Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | FONSECA RAMOS | ||
Descritores: | DIVÓRCIO SEM MÚTUO CONSENTIMENTO DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO ACORDOS COMPLEMENTARES CONVERSÃO CASA DE MORADA DE FAMÍLIA DIREITOS PROCESSUAIS DOS LITIGANTES JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 11/13/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DO STJ - Nº 259 - A. XXII - T. III/2014 - P. 112-116 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / DIVÓRCIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. | ||
Doutrina: | - Alexandra Viana Lopes, Divórcio e Responsabilidades Parentais, pp. 148 e 149. - Guilherme de Oliveira, no Estudo “A Nova Lei do Divórcio”, in “Lex Familiae” Ano 7, nº13, 2010, p. 11 e ss.. - Jorge Duarte Pinheiro, O Direito de Família Contemporâneo – Lições, 4.ª edição, 2013, afdl, p. 632. - Rita Lobo Xavier, Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Almedina, 2009, p.19 e seguintes. - Tomé d’Almeida Ramião, O Divórcio e Questões Conexas, 2.ª edição, p. 60. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.º1, 1773.º, 1775.°, 1776.°, 1776.°-A E 1778.°, 1778.º-A, 1779.º, 1781.º E 1785.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 1420.º E 1424.°. CÓDIGO DE REGISTO CIVIL (CRCIV): - ARTIGOS 272.° A 272.°-C. DECRETO-LEI N.°272/2001, DE 13 DE OUTUBRO: - ARTIGOS 12.° E 14.°. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I. Numa acção de divórcio sem mútuo consentimento – intentada ao abrigo da Lei 61/2008, de 31.10 – apenas estando em causa a disputa sobre o destino da casa de morada de família, ouvido o cônjuge réu no sentido de dar assentimento a que a acção fosse convolada para divórcio por mútuo consentimento e afirmando que não se opõe, desde que o problema da casa de morada de família fique acordado entre ambos, e que resolvida essa questão entende nada obstar à conversão, não viola a lei a decisão que converte o processo para a modalidade de divórcio por mútuo consentimento, por se considerar que o fim nodal da acção é pôr termo ao vínculo conjugal, havendo consenso do casal sobre essa questão. II. A falta de acordo dos cônjuges divorciandos quanto a um dos “acordos complementares”, no caso sobre o destino da casa de morada de família, não é incompatível com a pretensão consensual do divórcio, o que está em causa, nesse desacordo, são as consequências do divórcio que o Juiz deve acautelar, promovendo acordo quanto a ela – art. 1778º-A e nº6. do Código Civil. III. Tendo tramitado na acção de divórcio a questão complementar referida em I., com total respeito pelos princípios do contraditório, do pedido e da produção de prova, no contexto da tramitação de processo de jurisdição voluntária, não tendo sido afectados quaisquer direitos das partes sob o ponto de vista processual, tendo elas colaborado com o tribunal, não enferma a decisão de qualquer vício. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. 10731/10.1TBVNG.P2.S1 R-474[1] Revista
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA, intentou em 26.11.2010, no Tribunal de Família e Menores da Comarca de ... – 2º Juízo - Acção de Divórcio Litigioso (divórcio sem consentimento de um dos cônjuges), contra:
BB.
Alegando, em síntese:
Autora e Réu casaram catolicamente e sem convenção antenupcial no dia 4 de Junho de 1988.
Deste casamento existem dois filhos maiores.
O Réu vive na casa de morada de família mas já não dorme, não come nem convive com a mulher, não contribuindo para as despesas do respectivo agregado.
A Autora e o Réu estão separados de facto desde Março de 2007.
Não existem bens comuns a partilhar.
Conclui, requerendo que a acção seja julgada procedente e, em consequência decretado o divórcio entre a Autora e o Réu, tendo por fundamento as alíneas a) e d) do art.1781º do Código Civil.
Realizou-se sem êxito a tentativa de conciliação a que alude o art.º1407º, nº1 do C.P. Civil.
Notificada para o efeito veio o Réu contestar, impugnado parte dos factos alegados pela Autora, designadamente a sua ausência da casa de morada de família e a não contribuição para as despesas do agregado.
Mais afirma que existem bens comuns a partilhar (o recheio da casa).
Conclui, pedindo a condenação da autora como litigante de má fé.
