matéria de facto

1 - Em 29-II-08 ‘C.E.M.G.’ e embargante outorgaram a escritura de “ABERTURA DE CRÉDITO” junta com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) 5 – A utilização do crédito aberto será feita através de cheques numerados, de ordens de transferência ou de pagamento dadas sobre a forma escrita à CEMG (…). (…)

2 - No “documento complementar” da escritura supra lê-se: “CLÁUSULA DÉCIMA (Resolução do contrato) 1. Findo ou resolvido este contrato (…), ou vencido o crédito, a conta corrente será para todos os efeitos havida por encerrada, obrigando-se desde já a PARTE DEVEDORA ao pagamento do respectivo saldo. 2 – O extracto de conta corrente prova os lançamentos a débito e a crédito na mesma efectuados e o respectivo saldo (…).”

3 - Em 16-V-12 ‘C.E.M.G.’ e embargante outorgaram a escritura de “ALTERAÇAO A CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO” junta com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) CINCO – O capital efectivamente utilizado pela PARTE DEVEDORA (…) é, na presente data, de quatrocentos e cinquenta mil euros; (…). (…) a PARTE DEVEDORA obriga-se a amortizar integralmente o saldo devedor do presente contrato (…), apurado no termo do prazo contratual (29-II-14) (…).”

3A. [aditado pela Relação] A Caixa Económica Montepio Geral remeteu à embargante a carta cuja cópia foi junta com a contestação como documento n.º 6, cujo teor se dá por reproduzido, datada de 01.07.2013, na qual, por referência ao contrato n.º 003-30- 100035-6, refere que “o contrato em referência foi afeto ao Montepio Recuperação de Crédito, ACE. Todavia, não desejamos instaurar, desde já, a competente ação judicial sem tentar, uma vez mais, a regularização extrajudicial. Aguardamos, por isso, que até ao dia 15/07/2013 V. Exa. proceda à regularização da dívida que, à data da emissão desta carta, ascende a 47.899,58 euros. Conforme previsto no Preçário, serão cobradas despesas acrescidas do imposto do selo, no montante de 260,00 euros, relativos à correspondente desafetação (…)”.

4 - Em 21-VIII-14 a ‘C.E.M.G.’ enviou à ora embargante a carta junta a fls. 44v (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – referente à aprovação de “proposta de reestruturação dos contratos”.

5 - Mostra-se junto com o requerimento executivo, e a fls. 20 a 30 e 124v a 136, um “CONTRATO DE VENDA DE CRÉDITOS” entre ‘C.E.M.G.’ e ‘M..., S.A.’ datado de 30-XII-16 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – e uma “Notificação da Cessão da Posição Contratual” datada de 24-II-17 e celebrada entre ‘C.E.M.G.’, ‘M..., S.A.’ e ora embargada.

6 - Em 27-II-17 a ‘W..., S.A.’ enviou à embargante a carta junta a fls. 47 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).

7 - Mostra-se junto a fls. 38 a 43v, e 55 a 60v um “EXTRACTO MOVIMENTOS” datado de 16-III-18 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).

Na sentença (sem alteração pelo acórdão recorrido) enunciaram-se os seguintes

Factos não provados

8 - A embargante deixou de pagar a prestação que se venceu em 28-II-13.

9 - A ‘C.E.M.G.’ entregou, ou disponibilizou, à embargante a quantia de 459.780,75€.

2.2. O Direito

A presente revista tem como cerne a controvérsia acerca da prova da existência/manutenção do crédito exequendo.

A resposta sobre tal controvérsia depende dos factos provados.

Ora, em regra, o STJ não interfere na fixação da matéria de facto.

Na Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.8) anuncia-se que “[f]ora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito” (art.º 46.º).

Com efeito, estipula o n.º 3 do art.º 674.º do CPC que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Em consonância, no julgamento da revista o STJ aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado “[a]os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido” (n.º 1 do art.º 682.º do CPC) e, reitera-se no n.º 2 do art.º 682.º, “[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.

À Relação, como tribunal de segunda instância e em caso de impugnação da matéria de facto, caberá formular o seu próprio juízo probatório acerca dos factos questionados, de acordo com as provas produzidas constantes nos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do disposto nos artigos 663.º n.º 2 e 607.º n.ºs 4 e 5 do CPC.

Nos termos do disposto no n.º 662.º n.º 4 do CPC, das decisões da Relação tomadas em sede de modificabilidade da decisão de primeira instância sobre matéria de facto não cabe recurso ordinário de revista para o STJ.

O STJ apenas interferirá nesse juízo se tiverem sido desrespeitadas as regras que exijam certa espécie de prova para a prova de determinados factos, ou imponham a prova, indevidamente desconsiderada, de determinados factos, assim como quando, no uso de presunções judiciais, a Relação tenha ofendido norma legal, o seu juízo padeça de evidente ilogismo ou assente em factos não provados (neste sentido, cfr., v.g., acórdãos do STJ de 08.11.2022, proc. nº. 5396/18.5T8STB-A.E1.S1, 30.11.2021, proc. n.º 212/15.2T8BRG-B.G1.S1 e de 14.07.2021, proc. 1333/14.4TBALM.L2.S1, todos consultáveis, assim como os adiante citados, em www.dgsi.pt). Efetivamente, nesses casos estará em causa exclusivamente uma questão de direito, isto é, a aplicação e interpretação de regras jurídicas que regem a prova.

Apreciemos o caso destes autos.

Compete ao exequente o ónus da prova do crédito que dá à execução (art.º 342.º n.º 1 do CPC).

Em princípio, tal prova decorre do título executivo (artigos 10.º n.º 5 e 703.º do CPC).

In casu, foi apresentado como título executivo uma escritura pública formalizando um contrato de abertura de crédito em conta corrente, acompanhada, para a demonstração da legitimidade da exequente, de contratos de cedência de créditos.

Pese embora a apresentação de tais documentos e produzida demais prova, nomeadamente na audiência final, a 1.ª instância não deu como provado que “a “C.E.M.G.” entregou, ou disponibilizou, à embargante a quantia de 459.780,75 €”, nem que “A embargante deixou de pagar a prestação que se venceu em 28.II.13.” (vide factos não provados).

Ainda assim, em sede de apreciação do Direito, a 1.ª instância considerou que, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 358.º do Código Civil, estava provado, por confissão extrajudicial com força probatória plena, que em 16.5.2012 a embargante utilizara € 450 000,00.

E, isto exposto, na sentença reduziu-se a quantia exequenda para € 450 000,00.

A Relação, após ponderar as características do contrato dado à execução e o teor das declarações nele atestadas, assim como o teor do facto por si aditado (n.º 3-A dos factos provados), considerou que não se podia dar como provado que havia sido entregue ou disponibilizada à embargante a quantia de € 450 000,00 e, bem assim, que à data da declaração estava em dívida a quantia de € 450 000,00.

E, assim, tendo concluído que a exequente/embargada não fizera prova da existência do crédito exequendo, a Relação julgou a apelação procedente e declarou extinta a execução.

Vejamos.

Está provado que entre a Caixa Económica Montepio Geral (CEMG) e a executada foi outorgado, por escritura pública, em 29.02.2008, um contrato de “abertura de crédito em conta corrente, com garantia hipotecária”.

Nos termos desse contrato a CEMG obrigou-se a disponibilizar à ora executada um crédito em conta corrente até ao montante de € 450 000,00. A utilização desse crédito seria feita mediante cheques numerados, ordens de transferência ou de pagamento dadas por escrito à CEMG, sacadas sobre uma conta de depósito à ordem em nome da devedora. O contrato foi celebrado por três anos, prorrogável por períodos anuais até ao máximo de dois anos. O capital efetivamente utilizado venceria juros, nos termos do documento complementar que acompanhou o contrato. Findo o contrato, a conta corrente seria encerrada, obrigando-se a devedora ao pagamento do respetivo saldo. O extrato da conta corrente provaria os lançamentos a débito e a crédito na mesma efetuados e o respetivo saldo, sendo considerado documento com força executiva nos termos do art.º 50.º do CPC (cláusula 10.ª do documento complementar).

Mencionado no art.º 362.º do Código Comercial, o contrato de abertura de crédito é um contrato bancário nominado, mas legalmente atípico e que corresponde a um tipo social, sedimentado nos usos e em cláusulas contratuais gerais (cfr. António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6.ª edição, 2016, Almedina, pág. 697).

Pode definir-se o contrato de abertura de crédito como o contrato pelo qual um banco se obriga a ter à disposição da outra parte (creditado) uma quantia pecuniária, que esta tem direito a utilizar nos termos definidos no contrato, por certo período de tempo ou por tempo indeterminado (cfr. acórdão do STJ, de 10.4.2018, processo n.º 18853/12.8YYLSB-A.L1.S2).