Notificado para vir esclarecer se deduz oposição a que o divórcio em apreço seja convolado para divórcio por mútuo consentimento, veio o Réu dizer que não se opõe desde que seja obtido acordo quanto à casa de morada da família.
Perante tal posição foi então proferido despacho que, não obstante a falta de acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, converteu os autos em divórcio por mútuo consentimento.
Inconformado com esta decisão dela veio recorrer o Réu.
Tal recurso não foi admitido, por se considerar que a decisão recorrida só poderia ser impugnada no recurso que venha a ser interposto da decisão final ou em recurso único a interpor após o trânsito da mesma decisão.
Tal despacho foi objecto de reclamação para a Relação do Porto, que, no entanto. o confirmou.
Entretanto, os autos prosseguiram os seus termos, no que diz respeito à questão em litígio, acabando por ser proferido despacho que decidiu atribuir ao Réu o direito ao arrendamento da casa de morada de família.
A Autora veio interpor recurso de apelação da mesma decisão.
Este recurso foi decidido por acórdão que revogou a decisão proferida e decidiu atribuir à Autora o direito ao arrendamento da casa de morada de família.
Esta decisão foi objecto de recurso de revista por parte do Réu.
O Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto no nº2 do art.º1411º do Código de Processo Civil, não admitiu tal recurso.
*** Na sequência dessa decisão, entretanto transitada em julgado, foi proferida sentença que, nos termos do disposto nos artigos 1775º e 1779º do Código Civil e “tendo por devidamente acautelados os interesses dos cônjuges, homologou os acordos já celebrados nos autos e decretou o divórcio por mútuo consentimento entre os requerentes AA e BB”.
*** Inconformado, o Réu BB, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 27.3.2014 – fls. 313 a 318 –, julgou improcedente o recurso de apelação, confirmando inteiramente as decisões recorridas.
***
Inconformado, interpôs o Réu recurso de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça – que foi admitido por Acórdão de 9.9.2014 – fls. 368 a 372 – tendo alegado e formulado as seguintes conclusões:
I. O recorrente vem pedir revista excepcional ao abrigo do disposto no art. 721º-A, n° 1, a), b) e c) do Código de Processo Civil, em vista do que remete para os fundamentos expostos na 1ª parte das alegações, aqui dados por reproduzidos;
II. Essencialmente alega, atentos os fundamentos invocados, que a questão exposta no recurso não tem sido objecto de decisões mais ou menos consensuais, apesar da sua aparente simplicidade; considerando ainda a natureza da matéria e a incidência que tem no estado da pessoa e relações familiares, não se lhe pode negar a relevância social; por último, a decisão do douto acórdão recorrido está em contradição (ao menos de forma implícita) com a do acórdão fundamento, na medida em que neste se exige a manifestação de adesão de ambos os cônjuges para a conversão de divórcio sem consentimento em divórcio com mútuo consenso, enquanto no acórdão recorrido se convalidou essa conversão, independentemente da expressão dessa vontade por parte de um dos cônjuges;
III. Um dos fundamentos da douta decisão de 1ª instância para decretar o divórcio de mútuo consentimento foi a existência dos “acordos já celebrados nos autos”;
IV. Todavia, quanto à casa de morada de família, não houve qualquer acordo, conforme revela ipsis verbis a acta de fls. 67; ora tendo o recorrente subordinado a existência de tal acordo à sua adesão ao divórcio por mútuo consentimento e não ocorrendo o facto condicionado, tal significa que o recorrente não deu o seu acordo a tal conversão;
V. Entendeu todavia o tribunal que podia enveredar pelo divórcio de mútuo à revelia da vontade de um dos cônjuges, faltando apenas um dos acordos; no caso dos autos foi-se mais longe, pois a conversão do tipo de divórcio ocorreu contra a manifestação de vontade nesse sentido;
VI. Todavia, embora a lei permita que de comum acordo ambos requeiram o divórcio por mútuo, mesmo na falta de um dos acordos a que alude o art. 1775º do Código Civil, não se segue que o tribunal possa suprir motu proprio essa falta de adesão, quando há apenas um dos ditos acordos por preencher;
VII. Por outras palavras, não havendo manifestação conjunta dessa vontade, e hão-de ser os requerentes a manifestá-la e a sujeitar-se às consequências da sua opção, não pode o tribunal enveredar pela dita conversão.
VIII. Face do exposto, a conferência do divórcio para convalidar o divórcio por mútuo consenso (como foi feita) não faz qualquer sentido, pois que é da essência do mútuo acordo a vontade de ambos no mesmo sentido;
IX. Deste modo, a decisão do douto acórdão recorrido que convalidou o entendimento expresso em 1ª instância, ou seja, o de que na falta de um dos acordos era lícito ao tribunal enveredar pelo divórcio de mútuo consenso, mesmo sem manifestação de vontade de ambos os cônjuges nesse sentido, não deve ser mantida, por desconformidade com a lei;
X. A douta decisão, por erro de interpretação, violou as disposições contidas nos arts. 1773º, n°2, 1775º, 1778º-A e 1779º do Código Civil.
Nestes termos, deve ser admitida a revista excepcional, e, admitida, revogada a douta decisão recorrida por violação das disposições referenciadas.
Não houve contra-alegações.
*** Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
Relevam os factos constantes do Relatório: a revista excepcional foi admitida por se considerarem verificados os requisitos das als. a) e b) do nº1, do art. 672º do Código de Processo Civil, e não tanto em função da alegada contradição de julgados, invocada pelo recorrente, que na perspectiva do Acórdão da Formação – fls. 368 a 369 verso – pareceu não se verificar.
Fundamentação:
Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:
- se, no caso, estão preenchidos os pressupostos para converter o divórcio sem consentimento do outro cônjuge, em divórcio por mútuo consentimento, e consequentemente, com base nesta modalidade, decretar o divórcio dos cônjuges, não existindo consenso quanto à atribuição da casa de morada de família;
Foi requerido pela Autora divórcio sem consentimento do outro cônjuge e a convite do Julgador para conversão do divórcio para divórcio por mútuo consentimento, o Réu afirmou que anuiria a essa sugerida conversão [em divórcio por mútuo consentimento] se a disputa sobre a casa de morada de família ficasse acordada entre ambos.
Não obstante esta resposta foi considerado, por despacho de fls. 53:
“Da revisão levada a cabo pela Lei 61/2008, de 31/10, resulta que o divórcio sem consentimento só não se converterá em divórcio por mútuo consentimento se o réu se opuser ao divórcio; não obsta à conversão a falta de um dos acordos previstos no artigo 1775° do Código Civil. Face ao exposto, converto os presentes autos em divórcio por mútuo consentimento.”
A Lei nº61/2008 de 31.10, consagrou, a par do divórcio por mútuo consentimento, uma nova modalidade de divórcio, o “divórcio sem consentimento de um dos cônjuges” (cfr. art.º1773º, nº1, do Código Civil), ou seja, o chamado divórcio sem culpa.
Assim foi alterada a redacção do art.º1773º do Código Civil que consigna:
“1.O divórcio pode ser por mútuo consentimento ou sem consentimento de um dos cônjuges. 2.O divórcio por mútuo consentimento pode ser requerido por ambos os cônjuges, de comum acordo, na conservatória do registo civil, ou no tribunal, se, neste caso, o casal não tiver conseguido acordo sobre algum dos assuntos referidos no nº1 do art.1775º. 3.O divórcio sem consentimento de um dos cônjuges é requerido no tribunal por um dos cônjuges contra o outro, com algum dos fundamentos previstos no artigo 1781º.”
O artigo 1775º passou a ter a seguinte redacção:
“1.O divórcio por mútuo consentimento pode ser instaurado a todo o tempo na conservatória do registo civil, mediante requerimento assinado pelos cônjuges ou seus procuradores, acompanhado pelos documentos seguintes: a) Relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores, ou caso os cônjuges optem por proceder à partilha daqueles bens nos termos dos artigos 272º-A a 272º-C do Decreto-Lei nº324/2007, de 28 de Setembro, acordo sobre a partilha ou pedido de elaboração do mesmo; b) Certidão da sentença judicial que tiver regulado o exercício das responsabilidades parentais ou acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais quando existam filhos menores e não previamente havido regulação judicial; c) Acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça; d) Acordo sobre o destino da casa de morada de família; e) Certidão da escritura da convenção antenupcial, caso tenha sido celebrada. 2.Caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior.”