Decorre desta noção que se trata de um contrato consensual por oposição a contrato real quoad constitutionem: "fica perfeito com o acordo entre as partes, sem necessidade de qualquer entrega monetária, ao contrário do que sucede com o mútuo clássico" (Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 694).

A abertura de crédito pode ser simples ou em conta-corrente – naquele caso, o beneficiário pode utilizar o crédito de uma só vez ou recorrer a utilizações parciais até atingir o limite fixado, mas sem poder repor o valor inicial; no segundo caso, as restituições das quantias utilizadas permitem repor – no todo ou em parte, de acordo com o valor restituído – a disponibilidade (abertura de crédito revolving) (Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário, pág. 209, citado no mencionado acórdão do STJ de 10.4.2018).

A CEMG obrigou-se, assim, a colocar à disposição da ora executada a quantia acordada, para que a executada a pudesse utilizar nos termos previstos no contrato. O banco não se constituiu, desde logo, credor de uma prestação pecuniária, pois isso só viria a verificar-se com a posterior mobilização pela beneficiária das importâncias disponibilizadas pelo banco.

No contrato ficou estipulado que a devedora poderia mobilizar quantias até ao montante de € 450 000,00. Mais tarde, por meio da alteração contratual mencionada em 3 dos factos provados (outorgada em 16.5.2012), esse montante foi aumentado para o valor de € 460 000,00 (cfr. cláusula sete da alteração).

No art.º 34.º da contestação aos embargos a exequente/embargada alegou que a executada utilizou o capital de € 459 780,75.

Na sentença, o tribunal da 1.ª instância considerou não provado que “A ‘C.E.M.G.’ entregou, ou disponibilizou, à embargante a quantia de 459.780,75€.”

Porém, com base no teor da mencionada alteração ao contrato de abertura de crédito a 1.ª instância deu como provado que a CEMG entregou à executada, até 16.5.2012, a quantia de € 450 000,00.

Com efeito, no aludido documento, efetuado perante notário, as partes consignaram que “O capital efectivamente utilizado pela PARTE DEVEDORA (…) é, na presente data, de quatrocentos e cinquenta mil euros”.

Na sentença entendeu-se que ao caso era aplicável o disposto no n.º 2 do art.º 358.º do Código Civil:

A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.

Ajuizou-se que a aludida declaração era uma confissão, com força probatória plena, pelo que recaía sobre a embargante o ónus de demonstrar não ser verdadeira a utilização de € 450 000,00 em 16.5.2012.

A embargante/executada não satisfez esse ónus, pelo que a 1.ª instância entendeu que a execução deveria prosseguir pelo referido valor.

A Relação enveredou por um caminho diverso.

A Relação fez notar que a dita declaração, de que havia sido utilizado o capital de € 450 000,00, não equivalia ao reconhecimento de que, naquela data, (isto é, em 16.5.2012, data da dita alteração contratual) estava em dívida a quantia de € 450 000,00. Nem, muito menos, que essa quantia ainda estivesse em dívida à data das alegadas cessões/transmissões de crédito ou da instauração da execução.

Nesta parte, acompanha-se o acórdão recorrido.

Já não assim quando, contraditoriamente, no acórdão se acaba por dizer que, não tendo havido qualquer reconhecimento de dívida “só pode concluir-se que a escritura pública em causa não faz prova plena da disponibilização/entrega da quantia de € 450 000,00, pelo que o ónus da prova de entrega dessa quantia cabia à exequente/embargada.

De facto, não se lobriga por que razão o não reconhecimento de que se está a dever uma determinada quantia implica, necessariamente, o não reconhecimento de que se recebeu essa quantia. Pode perfeitamente ter-se recebido uma quantia mas, entretanto, já se ter restituído parte ou a sua totalidade.

Também não se acompanha a Relação quando, já em jeito de argumentação subsidiária, qualificou a exequente de terceiro, para os efeitos previstos no art.º 358.º n.º 2 do CC. Segundo a Relação, tendo a declaração confessória sido emitida face à CEMG, e não perante a exequente, que é (ou se apresenta como tal na execução) cessionária do crédito e que é quem invoca a declaração, esta declaração não tem força probatória plena, devendo ser apreciada livremente pelo tribunal.

Vejamos.

A confissão extrajudicial só tem força probatória plena se for feita à parte contrária ou a quem a represente (n.º 2 do art.º 358.º). A parte contrária é o credor, aquele que é beneficiado pela realidade do facto confessado. Isto por que se entende que só quando a declaração é feita à parte contrária oferece suficientes garantias de seriedade e de ponderação (cfr. Rita Barbosa Cruz, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 837; José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, volume I, Coordenação de Ana Prata, 2.ª edição, 2021 (reimpressão), Almedina, p. 478).