Resulta da referida lei que são três as modalidades de divórcio: o divórcio por mútuo consentimento requerido na conservatória do registo civil; o divórcio por mútuo consentimento requerido no tribunal e o divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges.
Na primeira modalidade os cônjuges não só estão de acordo em divorciar-se como existe acordo quanto aos “acordos complementares” para usar a expressão de Guilherme de Oliveira, in “Lex Familiae” Ano 7, nº13, 2010, no Estudo “A Nova Lei do Divórcio” e que são: a regulação das responsabilidades parentais dos filhos menores caso não esteja já regulada; o acordo quanto à casa de morada de família se os cônjuges a tiverem; o acordo quanto à prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça e, ainda, o acordo quanto à relação de bens comuns no caso de os cônjuges optarem, desde logo, por procederem à partilha dos bens comuns – artigos 1775.°, 1776.°, 1776.°-A e 1778.° do Código Civil, 272.° a 272.°-C do Código de Registo Civil, 12.° e 14.° do Decreto-Lei n.°272/2001, de 13 de Outubro, 1420º e 1424.° do Código de Processo Civil.
Na segunda modalidade de divórcio as partes apenas estão de acordo quanto ao divórcio não existindo acordo quanto aos “acordos complementares” antes referidos – art. 1778º-A do Código Civil.
Na terceira modalidade não existe, pura e simplesmente, consenso quanto ao divórcio – arts. 1779º, 1781º e 1785º do Código Civil.
No caso em apreço, o divórcio foi requerido pelo cônjuge mulher sem o consentimento do outro cônjuge tendo sido alegada a separação de facto por um ano consecutivo e “a existência de outros factos que mostram a ruptura definitiva do casamento”- arts. 1781º als. a) d) do Código Civil.
Contestada a acção, a Ex.ma Julgadora proferiu o despacho de fls. 48 que diz:
“Face à posição assumida pelo Réu no seu articulado de contestação, notifique-o para esclarecer se se opõe a que o divórcio seja convolado para divórcio por mútuo consentimento”.
O demandado, a fls. 50, informou – “O Réu não se opõe à conversão do divórcio por mútuo consentimento, desde que o problema da habitação (casa de morada de família) fique acordado entre ambos. É que ambos habitam a casa, sendo que o Réu não tem para onde ir, e sofre de uma elevada incapacidade (coluna). O mesmo já não se passa com a Autora que já residiu com a sua mãe. Assim, resolvida esta questão, entende o Réu que nada obsta à convolação.”
Esta afirmação do Réu parece evidenciar um “acordo sob condição”, ou seja, ele dará o seu assentimento a que o divórcio sem consentimento seja convertido em divórcio por mútuo consentimento se existir acordo quanto ao “problema da habitação”, ou seja, quanto ao destino da casa de morada de família, parecendo até que coloca como condição que esse acordo deve ser conseguido antes de acção prosseguir, pois de outro modo, não acederia à conversão. Veja-se o parágrafo final – “Assim, resolvida esta questão, entende o Réu que nada obsta à convolação”.
Um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, assim concluiria – art. 236º, nº1, do Código Civil.
Sobre este requerimento recaiu o despacho de fls. 53:
“Da revisão levada a cabo pela Lei 61/2008, de 31/10, resulta que o divórcio sem consentimento só não se converterá em divórcio por mútuo consentimento se o réu se opuser ao divórcio; não obsta à conversão a falta de um dos acordos previstos no artigo 1775° do Código Civil. Face ao exposto, converto os presentes autos em divórcio por mútuo consentimento. Para conferência designo o dia 25 de Outubro de 2011, pelas l0h00.”
O Réu recorreu deste despacho, entendendo que não havia o indispensável consentimento de ambos os cônjuges quanto a essa conversão, e que fora feita à sua revelia não obstante reconhecer que o art. 1775º do Código Civil não impede a conversão da modalidade de divórcio desde que as partes, mal grado não estarem de acordo quanto a alguns dos tópicos que devem ser objecto de consenso, têm de estar de acordo em se divorciar.
Ou seja, enquanto o Réu põe em causa o propósito de se divorciar por mútuo consentimento se não existir acordo prévio quanto à questão da regulação da atribuição da casa de morada de família como que preferindo arrostar com os inconvenientes da situação de casamento em ruptura, já a Senhora Juíza entendeu que, apesar da afirmação do Réu ser no sentido de não querer a conversão do divórcio sem consentimento para divórcio com consentimento, fulcral era a intenção comum e clara de divórcio não sendo obstáculo à conversão o facto de não haver acordo quanto a uma daquelas questões em relações às quais a lei, prima facie, exige acordo para o divórcio por mútuo consentimento.
O art. 1779º do Código Civil estatui:
“1. No processo de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges haverá sempre uma tentativa de conciliação dos cônjuges. 2. Se a tentativa de conciliação não resultar, o juiz procurará obter o acordo dos cônjuges para o divórcio por mútuo consentimento; obtido o acordo ou tendo os cônjuges, em qualquer altura do processo, optado por essa modalidade do divórcio, seguir-se-ão os termos do processo de divórcio por mútuo consentimento, com as necessárias adaptações”.
Na tentativa de conciliação de fls. 66, ficou assente na acta, além do mais, “por ambas as partes foi dito que pretendem fazer uso da casa de morada de família”.
A Ex.ma Juíza exarou o seguinte despacho – “Uma vez que as partes não chegam a acordo quanto ao uso da casa de morada de família, notifique-se a requerente e o requerido para em dez dias alegarem o que tiverem por conveniente quanto ao uso da casa de morada de família e indicarem as respectivas provas. Solicite ao ISS competente relatórios sociais acerca das condições socioeconómicas da requerente e do requerido.”
As partes apresentaram requerimentos, alegando sobre o tema e oferecerem provas.
O Tribunal, produzida a prova oferecida e a oficiosamente solicitada, decidiu – fls. 152 a 158 – atribuir ao réu BB o direito ao arrendamento da casa de morada de família sita no Empreendimento de D. CC, Rua ..., …, entrada …, Bloco .., freguesia de ..., ....
Tendo o Réu recorrido para o Tribunal da Relação do Porto, foi proferido o Acórdão de 19.12.2012, que, revogando a decisão atribuiu à Autora o direito ao arrendamento da casa de morada de família (casa de habitação social).
O Réu interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que por Acórdão de 12.9.2013, da Conferência, confirmou o despacho do Relator não tendo admitido o recurso, por inadmissível, já que se tratava de decisão proferida em processo de jurisdição voluntária – atribuição da casa de morada de família – art. 1413º do Código de Processo Civil vigente – tendo sido proferida a decisão recorrida com base em critérios de oportunidade e conveniência.
Transitou, pois, a decisão que atribuiu a casa de morada à Autora.
Remetido o processo à 1ª Instância foi proferida a decisão de fls. 286/287, de 15.10.2013 – que, depois de aludir à acção de Divórcio sem Consentimento que foi convertida em Divórcio por Mútuo Consentimento, e ao facto de ter sido proferida decisão quanto à atribuição da casa de morada de família, achando-se devidamente acautelados os interesses dos cônjuges, homologou os acordos já celebrados nos autos, e decretou o Divórcio por Mútuo Consentimento entre os requerentes AA e BB.
O Réu, não se conformando com o facto da decisão referir que houve acordo quanto à conversão do divórcio de sem consentimento para divórcio com mútuo consentimento, e referir também, que havia acordo quando ao destino da casa de morada de família [tendo sido homologados os acordos] e decretado o divórcio entre a Autora e o Réu, recorreu de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça.
Entende que não deu o seu consentimento para a conversão da modalidade de divórcio que tinha de ser consensual e requerida conjuntamente, e que não poderia haver homologação quanto ao destino da casa de morada de família, porquanto sobre essa questão não houve qualquer acordo com a Autora. Considera que a decisão violou a 2ª parte do nº2 do art. 1773º do Código Civil e o art. 1779º do mesmo diploma.
A questão passa, além do mais, pela interpretação da declaração do Réu quando interpelado para informar se estaria na disposição de ser convolado o divórcio de sem consentimento para mútuo consentimento, sendo que na sua resposta, como antes vimos, admitiu essa conversão condicionando-a ao acordo em relação ao destino da casa de morada de família, questão sobre a qual, como desde logo evidencia o processo, era objecto de inconciliável disputa, sendo que o Réu ao dar “condicionalmente” o acordo à convolação a submetia a uma “condição” de validade muito discutível.