Ora, tendo a dita confissão sido feita perante o banco credor, assume toda a seriedade exigível para que lhe seja reconhecida força probatória plena.

Força probatória essa que não é afetada pela transmissão do crédito. Pela cessão do crédito o cessionário ocupa a posição do credor (artigos 577.º, 582.º, 583.º, 585.º do Código Civil), não sendo, pois, um terceiro face à relação jurídica em que se opera a transmissão. O cessionário deve, aliás, ser munido, pelo cedente, dos documentos e outros meios probatórios do crédito que estejam na sua posse (art.º 586.º do Código Civil).

Os acórdãos que a Relação invoca para sustentar a sua posição (acórdão da Relação do Porto, de 27.01.2020, processo n.º 18080/15.2T8PRT-B.P1; acórdão do STJ de 12.01.2012, processo n.º 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1) respeitam a situações diversas da sub judice. De facto, aqueles acórdãos respeitam a reclamações de créditos deduzidas por apenso a ações de execução, nas quais os exequentes, que não intervieram nas escrituras públicas apresentadas pelos credores reclamantes para provarem os créditos que os reclamantes invocavam terem perante o executado, justamente alegavam serem terceiros para o efeito previsto no art.º 358.º n.º 2 do CC, não tendo a confissão de dívida constante nesses documentos força probatória plena perante eles, exequentes impugnantes de tais créditos.

Ora, apresentando-se a exequente como credora, cessionária do credor perante quem foi produzida a confissão, tal confissão, invocada pela exequente perante a executada confitente, tem força probatória plena.

Assim, não tendo sido apresentada prova em contrário, deve dar-se como provado, como deu a 1.ª instância, que a executada recebeu da CEMG, no âmbito do contrato de abertura de crédito objeto dos autos, a quantia de € 450 000,00.

Estando demonstrado que a executada recebeu a aludida quantia no âmbito de uma operação bancária, da qual decorria a obrigação de restituição dessa quantia ao banco, sobre a devedora recaía o ónus da prova de que essa obrigação se extinguira, nomeadamente mediante o respetivo pagamento (art.º 342.º n.º 2 do Código Civil).

Ora, na petição de embargos a executada não alegou ter pago a mencionada quantia.

E tal pagamento não figura entre os factos dados como provados.

Sendo certo que o facto aditado pela Relação sob o n.º 3A. (segundo o qual a CEMG enviou à ora executada uma carta, datada de 01.7.2013, na qual intimava a ora executada à regularização extrajudicial da dívida, aí indicando como estando em dívida a quantia de 47.899,58 euros) não supre tal omissão, constituindo tão-só um facto instrumental que se mostra contrariado, como refere a recorrente, pelo facto dado como provado sob o número 4 dos factos provados (que em 21.8.2014 a CEMG enviou à executada uma carta na qual refere que a dívida, a essa data, orçava em € 586 000,00).

Assim, devidamente aplicadas as regras de direito probatório material, é de confirmar o entendimento da 1.ª instância, no que concerne à fixação da quantia exequenda em € 450 000,00.

Porém, queda por apreciar aquela que, no acórdão recorrido, era enunciada como a terceira questão objeto da apelação:

“se o crédito de que a Caixa Económica Montepio Geral era titular sobre a executada/embargante foi, válida e eficazmente, cedido/transmitido à sociedade M..., S.A., e, depois, à exequente/embargada”.

Tal questão não foi julgada pela Relação, por esta a ter considerado prejudicada pela apreciação das duas questões anteriores.

À revista não é aplicável o disposto no art.º 665.º do CPC (cfr. art.º 679.º do CPC), pelo que o STJ não se pode substituir à Relação na apreciação dessa questão.

Pelo exposto, os autos devem baixar à Relação, a fim de que seja apreciada a aludida questão, sem prejuízo da procedência da revista no segmento já julgado.

III. DECISÃO

Pelo exposto:

a) Concede-se a revista e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido, nos termos e pelas razões supra expostas;

b) Determina-se que os autos baixem à Relação, para que seja julgada a subsistente questão não apreciada na apelação.

As custas da revista, na modalidade de custas de parte, são a cargo da recorrida, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 529.º do CPC).

Lx, 10.4.2024

Jorge Leal (Relator)

Nelson Borges Carneiro

Pedro de Lima Gonçalves