O nº2 do art. 1773º do Código Civil dispõe – “O divórcio por mútuo consentimento pode ser requerido por ambos os cônjuges, de comum acordo, na conservatória do registo civil, ou no tribunal se, neste caso, o casal não tiver conseguido acordo sobre algum dos assuntos referidos no nº1 do artigo 1775º”.
Nos termos do art. 1775º um dos acordos é o que se refere ao “destino da casa de morada de família” – nº1 d) deste normativo.
Tendo o divórcio sido intentado pela Autora contra o Réu, tendo logo nos articulados sido mencionada a pretensão de cada um deles ficar com a casa de morada, obviamente que existia impossibilidade legal, “ab initio”, de terem requerido divórcio por mútuo consentimento – art. 1775º do Código Civil.
A falta de acordo dos cônjuges divorciandos quanto a um dos “acordos complementares”, no caso sobre o destino da casa de morada de família, não é incompatível com a pretensão consensual do divórcio, o que está em causa, nesse desacordo, são as consequências do divórcio que o Juiz deve acautelar promovendo acordo quanto a ela – art. 1778º-A e nº6, do Código Civil.
Neste sentido, se bem interpretamos, Jorge Duarte Pinheiro, in “O Direito de Família Contemporâneo – Lições” – 4ª edição – 2013 – afdl – pág. 632:
“Outro aspecto da Lei n° 61/2008, de 31 de Outubro, que merece ser referido, consiste na redução do âmbito do conceito de divórcio litigioso. Anteriormente, a noção de divórcio litigioso incluía as situações em que as partes, pretendendo ambas a dissolução do casamento, não estivessem de acordo quanto a outras matérias, conexas com os efeitos do divórcio. Agora, inclui-se, a nosso ver correctamente, tais situações no campo do divórcio judicial por mútuo consentimento (cfr., supra, Parte III, nº34.2 V)”.
Se o Réu não anuiu à pretensão de convolação do divórcio sem mútuo consentimento que contra si foi intentado, apenas por pretender que existisse um acordo prévio sobre o destino da casa de morada de família, a imposição de uma “condição” de discutível legalidade não era obstáculo à convolação do divórcio para mútuo consentimento, tendo em conta que as partes queriam o divórcio, apenas não estando de acordo quanto à questão do destino da casa de morada de família, o que sempre imporia ao tribunal que a decidisse como “consequência do divórcio” que, repita-se, ambos os cônjuges desejavam, questão que deveria tratar “como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges”, como preceitua o nº3 do art. 1778º-A do Código Civil.
Sobre o complexo regime processual, Rita Lobo Xavier, in “Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais”, Almedina, 2009, pág.19 e seguintes, (obra citada no Acórdão recorrido), pronunciou-se criticamente, afirmando que “suscita alguma perplexidade a ordem de tarefas cometidas ao Tribunal no caso do divórcio por mútuo consentimento”, referindo que não obstante a ideia de que as consequências do divórcio deveriam ser apreciadas “de forma global e integrada”, com o regime legal actualmente em vigor, “a solução de um processo único será sempre inviável”.
Aduzindo – “Se, por um lado, o nº4 do art. 1778º-A implica que o juiz deverá determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, de acordo com o princípio da adequação formal previsto no art.º 265º-A do Código de Processo Civil, não se pode deixar de considerar que a aplicação (remissiva) do regime do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges conduz a que cada uma das consequências do divórcio enunciadas continua a ser tratada com autonomia relativamente à acção de divórcio”.
Exemplifica com a questão da atribuição da casa de morada de família, em relação à qual o artigo 1413º, nº 4, do Código de Processo Civil prevê que o pedido seja deduzido por apenso à acção de divórcio.
Sobre esta questão, Tomé d’Almeida Ramião, sustenta que:
“O legislador não pretendeu que na fixação dessas consequências, o juiz “aplique as regras processuais aplicáveis ao divórcio sem consentimento de um dos cônjuges”, ou seja, não pretendeu remeter para o regime processual previsto nos artigos 1407.° e 1408.° do Código de Processo Civil e afastar o regime processual aplicável ao divórcio por mútuo consentimento, previsto nos artigos 1419.° a 1424.° do Código de Processo Civil, por incompatível com o regime instituído no artigo 1778.°-A. Se assim fosse, tê-lo-ia dito, nomeadamente que seria aplicável esse regime processual; com as devidas adaptações” – cfr. “O Divórcio e Questões Conexas” 2.ª edição, pág. 60.
O mesmo Autor afirma ainda:
“Estamos em presença de um divórcio por mútuo consentimento e, por isso, a decisão a proferir nas questões sobre que os cônjuges não acordaram, será proferida como se se estivesse perante um divórcio por mútuo consentimento. Fixa as consequências como se tratasse de um divórcio por mútuo consentimento de um dos cônjuges, porque não o é. No divórcio sem consentimento, o juiz não aprecia, nem decide, essas questões. Elas não constituem objecto da acção de divórcio sem consentimento. Aqui apenas se aprecia e decide do divórcio e, eventualmente, e apenas a título provisório, da atribuição da casa de morada de família, dos alimentos entre cônjuges e do exercício das responsabilidades parentais, nos termos do artigo 1407.º, n.°7 do Código de Processo Civil”- (ob. citada pág. 60).
Ainda a propósito do problema processual da tramitação de questões complementares que o Juiz deve decidir como se o divórcio fosse sem mútuo consentimento, Alexandra Viana Lopes, in “Divórcio e Responsabilidades Parentais”, págs. 148 e 149, escreve:
“Na acção de divórcio com consentimento, não estando previsto procedimento adequado para a definição das consequências do divórcio, deve este decorrer de acordo com as regras gerais […] […] No caso de devolução de competência para o tribunal em processo inicialmente entrado na conservatória do registo civil relativamente a qualquer um dos consensos, sem que o juiz tenha vindo a conciliar as partes, ou no caso de convolação de uma acção de divórcio sem consentimento, deve o juiz suscitar a dedução do incidente, ao qual cada um dos cônjuges formule o seu pedido, alegue os factos integrativos da causa de pedir e indique a prova, incidente a que se seguirá as regras gerais de contraditório, prova e julgamento (artigos 302.° e seguintes do Código de Processo Civil). Em todo o caso, enxertando-se as discussões sobre as consequências do divórcio na própria acção de divórcio com consentimento, não se pode deixar de prever uma grande complexidade processual, com o acentuar da demora na definição das pretensões litigiosas, em face da diversidade de qualidade de cada uma das partes nas diferentes pretensões. A parte que entender que as regras incidentais constituem uma diminuição das garantias em face das acções comuns de alimentos, de atribuição de casa de morada de família e de regulação das responsabilidades parentais, pode revogar o consentimento do divórcio por mútuo consentimento e instaurar ou aguardar a instauração de acção de divórcio sem consentimento, com a cumulação do pedido de alimentos e a instauração das acções conexas em que venha a pedir a definição desses interesses (artigos 470.°, n.°2 e 1413.°, do Código de Processo Civil e artigos 154.°, n.°4 e 174.° e seguintes do Decreto-Lei n.°314/78, de 27 de Outubro”. (destaque e sublinhado nosso)
Por nós, entendemos, atentos os princípios essenciais do contraditório, do pedido, da igualdade das partes e da adequação processual, tendo em conta que a atribuição da casa de morada de família se inscreve num processo de jurisdição voluntária, no caso em apreço, o Juiz, ao abrigo do nº4 do art. 1778º-A do Código Civil, poderia resolver o litígio, procedendo no contexto da acção de divórcio à adequação processual que a natureza da disputa e a celeridade do caso impunham.
Cumpre dizer que até o recorrente assim entendeu porquanto, louvavelmente, cooperou com o Tribunal, alegando as suas razões em ordem a obter para si casa de morada, decretado que fosse o divórcio, e indicou testemunhas, tal como a Autora, tendo havido escrupuloso cumprimento daqueles princípios processuais, que mais não visam que uma solução justa, equitativa e oportuna com rigoroso respeito pelos direitos das partes, sendo que no caso não se tratava de decidir a questão em disputa incidentalmente mas definitivamente. Foram adoptados os critérios da jurisdição voluntária, quanto ao julgamento, sem oposição das partes.
Guilherme Oliveira (obra citada, págs. 11 e segs,) abordando o caso em que o processo de divórcio tramita no tribunal por não poderem ser homologados os “acordos complementares” afirma:
“Regresso à competência dos tribunais. Nos casos referidos acima, o divórcio regressa, pois, para a competência dos tribunais, acrescendo aos casos em que o processo começou pela via litigiosa e foi convertido em divórcio por mútuo consentimento. O art. 1778.°-A determina os procedimentos do tribunal, com vista ao suprimento do acordo dos cônjuges e à fixação do regime ou dos regimes que eles não conseguiram encontrar de um modo digno de homologação. Porém, a Lei n.º61/2008 ficou omissa quanto à forma processual que devem seguir estas diligências que ficam cometidas ao juiz, “como se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges”. Como sugestão de aditamento, creio que se devia estabelecer que estes procedimentos seguissem a forma da jurisdição voluntária, como esteve na intenção original (não explicitada) da reforma da lei e como parece mais apropriado”.
Como explicita o Ilustre tratadista ficaria de fora deste tratamento a questão da não homologação do acordo sobre alimentos entre ex-cônjuges, por não ser de dirimir a questão no contexto do processo de jurisdição voluntária, mas antes no contexto de acção declarativa adrede instaurada.
Finalmente, cumpre dizer que ao recorrer, revista excepcional, e colocando o Réu de novo a questão da atribuição da casa de morada de família à Autora/recorrida, questão julgada em definitivo na Relação, o recorrente infringirá o caso julgado formado com aquela decisão.
À parte a questão da convolação antes referida, a decisão da 1ª instância de fls. 286/287, que motivou o recurso excepcional, foi proferida após aquela decisão decretando o divórcio, considerando além do mais, que homologava “os acordos já celebrados nos autos”, tendo antes referido “não havendo filhos menores do casal cujo exercício das responsabilidades parentais haja que regular, tendo sido proferida decisão quanto à atribuição da casa de morada de família, e tendo ambos os cônjuges prescindido de pensão de alimentos à requerente, tudo conforme fls. 53, e 66 e 67 e decisão que consta dos autos quanto à atribuição da casa, encontram, por isso, reunidos pressupostos legais do Divórcio por Mútuo Consentimento”.
O que em bom rigor se quis dizer foi que a única questão que importava resolver para que fosse decretado o divórcio – a da atribuição da casa de morada de família – tinha sido decidida, e, por isso, nada impedia a decisão que faltava. A alusão a “acordos já celebrados”, posto que menos correcta no contexto do processo deveria ter sido entendida nos exactos termos que pretendia significar.
Pelo quanto dissemos, o recurso não merece provimento.
Sumário:
I. Numa acção de divórcio sem mútuo consentimento – intentada ao abrigo da Lei 61/2008, de 31.10 – apenas estando em causa a disputa sobre o destino da casa de morada de família, ouvido o cônjuge réu no sentido de dar assentimento a que a acção fosse convolada para divórcio por mútuo consentimento e afirmando que não se opõe, desde que o problema da casa de morada de família fique acordado entre ambos, e que resolvida essa questão entende nada obstar à conversão, não viola a lei a decisão que converte o processo para a modalidade de divórcio por mútuo consentimento, por se considerar que o fim nodal da acção é pôr termo ao vínculo conjugal, havendo consenso do casal sobre essa questão.
II. A falta de acordo dos cônjuges divorciandos quanto a um dos “acordos complementares”, no caso sobre o destino da casa de morada de família, não é incompatível com a pretensão consensual do divórcio, o que está em causa, nesse desacordo, são as consequências do divórcio que o Juiz deve acautelar, promovendo acordo quanto a ela – art. 1778º-A e nº6. do Código Civil.
III. Tendo tramitado na acção de divórcio a questão complementar referida em I., com total respeito pelos princípios do contraditório, do pedido e da produção de prova, no contexto da tramitação de processo de jurisdição voluntária, não tendo sido afectados quaisquer direitos das partes sob o ponto de vista processual, tendo elas colaborado com o tribunal, não enferma a decisão de qualquer vício.
Decisão.
Nega-se a revista.
Custas pelo Réu/recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.
Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Novembro de 2014
Fonseca Ramos (Relator) Fernandes do Vale Ana Paula Boularot _______________________________ |